Por Francisco José dos Santos Braga
É prazeroso hospedar-me no Savassi Hotel, porque sou acolhido por funcionários que me fazem sentir em casa: com distinção, elegância e respeito à minha privacidade. Tenho aí uma hospedagem tradicional e familiar em Belo Horizonte, bem localizada entre a Praça da Liberdade e a Savassi. Nesse hotel fundado há 42 anos mas sempre renovado, encontro pessoas curiosas de diferentes procedências que o frequentam há tempos, mantendo-se fiéis à segunda geração de sócios fundadores que o administra. Suas instalações são artisticamente decoradas com telas de pinturas assinadas por artistas famosos. São oito andares de fina classe e bom gosto que enchem meus olhos de encanto e fascinação.
Lá dentro há três pianos. O primeiro deles, de cauda, se acha no refeitório (que dizem ter servido no passado para animar eventos de conjuntos musicais brasileiros e cantores de jazz norte-americanos).
0 outro, um piano-armário, no corredor, à saída do refeitório, traz o seguinte aviso: "Não tocar".
O terceiro piano, também armário, se localiza no último andar entre a entrada de uma academia de fisicultura e uma piscina no "toproof", — às quais se chega através de elevador até ao oitavo andar e, a seguir, através de uma escada que liga ao andar superior — onde se acha um 'piano bar", que está à espera dos pianeiros de todos os matizes. Já vi naquele espaço funcionar também um spa da noiva para maquiagem da nubente e suas madrinhas e pajens convidadas para seu casamento na Fazenda Jaguara, em Matozinhos.
Não pretendo continuar falando do hotel, nem de piano, tampouco de casamento, mas de um encontro não marcado, que, por ironia do destino, me marcou profundamente.
Meu propósito é distanciar-me uns 300 metros dali para entrar numa loja de enfeites de natal e objetos artísticos de enfeite doméstico, chamada Estrada Real Decorações, onde travei conhecimento com um cliente muito especial.
Sr. Milton está comodamente sentado a uma mesa, aguardando pacientemente o passeio de sua esposa Ana por entre as gôndolas da loja. Sento-me também à frente da mesa em que ele já se acha e percebo que ele é mais idoso do que eu, enquanto aguardo o retorno da minha senhora Rute que se encantou com a vitrine e ali entrou em busca de um presente. Somos ele e eu dois inúteis e pacientemente esperamos, enquanto nossas esposas vão à caça.
Em breve, a mesa já estava coberta de compras de Ana, desde jogo de louça azul e branca de jantar até uma grande compoteira de cristal com tampa trabalhada, que ela já tinha reservado para levar.
Ele comenta, enquanto ela se afasta:
"Você sabe como é... Ninguém segura uma mulher." Ao que respondi sem titubear: "Eu também não."
Ana agora se esgueira entre as gôndolas da loja na companhia de um paciente vendedor.
Enquanto aguardo o retorno de Rute, puxo conversa com meu interlocutor, falando sobre a convalescença dela após uma pequena cirurgia no joelho, em que foi retirado um pequeno lipoma subcutâneo que se formou devido a um acidente de carro, vinte anos antes.
Aproveitando a deixa, ele parece ruminar alguma sua experiência recente, antes de começar a falar de seu caso particular. Finalmente relata a seguinte fala de seu médico:
"Aí vem o Sobrevivente", disse o meu médico quando me viu comparecer ao seu consultório. Também não haveria outro nome após eu ter sobrevivido a tantas intervenções cirúrgicas. Coisa séria. Já foram sete infartos e um tumor craniano. Só falta abrirem-me a testa...".
Arregalo meus olhos diante de um carma tão pesado e doloroso. Parece que Sr. Milton nem percebe minha empatia com a sua dor, pois continua com a maior naturalidade:
"Na condição de Sobrevivente, não me aborreço com mais nada. Por exemplo, minha esposa leva o que quiser desta loja, sem qualquer objeção de minha parte."
E justificando sua atitude, balbucia:
"Quando recosto minha cabeça no travesseiro, não sei se vou acordar na manhã seguinte."
E volta a falar de seu último caso clínico:
"Fui a meu médico fazer um check-up de rotina e ele, após um primeiro exame, descobriu um entupimento numa artéria do meu cérebro. Não convencido, pediu mais dois exames: o de tomografia computadorizada e um segundo, o definitivo, que constatou placas de colesterol numa artéria do meu cérebro, fato que costuma provocar arritmia cardíaca, prenunciando o risco de ocorrência de um AVC. Resumindo, eu estava na iminência de sofrer um AVC."
O médico ainda acrescentou:
"A artéria entupida dificulta a vascularização e a oxigenação do cérebro", disse-lhe ele.
E voltando-se para mim, Sr. Milton continuou:
"Só sei dizer que tinha caroço nesse angu. Apareceu também no último exame um tumor cerebral. Se é possível complicar, para quê simplificar, não é mesmo? Subitamente fiquei fora de mim com o diagnóstico. O mundo parecia ruir. Mas, já que não havia como fugir do próprio destino, submeti-me à cirurgia que extirpou o tumor. Mas, em compensação, após a operação, entrei em coma. Fiquei desacordado durante vários dias, mas meu "anjo bom" me acompanhou o tempo todo e falava comigo, mesmo na minha inconsciência, confiante no meu retorno à vida e a seu lado, naturalmente. E aqui estou. Hoje pego leve. Você sabe como é... Já estou no lucro."
