terça-feira, 4 de outubro de 2022

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte 2

Por Yánnis K. Tsédos
Traduzido do grego por Francisco José dos Santos Braga

 

 
Ágora, filme espanhol de Alejandro Almenábar, 2009

 
 
 
I. INTRODUÇÃO DO TRADUTOR/GERENTE DO BLOG
 
 
Cumprindo o dever de apresentar o contraditório ao que foi expresso em texto anterior, Hipátia de Alexandria > > Parte 1, em que houve uma narrativa extraída de fontes primárias em relação à Hipátia, postado no Blog do Braga em 17/09/2022, apresentando-a como filósofa neoplatônica, professora, matemática e astrônoma alexandrinense e, principalmente, perseguida e arrastada por uma turba de cristãos fanáticos até o local de seu massacre ocorrido na Páscoa de 415 d.C., tendo deixado incerteza sobre a autoria do crime (embora tenha sido apontado que Cirilo, o Patriarca de Alexandria, na ocasião tivesse algum envolvimento), hoje venho trazer ao leitor um texto apologético que isenta o clero alexandrinense de estar envolvido nos fatos trágicos e nas situações que possibilitaram a eclosão de um movimento que culminou com a morte cruenta de Hipátia. 
Nele o autor grego apresenta a evolução da figura de Hipátia através da História, entendendo que o mito e o símbolo da sua representação mental foram fartamente utilizados por escritores nos seus romances "históricos", do Iluminismo em diante, artistas visuais, diretores de cinema e defensoras do feminismo. 
O texto traz poucas informações sobre a Hipátia histórica. Considera que a forma como foi apresentada ao longo da História tem sido basicamente uma "falsa narrativa anticristã", mas deixa de abordar as razões e fatores que levaram determinados cristãos a mudar a sua posição outrora de mártires e perseguidos a se tornarem perseguidores implacáveis e intolerantes. Também não traz ao debate uma análise sobre o início da extrapolação do poder clerical ou eclesiástico na sua tentativa de sufocar ou eclipsar as mentes brilhantes nas ciências (especialmente, na astronomia) e na filosofia. Finalmente, não adianta nenhuma justificativa plausível e razoável para a atitude anticristã da turba enfurecida de cristãos fanáticos na Alexandria contra a vida de uma filósofa injustiçada, inofensiva, inocente e que possuía vários discípulos cristãos. 
 
É verdade que o autor do texto promete ampliar sua pesquisa (possivelmente na forma de livro), quando, então, terei muito prazer de apreciar este seu próximo trabalho, mais abrangente e compreensivo, prometendo ele "reconstruir o mito de Hipátia" e esclarecer que ela teria sido "vítima de uma disputa intracristã". 
 
Em razão da existência de diferentes visões sobre o mesmo evento, só me resta concluir que não há uma única e fácil explicação para as motivações envolvendo o caso do homicídio de Hipátia. 
 
 
II. TEXTO: A estória de uma falsa narrativa anticristã que ignora a História - A gênese e o desenvolvimento do mito de Hipátia 
 
Por Dr. Yánnis K. Tsédos 
 
Nos últimos três séculos, repete-se constantemente um ataque calunioso sem precedentes, contra a Igreja e São Cirilo, centrado no assassinato de Hipátia. Uma Hipátia falsa e mítica, (ou melhor, muitas Hipátias falsas e míticas), que pouco têm a ver com a verdadeira Hipátia histórica. O seguinte artigo de Yánnis Tsédos conta a história desta calúnia, onde cada um usa sua própria régua para medir sua própria "Hipátia", a fim de combater a Igreja e apoiar as suas ideias doentias. 
O recente filme sobre o tema da filósofa Hipátia e seu hediondo assassinato na Ágora de Alexandria, produzido em 2009 e estreado na Grécia em 28 de janeiro de 2010, um filme de Alejandro Amenábar (com uma excelente Rachel Weisz no papel principal) ¹, deu origem a muitas perguntas importantes: Quem é essa Hipátia? O que é esse novo ataque contra a Igreja? Um novo ataque, como parece a muitos, mas é claro que se move claramente no antigo padrão testado: o padrão de demolir os mitos do Cristianismo, o padrão de revelar a verdade cuidadosamente escondida por muitos séculos... 
 
