Por Christian Lacombrade
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga
I. INTRODUÇÃO DO TRADUTOR/GERENTE DO BLOG
Lacombrade, em seu texto intitulado "Ao redor do assassinato de Hipátia", constata a existência de duas fontes primárias básicas para estudar o assassinato da professora, filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma Hipátia: a primeira constitui a tradição neoplatônica de Atenas, aqui representada pelo texto do escolarca Damáscio (c. 458-após 538 d.C.); a segunda recai sobre o texto do historiador Sócrates, o Escolástico (c. 380-após 439 d.C.), por ser o seu testemunho o tronco donde saíram vários ramos (Nicéforo, João Malalas e Hesíquio de Mileto). Descarta o relato de outro contemporâneo, Filostórgio da Capadócia, por considerá-lo um discurso vazio. Além de estabelecer uma diferença clara entre os dois relatos com base em vários documentos que utiliza, o autor escolhe o relato de Sócrates Escolástico, por ser "contemporâneo dos acontecimentos que narra e dos quais nos oferece a versão mais explícita". Não obstante, não hesita em considerar o assassinato de Hipátia "um desses debates irritantes que a história se recusa a concluir".
Embora não tenhamos amplas informações sobre a biografia de Hipátia, o fato de possuirmos três capítulos da História Eclesiástica de Sócrates Escolástico dá para constatarmos a historicidade presente no relato deste, bem como sua lógica interna sadia, em comparação com a pobreza do relato do escolarca Damáscio. Lacombrade toma textos e interpretações sobre o relato de um e de outro para comparações e defesa de seu ponto de vista.
O autor, tendo exercido sua preferência pelo texto de Sócrates Escolástico, convida o leitor para prestar atenção ao texto imparcial e de historicidade comprovada desse autor que, na opinião de Lacombrade, descarta o fanatismo religioso como causa da morte de Hipátia ou sua defesa do helenismo ou de valores pagãos, preferindo interpretá-la como um conflito de interesses temporais ou uma disputa de poder entre o patriarca e o prefeito augusto de Alexandria. Embora ao patriarca Cirilo não possa ser atribuída a morte de Hipátia, perpetrada por uma turba de fanáticos cristãos em 415 d.C., entretanto a Igreja saiu arranhada do caso em questão. O duelo era tão desigual que era impossível ao prefeito Orestes exercer seu mandato sem se submeter aos caprichos do patriarca. O erro de Hipátia, como sugere Sócrates, consistiu sem dúvida em encorajar o prefeito em seu desejo de independência, fato que levou o nome da filósofa ao centro do drama.
Por fim, Lacombrade salienta que as partes em disputa, que determinaram a morte de Hipátia, não foram cristãos X "helenos", mas sim cristãos X judeus. Sugere que teriam sido a pura "filantropia" que animava Hipátia em relação aos judeus e a influência que tinha sobre o prefeito Orestes os fatores determinantes da morte cruenta de uma provável "judia helenizada". Ao mesmo tempo, o autor reconhece que "nada sabemos sobre a genealogia da filha de Théon", especialmente quanto à sua ascendência materna. Termina seu texto com a sugestão de que devam os pesquisadores históricos comprovar esta sua hipótese.
II. TEXTO: Ao redor do assassinato de Hipátia
Por Christian Lacombrade
É um desses debates irritantes que a história se recusa a concluir. As causas do drama bárbaro, que em março de 415 d.C. ensanguentou a capital do Egito, ainda estão longe de serem elucidadas. Não que o trágico destino de Hipátia, imolada por uma população fanática, tenha deixado indiferentes tanto a opinião do século V quanto a posteridade mais distante; mas precisamente porque ambas evocaram sua memória com muita paixão. Escritores e poetas criaram, ao longo dos tempos, em torno dela outra lenda dourada, e se verificou no início deste século XX que a memória da filósofa alexandrinense constituía de agora em diante um tema da literatura europeia ¹.
É certo que, alguns anos antes, dois estudos rigorosamente conduzidos fizeram uma análise metódica dos textos ², mas ainda levavam a uma confissão de incerteza, no que se refere à responsabilidade pelo assassinato ³. Nesse sentido, a ciência eclesiástica se engaja: ela alega com convicção a inocência de São Cirilo, mas se recusa a se aventurar além ⁴.
Além disso, se houver alguma presunção em reivindicar hoje o fim deste debate abandonado, ainda restam poucas chances de que uma análise objetiva faça a pesquisa avançar.
