domingo, 6 de agosto de 2023

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 18: FÁBULA “AS RÃS QUE PEDIAM UM REI”

Tradução literal do grego, latim e italiano, comentários e bibliografia sugerida por Francisco José dos Santos Braga 
 
"Frogs Desiring a King" by John Vernon Lord

I. TRADUÇÃO LITERAL da fábula original de Esopo e da versão histórico-política de Fedro: As rãs que pedem um rei

1) Esopo ¹
 
As rãs, desgostosas por não terem um governo, enviaram uma embaixada a Zeus e pediram que ele lhes desse um rei. Zeus, vendo como elas eram tolas, jogou um pedaço de pau no (seu) lago. O tronco, ao cair, causou uma ruidosa pancada na água e as rãs, amedrontadas, mergulharam no fundo do lago. Mas então, vendo o tronco imóvel, elas recobraram o ânimo e, voltando à superfície, se aproximaram para montarem a cavalo e aboletarem-se sobre ele. Com o passar do tempo, porém, esse rei não lhes agradou por ser indolente: apenas flutuava e não fazia nada. Elas novamente enviaram uma embaixada a Zeus e pediram outro rei que fosse vigoroso e ativo. Então Zeus enviou uma hidra ², que, capturando-as, as devorou.
Moral da fábula: É melhor ter governantes indolentes (mas sem malícia) do que desordeiros (e malvados).
 
Uma hidra em ataque furioso

 
 
 ΒΑΤΡΑΧΟΙ ΑΙΤΟΥΝΤΕΣ ΒΑΣΙΛΕΑ 
 
[44] ³ βάτραχοι λυπούμενοι ἐπὶ τῇ ἑαυτῶν ἀναρχίᾳ πρέσβεις ἔπεμψαν πρὸς τὸν Δία δεόμενοι βασιλέα αὐτοῖς παρασχεῖν. ὁ δὲ συνιδὼν αὐτῶν τὴν εὐήθειαν ξύλον εἰς τὴν λίμνην καθῆκε. καὶ οἱ βάτραχοι τὸ μὲν πρῶτον καταπλαγέντες τὸν ψόφον εἰς τὰ βάθη τῆς λίμνης ἐνέδυσαν, ὕστερον δέ, ὡς ἀκίνητον ἦν τὸ ξύλον, ἀναδύντες εἰς τοσοῦτο καταφρονήσεως ἦλθον ὡς καὶ ἐπιβαίνοντες αὐτῷ ἐπικαθέζεσθαι. ἀναξιοπαθοῦντες δὲ τοιοῦτον ἔχειν βασιλέα ἧκον ἐκ δευτέρου πρὸς τὸν Δία καὶ τοῦτον παρεκάλουν ἀλλάξαι αὐτοῖς τὸν ἄρχοντα. τὸν γὰρ πρῶτον λίαν εἶναι νωχελῆ. καὶ ὁ Ζεὺς ἀγανακτήσας κατ᾽ αὐτῶν ὕδραν αὐτοῖς ἔπεμψεν, ὑφ᾽ ἧς συλλαμβανόμενοι κατησθίοντο. 
ὁ λόγος δηλοῖ, ὅτι ἄμεινόν ἐστι νωθεῖς καὶ μὴ πονηροὺς ἔχειν ἄρχοντας ἢ ταρακτικοὺς καὶ κακούργους.
 

