quinta-feira, 13 de abril de 2023

ENCONTRO DOULIEZ E MENDONÇA TELES - Canções com piano


Por Francisco José dos Santos Braga

Jean François  DOULIEZ (✰ Hasselt - Bélgica, 16/03/1903 - ✞ Bruxelas, 09/10/1987)
Gilberto MENDONÇA TELES (✰ Bela Vista de Goiás, 30/06/1931)

Inicialmente, vou reproduzir aqui as letras das "Canções com piano" para plena fruição da beleza contida em cada um dos poemas, pois muitas vezes a simples audição de peças não dão a exata dimensão da letra, pois às vezes prestamos muita atenção na música por nos distrairmos muito com a beleza da voz ou gestos da cantora, com o toque magnífico do pianista e até com o ambiente a nosso redor. Eis, portanto, as letras dos poemas de Mendonça Teles contidos no CD intitulado: Encontro Douliez e Mendonça Teles - Canções com piano

CONTO DE FADA 

1. COMEÇO 

Era uma vez um bom príncipe 
que só contava até três. 
E havia nele um princípio 
de calvície e sozinhez. 
 
Trazia de ébrio e de sóbrio 
alguns negócios viris. 
E falava como um nobre 
de sua terra e país. 
 
Tinha uma lira barroca, 
tinha na testa uma cruz. 
No peito tinha uma moça, 
na língua apenas tabus. 
 
Mas cantava pelo simples 
prazer de cantar e, após, 
ficava ajustando os timbres, 
imaginando que a voz
 
podia ser mais solene, 
ser mais sentida e eficaz, 
mesmo que fosse o seu reino 
aquém e além de Goiás. 
 
2. MEIO 
 
Quem viu o salto do prinspo 
no seu cavalo pedrês? 
Quem descobriu seu princípio 
de silêncio e timidez? 
 
Sua coroa de loiras 
e de morenas faz jus 
à transparência das coisas 
perdidas de tanta luz? 
 
Sua linhagem e estirpe, 
seus brasões e bisavós, 
caberiam nesse eclipse 
anular de todos nós?
 
Que faz ele de seu tempo? 
O povo sabe o que diz? 
Serve de riso ou de exemplo? 
Tem bens de sangue e raiz? 
 
Alguém já viu sua escrita, 
seu pergaminho e editais? 
Quem sabe de sua vida 
aquém e além de Goiás? 
 
3. FIM 
 
No rosto da edição princeps 
o seu retrato e nudez. 
No prefácio, algum princípio 
de ideologia e gaguez. 
 
Em cada página um traço 
de seu jeito e quiproquós: 
vinhetas no papel raso, 
figuras que nem cipós. 
 
Sob o desenho das letras 
seus versos ficaram nus: 
tinham veludos e sedas 
nas tintas de contraluz. 
 
E bem no meio do códex, 
em forma de cicatriz, 
seu nome ficou na estrofe 
riscada de ouro e verniz, 
 
deixando, como rasura 
no colofão, os sinais 
que algum leitor articula 
aquém e além de Goiás.
 

EXERCÍCIO PARA MÃO ESQUERDA 

Para Iva Moreinos 

Um dia descobriu que a mão esquerda 
era mais emotiva e mais ausente: 
dedilhava por dentro o que era perda 
e sondava por fora o inexistente. 
 
E descobriu que quanto mais isento 
o acorde se tornava, e delicado, 
tanto mais se ordenava o movimento
da música de fundo no teclado. 
 
E viu-se de repente entretecido 
no mais difícil, no desvão do espaço, 
quando as notas colhiam seu sentido 
nas formas invisíveis do compasso. 
 
Sentiu-se solidário na partida 
e chorou solitário na aventura, 
como se em cada coisa a própria vida 
se lhe escapasse numa partitura. 
 
E foi aí que se sentiu restrito, 
que se fez de silêncio e de resvalo: 
a mão esquerda desdobrava o mito 
e dedilhava as terças do intervalo.
 
♧               ♧               ♧
 
Considerando que Mendonça Teles, atual Príncipe dos Poetas Goianos, dispensa apresentação por já ser colaborador do Blog de São João del-Rei e já ter sido objeto de dois artigos ("Poesias que vêm do amor" por Gabriela Azevedo e Ana Carolina Moraes, bem como "A arte de armar boas respostas", uma entrevista concedida ao jornalista Danilo Gomes), vou centrar minha atenção no musicista Jean François DOULIEZ, o parceiro de Mendonça Teles no CD, responsável por musicar os seus poemas. É com muito prazer que vou traduzir aqui texto memorial-biográfico sobre o compositor belga da autoria de Eline Jans para o Centro de Estudos de Música Flamenga (Studiecentrum Vlaamse Muziek). 
 