As pistas que obtivemos vieram essencialmente de duas fontes. Uma, que em breve se esgotará, é a tradição neoplatônica de Atenas, fixada no primeiro terço do século VI pelo último estudioso, Damáscio, contemporâneo de Justiniano. A outra, embora aparentemente ramificada, — inclui, recuando no tempo, os testemunhos de Nicéforo Calisto (século XV) ⁵, de João Malalas (século VIII) ⁶ e de Hesíquio de Mileto (século VI) ⁷ — procede de uma origem comum, o historiador Sócrates, o Escolástico *, contemporâneo dos acontecimentos que narra e dos quais nos oferece a versão mais explícita ⁸. De fato, o relato de outro contemporâneo, Filostórgio da Capadócia, estando reduzido neste caso a um processo verbal vazio ⁹, reteremos desta segunda série de textos apenas o relato de Sócrates. A partir dessa escolha preliminar, devidamente justificada, a pesquisa não tem nada a perder em precisão e muito a ganhar em clareza.
♧
O relato de Damáscio, porta-voz da Escola de Atenas, cabe nas seguintes linhas ¹⁰:
“O bispo... da seita oposta, Cirilo, passando diante da casa de Hipátia, notou uma grande multidão diante da porta, uma movimentação de homens e de cavalos, uns chegando, outros indo embora, alguns ainda permanecendo no local. Perguntou o que significava essa reunião de pessoas e a razão de todo o barulho ao redor da casa. Então ficou sabendo pelos seguidores dela que era a hora em que a filósofa Hipátia era saudada e que esta casa era dela. A notícia deu-lhe um golpe tão forte no coração que ele imediatamente concebeu o plano de mandar matá-la e da maneira mais abominável. De fato, quando ela saiu, como de costume, um bando de indivíduos, verdadeiras feras, se jogaram sobre ela. Esses verdadeiros bandidos, tão inacessíveis ao temor dos deuses quanto à indignada reprovação dos homens, massacraram a filósofa...”
“E enquanto ela ainda estava latejando fracamente, eles arrancaram-lhe os olhos...”
“Foi assim que eles infligiram a seu país essa mancha monstruosa e essa ignomínia. O imperador ficou indignado com isso [e ele teria sem dúvida punido severamente os culpados] se Edésio não tivesse se deixado subornar. Ele impediu a punição dos assassinos, mas a atraiu para sua pessoa e sua descendência, e seu descendente ¹¹ satisfez o apelo por justiça.”
Comparado com esse relato, estilizado ao extremo, a narração em três capítulos do historiador Sócrates é, pelo contrário, densa. Também não se trata de traduzi-lo na íntegra aqui. Contentar-se-á em apresentar uma análise do mesmo, enfatizando, ao longo do caminho, as observações que interessam à nossa intenção.
O caso começa no teatro, no dia de sábado. Ali, seriam publicados dois decretos, entre duas pantomimas. Um professor, chamado Hiérax, partidário caloroso de Cirilo, foi reconhecido ali pelos judeus e vaiado. Eles dizem: "É o espião, o devoto do
patriarca." Consciente do fato, Orestes, prefeito augusto, que em princípio julgava insustentáveis todas as pretensões políticas dos bispos (καΐ πρότερον μεν έμίσει τήν δυνάστείαν τῶν επίσκοπῶν), cede a seu partidarismo e, sem mais informações, abandona Hiérax ao carrasco.
Constatando imediatamente o desafio, Cirilo convoca os judeus notáveis e os ameaça com represálias. Estes persistem na controvérsia e, na noite que se segue, a igreja de Alexandre é tomada pelas chamas. Cabe aos cristãos se apressar em defender seus santuários, e eles lutam confusos até o raiar do dia.
Mas eis que, quando amanheceu, o bispo reúne suas tropas. Elas invadem amplamente o bairro judeu, e saqueiam casas e sinagogas. Tomados pelo pânico, os habitantes feridos deixam a cidade para o exílio. (O historiador observa aqui que conheceu um desses refugiados em Constantinopla, o iatrosofista Adamâncio). Em Alexandria, por mais que prefeito e patriarca enviem seus respectivos relatórios ao tribunal, este os deixa sem resposta.
Esse mutismo oficial faz pensar em Cirilo. Cedendo à pressão da opinião pública (τοΰτο γαρ δ λαός των 'Αλεξανδρέων εαυτov ποιείν κατηνάγκαζεν), ele propõe ao prefeito fazer as pazes. Outro passo inútil: Orestes, teimoso, foge, e com essa reconciliação fracassada, repercute perigosamente nos campos rivais a inimizade dos dois chefes ¹².
