segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A BUSCA PELO INSTRUMENTO IDEAL: Os pianos de Glenn Gould. Ref.: um ensaio de Katie Hafner.


Por Georges Leroux *
Tradutor do francês para o português: Francisco José dos Santos Braga
 
Resumo do artigo: Recensão crítica da obra de Katie Hafner: Um Romance sobre Três Pés e Busca Obsessiva de Glenn Gould pelo Piano Perfeito, New York: Bloomsbury, 2008, 259 p. (publicado na revista Circuit - Musiques Contemporaines, vol. 22, nr. 2, 2012, pp. 37-41)

Piano Steinway modelo CD 318 de Glenn Gould, no seu apartamento em Toronto
 
 
A busca pelo instrumento ideal pertence à história da interpretação, mas permanece pouco estudada. Várias razões podem explicar esta lacuna, aparentemente não muito importante, mas, em muitos aspectos, decisiva para o desenvolvimento da estética musical. É preciso primeiro ter em conta o fato de vários instrumentos, e em particular muitos violinos, terem adquirido uma celebridade independente da dos artistas que os utilizaram. É o caso de todos estes instrumentos terem um nome próprio que identifica os seus autores, como os violinos das ilustres famílias de fabricantes de Cremona (Amati, Guarneri, Stradivarius). A história destes instrumentos se junta, por assim dizer, à dos seus proprietários. O artista coloca-se a serviço dum instrumento que o ultrapassa imediatamente e lhe impõe uma exigência antes de mais nada dependente da sua história. Mas é preciso considerar também a humildade do artista perante o instrumento: mesmo que todos os artistas possam afirmar merecer um instrumento superior ao que possuem, as circunstâncias muitas vezes os obrigam a aceitar aquele que têm em mãos. Servir a música encontra aqui a sua ilustração mais banal, na medida em que a arte ultrapassa na sua essência todos os instrumentos criados para servi-la. 
 
A história dos pianos usados ​​por Glenn Gould constitui uma exceção. Embora devamos abster-nos de julgá-la, especialmente no que diz respeito a este critério moral da humildade, é preciso reconhecer que a relação deste genial pianista com os instrumentos que tocava ou possuía vai além de tudo o que se pode imaginar na idealização do instrumento. Comparado a pianistas quase indiferentes ao instrumento e apenas desejosos de obter o melhor resultado possível de cada um, como Sviatoslav Richter, Glenn Gould nunca ficou satisfeito com o instrumento que tocava. Quando pensou que finalmente o tinha encontrado, nunca deixou de tentar modificá-lo para extrair dele o que dele ainda esperava. Num estudo fascinante e soberbamente documentado, Katie Hafner apresenta as várias fases desta busca e, embora não possa evitar relacioná-las com a concepção da interpretação perfeita que Gould se impunha, sua análise centra-se primeiro no instrumento em si. Vários aspectos da vida e da personalidade de Gould certamente são evocados ao longo do caminho, mas o objeto da investigação é a busca incessante pelo instrumento ideal. 
 
Essa investigação passou por diversas fases que podemos resumir da seguinte forma. Na sua juventude, Gould tomou consciência da importância do instrumento para si e rapidamente determinou as qualidades essenciais ao seu toque, desenvolvendo assim uma linguagem sobre elas que possibilitava uma descrição rigorosa das suas expectativas, tanto no que diz respeito ao mecanismo do instrumento, quanto ao que concerne o som esperado. Este primeiro período está ligado a um instrumento que aparece como um objeto querido ao longo da sua vida, a ponto de podermos pensar que nunca deixará de procurar a sua presença, apesar de nunca a ter perdido. O segundo período é o da procura de um piano de concerto, realizada essencialmente na empresa Steinway. Durante muitos anos, correspondentes ao período de concertos e aos primeiros discos, Gould examina centenas de instrumentos, sem encontrar nenhum que parecesse corresponder às suas expectativas. Entre esses pianos, um instrumento, porém, terá o mérito de superar todos os outros, é o CD 174. Gould acreditava ter sem dúvida chegado então ao fim de sua busca, e podemos pensar que ele teria parado de examinar instrumentos concorrentes, se o impensável não tivesse acontecido: este piano sofreu danos irreparáveis ​​durante um transporte e Gould teve que resolver retomar sua busca. Durante vários anos, embora aceitasse tocar instrumentos que considerava medíocres, permaneceu em busca do instrumento perfeito. Por acaso descobriu-o bem perto dele, no showroom da Steinway, na loja Eaton em Toronto. Esse piano era o famoso CD 318, com o qual Gould manteve durante quase vinte anos uma relação tão íntima e intensa que o considerou uma história de amor. Mas esta história também teve um final trágico, para o qual o acidente do CD 174 poderia tê-la preparado: o CD 318 também foi vítima de uma queda, provavelmente por negligência dos prestadores de serviço de cargas da empresa Eaton, no regresso de Cleveland, onde Gould devia gravar um concerto de Beethoven, sessão que ele havia cancelado. Gould nunca se separava desse instrumento, que o aproximava a cada dia deste elísio musical a que aspirava e que hoje se tornou objeto de museu. 
 