 
DOULIEZ, Jean François 
 
Por Eline Jans
Traduzido do holandês por Francisco José dos Santos Braga
 
Jean François DOULIEZ (✰ Hasselt, 1903-✞ Bruxelas 1987) recebeu de sua mãe os primeiros princípios musicais básicos aos cinco anos, assim como seus irmãos Paul (1905-1989) e Laurent (1908-1938). Seu pai, Hendricus Franciscus ( 1876), foi colocado na capela de música do 11º regimento de linha em Hasselt. O avô de Hendrik Frans era Alexander Josephus Douliez (1794-1865). Alexander também era avô de Frans Hippoliet Douliez (✰ 1872), que, como seu primo Hendrik Frans, era músico na capela de música. Nesta família musical, Jan, como criança talentosa, teve a oportunidade de iniciar os estudos musicais primeiro em Limburg e depois em Antuérpia e Paris. Ele estudou violino pela primeira vez na Escola Municipal de Música de Hasselt, onde recebeu o primeiro prêmio e o prêmio de excelência por seu instrumento em 1917 e 1918, respectivamente. Ele então continuou seus estudos na escola de órgão de Limburg, onde estudou piano, órgão, canto gregoriano e harmonia. Durante seus estudos no Conservatório Real Flamengo de Antuérpia, Douliez obteve o primeiro prêmio em solfejo com Albert De Schacht em 1922 e também estudou violino com Désiré Defauw, música de câmara e execução orquestral com Constant Lenaerts, harmonia com Lodewijk De Vocht e literatura holandesa com Arthur Cornette Jr. Ele combinou isso com um trabalho como segundo violino na orquestra da Ópera Francesa e dos Novos Concertos. 
 
Após os estudos, foi sucessivamente músico em navio de cruzeiro (1923) e "répétiteur" na Orquestra do Hipódromo junto com Henri Kennis (1925-1926), antes de retornar às aulas em Paris em 1927. Desta vez estudou composição com Vincent d'Indy e música de câmara com Lucien Capet. Isso o capacitou a tocar segundo violino no quarteto de cordas de Capet. Dois anos depois, ele se juntou à turnê de ópera da Ópera de Paris como maestro. Em 1932 ele foi violinista novamente com a Ópera Real Flamenga de Antuérpia, para montar seu próprio conjunto de câmara em 1934 e fazer uma turnê pela Europa com ele. Ele obteve seu diploma como professor de educação musical em 1936, após o qual lecionou de 1938 a 1945 nas recém-criadas Escolas Secundárias Estatais de língua holandesa em Bruxelas. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi violinista na NIR Broadcasting Orchestra, mas também tocou violino e trombone na orquestra de jazz de Stan Brenders. 
 
Após a Segunda Guerra Mundial, Douliez foi enviado ao Brasil por missões culturais do governo belga. Aqui se estabeleceu em 1949. No Brasil, continuou sua carreira musical como regente da Orquestra Sinfônica Municipal e da Orquestra Sinfônica do Colégio Militar de Belo Horizonte. Incumbido pelo governo, Douliez fundou um conservatório em Goiâna em 1954. Esta escola cresceu rapidamente e tornou-se um corpo docente da Universidade Federal de Goiás. Com originalmente dois professores – Douliez ensinava todas as disciplinas, exceto solfejo – e 80 alunos, o conservatório se transformou em uma instituição com 60 professores e 1300 alunos. Desta forma, ele conseguiu promover a música flamenga no Brasil. Paralelamente, Douliez frequentou um curso na Faculdade de Letras e Filosofia, no qual também se doutorou como 'Professor do ensino superior'. Trabalhou em diversos jornais brasileiros onde colaborou nas seções de música e literatura. Depois de se tornar professor de língua e literatura francesa, e mais tarde doutor honoris causa, na Academia de Letras do Brasil, tornou-se também membro correspondente desta instituição. 
 
Após 17 anos voltou para a Bélgica e mais especificamente para Ghent, onde foi maestro em várias orquestras e fundou o Gents Symfonisch Studie-Orkest em 1981. Foi também um membro do júri muito requisitado em vários conservatórios e academias de música em Flandres. 
 
Antes, durante e depois de sua estada no Brasil, Douliez compôs um grande número de obras. Ele definiu principalmente obras vocais, como a ópera buffa Uma revolução alegre em um libreto de H. Caspeele, que foi encenada em 1973 na Ópera Real de Ghent como uma criação mundial. Seu oratório O Anúncio Feito a Maria sobre texto de P. Claudel foi encenado várias vezes em Brasília. Além disso, suas composições vocais incluem obras corais e canções (infantis), como Two friends e O Land!, ambas sobre texto de B. Engels. Também compôs missas e obras instrumentais. Essas últimas incluem peças solo, música de câmara, balés e obras orquestrais, por exemplo, a Sinfonia Nirwana e a Sinfonia Aequationes. Após a partida de Douliez para o Brasil, Lodewijk De Vocht fez o arranjo para o hino nacional brasileiro, cuja partitura se encontra no Conservatório Real de Antuérpia. 
 