Então intervêm os monges da Nítria. Cerca de quinhentos em número, eles vêm de seu deserto, ferozmente determinados a derramar seu sangue pelo triunfo da Igreja. Durante uma reunião, o prefeito é atacado. Em vão ele enumera seus títulos de cristão e de batizado (έβόα Χριστιανός τε είναι και ύπό του Αττικού επισκόπου έν τη Κωνσταντίνου πολει βεβαπτισθαι): pedras são lançadas. Uma delas o acertou no rosto. Não há dúvida de que ele teria morrido na aventura, se os alexandrinos não tivessem corrido em seu auxílio. De novo se reproduz a lei do talião. Apreende-se um certo Ammonios, o autor do delito, que é torturado imediatamente. O patriarca, de fato, logo faz dele um mártir, que ele defende sob o nome de Thaumásios (o Admirável), mesmo que um pouco mais tarde esqueça seu mártir de ocasião, seguindo o conselho de seus fiéis que ainda conservaram seu sangue frio (οι σωφρονουντες) ¹³.
Na calma enganosa que se segue, a tempestade paira. Os parabolanos ¹⁴, devotados de corpo e alma a Cirilo **, não podem aceitar a persistente briga de seu líder com o prefeito. As calúnias vão no mesmo passo. Conforme Sócrates Escolástico:
“(...) Como Hipátia tinha conversas bastante frequentes com Orestes, ela deu origem a essa calúnia entre as massas cristãs: ela era suspeita de se opor à reconciliação de Orestes e do bispo. Esses homens de cabeça quente formam um complô. Eram chefiados por um certo Pierre, leitor ¹⁵. Vigiam o retorno da infeliz à sua casa e a arrancam de sua carruagem.
Eles a arrastaram para a igreja do Cesareum e, depois de despi-la de suas roupas, mataram-na com cacos de cerâmica. O cadáver foi despedaçado, os restos foram reunidos na Praça do Cinaron e reduzidos a cinzas. Tudo isso rendeu críticas muito fortes a Cirilo e à Igreja de Alexandria (ου μικρον μῶμον); pois é uma coisa absolutamente inadmissível para os seguidores de Cristo esse assassinato, luta armada e outros excessos da mesma ordem. Esses eventos ocorreram no quarto ano do pontificado de Cirilo, durante o décimo consulado de Honório, sexto consulado de Teodósio, no mês de março, na época da Quaresma ¹⁶.”
Tal é a versão de Sócrates, que bem merece ser lembrada nesta forma explícita, já que críticos geralmente bem informados não a levam em conta, retendo desde o início, com exclusão de todos os outros, o testemunho oposto de Damáscio ¹⁷. No entanto, como veremos, a veracidade deste é altamente questionável.
O escolarca ateniense, de fato, está separado por várias gerações dos acontecimentos que relata ¹⁸ e, por outro lado, como todo bom filósofo neoplatônico, orgulha-se de ignorar as contingências. Sócrates, ao contrário, nascido por volta de 360, pertence à geração de Hipátia e Cirilo; historiador de profissão, dotado de senso crítico, é experiente em métodos de pesquisa e aficionado por documentos de arquivo ¹⁹.
O primeiro toma sua narrativa de relatos indiretos e sucessivos; o segundo é informado diretamente por testemunhas oculares, cujos nomes ele ocasionalmente exibe (20).
Damáscio não é imparcial. Ele não quer e não pode ser. Ele pertence a uma seita perseguida, cujos adeptos — Olímpio, Hiérocles, Isidoro — pagam, desde então por mais de um século com prisão, tortura ou exílio por seu apego a uma causa condenada. Forçado em breve ao exílio junto ao rei da Pérsia Chosroés, ele também inscreverá seu nome no martirológio do paganismo ²¹.
Sócrates, por outro lado, oferece sem grande mérito todas as garantias de objetividade.
Ele não está de forma alguma envolvido nos fatos que ele narra. Recebendo, como notamos, suas informações de testemunhas oculares, este contemporâneo de Cirilo não hesitou, a partir de Constantinopla, onde escreveu sua história, em contar fatos aos correligionários dele. É porque esse cristão moderado repugna a todos os fanatismos: ele seguiu as lições de dois γραμματικοί pagãos, Helladius e Ammonius, que, por volta de 390, durante o caso do Serapeum, se refugiaram na Trácia ²², e ele, está ainda mais apto, atualmente, a se pronunciar sem preconceito sobre as duas facções opostas porque ele compartilha a fé religiosa dos partidários do arcebispo, enquanto professa um sincero apego aos valores culturais dos quais Hipátia é o símbolo ²³.