2) Fedro
 
Quando Atenas florescia com leis justas, 
Uma licenciosidade desenfreada convulsionou a cidade
E a libertinagem rompeu o antigo freio. 
Então, tendo os partidos das facções conspirado, 
o tirano Pisístrato ocupa a cidadela. 
Como os atenienses deplorassem 
sua triste servidão e começassem a queixar-se, 
[não porque aquele fosse cruel, mas porque toda carga
é pesada para os não acostumados a ela], 
então Esopo narrou a seguinte fábula: 
As rãs que vagavam livremente pelos pântanos
pediram a Júpiter com grande coaxar um rei
que reprimisse pela força os costumes dissolutos. 
O pai dos deuses riu-se e lhes deu
um pedaço de madeira, que, arremessado subitamente 
às águas, com o abalo e o barulho assustou a raça medrosa. 
Como esta (raça) ficasse por muito tempo imersa no lodo, 
por acaso uma (rã) põe sem ruído a cabeça para fora do charco 
e, depois de examinar o rei, chama todas as outras
Elas, superado o temor, chegam a nado em disputa 
e a turba mais alta  trepa no tronco. 
Depois de o terem desonrado com todo tipo de ultraje, 
enviaram a Júpiter embaixadores pedindo outro rei, 
porque aquele que lhes tinha sido dado era inútil. 
Então (Júpiter) enviou-lhes uma hidra, que, com dente afiado,
começou a abocanhá-las uma a uma. Em vão as rãs apáticas 
procuram fugir da morte; o medo embarga-lhes a voz. 
Então confiam secretamente a Mercúrio o mandato 
para que Júpiter socorra (as rãs) aflitas. Aí o deus (diz) em 
[resposta: 
“Porque não quisestes tolerar o vosso bem, 
suportai este mal”. “Vós também, ó cidadãos”, diz (Esopo)
“suportai este mal, para que não venha um (mal) maior”. 
[grifo nosso para evidenciar modificações (de conteúdo) aditivas feitas por Fedro no começo e no fim da fábula, além de outras no interior da fábula, a serem discutidas abaixo nas notas explicativas 5 e 6]
 
RANAE REGEM PETENTES
 
Athenae cum florerent aequis legibus, 
Procax libertas civitatem miscuit 
Frenumque solvit pristinum licentia. 
Hic conspiratis factionum partibus
Arcem tyrannus occupat Pisistratus. 
Cum tristem servitutem flerent Attici, 
(Non quia crudelis ille, sed quoniam grave
Omne insuetis onus),  et coepissent queri, 
Aesopus talem tum fabellam rettulit.
Ranae vagantes liberis paludibus
Clamore magno regem petiere a Iove, 
Qui dissolutos mores vi compesceret. 
Pater deorum risit atque illis dedit 
Parvum tigillum, missum quod subito vadi 
Motu sonoque terruit pavidum genus. 
Hoc mersum limo cum iaceret diutius, 
Forte una tacite profert e stagno caput 
Et explorato rege cunctas evocat. 
Illae timore posito certatim adnatant 
Lignumque supera turba petulans insilit. 
Quod cum inquinassent omni contumelia
Alium rogantes regem misere ad Iovem, 
Inutilis quoniam esset qui fuerat datus. 
Tum misit illis hydrum, qui dente aspero 
Corripere coepit singulas. Frustra necem 
Fugitant inertes, vocem praecludit metus. 
Furtim igitur dant Mercurio mandata ad Iovem, 
Afflictis ut succurrat. Tunc contra deus: 
Quia noluistis vestrum ferre inquit bonum, 
Malum perferte. — Vos quoque, o cives, ait, 
Hoc sustinete, maius ne veniat malum. 
(grifo nosso)