É notável que as composições de Douliez sejam executadas com mais frequência no exterior do que na Bélgica. 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
Outros trabalhos sobre compositor Douliez:  
 
GOLAND, J. (1976). “nós honramos/nós lembramos. Jan Douliez...' Flandres, 25/153: 230. <http://www.dbnl.org/tekst/_vla016197601_01/_vla016197601_01_0064.php> [30 de agosto de 2016] 
 
GOES, Y. (1987). “nós honramos/nós lembramos. Compositor e maestro Prof. Jan Douliez. In Memoriam.' Flandres, 36/218: 328-329. <http://www.dbnl.org/tekst/_vla016198701_01/_vla016198701_01_0082.php> [30 de agosto de 2016] 
 
OTTE, W. (1983). “nós honramos/nós lembramos. Músico Jan Douliez 80.’ Flandres, 32/193: 104-105. <http://www.dbnl.org/tekst/_vla016198301_01/_vla016198301_01_0021.php> [30 de agosto de 2016] 
 
ROQUET, F. (2007). ‘Jean-François Douliez.’ Dicionário de Compositores flamengos nascidos depois de 1800. Roeselare: Roularta Books, p. 303-304. 
 
Fontes:
 
 
BITTENCOURT, Márcia Terezinha Brunatto: A PRESENÇA DE JEAN FRANÇOIS DOULIEZ NA MÚSICA EM GOIÁS”, dissertação apresentada ao Mestrado em Música da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás 
 
Link adicional: 

11 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
É um grande prazer comemorar a parceria do poeta goiano MENDONÇA TELES com o Maestro JEAN FRANÇOIS DOULIEZ, um musicista belga.
Dessa parceria resultaram inúmeras peças musicadas.
O CD intitulado "ENCONTRO DOULIEZ E MENDONÇA TELES - Canções com piano" (2018), que apresento, foi uma dessas belas realizações da dupla, embora ainda não se encontrasse disponível no YouTube até o presente.
Em vista desta lacuna, recorri à colaboração de meu sobrinho Bruno Braga Campos para editar e subir o material do CD para o Youtube com aprovação de Mendonça Teles e o resultado desse esforço conjunto você poderá conferir na matéria publicada no Blog do Braga.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/04/encontro-douliez-e-mendonca-teles.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

José Carlos Gentili (escritor, jornalista, membro da Academia de Letras de Brasília, da Academia Brasileira de Filologia e da Academia das Ciências de Lisboa) disse...

Parabéns!

Prof. Luiz César Saraiva Feijó (professor aposentado, cronista e ocupante da cadeira nº 28 da Academia Brasileira de Filologia) disse...

Obrigado. Mendonça Teles é meu companheiro de Academia. ABRAFIL/RJ. Um forte abraço para ele e parabéns a todos, em prol da verdadeira cultura de nossa terra!

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Francisco Agradecendo-lhe pelas suas informações sobre as publicações destes dois autores, quero aproveitar esta oportunidade para desejar-lhe, e à Rute, um Feliz e Animado Tempo Pascal, sempre vivendo e trabalhando a serviço de um mundo melhor!
Paz e Bem!! f. Joel.

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Caro Francisco Braga,
Que rica parceria: GIlberto Mendonça Teles, o mestre e poeta goiano e Douliez, o musicista belga.
Só mesmo a Beleza da Arte para promover um encontro poderoso como esse.
Parabéns a todos.
Abraço grande,
Raquel Naveira

Manoel Veiga disse...

Muito obrigado. Vou ouvir logo mais. Conheci o maestro Jean Douliez,
em Goiânia, nos idos de 1956 ou 57. Goiânia ainda não havia alcançado a produção musical pujante dos dias de hoje.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Interessantes composições ! Letras muito bem estruturadas e surpreendentes modinhas (serão mesmo?) para um compositor belga. Lindas interpretações!
Muitíssimo grato e parabéns pelo lançamento da audição.
Saudações,
Cupertino

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Parabéns!
Caramba! O Gilberto Mendonça Teles, além de crítico respeitável, dos maiores, é um de nossos maiores poetas. A par de um silêncio inexplicável, para minha alegria, retomamos o fio da meada. Alegra-me essa notícia. Vamos acessar e deixamos, em nome da poesia, nosso muito obrigado. Não agradeço em nome dele, coisa que ele certamente já fez, mas em nome de uma admiração que tenho pelo poeta e amigo. Vamos acessar, sim.
Receba nosso abraço poético de Geraldo Reis e Maria Lúcia Camelo Reis

Ernani disse...

Braga

Segundo tenho alguma notícia, o Maestro Douliez também era um grande violinista!

Abraço mineiríssimo

Ernani

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

Enquanto trabalho, ouço as lindas músicas do Maestro Douliez que acessei no youtube.

Abraço.