Além disso, se nos aproximarmos do exame dos dois documentos, fica confirmado o estado de espírito que atribuímos aos seus autores. A despeito do academismo do estilo, a indignação vingadora de Damáscio transparece em todas as linhas: o filósofo descarta de sua prosa o abominável termo χριστιανοί, e não tem termos suficientemente violentos para estigmatizar a conduta dos assassinos ²⁴. Ao contrário, comedido aparece o relato de Sócrates, que projeta sobre o duplo aspecto do drama uma luz igual e pesa na mesma balança todas as responsabilidades. O prefeito, insinua ele, é culpado de preconceito e intransigência; mas o arcebispo, apesar de algumas auto-reflexões a respeito de si mesmo, não está isento dos mesmos erros, e, na sequência de seu chefe, a Igreja de Alexandria, cega pelo ódio, ignorou sua sublime missão ²⁵.
Daí os juízos de valor que de agora em diante se impõem. Como é fácil mostrar, a historicidade do relato de Damáscio é praticamente nula, tão pobre de detalhes é esse relato e, sobretudo, maculado de improbabilidades. É improvável, de fato, que, três anos após sua elevação ao patriarcado, Cirilo ainda não tivesse tido conhecimento da existência de Hipátia, então no auge de sua fama ²⁶. Igualmente inexplicável permanece em Damáscio o ódio veemente que o patriarca sente, a partir daquele momento, em relação à filósofa. Por outro lado, procurar-se-ia em vão, na versão ateniense, a mínima precisão de tempo e de lugar e, com exceção do nome de Cirilo, a mínima indicação de pessoa, o autor que englobe no mesmo ódio feroz todos os adversários do helenismo.
Essas previsões e razões são fornecidas, ao contrário, na versão de Sócrates. Neste relato todos os personagens são apresentados, não só os protagonistas, Orestes, Cirilo, mas também os comparsas, Hiérax, Ammonios, Pierre. As circunstâncias de tempo e de lugar são exatamente anotadas — a ação se passa durante a Quaresma de 415 d.C., e um leitor contemporâneo poderia ter acompanhado, texto na mão, as etapas do suplício de Hipátia, a vítima. Quanto ao esquema da crise, encontra-se repetidamente reproduzido ao longo da crônica alexandrina dos séculos IV e V: na metrópole egípcia, onde as dissensões políticas sempre foram agravadas pelo antagonismo de raças e seitas, o representante do imperador , neste caso o prefeito, se esforça para restaurar a primazia do poder civil, pelo qual é o responsável, contra as usurpações do poder religioso, encarnado pelo patriarca, e vidas humanas são a moeda do jogo deles.
♧
Igualmente, agora é possível sondar com mais precisão o testemunho do historiador e, dentro deste quadro costumeiro, inferir as razões ocasionais que, no decorrer do duelo
opondo Orestes a Cirilo, levaram Hipátia à sua perda.
Sem dúvida haveria algum paradoxo em alegar que o fanatismo religioso não desempenhou um papel na fúria dos assassinos. Que a parcela desse fanatismo tenha sido, no entanto, exagerada, superestimada para as necessidades da propaganda neoplatônica, é este um dos aspectos pouco conhecidos do drama, para o qual Sócrates honestamente chama nossa atenção. Durante o conflito que, segundo ele, tinha oposto anteriormente o prefeito Orestes aos ferozes parabolanos, por mais que o prefeito enumerasse seus títulos de cristão e batizado ²⁷, sua profissão de fé não tinha desarmado os amotinados, prova evidente de que a fraternidade religiosa contava pouco aos olhos destes últimos, e que se tratava antes de tudo para os rebeldes reduzirem à misericórdia o depositário do poder laico, para restabelecer a todo custo a supremacia, já tradicional no Egito, do patriarca. Sobre esse ponto é fácil comparar os testemunhos do autor. Nada realmente indica que Hipátia tenha professado este helenismo militante que teria sido, como foi dito de bom grado, a causa direta de sua perda. Como, nessas condições, teria sido permitido à filósofa exercer seus ensinamentos sob o patriarcado do pontífice anterior, Teófilo, inimigo declarado do politeísmo, cujo proselitismo furioso não tinha jamais temperado nenhuma consideração pela humanidade? Todavia, longe de desaparecer durante esse período conturbado, Hipátia nunca deixou de ampliar seu crédito. Muito melhor: à vista de todos, o bispo Sinésio permaneceu seu fiel discípulo até o fim de sua vida, e também parece estabelecido que ela contou entre seus ouvintes aquele que a Igreja honra com o nome de São Isidoro de Pelúsio ²⁸.