1. A acusação 
 
O vil assassinato da filósofa e matemática Hipátia em março de 415 d.C. em Alexandria, Egito, um assassinato no qual muitos não hesitam em implicar até mesmo o Patriarca de Alexandria Cirilo, que aparece na melhor das hipóteses como o perpetrador moral do assassinato, constituiu em muitos casos, como teremos ocasião de ver a seguir, um ponto central na acusação contra o Cristianismo. 
Se quisermos ser absolutamente honestos, devemos admitir que temos diante de nós uma acusação daquelas que, para dizer o mínimo, consegue angariar as impressões: um assassinato é, de qualquer maneira, por definição, o mais grave dos crimes, e pior, o assassinato é descrito como particularmente hediondo e abominável. E como se o acima citado não bastasse, não se trata do assassinato de nenhum ser humano, mas do assassinato de um filósofo e não apenas de um filósofo, mas de uma filósofa. Se considerarmos como era difícil para uma mulher se tornar famosa como filósofa e cientista em uma época que não favorecia em nada a distinção das mulheres, percebemos que Hipátia não foi apenas uma vítima inocente, mas sem dúvida uma grande personalidade, que por razões óbvias exerce um fascínio especial para muitos hoje. (É digno de nota que Margaret Alic, num conhecido livro com o título distintivo "O Legado de Hipátia. A história das mulheres na ciência da Antiguidade ao século XIX" ², descreve Hipátia como "a cientista mais famosa antes de Marie Curie" ³. Todo o exposto acima apresenta Hipátia como mártir e, claro, leva não só a uma condenação inequívoca do crime hediondo, mas também a uma justa indignação contra os covardes assassinos. 
A acusação parece atingir seu objetivo: o Cristianismo parece não ter prevalecido apenas graças à obscuridade que apagou a luz da filosofia grega, não ter se apoiado somente sobre as cinzas de livros queimados, nas ruínas de templos antigos e nos membros quebrados das estátuas antigas, mas também ter pisado literalmente em cadáveres, e ainda por cima em cadáveres de inocentes. E, claro, se os cristãos não hesitaram em assassinar de forma hedionda uma filósofa, então parece não haver crime que eles não fossem capazes de cometer. O estudioso objetivo e sem preconceitos, no entanto, não terá dificuldade de descobrir que tudo isso não passa de um mito cuidadosamente cultivado. 
Embora sejam escassas as fontes nas quais se faz menção a Hipátia e seu assassinato, a presença de Hipátia nas obras de autores mais recentes, especialmente do Iluminismo em diante, é deveras impressionante . Se alguém seguir a bibliografia pertinente, não terá dificuldade de constatar que o mito de Hipátia nasceu logo desde o início no contexto do ataque contra o Cristianismo, e que muitos elementos individuais do mito de Hipátia são facilmente explicados pelos diversos motivos e diferentes intenções dos críticos contumazes do Cristianismo.
 
2. Hipátia do Protestantismo 
 
Não é por acaso que Hipátia apareceu pela primeira vez na literatura moderna no primeiro quartel do século XVIII, e especificamente em 1720, num livro do pensador irlandês John Toland (1670-1722). Toland foi um dos primeiros intelectuais da chamada Era do Iluminismo. Ele foi criado como católico, mas ao longo do caminho ele aderiu ao Protestantismo, e suas pesquisas filosóficas o levaram ao deísmo. O título prolixo do livro de Toland revela por si mesmo as intenções do autor: “Hipátia, ou a história de uma senhora extremamente bela, extremamente virtuosa, extremamente culta e em todos os sentidos completa — que foi despedaçada pelo clero da Alexandria, para satisfazer a arrogância, a inveja e a ferocidade do arcebispo, que é comumente mas imerecidamente chamado de São Cirilo" ). O breve tratado de Toland é dominado por um típico anticlericalismo protestante. Toland encontrou na história de Hipátia uma excelente oportunidade para atacar a autoridade da Igreja Católica e do clero, que ele via como responsáveis pelo assassinato desumano da filósofa. 
 