 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 
¹ Esopo (Nessebar, 620 a.C. – Delfos, c. 560 a.C.) foi um escritor da Grécia Antiga a quem são atribuídas várias fábulas populares. A ele se atribui a paternidade da fábula como gênero literário, cultivado pelos poetas satíricos. Foi-lhe atribuído um conjunto de pequenas fábulas, de carácter moral e alegórico, cujos papéis principais eram desenvolvidos por animais.  As fábulas que lhe são atribuídas sugerem normas de conduta que são exemplificadas pela ação dos animais (mas também de homens, deuses e mesmo coisas inanimadas). Esopo partia da cultura popular para compor seus escritos. Os seus animais falam, cometem erros, são sábios ou tolos, maus ou bons, exatamente como os homens. A intenção de Esopo, em suas fábulas, era mostrar como os seres humanos podiam agir, para bem ou para mal. 
Na Atenas do século V a.C., essas fábulas eram conhecidas e apreciadas.
A hipótese de sua origem africana hoje é bastante creditada: o mesmo nome "Esopo" poderia ser uma contração da palavra grega para "etíope", um termo usado pelos gregos para se referir a todos os africanos subsaarianos. Segundo a descrição de Plutarco sobre seus traços fisionômicos e de personalidade, ficamos sabendo que era feio (de cabeça aguda, nariz achatado, barriga e lábios salientes), corcunda e gago, embora muito dotado intelectualmente e corajoso. Além disso, alguns dos animais que aparecem nas fábulas de Esopo eram comuns na África, mas não na Europa (devemos ter em mente a diferente distribuição na época de animais como o leão berbere, hoje extinto). Também deve ser notado que a tradição oral de muitos povos africanos (mas também dos povos do Oriente Próximo e dos persas) inclui contos de fadas com animais personificados, cujo estilo muitas vezes se assemelha ao de Esopo.
Malgrado sua existência permaneça incerta e pouco se saiba quanto à origem de várias de suas obras, suas fábulas se disseminaram através de muitas línguas pela tradição oral. Em muitos de seus escritos, os animais falam e têm características humanas.
Certo é que morreu em Delfos, tendo sido executado injustamente pelos habitantes dessa cidade, segundo descreve Heródoto (Histórias, II, 134) e a Suda. Plutarco ainda acrescenta que foi o resultado de Esopo ter denunciado os maus costumes em que viviam os sacerdotes do templo de Apolo. A cólera da população de Delfos, em vista das denúncias, resultou na sua morte, após ter sido lançado do alto de um rochedo.
Sua obra, constituída pelas Fábulas de Esopo, serviu como inspiração para os mais variados escritores de diversas nacionalidades ao longo dos séculos, como Fedro (em latim), Babrius (em grego), La Fontaine (em francês) e Ivan Andreievich Krylov (em russo).
Na França, a fábula "Grenouilles qui demandent un roi" de Esopo, na versão de La Fontaine, tem servido de inspiração para muita produção musical. Um dos primeiros arranjos musicais incluem um de Louis-Nicolas Clérambault sobre texto baseado na fábula de La Fontaine (década de 1730) e arranjo de Louis Lacombe do próprio texto de La Fontaine (op. 72) para 4 vozes masculinas como parte de sua obra 15 fábulas de La Fontaine (1875). Também figura como a 3ª das Três fábulas de La Fontaine para quatro vozes brancas cantando a cappella. No cinema, em 1922, o animador polonês Władysław Starewicz produziu em Paris um filme animado usando a técnica do stop-motion, que se constituiu num dos primeiros filmes animados a atuar como comentário político, visto que usou a fábula para criticar a situação que estava se desenvolvendo na sua terra natal.