Neste momento, Rute reapareceu, dizendo ter encontrado o presente que procurava.
A dele, com sua aprovação tácita, continuava seu périplo pelas gôndolas, frenética e insaciável.
À porta da loja, ainda voltei-me para o Sobrevivente, acenando-lhe com a mão em despedida e pensando alto:
"Como diz o outro: Tudo vai bem quando termina bem."
12 comentários:
Prezad@,
Minha última estada em Belo Horizonte ensejou-me a produção da presente crônica intitulada O SOBREVIVENTE, em que é exposta uma situação em que pude constatar que às vezes certos sentimentos transcendem a razão.
Quando alguém vivencia um estado próximo da morte, costuma se referir a uma experiência profunda de transcender o mundo físico, o que em geral o conduz a uma transformação espiritual.
A crônica quer mostrar que a vida tem sentido e que às vezes as experiências de quase-morte (EQMs) normalmente levam a uma transformação espiritual, responsável pelas mudanças positivas nas crenças, nas atitudes e nos valores.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/08/o-sobrevivente.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Dr. Francisco,
Bom-dia, paz, saúde e alegria!
Belíssima crônica! Parabéns! Enquanto eu a lia, senti-me estar participando de tudo.
Abraços extensivos à querida Rute.
Merania
Meu prezado amigo, FJSBraga,
gostei muito de seu conto :-"O sobrevivente". Gosto muito de contos que retratam o cotidiano. Tanto o Savassi Hotel, de propriedade de um ex- colega da minha Escola de Engenharia, como a loja Estrada Real são partes da Savassi, onde cheguei para estudar em 1958. A Praça Diogo Vasconcellos, que ninguém conhece por este nome, era a parte final da linha do bonde, e naquela praça tinha uma padaria, de imigrantes italianos, família Gallizzi, onde íamos todas as tarde ou princípio de noite tomar um sorvete, ou comer um pão com manteiga com café. Coisa de estudante. O nome da Padaria, que não existe mais, passou para o nome da praça.
Nesta praça morava o Dr. Tancredo de Almeida Neves, seu conterrâneo. São histórias que não acabam mais, o que acabam são as construções, os bondes, a padaria, o cine Pathé, etc etc.
Meus parabéns!
Um abraço do amigo Lúcio Flávio.
Olá, Francisco e Rute.
Feliz entrada no novo mês de Setembro, sempre vivendo a serviço de um mundo melhor!! Paz e Bem lhes desejo cordialmente! f. Joel!
Parabéns pela crônica. Deparei pelo meio dela a palavra "empatia". Pergunto então ao mestre se é válido o que digo a seguir: vem de "pathos" no grego, q significa "doença, dor, paixão".
Logo "empatia" seria ter a mesma doença, a mesma dor/paixão. Lógico q já busquei no Aurélio e no vocabulário do livro de exercícios de grego, da madre Danielou. Não achei o dic. de grego do Pe. Isidro sj, no momento. Então prosseguindo...em decorrência da mesma dor/paixão é q o sentido atual do termo se firmou. Empatia é um espelho do próprio sofrimento. O espelho q é o outro/a, pode ser humano ou um cão ou qq animal. Fica claro q até um animal pode refletir o sentimento de dor... parece q sempre existe dor nesse entorno semântico. (...)
Ao mais, ainda há o que dizer, e nisso vai um paradoxo.. como disse, "pathos" significa doença, dor, paixão... mas como assim, "dor/paixão"... que dueto é esse? Paixão é dor? São sinônimos ou próximos de sentido? E mta gente vai concordar com isso, pensando que paixão de fato é dor, ou sê-lo-á, mais cedo ou mais tarde... triste engano. "Paixão" significa apego demasiado a alguma coisa, apego q não ouve a razão. No sentido coloquial esta palavra fica reduzida ao contexto amoroso. Originalmente o q tem mais peso no "pathos" é o desarrazoado do sentimento.
FANTÁSTICA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO.QUE DEUS CONTINUE A ABENÇOAR ESTE SENHOR
Caro professor Braga
Estimulante texto! Desde as primeiras até as suas últimas linhas! Um conteúdo que convida a pensar, um estilo prazeroso de refinado cronista.
Sinceros parabéns!
Grato pela oportunidade de sua leitura.
Cupertino
Obrigado 👍
Boa!
Boa tarde, compositor! Obrigada pela indicação no IHG de São João del-Rei.
Sandra Corrêa Nunes
Caro amigo Braga.
Que crônica agradável de ler! Ela prende a atenção desde o início, em uma narrativa literária muito atraente, que faz o leitor sentir-se naquela loja de BH ao lado do Sr. Milton, que contou com a sua paciência – não só para esperar o final das compras – como em especial para ouvir, pacientemente, uma estória de vida de um desconhecido que aproveitou o ensejo para um quase desabafo de seus infortúnios de saúde.
Parabéns pela bela crônica e pela sua ação generosa em ouvir aquela estória de vida.
Abraços, meus e de Beth.
Mario Cupello.
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