3. Hipátia do Iluminismo 
 
O século XVIII marca a gênese do mito de Hipátia, o qual, no entanto, muito rapidamente tomou um rumo diferente daquele que Toland desejava. Não esqueçamos que o século XVIII é o século do Iluminismo, a chamada "Era das Luzes", que louvou a reta razão e em vários casos não hesitou em entrar em conflito aberto com o Cristianismo.
Nesse exato contexto, Voltaire (1694-1778), um dos líderes do Iluminismo, viu no rosto de Hipátia o símbolo da resistência da reta razão contra a tempestade do dogmatismo e do obscurantismo cristãos. De acordo com Voltaire, o assassinato de Hipátia foi "um assassinato brutal cometido pelas mãos ordenadas de Cirilo, com uma gangue fanática por trás delas" (na melhor das hipóteses, Cirilo aparece como o perpetrador moral do assassinato de Hipátia, que "desencadeou contra ela a multidão cristã"), Voltaire mostra Hipátia tombando assassinada, porque ela acreditava nos deuses dos gregos, nas leis da natureza racional e nas habilidades da mente humana livre de dogmas .
O famoso historiador inglês do século XVIII Edward Gibbon (1737-1794), fortemente influenciado pelos princípios do Iluminismo, se move exatamente no mesmo contexto, escrevendo caracteristicamente que Cirilo "causou ou aceitou o sacrifício de uma virgem, que ensinava religião dos gregos" . Como comenta Maria Dzielska, esta apresentação do assassinato de Hipátia combina perfeitamente com a teoria de Gibbon de que o surgimento e disseminação do Cristianismo foi o fator decisivo que provocou a queda da civilização antiga. Através do assassinato de Hipátia, Gibbon mostra a diferença entre o velho e o novo mundo: por um lado, Hipátia como representante do discurso e da cultura espiritual, por outro, Cirilo e o Cristianismo como representantes do dogmatismo e da barbárie desenfreada.

4. Hipátia da literatura romântica 

Não seria descabido dizer que, do Iluminismo em diante, Hipátia quase deixou de ser tratada como figura histórica, tornando-se um símbolo. Desde então, o mito de Hipátia foi moldado sem muita atenção para com a verdade histórica — às vezes até com um desdém grosseiro —, atingindo seu auge em meados do século XIX. O paradoxo é que não atingiu seu ápice graças a historiadores ou filósofos, mas a... Escritores!
 
O poeta francês Leconte de Lisle (Charles Marie René Leconte de Lisle, 1818-1894), líder do movimento parnasiano, escreveu dois poemas com o título "Hipátia", um em 1847 e outro em 1874. O segundo nos dá uma abordagem descaradamente anticristã para a morte de Hipátia: 
"O miserável Galileu te bateu e amaldiçoou,
Mas cair te fez ainda maior! E agora, ai de nós! 
O espirito de Platão e o corpo de Afrodite 
Retiraram-se para sempre para os céus claros da Hélade!"
Este poema de Leconte de Lisle marcou a maneira como as gerações posteriores viram Hipátia: aos olhos de todos, Hipátia era "o espírito de Platão e o corpo de Afrodite" (le souffle de Platon et le corps d'Aphrodite), como Leconte de Lisle queria.
Leconte de Lisle é também autor de uma pequena obra dramática intitulada "Hipátia e Cirilo" (1857). Nela se diz que a filósofa Hipátia está diante de um intolerante e tacanho Cirilo, que a ataca anunciando triunfantemente que "teus deuses se transformaram em pó aos pés do Cristo vencedor", provocando assim uma declaração fervorosa e comovente de fé de Hipátia (em seus deuses):
“Não tens razão, Cirilo. Eles moram no meu coração. / Não como tu os vês — vestidos de formas vãs, / submetendo-se no céu às paixões humanas, / adorados pela multidão e desprezíveis; / mas como os viram mentes sublimes / no espaço estelar e sem moradas fixas, / forças do universo, virtudes interiores, / colaboração harmoniosa da terra e do céu / que encanta tanto a mente quanto ouvidos e olhos, / e que oferece — ideal acessível aos sábios — / um esplendor visível à beleza da alma. / Tais são meus deuses!" ¹⁰
 
Uma grande contribuição para a consolidação do mito de Hipátia foi dada pelo romancista, clérigo e historiador inglês Charles Kingsley (1819-1875), que pode não estar entre os líderes da literatura de hoje, mas mesmo assim foi extremamente popular em seu tempo. Em 1853, Kingsley escreveu um extenso romance histórico com Hipátia como protagonista, intitulado Hipátia, ou Novos inimigos com uma antiga face ¹¹. Para apreciar plenamente o significado do romance de Kingsley, devemos entender que o século 19 foi uma época em que as massas em geral conheciam o passado histórico por meio de romances históricos, assim como hoje, por analogia, eles o conhecem por meio de produções cinematográficas. O livro de Kingsley foi, portanto, traduzido para muitas línguas europeias, e através dele inúmeros leitores conheceram e amaram uma Hipátia que, defendendo o mundo dos valores gregos, foi barbaramente assassinada aos vinte e cinco anos, no auge de sua beleza, por uma multidão cristã fanática e bárbara.
 