Fedro, nascido na Macedônia, floresceu na primeira metade do século I de nossa era. Aparentemente foi um escravo libertado pelo imperador Augusto, que viveu na Itália e começou a escrever fábulas de Esopo. Quando ofendeu Sejano, um poderoso oficial do imperador Tibério, foi punido, mas não silenciado. As fábulas, em cinco livros, são em versos latinos vivazes, concisos e simples, aos quais não falta dignidade. Eles não apenas divertem e ensinam, mas também satirizam a vida social e política de Roma. 
[LEONI, 1958, 92-97], quando adentra o período pós-clássico da literatura latina, reconhecendo o paulatino afastamento do equilíbrio e da perfeição clássica do período augusteano, comenta, tratando-se de Fedro:
(...) Enquanto pouco a pouco a produção literária se reduz a obras que têm somente intenções de adulação para com a nobreza ambiciosa, o único escritor que se dirige a uma roda mais larga de leitores e que alarga sua observação com intenções morais e sociais é Fedro, o humilde cantor de fábulas. Nascido na Macedônia (15 a.C.), vai a Roma como escravo de Augusto; liberto, começou a publicar seus primeiros livros, que lhe valeram antipatias e perseguições, e mais ainda, teve certamente de sofrer o castigo do exílio. Morreu mais ou menos em 50 d.C. Com suas fábulas, Fedro leva um novo gênero literário para Roma, tomando por modelo e traduzindo as composições do grego Esopo; mas às fábulas em que os personagens são os animais, ele acrescenta contos humanos, anedotas históricas, episódios, palavras picantes, alargando, isto é, tornando a matéria mais atual e interessante. Penetra, assim, de um modo todo particular, na sátira: uma sátira que se assemelha por suas finalidades morais e sociais às "Saturae" de Lucílio e aos "Epodi" de Horácio, embora os tempos não lhe concedessem muita liberdade e o obrigassem a esconder suas flechas dentro do simbolismo e da alegoria de personagens não humanos, resumindo em dois versos finais (a propriamente dita "moral" da fábula) a condenação dos vícios, o ridículo dos costumes, as considerações em torno da dignidade, da honestidade, da nobreza. Nasce assim uma análise particular e muito sutil da alma humana, conjuntamente à pintura mordaz da sociedaade do tempo; todavia, perdeu-se para nós grande parte das alusões aos personagens longínquos, isto é, o que permanece vivo na poesia de Fedro é o conteúdo universal das representações. E os cinco livros das "Fabulae" passaram através dos séculos (copiados, parafraseados, reconstruídos em prosa, reduzidos a esquemas escolares); e perdurarão no futuro, espelho fiel duma moral popular e sã.”
 
²  Ao longo da história, outros autores que se espelharam em Esopo costumam, ao invés da hidra, citar a cegonha ou a garça como predadores vorazes de rãs.
 
³ "As rãs que pedem um rei" é uma das Fábulas de Esopo, que recebeu o nº 44 no índice de Perry. A Aesopica de Ben Edwin Perry, "uma série de textos atribuídos a ele ou intimamente ligados com a tradição literária que traz o seu nome", tem-se tornado a edição definitiva de todas as fábulas atribuídas à autoria de Esopo, com as fábulas dispostas por sua fonte primária conhecida.  
Constata-se que, ao longo da sua história, tal fábula de Esopo ganhou uma aplicação política.
 