De fato, se estivermos dispostos a ouvir nosso informante, o cerne dessa tenebrosa intriga é, como sugerimos acima, constituído por um conflito de interesses temporais muito mais do que por um duelo ideológico. No início do século V, os patriarcas de Alexandria atingiram o auge de seu poder ²⁹. Com o exemplo de Santo Atanásio e de Teófilo, Cirilo não permite nenhuma divisão. Ele declara ser o mestre soberano em casa. Só tolera o prefeito na medida em que este favoreça seus desígnios. Contra o prefeito, vindo de Constantinopla e para um mandato de duração limitada, o patriarca, filho do país, provido de enormes recursos materiais, beneficia-se da permanência, que faz dele, aos olhos das massas, "o sucessor dos antigos faraós ³⁰". Este sentimento é ainda mais vívido sob o patriarcado de Cirilo, já que Schenoudi de Atripé acaba de fundar a igreja copta, e quando um espírito nacional começa a nascer em torno de uma igreja nacional" ³⁰bis. Diante desse movimento de opinião, era singularmente inapropriado — como é compreensível — o prefeito Orestes querer exercer seu mandato sem se submeter aos caprichos do arcebispo. O erro de Hipátia, como sugere Sócrates, consistiu sem dúvida em encorajar o prefeito em seu desejo de independência. Nada, porém, a destinava, em princípio, a desempenhar os primeiros papéis nesse duelo cerrado. Foi o brilho de seu nome que, de uma intervenção episódica, se tornou o centro do drama, cuja verdadeira força motriz constituía uma briga por prestígio. A prova é que depois da morte dela, com grande espetáculo, a luta continuou no silêncio das chancelarias. Sobre o fundo real do debate, a corte de Constantinopla não incorreu em erro. Um ano depois desse pseudo-desfecho, ela emitiu seu parecer. Enquanto ela permitia que o assassinato da filósofa ficasse impune — como Damáscio nota amargamente —, a preocupação na alta camada social era devolver ao prefeito suas prerrogativas oficiais. Em 29 de setembro de 416, um edito limitava o número de parabolanos a quinhentos e previa sua progressiva secularização ³¹. Um segundo edito, publicado em 5 de outubro, interditava o patriarca de enviar daqui em diante ao imperador qualquer delegação cujos votos não tivessem, anteriormente, sido submetidos ao prefeito ³².
Como, então, foram estabelecidas as responsabilidades incorridas por Cirilo? Quanto ao assassinato de Hipátia, nenhuma acusação de premeditação pode ser validamente feita contra ele. Era impossível para o arcebispo prever a que excessos levaria o zelo dos auxiliares fanáticos e praticamente subtraídos de seu controle. Por outro lado, ele podia calcular facilmente, — toda consideração moral à parte, — que a morte da filósofa causaria infinitamente mais danos à Igreja do que lhe asseguraria vantagens. Podemos estar convencidos, além disso, de que, se a menor suspeita tivesse manchado sua conduta, o historiador Sócrates, muito pouco inclinado à benevolência para com ele, não teria deixado de coletá-la.
Quanto ao misterioso Edésio, encarregado pelo imperador de prosseguir com o caso, e que, segundo o testemunho de Damáscio, teria se deixado subornar ³³, ninguém certamente poderia garantir sua integridade em um momento em que a venalidade da justiça era uma coisa tão comum. Ninguém poderia, por outro lado, acusá-lo formalmente de prevaricação. A repressão de um crime coletivo — acontecimentos recentes nos lembraram disso — é infinitamente delicada. Se, na ocorrência, o juiz instrutor julgou acabar com um ressentimento popular ao declarar incompetente o tribunal do prefeito ³⁴, talvez tenha se equivocado; ele estava certo, por outro lado, ao evitar com sua decisão que a lei de retaliação fosse aplicada indefinidamente. Para isso, sem dúvida, bastou-lhe, senão arquivar o caso que teria revoltado a opinião pública, pelo menos estender aos assassinos por algum artifício processual as estipulações de uma lei recente ***: “Clericos non nisi apud episcopos accusari convenit ³⁵.”
Resta, para esgotar o interesse dos nossos documentos, sublinhar sua coesão interna e explicar mais profundamente suas discordâncias: a lógica sadia observada por Sócrates e o ódio que vibra no relato de Damáscio.
Em geral, considerou-se que o caso, no qual, para seu azar e para sua glória, Hipátia se viu envolvida, opondo os cristãos aos "helenos". Este ponto de vista, como sublinhei mais acima, dá uma visão distorcida das realidades: o conflito colocava em disputa menos crenças religiosas hostis do que prestígios rivais e interesses divergentes.
