sábado, 23 de julho de 2022

TODO ANIMAL FICA TRISTE APÓS O COITO - Uma observação e uma consulta


Por Justin Glenn *

Traduzido do inglês por Francisco José dos Santos Braga

... exceto a mulher e o galo.

 

Num de seus estudos de caso, Sigmund Freud enunciou um famoso dito latino que tem sido citado frequentemente, cuja fonte parece não ter sido rastreada conclusivamente: "Omne animal post coitum triste". ¹ A opinião expressa nesse provérbio foi geral na antiguidade e tem continuado a interessar pesquisadores modernos. Ao tentar fazer um comentário sobre essa citação notável mas imprecisa, também espero provocar uma resposta da parte de algum leitor que possa confirmar ou refutar sua pretensa fonte: o escritor e médico Galeno. 

O contexto, no qual Freud menciona esse dito, é o seguinte: 

"É bastante possível que o ponto de partida de uma leve melancolia como esta possa sempre ser um ato de coito um exagero do dito fisiológico 'omne animal post coitum triste'. [Lê-se uma nota de rodapé correspondente ao que está entre parênteses do editor: " 'Todo animal fica triste após copular.' Esta citação não foi rastreada." ²
Este provérbio é citado como anônimo por Havelock Ellis e Gaston Vorberg, embora este último o tenha citado na forma mais completa: "omne animal post coitum triste praeter gallum mulieremque" ("Todo animal fica triste, exceto um galo e uma mulher"). ³ Alfred C. Kinsey et al., em seu famoso relatório sobre Comportamento Sexual na Mulher, mencionam a citação e a atribuem a Galeno: 
"Um pronunciado relaxamento do corpo todo é o mais amplamente reconhecido efeito do orgasmo. O famoso aforismo 'post coitum triste' (fica-se triste após a cópula) não é apenas uma distorção da afirmação original de Galeno, mas uma descrição inadequada do estado geralmente relaxado de uma pessoa que tenha experimentado orgasmo. Não há nem pesar, nem conflito, nem qualquer traço de tristeza para a maioria das pessoas que tenham experimentado orgasmo. Há, pelo contrário, um relaxamento, uma calma, uma paz, uma satisfação com o mundo que, nas mentes de muitas pessoas, é o aspecto mais notável de qualquer tipo de atividade sexual. [Lê-se numa nota de rodapé: "Galeno (ca. 130-200 d.C.) realmente disse: Triste est omne animal post coitum, praeter mulierem gallumque (todo animal fica triste após o coito, exceto a mulher e o galo."

Essa referência simplesmente a "Galeno" é um tanto vaga, para dizer o mínimo, em vista do fato que este escreveu mais de uma centena de tratados e que sua obra completa atinge vinte volumes grossos. Também, é bastante estranho insinuar que essas são suas próprias palavras, uma vez que ele escreveu exclusivamente em grego, não em latim. Contudo, nos dias de Freud, Galeno era frequentemente estudado e citado em tradução latina que acompanhava o texto grego na edição autorizada de C. G. Kuhn. É inteiramente possível, então, que essa citação seja derivada, em última análise, de Galeno, porém isso precisa ainda ser confirmado. 

Enquanto a fonte exata dessa citação fica imprecisa, a opinião geral é que ela está claramente enraizada numa longa tradição clássica. A afirmação atribuída a Galeno possui três elementos: (1) depressão pós-coito, (2) a superioridade libidinal das mulheres, e (3) a superioridade libidinal do galo. Tanto (1) quanto (2), mas especialmente este último, foram claramente afirmados pelos autores clássicos que precederam Galeno por muitos séculos. O tema da depressão pós-coito é pelo menos tão antigo quanto o tratado aristotélico Problemas (877b. ou 4. 10, 12 em algumas edições), que coloca a questão: "Por que as pessoas jovens, quando se iniciam na relação sexual, temem aqueles(aquelas) com os(as) quais se uniram após o término do ato?" Numa variante posterior (séc. I d.C.), Plínio o Velho na sua História Natural (Livro 10, cap. 83, seção 171), oferece a seguinte visão: "O homem (homo, significando tanto o macho como a fêmea) é o único animal, para o qual o coito pela primeira vez é seguido de repugnância."