Pisístrato foi um tirano da antiga Atenas que governou entre 546 a.C. e 527 a.C.. Ele pertencia à aristocracia e era natural de Brauron, no norte da Ática.
Politicamente, a cidade-estado de Atenas encontrava-se nesta época dividida em duas facções: a da "Planície", de tendência conservadora, constituída pelos eupátridas latifundários e liderada por Licurgo, e a da "Costa", composta por mercadores e chefiada por Mégacles. Písistrato criou uma terceira facção, a dos Montanheses, onde se incluíam elementos aristocráticos, mas também a população desfavorecida do meio urbano e camponês que o apoiava.
Pisístrato conquistou o poder sobre Atenas em três ocasiões: em 560 a.C., em 556 a.C. e em 546 a.C., mas apenas esta última tomada de poder foi duradoura.
Segundo Heródoto, Pisístrato simulou um ataque, entrando na ágora de Atenas com feridas que fez em si próprio, mas que ele afirmou terem sido feitas pelos seus inimigos, que o teriam tentado matar. Graças a esta encenação, Pisístrato conseguiu convencer os atenienses a conceder-lhe uma guarda pessoal, algo que na época não era permitido, dado que o seu detentor poderia apoderar-se da cidade.
Ainda segundo Heródoto, Pisístrato simulou um ataque, entrando na ágora de Atenas com feridas que fez em si próprio, mas que ele afirmou terem sido feitas pelos seus inimigos, que o teriam tentado matar. Graças a esta encenação, Pisístrato conseguiu convencer os atenienses a conceder-lhe uma guarda pessoal, algo que na época não era permitido, dado que o seu detentor poderia apoderar-se da cidade.
Foi com esta guarda pessoal que Pisístrato conquistou em 560 a.C. a Acrópole, instalando a sua tirania. Contudo, o seu governo seria efémero, dado que em 559 a.C. Pisístrato foi derrubado pelas duas facções, tendo abandonado a cidade. Contudo, o seu governo seria passageiro, dado que em 559 a.C. Pisístrato foi derrubado pelas duas facções, tendo abandonado a cidade.
Pela segunda vez, Pisístrato retomou o poder em Atenas em 556 a.C. De acordo com Heródoto, o regresso de Pisístrato a Atenas foi conseguido através de um golpe teatral. Písistrato teria se apresentado às portas de Atenas acompanhado por um carro sobre o qual se encontrava uma bela mulher vestida como a deusa Atena. Os arautos que antecediam o carro anunciaram entre a população que a deusa Atena vinha restaurar Pisístrato no poder; o povo acreditou e Pisístrato conquistou novamente o governo. Mas de novo, o seu governo durou pouco, pois Písitrato governaria por um ano (entre 556 e 555 a.C.), mas quando Mégacles e Licurgo se reconciliaram, expulsaram-no da cidade.
Pisístrato partiu para o norte da Grécia, onde se envolveu no negócio de exploração da prata. Com a riqueza que adquiriu nesta atividade conseguiu formar um exército de mercenários. Em 546 a.C. este exército partiu de Erétria para Maratona, onde a família de Písistrato tinha simpatizantes. No caminho para Atenas, Pisístrato e o seu exército derrotaram o exército ateniense. A cidade caiu então sob o seu poder. Pisístrato governou Atenas nos dezenove anos seguintes, até a sua morte por causa natural em 527 a.C..
Durante seu governo, Pisístrato limitou os poderes da aristocracia, confiscando terras e distribuindo-as entre os pequenos proprietários. Além de terras, concedeu empréstimos estatais para fomentar a agricultura. Em benefício aos mercadores e artesãos, seu governo deu impulso às construções navais, transformando Atenas num poderoso Estado marítimo. O comércio ateniense expandiu-se pelo Mar Egeu e houve um grande progresso do artesanato na Ática. Com a debilidade da aristocracia, estabeleceu-se um novo bloco dominante no poder, composto pelos mercadores, artesãos e camponeses ricos.
Pisístrato transformou Atenas em uma potência na política grega colonial e internacional. Com sua morte, em 527 a.C., seus filhos Hípias e Hiparco continuaram sua obra. Uma conspiração, porém, causou a morte de Hiparco e forçou Hípias a tomar medidas repressivas. Com isso, ele perdeu o apoio da maioria e foi deposto por exilados pertencentes à nobreza, aliados aos democratas de Atenas e com o auxílio de Esparta.
 
