Por Francisco José dos Santos Braga
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Claude Chabrol (✰ Paris, 24/06/1930 - ✞ 12/09/2010)
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I. INTRODUÇÃO
Lançado no Brasil com o título Um assunto de mulheres (em inglês, Story of women), Une affaire de femmes é um filme de longa-metragem austro-francês de 1988, do gênero drama e histórico, dirigido por Claude Chabrol e baseado em fatos reais da vida de Marie-Louise Giraud (1903-1943), mulher de baixa escolaridade, representada por Marie Latour pelo cineasta. Trata-se de uma história verídica contemporânea da II Guerra Mundial transcorrida na região de Cherbourg-Octeville, no interior da França ocupada pelos nazistas. Sua história foi dramatizada por Claude Chabrol no filme que teria sido uma adaptação dum livro homônimo do advogado Francis Szpiner, publicado pelas Éditions Balland em 1986, e que teve ainda a colaboração da célebre roteirista britânica Colo Tavernier O'Hagan (✰ Guilford, Surrey, 30/07/1942 - ✞ Paris, 12/06/2020).
II. SINOPSE
Não podendo contar com o dinheiro permanente do marido, Paul Latour (François Cluzet), que voltou para casa em 1941 como inválido de guerra devido a ferimento e não consegue emprego fixo, Marie Latour (atriz Isabelle Huppert) não sente mais amor por seu marido e passa a repelir com agressividade suas investidas sexuais.
[SANCHEZ, 2017] descreve de forma muito precisa as dificuldades de fundo emocional e de comportamento sexual por que passa o casal:
“Paul fora um homem que, querendo ou não, certo ou errado, voltou marcado da guerra em que estivera. Seja quem ele tivesse sido antes da guerra, agora já não existia mais. Ele agora demonstra extremo carinho pelas figuras dos filhos, fazendo o possível para estar sempre próximo deles, e uma atração demasiada pela esposa. Apesar de suas investidas, Marie parece sentir repulsa do marido. Sexo com sua esposa já não era mais uma realidade para Paul. Em determinado momento, Paul aborda, de surpresa, a esposa em uma rua vazia no meio da noite, tentando coagi-la a fazer sexo com ele. A mulher se desvencilha de seus braços, reiterando a palavra: “Jamais! Jamais!”.”
Resta apenas a ela o próprio sustento e de seus dois filhos: Mouche (Aurore Gauvin, bebê, e Lolita Chammah, menina) e Pierrot (Guillaume Foutrier, bebê, e Nicolas Foutrier, menino).
Neste ínterim, uma vizinha judia, Ginette (Marie Brunel), moradora do mesmo edifício em que Marie reside, sem o apoio do marido que tinha sido levado à Alemanha dentro do programa governamental do S.T.O. (Serviço do Trabalho Obrigatório), através do qual a Alemanha nazista impôs ao governo Vichy a sua implementação em vigor desde junho de 1942 a julho de 1944, para tentar compensar a falta de mão de obra alemã devido ao envio de um grande contingente de soldados alemães para o front Leste. ¹ Achando-se grávida e temendo o pior para seu feto, Ginette pede a Marie que provoque o seu abortamento, o que seria feito mediante a inserção no útero de água quente misturada com sabão. Marie se presta a abortadora, atendendo pedido de Ginette. Esta, agradecida, lhe dá uma vitrola portátil e um pedaço de sabão como recompensa. Quando seu marido Paul lhe pergunta o motivo do presente, Marie lhe responde que se trata de um reembolso por "um serviço de mulheres". Ginette sabia que Marie gostaria mesmo é de ser cantora e trabalhar como dançarina em palcos de teatros. Mas, pelo menos, ao som da vitrola, — pensava Ginette —, elas poderiam cantar e dançar juntas, até que um dia a própria Ginette desapareceria com destino à Alemanha, por ser judia, com a anuência do governo colaboracionista de Vichy. Quanto à Marie, a partir dessa experiência bem sucedida, passa a praticar rotineiramente o aborto clandestino em outras mulheres por duas razões: existe procura e ela pode usar o dinheiro para melhorar de vida. Prospera como abortadora com a clientela que lhe é enviada por Lucie apelidada "Lulu", a prostituta (Marie Trintignant).