Há mais. Tal interpretação não responde aos dados do problema. As partes em disputa não são — o testemunho de Sócrates não admite ambiguidade — os cristãos e os "helenos", mas os cristãos e os judeus, cujos interesses oprimidos foram proibidos pelos poderes oficiais. É então a pura "filantropia" que animava a nossa heroína, no momento em que, com toda a probabilidade, inspirou ao prefeito uma atitude intransigente em relação aos primeiros? Reconheçamos que, nesta ocasião, sua conduta conviria tanto e melhor do que a uma filósofa, a uma judia helenizada.
É um fato estabelecido que no século V muitos judeus se tornaram seguidores do neoplatonismo. Tal foi o caso do matemático Domninos, colega de Proclos (410-485), que só poderia ter adquirido sua cultura científica em Alexandria, onde o próprio Proclos havia feito seus estudos ³⁶. Igualmente tal foi o caso, entre outros, do escolarca ateniense Marinos, sucessor em título de Proclos ³⁷.
Objetar-se-á que tais conversões não dizem respeito apenas à Escola de Atenas e que nada sabemos sobre a genealogia da filha de Théon. É fácil responder que um argumento e silentio não prova nada, e que a história desta época não está interessada em verdades comuns, mas em mirabilia. Ora, o que poderia ser mais comum do que a presença de uma elite intelectual judaica em uma cidade, cuja população era de dois quintos de judeus ³⁸, os quais, segundo uma tradição constante, haviam iniciado a tradução de sua Bíblia a partir do reinado de Ptolemeu II Filadelfo, e tinham conseguido acesso a empregos oficiais com Ptolemeu VII Physcon ³⁹?
Em todo caso, a hipótese lançaria nova luz sobre a estranha personalidade de Hipátia; explicaria melhor o fervor apaixonado, dedicado à sua memória pelos últimos escolarcas de Atenas; e certamente isso não é forçar os textos tal como explicar por essas ascendências, talvez maternas, o encanto singular atribuído por todos os seus contemporâneos à última herdeira de Plotino, como suas raras aptidões para as ciências especulativas.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Cf. J.R. Asmus, Hypatia in Tradition und Dichtung, in Studien zur vergl. Litteraturgesch., VII, 1907, pp. 11 ss.
² R. Hoche, Hypatia die Tochter Theons, in Philologus, XV, 1860, pp. 435-474, e W.A. Meyer, Hypatia von Alexandria, ein Beitrag zur Geschichte des Neuplatonismus, Heidelberg, 1886.
³ "Unerweislich", tal é o termo que emprega a esse propósito K. Praechter in R. E., 9, s.v. Hypatia, 248, para resumir as conclusões das monografias acima.
⁴ Cf., entre outros autores, J. Faivre in Dic. d'hist. et de géo. ecclésiast. de Baudrillart, Paris, 1914, 2, s. v. Alexandrie, 324-325, e J. Mahé in Dic. de Théol. cath., 1938, 32, s. v. Cyrille, 2477.
⁵ Hist. Eccles., XIV, 14-16.
⁶ Chronogr., XIV.
⁷ In Fragm. historic. Graec., IV, Ed. Müller-Didot, 1851, 176, fragm. 67.
* N.T.: Do século III ao VII d.C., o número de pessoas conhecidas como "escolásticas" é particularmente alto. Essas pessoas eram bem formadas em retórica e conhecimento jurídico. O termo não designava uma profissão específica; embora muitas vezes durante esse período um σχολαστικός reunisse as características de um jurista no sentido atual, podia o termo ser aplicado a consultor jurídico, professor de direito, juiz, notário, etc. Embora não estivesse diretamente relacionado com o sistema educativo como professor ou professor de retórica, ocasionalmente um σχολαστικός poderia ter sido, em determinadas circunstâncias, professor particular de gramática (gramático, γραμματικός em grego).
⁸ Hist. Eccles., VII, 13-15.
⁹ Hist. Eccles., VIII, 9.
¹⁰ É preciso pesquisá-los no léxico de Souda, s.v. 'Yπατία (Cf. Sudae Lexikon, Ed. A. Adler, IV, 644). Foi P. Tannery quem por primeiro (Ann. de la Fac. de L. de Bordeaux, II, 1880, 197-200) detectou que a segunda parte do artigo em questão (a partir de Αϋτη έν 'Αλέξανδρεία segundo esse autor) era efetivamente a transcrição dum fragmento da Vita Isidori de Damáscio, cujo patriarca Photius (Bibl., cod. 242) nos conservou mais amplos extratos. Desde então, essa observação decisiva foi verificada e completada por J.R. Asmus em sua magistral reconstituição da Vita (Das Leben des Philosophen Isidoros... wiederhergestellt übersetzt und erklärt, Leipzig, 1911), cuja versão traduzimos aqui (Ibid., 33).