[GUGGENBERGER, 2013, 63-87] colocou uma questão relevante sobre a introdução de modificações aditivas de Fedro sobrepostas à fábula de Esopo, levemente modificada em sua tradução para o latim:
"(...) Admitindo como postulado que a introdução foi inventada por Fedro e que o modelo grego, ao qual ele aderiu, ainda não a possuía, resta a questão de saber por que Fedro introduziu a fábula com essa informação adicional.
Temos algumas alternativas banais, mas também algumas sofisticadas. Uma resposta simples poderia ser que Fedro queria mostrar seu conhecimento histórico e literário, legitimando assim também sua própria poesia. Talvez, portanto, ele quisesse demonstrar que conhecia a ocasião em que a fábula foi escrita, fazendo também valer o estereótipo do "grego descuidado". Isso também pode ser visto como uma sutil apologia da cultura romana contra a cultura grega dominante, sobretudo porque havia ainda escritores gregos que escreviam como se o Império Romano nunca tivesse existido. Seja como for, objetivamente podemos observar  como já feito acima  que Fedro pretendia historicizar e localizar a fábula que em si já tinha uma dimensão política em Esopo.
Ao historicizar e localizar, Fedro teve que escolher um certo tempo e lugar: ele escolheu Atenas no início da tirania de Pisístrato. Por meio de sua introdução, Fedro acrescentou uma nova mensagem à fábula que, pelo menos, não é explicitamente expressa na versão grega: 1) Existe um tipo de liberdade que destrói o Estado: a libertinagem desregrada. 2) Essa liberdade podia ocorrer dentro de uma estrutura de leis que tratasse a todos com equidade. 3) A população e sobretudo os partidos aproveitaram esta igualdade de tratamento que permitiu dissolver a ordem anterior, garantida por mecanismos de travagem. 4) Consequentemente, essa liberdade foi perdida e, em vez de partidos, governava um tirano.
Muito interessante é como a introdução continua. Claro, a população chorou e reclamou. Mas  e isso é importante  ela não reclamou, como poderíamos acreditar, por causa do tirano ou porque queria voltar ao antigo sistema político, mas porque a servidão a entristecia e porque os atenienses não estavam acostumados com o ônus pesado, talvez de um governo rígido  aqui temos a alusão literal ao estereótipo do “grego descuidado”  que resultou da nova constelação política. Fedro, pelo menos na introdução, não esclarece se esse infortúnio poderia ter sido evitado pela população ou pelos partidos ou se o próprio sistema constitucional e democrático continha o germe da autodestruição que se manifestaria após certo período. (...)"
Liberis paludibus. Apesar de o adjetivo liberis concordar gramaticalmente com o substantivo paludibus, a ideia que encerra aplica-se às rãs e não aos pântanos, pois o que o autor quer dizer é que as rãs vagavam livres pelos pântanos. Esta licença poética, permitida em latim, foi imitada pelos maiores poetas portugueses e brasileiros, a exemplo de Camões e Olavo Bilac. 
 