O tema da libido dos homens ser inferior ao das mulheres tem uma longa história na literatura clássica de Hesíodo (ca. 700 a.C.) à idade de ouro ateniense dos séculos V e IV a.C. e ao longo do período romano seguinte. Dos fragmentos do poema perdido Melampodia de Hesíodo, ficamos sabendo que foi a fonte mais antiga de um famoso provérbio mítico sobre os prazeres do amor. De acordo com o mito, Zeus e sua esposa Hera uma vez debatiam sobre a questão de quem apreciava mais o sexo: homens ou mulheres? Eles pediram ajuda a a um árbitro, o único mortal que tinha experimentado relação tanto com um homem quanto com uma mulher, o vidente tebano Tirésias. Sua famosa resposta (que é citada um pouco diferentemente nos vários relatos dele) tinha sido traduzida da seguinte forma: "Das dez partes [do prazer de amor] um homem goza apenas uma, porém o sentido de uma mulher goza de todas as dez na sua totalidade." A mesma história foi contada com leves variações por muitos escritores clássicos mais antigos, entre os quais o mais famoso é Ovídio (Metamorfoses, 3 316-338) e Apolodoro (A Biblioteca, 3 6.7). Quanto a Hesíodo, parece ter tido segundos pensamentos sobre o assunto. Seu poema As Obras e os Dias (586-588) defende que é (apenas?) no verão que a libido da mulher é forte e a do homem é fraca uma visão que foi compartilhada por muitos autores clássicos subsequentes, incluindo Aristóteles, conforme documentado por M.L. West.  Finalmente, podemos voltar-nos para Eurípides e Nonnus para duas ilustrações adicionais desse estereótipo clássico (que a mulher tinha uma libido superior, porém excessiva). A heroína na tragédia Andrômaca de Eurípides (220-221) proclama: "Bem, nós mulheres somos contaminadas / Com uma pior doença do que os homens, mas tentamos ocultá-la". ¹⁰ A "doença" em questão aqui, como inúmeros comentaristas incluindo Paley e Stevens apontaram, é a dolorosa paixão de amor. ¹¹ Próximo ao fim da antiguidade, Nonnus escreveu no seu poema épico Dionisíaca (Livro 42, 209-210): "Toda mulher tem maior desejo do que o homem, mas, cheia de vergonha, oculta a picada do amor, embora esteja louca por amor ela própria."  ¹² 

 

BIBLIOGRAFIA 

 

¹  The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, ed. James Strachey et al., 2 (London, 1966), p. 199; daqui por diante citado como Freud. 

²  Freud, pp. 198-99 (e nº 1, p. 199) 

³  Havelock Ellis, Studies in the Psychology of Sex, III (Philadelphia, 1924), p. 247, Gaston Vorberg, Glossarium Eroticum (Hanau, 1965), p. 647 

Alfred C. Kinsey et al., Sexual Behavior in the Human Female (Philadelphia, 1953), pp. 637-38 (and nº 54, p. 638) 

Karl G. Kühn, ed. e trad. Claudii Galeni Opera Omnia, 20 vols. (Leipzig, 1821-33) 

Aristóteles, Problems, trad. W.S. Hett (Cambridge, Mass. 1926), p. 117 

Plínio o Velho, Natural History, trad. H. Rackham, III (Cambridge, Mass. 1940), p. 401 

Hesíodo et al., Hesiod, the Homeric Hymns and Homerica, trad. H.G. Evelyn-White (Cambridge, Mass., 1936), p. 269. Tirésias, obviamente, era o famoso vidente cego da mitologia. Esse mito em particular foi concebido para explicar como ficou cego. Originalmente um homem, Tirésias foi magicamente transformado em uma mulher após uma encontro com duas serpentes copulando. Sete anos mais tarde, um encontro semelhante transformou-o de volta num homem. Mais tarde ficou envolvido num debate de Zeus com Hera sobre os prazeres da atividade amorosa. Sua decisão em favor de Zeus induziu a irada Hera a cegá-lo. 

  Martin L. West, ed. Hesiod Works and Days (London, 1978), p. 305. Cf. also Alcaeus, frag. 2.23 (Lobel-Page). 

¹⁰  David Grene and Richmond Lattimore, eds., The Complete Greek Tragedies. Vol. 3, Euripides (Chicago, 1959), p. 568. 