O romancista e político francês Maurice Barrès (1862-1923), que, não esqueçamos, é considerado um dos teóricos do fascismo, viu e projetou Hipátia de maneira semelhante. Barrès incluiu um conto dedicado a Hipátia sob o título: "La vierge assassinée" em sua coleção “Sous l'oeil des barbares” de 1888. ¹² Os protagonistas da história são dois jovens gregos de Alexandria, Lúcio e a encantadora Amarílis, que vêem com tristeza em torno deles a civilização clássica sendo desmoronada em ruínas pelos delírios do Cristianismo e seus seguidores bárbaros, e se lembram da época em que o imperador Juliano foi morto pela mão de um cristão, enquanto se esforçava para defender os monumentos sagrados do passado. Os dois jovens dirigem-se ao Serapeum, onde Hipatia (a quem Barrès renomeia "Athena") costuma ensinar. Ao mesmo tempo, porém, a multidão de cristãos aflui ao Serapeum, que exige urgentemente a morte de "Athena", o símbolo do paganismo em Alexandria. "Athena" ainda ensina imperturbável, encantando com sua palavra até alguns dos cristãos, mas os mais fanáticos entre eles já estão se movendo ameaçadoramente contra ela. Lúcio, Amarílis e outros gregos tentam removê-la do Serapeum, mas ela se recusa a deixar o templo, a biblioteca e as estátuas de seus ancestrais, cobre o rosto com um véu e se rende à turba fanática, que a despedaçam literalmente. Segundo Barrès, esse martírio da "última dos gregos" é o ponto de partida de sua apoteose e de sua imorredoura lenda. Se alguém quisesse esgotar o tratamento literário da lenda de Hipátia, ficaria surpreso ao descobrir que, a partir do Iluminismo, Hipátia quase nunca deixou de aparecer como a heroína das obras literárias. É típico que, em cerca de uma década, na segunda metade do século XX, cinco obras literárias tenham sido publicadas tendo Hipátia como heroína principal: duas obras dramáticas em italiano de Mario Luzi em 1978 ¹³, dois romances em francês de André Ferretti em 1987 ¹ e Jean Marcel em 1989 ¹ no Canadá, e um volumoso romance histórico em alemão de Arnulf Zitelmann em 1989 ¹⁶.
 
5. Hipátia do feminismo 
 
O mito de Hipátia não parou de evoluir. De fato, em uma das versões mais recentes do mito, Hipátia já não representa apenas o espírito indomável, os valores gregos, o discurso correto e a ciência, mas também se reduz a um símbolo... Feminista! Houve até revistas feministas com seu nome, uma na Grécia e outra publicada na Universidade de Indiana. ¹
Esta última revista acolheu em seu quarto número, em 1989, uma laudatória reelaboração literária do mito de Hipátia pela poetisa e romancista feminista Ursule Molinaro ¹⁸. No texto introdutório, lemos que "a tortura e o assassinato brutal da eminente filósofa Hipátia por uma multidão de cristãos em Alexandria em 415 d.C. marca o fim de uma era em que as mulheres ainda eram valorizadas pelo cérebro que têm por baixo dos cabelos". ¹⁹ O texto literário talvez seja a culminância da mais grosseira falsificação da verdade histórica. Nele Hipátia, que é elogiada nas fontes como uma virgem irrepreensível e universalmente respeitada, parece ter começado já na adolescência a mudar de amantes a um ritmo vertiginoso, e depois se casou com o filósofo Isidoro, que foi forçado a tolerar os muitos casos extraconjugais da esposa. Quando seu pai, o matemático Théon, advertido pelas estrelas da morte trágica iminente de sua filha, sugere que ela se mude para a Sicília, Hipátia, sendo superior ao pai e ao marido, se recusa, sentindo que já estava desaparecendo o tempo em que as mulheres tinham o direito pensar livremente, mas também sem vontade de deixar seu então amante, o prefeito Orestes... Segue-se uma referência ao choque de Hipátia com o Cristianismo e um relato de seu assassinato, e finalmente Molinaro encerra concluindo que esse seria o destino de mulheres na era cristã, na qual Hipátia "não tinha o menor desejo de viver..."
 