Observe ainda que, conforme ressaltou [GUGGENBERGER, ibidem, 70-71], entre "as modificações (de conteúdo) aditivas de Fedro", foi citada a introdução da palavra liber, que pode ter várias acepções, verbis:
"(...) Significa não só livre, mas também ilimitado, sem limites e também, com uma conotação inequivocamente negativa: desenfreado e solto. Uma vez que estamos num contexto político, não podemos esquecer que liber também significa independente, isto é, mais concretamente, com uma constituição republicana. Fedro usa liberis paludibus em vez de ἀναρχίᾳ, cujo plural provavelmente não é escolhido ao acaso, na mesma medida em que atribui vagans ao estado livre ou anárquico, em que inicialmente se encontram as rãs, uma conotação pejorativa, incivilizada, errante, inconstante.
A associação dos gregos com rãs também pode ser significativa. Pelo menos, o grande clamor é seu comportamento típico."  
Destaca [GUGGENBERGER, ibidem, 70-71 usque ad finem] outras modificações (de conteúdo) aditivas feitas por Fedro, a saber:
 a) este "com grande clamor" (coaxar) é outro detalhe importante com o qual Fedro define a forma como as rãs pedem um rei; 
b) enquanto a versão grega não fala de "dissolutos mores" (costumes dissolutos), mas de "anarquia" e de liberdade ao extremo (falta de governo), Fedro interpreta "anarquia" desta forma e acrescenta que as próprias rãs pedem a Júpiter para enviar um rei que resolva a situação dissoluta "pela força" (vi), pedido este que, pelo menos para os gregos, não faz muito sentido, por isso não o encontramos no texto grego; c) enquanto na versão grega não há palavra que explicite uma covardia permanente das rãs, já que elas só se assustam com um barulho inesperado, em Fedro há muitas: pavidum, timor e metus;
d) a personagem da rã única que surge do coletivo e que convoca as outras rãs também é uma novidade de Fedro; 
e) da mesma forma, Fedro introduziu o verso "inquinassent omni contumelia" (desonrassem com todo tipo de ultraje). Enquanto no texto grego as rãs são representadas como ingênuas e outrora orgulhosas, no momento em que não respeitam seu rei – portanto Zeus enviou um rei ingênuo a um povo ingênuo, segundo o antigo estereótipo “o igual aos iguais” –, Fedro caracteriza ao menos “a classe mais alta” como infame e desleal ("trepa no tronco");
f) enquanto a hidra no texto grego devora todas as rãs sem especificar a forma como foram capturadas, Fedro especifica: "corripere coepit singulas" (começou a abocanhá-las uma a uma). Não sabemos, porém, se foram todas devoradas uma a uma, ou melhor, não todas, mas apenas alguns indivíduos. Fedro descreve a cena final e explica que, devido ao seu medo inato, não podiam defender-se em público, mas apenas pedir ajuda em segredo ("furtim"); 
g) enquanto em Esopo há duas petições (a Zeus), em Fedro há três (a última por meio de Mercúrio);
h) também a turba mais alta ("supera turba") é apresentada como degenerada, se nos lembrarmos daquele  terem desonrado com todo tipo de ultraje ("inquinassent omni contumelia")  o primeiro rei bondoso, pelo qual a hidra não é culpada, porque o imperador não é responsável pelas consequências que possam ocorrer depois de ser defenestrado – não se encontram em Esopo e podem ser uma alusão às classes mais altas, não só nas províncias mas também em Roma, que podem ter conspirado contra o imperador. São, portanto, as classes superiores ("supera turba") os destinatários da fábula, com a qual deveriam ter aprendido? Lembremos que os que sabiam ler eram sobretudo patrícios das classes altas ou escravos cultos e que, além disso, o estilo de Fedro com seus sinônimos ricos e seu pé métrico deviam ser sofisticados, bem como o sentido das fábulas devia ser profundo e difícil de entender para a maioria. 
i) A moral da fábula grega é muito geral: os governantes que são ineptos são melhores do que os perversos. Poderia até ser lido como uma defesa do sistema democrático ateniense: apesar de seus aborrecimentos e de sua parcial inépcia, em todo caso é melhor do que ter um tirano agressivo e sem consideração. 
Com Fedro, inversamente, a mensagem é simplesmente que se deve suportar o império de um monarca (ou, no caso de Pisístrato, um tirano), para que não se termine com uma dominação (mais) opressiva, um governante pior ou um sistema político inepto. Portanto, embora possa ser que o texto grego defenda mais a democracia, Fedro argumenta que é completamente normal solicitar um rei porque, como ele mesmo sublinhou na introdução, uma democracia não pode funcionar por muito tempo, mas acaba em uma tirania ou na melhor das hipóteses em uma monarquia devido às lutas dos partidos e a libertinagem do povo democrático. Para isso, ter um bom monarca pode ser (ou pode ter sido no caso da fábula) a melhor condição política. 
Portanto, é forçoso concluir com Henderson, como o faz Guggenberger, que Fedro "romaniza" todas as fábulas de Esopo ou Esópica, e que todos os seus poemas não só têm um estilo romano, mas também têm a ver com o mundo romano visto na perspectiva sócio-histórica, podendo dizer que esta fábula é um exemplo particular do processo pelo qual Fedro toma posse de um modelo grego para criar para si mesmo, a partir dele, uma história própria, dotada das características típicas de sua narração e poesia. Assim, Fedro claramente consegue transformar uma história existente em sua própria. 