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Marie e Lulu, a prostituta
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[id., ibid., 2017] resume excelentemente a mudança verificada na personalidade de Marie a partir daquele encontro:
“Em determinado momento em um bar, Marie conhece uma prostituta que a indaga sobre sua vida cautelosa e sem emoções. Marie então diz que, apesar das aparências, não é uma mulher comum, afirmando burlar as regras fazendo abortos esporádicos. Logo as duas desenvolvem um laço de amizade, onde uma iria elevar a outra. Os abortos, que Marie se gabara para a prostituta até então, na realidade, fora apenas um caso único. Entretanto, a mentira contada virará uma realidade quando começam a chegar mulheres desesperadas à sua porta pedindo a ajuda de Marie em troca de uma quantia razoável de dinheiro. Marie não hesita e começa a dar vida a uma 'persona' extra em sua rotina, essa muito mais interessante. Marie começa a ganhar quantias relevantes de dinheiro, mudando do casebre em que estava alocada para um lugar muito melhor e mais cômodo ². Ali, decide, também, começar a alugar apartamentos para prostitutas...“
Nesta altura, seria interessante perguntar qual é a reação de Paul com as múltiplas mudanças perceptíveis na personalidade de sua esposa. De novo, [id., ibid., 2017] tem a resposta pronta:
“(...) Paul percebe a figura de sua mulher mudada, o homem já não reconhecia a esposa diante da qual se achava. A mulher agora emanava uma confiança demasiada em comparação com aquela figura passiva que Paul conhecera antes da guerra. Paul jamais iria ter o controle sobre sua casa novamente; Marie era quem reinava em absoluto agora.”
Quando melhora de vida fazendo abortos e alugando quartos de sua nova casa para prostitutas, Marie planeja uma forma de saciar o apetite sexual de seu marido e de ver-se livre de suas investidas sexuais; para isso contrata secretamente os serviços sexuais de sua empregada, Fernande (Evelyne Didi). Ao mesmo tempo, essa situação irá possibilitar que Marie fique livre para encontrar satisfação plena com seu belo amante jovem, Lucien (Nils Tavernier), cliente de sua amiga Lulu, a prostituta.
Inevitavelmente, Marie dá início a uma rotina de traição conjugal com esse jovem elegante, não se envergonhando das demonstrações públicas desse amor adúltero, fogoso e sem freios. Pelo contrário: Marie não sente qualquer empatia com a "dor de corno" do seu marido Paul; as humilhações dele se avolumam não só pelas manifestações públicas desse amor de sua esposa por Lucien, mas também pelo acréscimo visível à renda dela graças ao novo amante, que, segundo se diz, trafica com os alemães.
Já se encaminhando para o final do filme, há um trecho em que o procedimento de aborto não tem o final feliz esperado e a paciente morre. Marie recebe, a seguir, a visita nada oportuna de familiares da falecida: sua jovem irmã acompanhada de dois dos filhos agora órfãos. Apesar da situação constrangedora, Marie não se faz de rogada. Inicialmente, a moça visitante não a ameaça; apenas vem ali à sua presença para comunicar-lhe o desfecho fatal de sua irmã, que morreu de septicemia quinze dias após a intervenção. Se isso não bastasse, comunica à Marie que as duas crianças que a acompanham, estão órfãs de pai também: diante da infecção generalizada da esposa, ele comete o suicídio, atirando-se na frente de um trem. Quanto à possibilidade de as duas crianças estarem ouvindo o teor da conversa, diz para Marie não se preocupar: o menino era surdo de nascença e a menina era pequena demais para captar o sentido das palavras. Entretanto, acha conveniente não deixar de advertir Marie para o perigo que estava correndo com a sua atividade ilegal de praticar abortos. Esclarece que não pretende acusá-la perante as autoridades, mas indaga a ela se não percebe que, com seus abortos, está cometendo um crime contra as almas das crianças impedidas de nascer.
Marie não responde diretamente à pergunta; apenas tenta mostrar que se colocara à disposição da paciente em caso de qualquer complicação no procedimento realizado e que não tem culpa se a paciente não retorna para queixar-se do incômodo. A honradez e a dignidade da visitante contrastam inteiramente com a arrogância e insolência de Marie, especialmente perceptível para o espectador que assiste à cena que vem a seguir. Mesmo diante do desfecho fatal da paciente, a moça se dispõe a quitar a dívida pendente da irmã pelo procedimento que resultou na sua morte. Marie não se acanha de pegar a paga sem cerimônia, a despeito da situação dolorosa para os familiares.