¹¹  F.A. Paley, ed. Euripides, II (London, 1874), 254; P.T. Stevens, ed. Euripides' "Andromache" (London, 1971), p. 121. 

¹²  Nonnus, Dionysiaca, trad. W.H.D. House, III (Cambridge, Mass. 1940), p. 243. 

 

* Florida State University 

 

BIBLIOGRAFIA 

 

GLENN, Justin: "'Omne Animal Post Coitum Triste': A Note and a Query" (PDF). "American Notes and Queries" 21 ((November 1982):49-51. 

 

OBSERVAÇÃO: Queira Deus que eu possa, em aceitando o desafio do autor, num trabalho futuro de pesquisa revelar a fonte do antigo aforismo aqui tratado, confirmando ou refutando sua suposta fonte: o escritor e médico Cláudio Galeno (129-199 d.C.). Portanto, informo que já dei início à minha pesquisa, pesquisando e consultando fontes greco-latinas sobre elementos probatórios para então voltar a esse tema proximamente com argumentos robustos e quiçá com a solução.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O artigo que ora lhe envio foi publicado originalmente numa revista norte-americana em 1982 e ganhou grande notoriedade nos círculos especializados em cultura clássica, mas não só: seu tema foi muito explorado por crônicas e artigos de revista, periódicos e desenhos humorísticos por todo o mundo.
Venho advertir o(a) leitor(a) de que este é um artigo que tem a pretensão de ser científico, embora não seja conclusivo, como pretendia.
Seu autor, JUSTIN GLENN, analisa um provérbio expresso por FREUD, pretensamente atribuído ao escritor e médico GALENO, que seria o autor de um aforismo que cita uma leve melancolia advinda da atividade sexual, ou seja: "Todo animal fica triste após o coito." Nesse artigo, o autor faz uma observação e pede aos pesquisadores que o ajudem a descobrir a fonte na antiguidade clássica e pós-clássica (sugerindo até a possibilidade de ser um autor medieval).

https://bragamusician.blogspot.com/2022/07/todo-animal-fica-triste-apos-o-coito.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Até comida farta dá sono...
Abs

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Obrigado. Vou ler com proveito Abraço do Gilberto Mendonça Teles

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Caro Francisco Braga,
Interessante estudo.
A carne é triste.
O amor tem que ser chama vermelha da paixão e azul do espírito.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Obrigado, Francisco.
Mas "repugnância"? "tristeza"? Não sei não.
Não seria generalização dos próprios sentimentos, por parte dos autores?
Uma certa melancolia, vá lá, mas por ter acabado...

Geraldo Reis (poeta) disse...

Muito obrigado, viu? Vou ler com atenção. Um abraço poético e marianense.

Sandra Corrêa Nunes disse...

Não me atreveria a atribuir a alguém o aforismo. Tenho muito a aprender e viver para, com segurança falar desse tema. Mas como mulher posso ousar. Creio ser a completa explosão de entrega de si. Chegar a esse ponto é poder alcançá-lo vezes mais, põe sim a mulher no controle do ato e de sua duração. O fato de ser mais propensa a se envolver emocionalmente, aparentemente seria uma desvantagem. Mas nem tanto assim, porque é nosso o poder de manter a magia. Faz a eternidade do momento. Em nada se parece com tristeza ou repugnância. Talvez na época do escrito, fosse comum relacionamentos tratados por terceiros, a mulher e o homem não fossem donos de si e dos seus sentimentos, esses sentimentos estivessem presentes. Obrigada, pelo texto!

José Carlos Gentili (escritor, jornalista, membro da Academia de Letras de Brasília, da Academia Brasileira de Filologia e da Academia das Ciências de Lisboa) disse...

Meu caro Braga.
Adorei seu artigo. Genial.
Gentili

Felipe Ortiz disse...

Prezado Braga,


Com atraso, mas com grande interesse, li a sua tradução do artigo de Justin Glenn. Eu já havia ouvido esse brocardo outras vezes, mas não sabia que a fonte (real ou presumida) era Galeno.

Agora torço para que você consiga matar a charada e elucidar de vez a questão! Em nossos dias, as ferramentas de busca em textos digitais tornam, ainda que não exatamente fáceis, ao menos exequíveis as pesquisas desse tipo em corpos textuais tão extensos quanto os de Galeno.

Sucesso nas pesquisas!

Forte abraço,
Felipe Ortiz