¹¹ Γένος ... εκγονος. A alusão designa Valentiniano III, imperador do Ocidente, que morreu assassinado em 455. Valentiniano III era, na verdade, não o "descendente", mas o primo por aliança de Teodósio II que o narrador julga responsável pela impunidade assegurada aos assassinos de Hipátia. O termo εκγονος pode-se explicar, no entanto, por sua aproximação combinada com γένος, e pelo fato que Teodósio II morreu efetivamente cinco anos antes de Valentiniano III. Quanto a Edésio, cujo nome não está atestado em outra parte senão pela subscrição de uma carta de Isidoro de Peluso (Ep. V, 14), trata-se aparentemente dum alto funcionário, enviado de Constantinopla a Alexandria para inquérito; cf. Asmus, Das Leben..., 154.
¹² Hist. Eccles. VII, 13 (Hussey, II, 358-59).
¹³ Ibid., ibid., 14 (Hussey, ibid., 360).
¹⁴ Lembremos que os membros desta corporação, prepostas ao serviço dos ritos fúnebres, constituíam na ocasião como os guarda-costas dos patriarcas do Egito.
** N.T.: Conforme a Wikipedia, "parabolanos" era a denominação dos membros de uma irmandade cristã que, nos primeiros séculos da Igreja, se encarregavam, de forma voluntária, de realizar obras de misericórdia, tais como cuidar dos enfermos e enterrar os mortos. Geralmente extraídos dos estratos mais baixos da sociedade, eles também funcionavam como assistentes de bispos locais e às vezes eram usados por eles como guarda-costas e em violentos confrontos com seus oponentes. Os parabolanos não tinham ordens nem votos, mas eram enumerados entre o clero e gozavam de privilégios e imunidades clericais.
Sua presença em reuniões públicas ou nos teatros era proibida por lei.
Como seu fanatismo resultou em tumultos, leis sucessivas buscaram limitar seus números: assim, uma lei emitida em 416 restringiu a inscrição em Alexandria a 500; seu número aumentou para 600 dois anos depois.
Sua presença em reuniões públicas ou nos teatros era proibida por lei.
Como seu fanatismo resultou em tumultos, leis sucessivas buscaram limitar seus números: assim, uma lei emitida em 416 restringiu a inscrição em Alexandria a 500; seu número aumentou para 600 dois anos depois.
¹⁵ Cabia ao leitor fazer entender, durante os ofícios, os textos da Escritura destinados à meditação dos fiéis. Sabe-se que Juliano tinha sido admitido na sua juventude a este primeiro grau da clericatura.
¹⁶ Hist. Eccles., VII, 15 (Hussey, ibid., 360-61).
¹⁷ A. e M. Croiset, Histoire de la littér. grecque, V, 1928, 1028: "Esses incidentes mesmo a perderam (SC. Hypatie). O populacho de Alexandria, excitado pelos monges, passaram a considerar a casa de Hipátia como o ponto de encontro dos inimigos de Deus. Não se sabe exatamente qual foi naquilo o papel do patriarca Cirilo. Assim é que um dia do ano 415, uma multidão selvagem se lançou sobre aquela casa, dali arrastou a infeliz e nobre mulher, e a desmembrou ignominiosamente sem que nenhuma autoridade interviesse a tempo para salvá-la.
¹⁸ Seu ensino oficial tem fim em 529, quando do encerramento da Escola por Justiniano.
¹⁹ Cf. Christ (W. von), Gesch. der Griech. Litter., VII, II, 1, München, 1920, 1434-35, e R.E., II, 3, s. v. Sokrates Scholasticus, 893-901 (Eltester).
²⁰ Cf. Supra, p. 20: "le hiatrosophiste Adamantios".
²¹ Cf. E. Ruelle, Le philosophe Damascius..., Paris, 1861, e R.E., s.v. Damaskios, 2039-42 (Kroll).
²² Hist. Eccles. V, 16 (Hussey, ibid., 282).
²³ Cf. As reflexões que lhe sugere a fé escolar de Juliano, Hist. Eccles., III, 16 (Id. ibid., 191).
²⁴ Damasc. apud Souda, loc. cit. (Φόνον ... άνοσιώτατον, θηριώδεις, σχέτλιοι, κ.τ.λ.)
²⁵ Cf. nossa análise (Supra pp. 20-21), onde as expressões mais significativas foram assinaladas.