6. De ontem para hoje 
 
Como verificamos na referência anterior à gênese e desenvolvimento do mito de Hipátia, a maioria dos escritores que a mencionam não fazem o menor esforço para parecerem fiéis à verdade histórica; e isso é bastante natural, desde o momento em que Hipátia parou de ser uma figura histórica e se tornou um símbolo, no qual qualquer um podia ver quase tudo. 
 
Assim, a Hipátia de Toland nada mais era do que uma denúncia protestante da arbitrariedade do clero católico. A Hipátia de Voltaire, e do Iluminismo em geral, é o símbolo da resistência da reta razão contra a tempestade do dogmatismo e do obscurantismo cristãos. A Hipátia da literatura romântica dos romances históricos é uma bela, inocente virgem, representante romântica de uma época decadente. A Hipátia do feminismo é uma mulher símbolo, uma feminista pioneira com uma vida libertadora, que é vítima do establishment dominado pelos homens, que não a tolerava. A Hipátia dos arqueólogos é uma prova tangível do conflito entre Cristianismo e Helenismo. E é claro que não podemos deixar de nos perguntar o que todas essas Hipátias têm em comum... 
 
A Hipátia do filme recente toma emprestado muitos dos motivos familiares, adaptando-os naturalmente ao espírito do nosso tempo. Hipátia é uma pessoa de ciência, agnóstica ou até abertamente ateia, que aprendeu a servir à verdade da ciência e da investigação filosófica em vez das religiões com seus "contos de fadas" e seus sermões intolerantes. Assim como ela compreende a verdade sobre a órbita da Terra ao redor do sol e as órbitas dos corpos celestes — uma concepção que a colocaria mais de mil anos à frente de seu tempo — Hipátia é brutalmente assassinada por cristãos fanáticos, tornando-se a vítima expiatória em choques, fanatismos e confrontos que parecem incrivelmente pequenos diante da grandeza da filósofa injustiçada.
 
7. Imprecisões e conveniências 
 
Dada a maneira como vimos a questão de Hipátia ser abordada de tempos em tempos, é lógico e esperado que a imagem comum que formamos dela esteja cheia de todos os tipos de imprecisões. 
Um exemplo de tal imprecisão é o seguinte: Na mente da maioria, a Hipátia que foi assassinada pela turba cristã era, entre outras coisas, uma bela mulher no auge de sua vida, "o espírito de Platão e o corpo de Afrodite", como a viu Leconte de Lisle. A maioria imagina que Hipátia foi assassinada por volta dos 25 anos, exatamente como Kingsley queria. Mas se tivermos a coragem de olhar para as coisas sem o espelho distorcido do mito e anotar as datas que conhecemos, veremos quão longe da realidade está essa percepção comum. ²⁰ Hipátia foi assassinada em 415 d.C. — se tinha então vinte e cinco anos, como quer o senso comum, então teria nascido por volta de 390 d.C.; porém, por volta de 390 d.C., Hipátia era professora de Sinésio e já tinha fama de grande professora de filosofia. Dado que ela já havia alcançado a fama, parece bastante improvável que ela tivesse apenas vinte e cinco anos mesmo então, em 390, e muito menos outros vinte e cinco anos depois, em 415! É o que diz o bom senso. E como se isso não bastasse, para respaldar o bom senso temos também o testemunho de Ioánnis Malála que na época de seu assassinato Hipátia era uma "velha", ou seja, idosa! ²¹ Hipátia do mito, Hipátia como símbolo, devia ter vinte e cinco anos...  E esta é apenas uma das inúmeras imprecisões do mito Hipátia. 
 
Hipátia de Alexandria por Alfred Seifert (1901)

 
Assim também o filme recente sobre Hipátia tem muitas imprecisões. Algumas dessas imprecisões são as inovadoras concepções científicas de Hipátia, a presença de Hipátia no Serapeum, a forma de destruição do Serapeum ²²; imprecisões relativas à morte do pai de Hipátia, Théon; imprecisões relativas à forma de advento de Cirilo ao trono patriarcal da Alexandria, ao episódio com os judeus no teatro, ao delírio misógino de Cirilo, ao fato de que Sinésio parece estar em Alexandria no momento do assassinato de Hipátia, quando ele na realidade não era mais vivo, etc. 
Mas não são tanto as imprecisões individuais que podem perturbar neste determinado filme, imprecisões que são muito menores em qualquer caso em comparação com as abordagens anteriores; é antes o espírito mais amplo que governa toda a abordagem, a forma, por assim dizer, como os cristãos aparecem, aproximadamente análoga à imagem dos fundamentalistas muçulmanos fanáticos do nosso tempo; quanto a Cirilo de Alexandria, ele aparece exatamente como um Osama Bin Laden apareceria na tela grande... 
 