A respeito dessa passagem, [id., ibid., 2017] faz a seguinte apreciação nada lisonjeira sobre o comportamento de Marie:
“Veremos a seguir a construção de uma mulher poderosa, demonstrando uma frieza incomum no cerne de sua pessoa. Sua preocupação com as pessoas ao seu redor é praticamente nula, com exceção do carinho com seus filhos. Em determinado momento, uma de suas clientes acaba morrendo em consequência do aborto. Marie é abordada por um dos familiares, mas não demonstra maiores preocupações fora aquelas com a sua própria liberdade, aceitando até o dinheiro do familiar.”
Ultimamente, após os encontros não tão furtivos com seu amante, Marie volta para casa e acha seu marido ou a ensinar a lição aos filhos ou a montar umas "colagens", que, em seu parco entendimento, são ingênuas e das quais não desconfia. De fato, é demais para Paul tolerar um belo Lucien, que trafica com os alemães. Está decidido: ele está montando uma peça acusatória de prática de abortos clandestinos em que vai denunciar sua esposa Marie às autoridades francesas como avorteuse (abortadora, em francês).
Em outra oportunidade, há uma cena no filme, em que Marie, de volta à casa, põe-se a ridicularizar o lema "Trabalho, Família, Pátria" de uma sociedade que ela considera hipócrita e moralizante. E acrescenta: "Quando um país está gangrenado, a gente secciona o membro gangrenado". Marie acha também uma forma de amenizar sua conduta imoral de "faiseuse d'anges" (literalmente "fazedora de anjos", gíria francesa para "abortadora"), minimizando o que ela faz quando comparado com aquilo que o regime de Vichy oficialmente encobre, isto é, de "fazer vista grossa" para as milhares de crianças que são enviadas à Alemanha para não se sabe o quê. Esses mesmos conceitos ela vai reiterá-los perante o tribunal de exceção que irá julgá-la.
O processo
Desde setembro de 1941, o regime de Vichy, conduzindo uma política natalista, associa o aborto a um ataque contra o Estado e o povo francês.
Marie vai ser julgada por um tribunal de exceção, de 7 a 9 de junho de 1943.
O rito é sumário.
O juiz dirige-se a Marie: Ça ne devrait pas durer trop longtemps. Accusée, levez-vous! (Tr. Isso não deveria durar tanto tempo. Acusada, levante-se!
Capitulação legal no Direito Penal: Vu les articles 59, 60, 317, et 319 du code pénal, la loi du 13.08.1941, du 15.02.1942, du 24.07.1939 et du 7.09.1941, le tribunal, après avoir délibéré, déclare coupable l'accusée des faits reprochés et la condamne à la peine de mort. (Tr. Tendo em vista os artigos 59, 60, 317 e 319 do Código Penal, as leis de 13/08/1941, de 15/02/1942, de 24.07.1939 e de 07/09/1941, o tribunal, após ter deliberado, declara culpada a acusada dos fatos reprovados e a condena à pena de morte.)
Il n'a pas signé le recours en grâce. (Tr. Ele não assinou a petição de clemência.)
Bien sûr, puisqu'il avait signé la demande de condamnation. (Tr. Claro, já que ele assinou o pedido de condenação.)
Ordem do juiz: Gardes, emmenez-la! L'audience est terminée. (Guardas, levem-na! A audiência está encerrada.)
No julgamento, o Presidente da corte sublinhou a “imoralidade” da acusada. Vinte e sete mulheres utilizaram os serviços de Marie. ³ Segundo o Advogado-Geral, a pena de morte era “necessária” no caso de Marie. A corte, após deliberação, segue a acusação e declara que Marie está sendo condenada à morte pelo Tribunal de Estado, seção de Paris, por ter realizado 27 abortos na região de Cherbourg. Só um perdão presidencial poderia salvar-lhe a vida, mas o marechal Pétain recusou-se a comutar a pena. Para exemplo, Marie foi executada em 30 de julho de 1943 às 5h25min da manhã no pátio da prisão de Petite Roquette, em Paris. Marie foi decapitada pelo carrasco Jules-Henri Desfourneaux.
Frases marcantes do filme
La France doit retrouver de toute urgence sa morale.