²⁶ A observação foi feita muitas vezes, entre outras por Tannery e Asmus.
²⁷ Hist. Eccles. VII, 14; Supra, p. 20.
²⁸ Sobre as tendências presumidas do ensino de Hipátia e sobre a clientela de sua escola, cf. nosso Synésios de Cyrène..., Paris, 1951, pp. 47-53.
²⁹Cf. Fliche et Martin, Histoire de l'Église, Paris, 1939, III, pp. 446-7. É, de fato, Dióscoro, sucessor de Cirilo, que reivindicará primeiro o título de "patriarca ecumênico"; cf. L. Bréhier, Les Institutions de l'Empire byzantin, Paris, 1949, p. 450.
³⁰ e ³⁰ bis Diehl e Marçais, Histoire du Moyen Âge, III, Paris, 1936, p. 25.
³¹ Cod. Theod., XVI, II, 42.
³² Ibid., XII, XII, 15.
³³ Supra, p. 13.
³⁴ Esta, de fato, era a única habilidade a evocar as causas criminais; cf. A. Piganiol, L'Empire chrétien, Paris, 1947, p. 368.
*** N.T.: Em 392 d.C., Teodósio reuniu as porções oriental e ocidental do Império, sendo o último imperador a governar todo o mundo romano. Após a sua morte em 395 d.C., as duas partes do Império Romano cindiram-se definitivamente em Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla, sendo seu filho Arcádio o herdeiro, e Império Romano do Ocidente, com sede em Roma, herdado por seu filho Honório. Este último isentou todos os clérigos da jurisdição dos tribunais seculares. Em dezembro de 411, o imperador decretou que os clérigos só poderiam ser acusados perante os bispos: "clericos non nisi apud episcopos accusari convenit". Se a acusação fosse infundada, o acusador perdia sua honra e, se fosse uma pessoa de alto escalão, seu status de nobre. Se, por outro lado, a acusação fosse comprovada, o acusado deveria ser excluído do clero.
³⁵ Cod. Theod., XVI, II, 41 (412).
³⁶ Cf. R.E., 5, s.v. Domninos, 1521-2 (Hultsch) e Asmus, op. cit., p. 81.
³⁷ Ibid., 14, s.v. Marinos, 1759-61 (Schissel), e Asmus, p. 87.
³⁸ Cf. Christ, op. cit., pp. 542-3.
³⁹ Id., ibid., pp. 11, 31, 538.
IV. BIBLIOGRAFIA
BRAGA, Francisco José dos Santos: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte I, postado no Blog do Braga em 17/09/2022
_________________________________: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte II, postado no Blog do Braga em 04/10/2021
_________________________________: DISCURSO "SOBRE A REALEZA" DE SINÉSIO DE CIRENE AO IMPERADOR ARCÁDIO, postado no Blog do Braga em 02/01/2015
LACOMBRADE, Christian: Autor du meurtre d'Hypatie, Pallas. Revue d'études antiques, Année 2/1954, pp. 17-28.
9 comentários:
Prezad@,
Para a série dedicada a HIPÁTIA DE ALEXANDRIA, o Blog do Braga apresenta a tradução de AO REDOR DO ASSASSINATO DE HIPÁTIA, texto da autoria de CHRISTIAN LACOMBRADE (1905-1998), autor de, entre outras obras especializadas na Antiguidade Tardia, o presente trabalho e outros dois sobre o "bispo filósofo" e discípulo de Hipátia: Sinésio de Cirene: heleno e cristão e Discurso sobre a Realeza de Sinésio de Cirene ao imperador Arcádio. Este último já se encontra traduzido pelo Blog do Braga e publicado em 02/01/2015.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/10/hipatia-de-alexandria-parte-3.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Excelente! Elucidativo. Obrigado, Braga. Saudações.
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços. Diamantino.
BRAVO!!!
Caro amigo Braga
Agradecemos pelo envio: assunto muito interessante!
Abraços de Mario e Beth.
Obrigado, pela matéria tão interessante. Do tipo... Essa você não encontra por aí. Parabéns por divulgar Cultura. (Geraldo Reis Poeta)
Bravo!
Abrs
Caro professor Braga;
O texto traduzido acrescenta bastante em relação às fontes e a contextualização histórica trazidas na sua primeira publicação a respeito da legendária filósofa. Ao ampliarmos o contexto histórico a partir dessas leituras, o caso nos sugere um drama cujos ingredientes , eventual e dolorosamente, voltam a se tornar atuais sobretudo em algumas partes do mundo.
Congratulações.
Cupertino
Postar um comentário