8. Conclusões - Questionamentos 
 
Em geral, o problema com todas as abordagens gerais de Hipátia não está tanto em imprecisões individuais, mas no fato de que Hipátia foi usada como símbolo no contexto de polêmicas anticristãs. E desde que Hipátia deixou, como já notamos, de ser uma figura histórica e se tornou um símbolo, em quem qualquer um podia ver quase tudo, dependendo dos óculos distorcidos que ele escolhesse usar, mas com um denominador comum: a polêmica anticristã. 
De fato, a história de Hipátia, como é usualmente apresentada, nada mais é do que um mito cuidadosamente cultivado. De fato, o estudo das fontes que nos dão a história de Hipátia derruba violentamente a imagem que costumamos ter da filósofa assassinada. Em primeiro lugar, se compararmos as fontes cristãs e gentias, talvez esperássemos que os gentios exaltassem Hipátia e os cristãos tentassem desajeitadamente diminuir seu valor. De fato, são as fontes cristãs que exaltam Hipátia, enquanto o pagão Damáscio, a única fonte gentia que a menciona, não esconde seu desprezo por ela. Quanto ao círculo de Hipátia, sabemos pelas fontes que era fundamentalmente cristão. E, em geral, não temos nas fontes a menor indicação de que, no conflito entre Cristianismo e paganismo, Hipátia estivesse no campo do paganismo! E não apenas isso, mas temos boas razões para concluir que ela estava mais próxima do Cristianismo do que do paganismo! Por mais subversivo que isso possa parecer, as fontes não só não mostram Hipátia como representante do mundo pagão, como levam muito mais facilmente à conclusão de que a filósofa injustiçada foi vítima de uma... disputa intracristã! Claro que aqui apenas os enumeramos concisamente, reservando-nos para em breve dedicar um estudo especial à reconstrução do mito de Hipátia, onde tudo o que precede será minuciosamente analisado e documentado. 
Além do exposto, ao qual nos reservamos o direito de retornar, a recente discussão sobre a produção cinematográfica sobre Hipátia suscita outras reflexões. Uma observação que não devemos deixar de fazer, mesmo de passagem, é que o polêmico filme sobre Hipátia é suficiente para repensar aqueles que pensam que as teorias sobre o conflito entre ciência e religião pertencem ao passado... 
Uma conclusão final, completamente básica, que poderíamos tirar é a seguinte: vimos neste artigo, mesmo concisamente, a presença constante de Hipátia como símbolo no contexto das polêmicas anticristãs do Iluminismo em diante. Então, quando hoje é lançada uma produção cinematográfica sobre Hipátia, e acreditamos que estamos diante de um "novo" ataque e nos perguntamos quem é essa Hipátia, parece que não deveríamos condenar tanto a habilidade dos inimigos da Igreja, quanto a nossa própria negligência e desconhecimento... 
 
Links: http://users.sch.gr/amalsk/Arheio/10Issue/2Ypatia.pdf  (original) e conversão para html por: Revista digital "Λόγος και Αντίλογος":
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  N.T.: "(...) No filme Ágora, Hipátia e seus discípulos vestem branco no início. Mas após a tomada da biblioteca de Alexandria pelos cristãos, ela aparece trajando tons de vermelho, alaranjado e verde. Sempre com a cabeça, o colo e os braços descobertos, Hipátia distingue-se das cristãs muito cobertas com roupas cinzentas e mantos na cabeça. (...)" (cf. OLIVEIRA, Loraine: ÁGORA. Revista Pense; número 2; novembro de 2012 – p. 29)
 
² Margaret Alic, Hypatia's Heritage: A History of Women in Science from Antiquity to the Late Nineteenth Century, Beacon Press, Boston 1986. O livro de Alic já foi traduzido para o alemão (Hypatias Tochter. Der verleugnete Anteil der Frauen an der Naturwissenschaft, Unionsverlag, ubersetz. Rita Peterli, Zurique 1987 e 1991) e o sueco (Arvet efter Hypatia. Historien om kninnliga forskare fram Antiken till det sena artonhundratalet, Alfabeta Bokforlag, Estocolmo 1989). 
 