(Tr. A França precisa reencontrar com urgência sua moral.)
La France est devenue une gigantesque basse-cour.
(Tr. A França se tornou um gigantesco galinheiro.)
Certaines femmes ne se font pas à la solitude. (Tr.
Certas mulheres não são feitas para a solidão.)
Moi, je veux devenir chanteuse.
(Tr. Quero tornar-me cantora.)
À Paris?
(Tr. Em Paris?)
Tiens, c'est une médaille de première communion. (Tr. Ei, esta é uma medalha de primeira comunhão.)
"Je vous salue Marie, pleine de merde, le fruit de vos entrailles est pourri", exclama sacrilegamente Marie Latour, antes de ser executada.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ A França foi o 3º fornecedor de mão de obra forçada do Reich depois da URSS e da Polônia e foi o país que lhe deu os operários mais qualificados. No livro Nascer Inimigo: Crianças de casais franco-germanos nascidos durante a II Guerra Mundial, seu autor Fabrice Virgili, depois de quase 10 anos de pesquisas, garante que, entre 1941 e 1949, dezenas de milhares de crianças nasceram, na França, de pai alemão soldado depois prisioneiro de guerra, ou na Alemanha, de pai francês prisioneiro depois soldado da zona francesa de ocupação. Crianças nascidas inimigas.
A privação econômica, a escassez de alimentos e a separação de um grande número de casais (1,9 milhões de prisioneiros de guerra franceses internados na Alemanha) levaram a que as gravidezes — fora do casamento ou não — diminuíssem, mas houve uma maior procura de abortos, frequentemente para as vítimas de relações forçadas com a força ocupante. Portanto, a Lei de 15 de fevereiro de 1942 tornou o aborto um crime contra o Estado, punível com pena de morte. A lei foi revogada após a Libertação.
² Consta que Marie, com as rendas obtidas com abortos, alugou um hotel cujos quartos eram reservados a prostitutas.
³ Consta que várias dessas mulheres eram esposas de prisioneiros que, tendo-se consolado com soldados alemães bem abastecidos, temiam a ira dos seus maridos quando regressassem.
IV. BIBLIOGRAFIA
HOUDAILLE, J., BONNEUIL, N. & BLUM, A.: Francis Szpiner-Une affaire de femmes. Paris, 1943. Exécution d'une avorteuse (compte-rendu), Portal Persée, 42-4-5, 1987, p. 761
KESLASSY, Elsa: Colo Tavernier O'Hagan, Screenwriter of 'Fresh Bait,''Round Midnight,' Dies, Variety Media, edição de 14/06/2020
LE MAGUET, Mireille: Une "faiseuse d'anges" sous Vichy: le cas Marie-Louise Giraud, Institut d'études politiques de Grenoble, Saint-Martin-d'Hères, 1996, 128 p. (Memória)
SANCHEZ, Ricky: Crítica: 'Um Assunto de Mulheres' (1988), de Claude Chabrol, Cinefilia Incandescente, edição de 02/02/2017
SZPINER, Francis: Une affaire de femmes: Paris 1943, exécution d'une avorteuse, Paris, Éditions Balland, 1986, 221 p.
WIKIPEDIA: verbete Affaire Marie-Louise Giraud
7 comentários:
Prezad@,
Inspirado em uma história real, CLAUDE CHABROL rodou em 1988 o filme UM ASSUNTO DE MULHERES, que conta o destino, durante a II Guerra Mundial, de Marie Latour, uma mãe que se torna abortadora. Neste papel, ISABELLE HUPPERT perturba ao encarnar a contradição – ao mesmo tempo rebelde e calculista –, a negação, a forma de fugir da realidade da guerra para exercer sua atividade ilegal. Sua performance levou o prêmio de interpretação no Festival de Cinema de Veneza de 1988.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/09/filme-um-assunto-de-mulheres-completa.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Bela análise do filme. Magnífica. Não assisti ao filme. Você poderia liderar um cineclube.
Boa noite!
Muito bem!
Caro professor Braga
Um romance histórico de drama horroroso, de uma época e de regimes igualmente horrorosos. Um "filme denúncia", de profunda tragédia.
Cumprimentos,
Cupertino
Vou procurar o filme. Obrigado 👍
Deve ser um filme bem forte!
Espetacular, professor!
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