 
III. BIBLIOGRAFIA
 
 
ÉSOPE: FABLES, texto (bilíngue) estabelecido e traduzido por Émile Chambry, Paris: Les Belles Lettres, 4ª edição (de volume único), 1985, 163 p.
 
GUGGENBERGER, Rainer: Fedro come autore politico?: Contestualizzazioni storiche della favola Le rane che chiedono un re, Calíope: Presença Clássica, nº 26 (2013). Rio de Janeiro: 7Letras,  p. 63-87

HENDERSON, John. Telling Tales on Caesar. Roman Stories from Phaedrus. Oxford: Oxford University Press, 2011.

LEONI, G.D.: A Literatura de Roma, 5ª edição, São Paulo: Livraria Nobel, 1958, 265 p.

PERRY, Ben Edwin (trad.): Babrius and Phaedrus Fables, Loeb Classical Library nº 436, 1965, 634 p.

PERSEUS: Phaedrus, The Fables of Phaedrus
Link: https://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0119%3Abook%3D1%3Apoem%3D2  👈

VIEIRA, Ana Thereza Basílio. Aviano: uma nova perspectiva para as fábulas latinas. Calíope: Presença Clássica, nº 11 (2003). Rio de Janeiro: 7Letras, p. 51-61.

WIKIPEDIA: verbete The Frogs Who Desired a King
Link: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Frogs_Who_Desired_a_King  👈

___________: verbete Pisístrato

___________: verbete Fábulas de Esopo/As rãs pedindo um rei (em grego) 👈

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Com o presente trabalho de tradução, objetiva-se dar ao leitor a oportunidade de comparar dois modos diferentes de abordar o mesmo assunto da fábula "As rãs que pediam um rei", primeiro na invenção do grego Esopo e, em seguida, na versão latina de Fedro.
Comprova-se ainda que houve muitas modificações aditivas feitas por Fedro na narrativa de Esopo, ficando evidente que o fabulista romano "romaniza" a fábula de Esopo através do processo de tomar posse de um modelo grego para criar para si mesmo, a partir dele, uma história própria, numa perspectiva sócio-histórica.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/08/recupere-seu-latim-parte-18-fabula-as.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Gustavo Dourado (escritor, poeta de cordel e presidente da Academia Taguatinguense de Letras) disse...

Parabéns! Gostaria de acessar as partes anteriores. Muito obrigado.

Prof. Dr. Rainer Guggenberger (professor de língua e literatura gregas na UFRJ e editor da revista Calíope-Presença Clássica) disse...

Parabéns, Francisco, pelo belíssimo blog. E que maravilha que você também é músico/compositor. No Rio de Janeiro, temos uma cooperação entre Escola de Música e Letras Clássicas da UFRJ que está resultando em belas composições e apresentações. Você conhece a formação In-Versos? https://www.youtube.com/@UFRJInVersos
Abraço
Rainer

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Bom Dia, Francisco e Rute. Obrigado por esta história, possibilitando duas abordagens! Feliz mês de Agosto!!! f. Joel.

João Alvécio Sossai (escritor, autor de "Um homem chamado Ângelo e outras histórias, ex-salesiano da Faculdade Dom Bosco e ex-professor da UFES (1986-1996)) disse...

É muita cultura. A história mostra que a humanidade foi sempre a mesma, o jogo do poder sempre igual.

Abraço.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Interessante também que essa fábula possa ter na versão romana uma adaptação voltada para a sua longa experiência institucional e para os seus vários conflitos sociais que, cumulativamente, eram já bastante expressivos justamente no século de Fedro, no apogeu daquela civilização.
Excelente publicação !
Obrigado,
Cupertino

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

This article aims to give the reader the opportunity to compare two different ways of approaching the same subject of the fable "The frogs desiring a king", first in the invention of the Greek Aesop and, then, in the Latin historical-political version of Phaedrus in its space-time frame.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/08/recupere-seu-latim-parte-18-fabula-as.html

Best regards,
Francisco Braga