³  Margaret Alic, ibidem p. 41. 
 
  Até poucos anos atrás, quem quisesse traçar a formação do mito de Hipátia na literatura moderna era obrigado a consultar um estudo ultrapassado de Johann Rudolf Asmus, escrito no início do século XX e incompleto até mesmo para a época [Johann Rudolf Asmus, "Hypatia in Tradition und Dichtung" Studien zur vergleichenden Literaturgeschichte 7 (1907), pp. 11-44]. Mas hoje temos uma visão verdadeiramente moderna da formação do mito de Hipátia em uma excelente monografia dedicada a Hipátia, preparada por Maria Dzielska [Hypatia of Alexandria, trad. por F. Lyra, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts/Londres, 1995 (Hypatia z Aleksandrii, Nakładem Uniwersytetu Jagiellońskiego, Cracóvia 1993)]. 
 
N.T.: John Toland: Hypatia or the History of a most beautiful, most virtuous, most learned and in every way accomplished lady, who was torn to pieces by the clergy of Alexandria to gratify the pride, emulation and cruelty of the archbishop commonly but undeservedly titled St Cyril (1720)
 
Voltaire, Mélanges, Bibliothèque de la Pléiade 152, Paris 1961, p. 1104 e 1108; Oeuvres complètes de Voltaire, VII, Dictionnaire philosophique, Paris 1835, pp. 700-701. 
 
Edward Gibbon, The history of the decline and fall of the Roman empire, ed. J.B. Bury, vol. 5, Methuen & Co. , Londres 1898, p. 109. 
 
Maria Dzielska, Hypatia of Alexandria, Cambridge, Harvard University Press, 1995, p. 4. 
 
Leconte de Lisle, Poèmes antiques in Oeuvres. Paris, 1897, p. 97. 
N.T.: A estrofe do poema "Hypatie", referida pelo autor, pode ser conferida abaixo:
(...)
Le vil Galiléen * t'a frappée et maudite,
Mais tu tombas plus grande ! Et maintenant, hélas !
Le souffle de Platon et le corps d'Aphrodite
Sont partis à jamais pour les beaux cieux d'Hellas ! 

* N.T.: São também encontradas duas outras versões para o primeiro hemistíquio deste verso: 
1) L'homme en son vol fougueux (Trad.: O homem em seu voo impetuoso)
2) L'homme en son cours fougueux (Trad.: O homem em sua marcha impetuosa)
 
¹⁰  Ibidem pp. 275-289. 
N.T.: O trecho do drama, referido pelo autor, pode ser conferido abaixo: 
Cyrille
(...)
Tes Dieux sont en poussière aux pieds du Christ vainqueur!
 
Hypatie
 
Ne le crois pas, Cyrille ! Ils vivent dans mon cœur,
Non tels que tu les vois, vêtus de formes vaines,
Subissant dans le Ciel les passions humaines,
Adorés du vulgaire et dignes de mépris;
Mais tels que les ont vus de sublimes esprits:
Dans l’espace étoilé n’ayant point de demeures,
Forces de l’univers, Vertus intérieures,
De la terre et du ciel concours harmonieux
Qui charme la pensée et l’oreille et les yeux,
Et qui donne, idéal aux sages accessible,
À la beauté de l’âme une splendeur visible.
Tels sont mes Dieux ! (...)
 
¹¹ Charles Kingsley, Hypatia, or New foes with a old face, 2 vols, ed. Mabel Goddart, Nova York, 1929. 
 
¹²  Maurice Barrès, Sous I'oeil des barbares, Paris 1904. 
 
¹³  Mario Luzi, Libro di Ipazia e Il messagero, Biblioteca universale Rizzoli, Milano 1978. 
 
¹  Andre Ferretti, Rennaisance en Paganie, Montreal 1987. 
 
¹ Jean Marcel, Hypatie, ou, La fin des dieux, Lemeac, Montreal 1989. 
 
¹⁶ Arnulf Zitelmann, Hypatia. Roman, Beltz & Gelberg, Weinheim e Basel 1989. 
 
¹ N.T.: A revista Hypatia: Feminist Studies, publicada em Atenas desde 1984 e a revista Hypatia: A Journal of Feminist Philosophy, publicada nos EUA desde 1986.
 
¹⁸ Ursule Molinaro, A Christian Martyr in Reverse Hypatia: 370 - 415 A. D.: A Vivid Portrait of the Life and Death of Hypatia as Seen through the Eyes of a Feminist Poet and Novelist; Hypatia: A Journal of Feminist Philosophy 4 (1989), pp. 6-8. 
 
¹⁹ N.T.: Molinaro apud Dzielska, 1995, p. 30.
 
²⁰ Mesmo estudos especiais foram escritos sobre este tópico. Veja por exemplo R. J. Penella, "Quando Hipátia nasceu?". História 33 (1984). pág. 126-128. 
 
²¹ Ioánnis Malála, Cronografia, ed. L Dindorf, 359. 12-15: "E naquela época o povo de Alexandria, tomando parte na paróquia sob o bispo, queimou os frígios em autoridade sob o infame filósofo, sobre ela havia grandes acusações; e a velha. " 
 
²² Sobre o tema da destruição de Serapeum, ver dois artigos do escritor publicados nas páginas de Aktínes: a) “A destruição de Sarapeum. Parte A: O cenário". Aktínes 632 (junho de 2002), pp. 197-202 e b) "A destruição de Serapeum. Parte B: Os fatos", Aktínes 633 (julho-setembro de 2002), pp. 228-234.
 
 
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AMENÁBAR, A.: ÁGORA. [Filme-vídeo]. Produção de Álvaro Augustín, Fernando Bolaria, Simón de Santiago, José Luis Escolar e Jaime Ortiz de Artiñano, direção de Alejandro Amenábar. Espanha, 2009. 127 min. color. son.
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte I, postado no Blog do Braga em 17/09/2022

_____________________________: DISCURSO "SOBRE A REALEZA" DE SINÉSIO DE CIRENE AO IMPERADOR ARCÁDIO, postado no Blog do Braga em 02/01/2015 
 
OLIVEIRA, Loraine: ÁGORA. Revista Pense; número 2; novembro de 2012 – pp. 28-30
 
SORBONNANTIQUE: Hypatie d’Alexandrie: le souffle de Platon et le corps d’Aphrodite, postado no Blog de Sorbonne Antique em 11/01/2021
Link: https://sorbonnantique.wordpress.com/  👈
 
ΤΣΈΝΤΟΣ, Γιάννης (Δρ.): Η γένεση και εξέλιξη τού μύθου τής Υπατίας, periódico
"AKTINES", edição de maio de 2010, nº 711, pp. 137-146.
e conversão para html por: Revista digital "Λόγος και Αντίλογος":
 

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
O Blog do Braga, dando continuidade à série sobre HIPÁTIA DE ALEXANDRIA, filósofa neoplatônica, professora, matemática e astrônoma, tem o prazer de apresentar a sua tradução para texto do Doutor YÁNNIS K. TSÉDOS, que vem lançar alguma luz sobre a Hipátia na visão de escritores nos seus romances "históricos", do Iluminismo em diante, de atuais diretores de cinema e de defensoras do feminismo. Traz, entretanto, poucas informações sobre a Hipátia histórica.
Nele o autor grego apresenta a evolução da figura de Hipátia através da História, entendendo que o mito e o símbolo da filósofa têm sido usados como uma "falsa narrativa anticristã". O texto é intitulado "A estória de uma falsa narrativa anticristã que ignora a História - A gênese e o desenvolvimento do mito de Hipátia".
Promete futuramente ampliar sua pesquisa através do livro a ser lançado, onde pretende provar que Hipátia teria sido "vítima de uma disputa intracristã", desta forma "reconstruindo o mito de Hipátia".

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/10/hipatia-de-alexandria-parte-2.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Parabéns,mestre Braga! O senhor sempre nos surpreende com suas pérolas de conhecimento!

Danilo Gomes (escritor, jornalista e cronista, membro das Academias Mineira de Letras e Brasiliense de Letras) disse...

Muito grato, mestre Francisco Braga. Vou ler o texto do Doutor YÁNNIS K. TSÉDOS sobre a quase mitológica Hipátia de Alexandria, figura fascinante. Em sua tradução do grego. Certas vidas parecem histórias de ficção (Aníbal, Alexandre, César, Maria Antonieta, Napoleão, Livingstone, os grandes navegadores e aventureiros, nosso Rondon, Mandela, Getúlio Vargas, outros mais). Grande abraço do Danilo Gomes.

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Muito interessante.
Abraço

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Olá, estimado amigo. Muito obrigado.
Boa semana, na medida do possível.
Abraços.
Diamantino.