Na sua juventude, a relação de Gould com o seu instrumento já era objeto de especial atenção. Katie Hafner relembra esse vínculo físico, manifestado na postura inclinada aproximando o rosto do teclado e na adoção da pequena cadeira baixa feita por seu pai em 1953. Ao longo de sua infância, quando foi apresentado ao piano através de sua mãe, Florence Grieg, e depois com seu professor no conservatório de Toronto, Alberto Guerrero, Gould trabalhou em diversos instrumentos, mas não mudou essa atitude de proximidade física. 
 
Fotografia que mostra sua postura incomum ao piano / Crédito: Don Hunstein / Sony







                           
















 
 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
O primeiro instrumento ao qual ele realmente se apegou foi um Chickering, feito em Boston em 1895. Ele descobriu esse instrumento em 1953, na casa de um amigo que o alugava. Gould o amava tanto que acabou comprando-o em 1957 e nunca mais se desfez dele. Esse instrumento tinha muitas das qualidades desejadas, mas não podia ser usado em concerto. A sorte serviu Gould ao apresentá-lo em 1955 ao Steinway CD 174 nas oficinas da empresa. O período foi próspero, pois o músico passou a contar com dois instrumentos cuja leveza e sutileza apreciava. 
 
Enquanto vários músicos se contentavam com metáforas para descrever as suas expectativas,  como Horowitz dizendo de um piano que carecia de “buquê”,  Gould conseguia descrever com precisão o que esperava de uma ação e do conjunto do mecanismo. Embora contasse com a habilidade de técnicos especializados, como Verne Edquist, com quem manteve relacionamento que durou muitos anos, Gould conhecia todos os aspectos técnicos do instrumento. No seu ensaio, Katie Hafner não só analisa a fabricação de todos os componentes de um piano de concerto, mas também explica detalhadamente sobre quais elementos o trabalho técnico pode ser realizado para modificar-lhe a ação e som. Esta análise permite-nos compreender como a idealização de Gould se baseou num conhecimento incomum da técnica. Desde a manutenção dos feltros dos martelos até à largura das teclas, todos os aspectos estão envolvidos numa síntese controlada em última instância pelo músico, e apenas por ele. Esta estreita ligação entre o interesse pela técnica e a procura da interpretação perfeita revela-se assim perfeitamente consistente com a paixão de Gould pela tecnologia de gravação. 
 
Em se tratando das qualidades estéticas do toque, como por exemplo a clareza da articulação, Gould é conhecido pelas escolhas de repertório que ilustram suas preferências. O som Steinway, que pode ser descrito como um equilíbrio perfeito entre um baixo dramático e poderoso, e um registro agudo brilhante, claro e cantante, talvez não fosse a priori a primeira escolha de Gould, que preferia um som seco, limpo e leve. Katie Hafner chama esse som de “puritano”. O fato de ter ficado afastado do repertório privilegiado pelos artistas patrocinados pela Steinway não constituiu, no entanto, um obstáculo: quando se tornou famoso em 1955, após a gravação das Variações Goldberg de Bach, feitas no CD 174, a Steinway não poupou esforços para fornecer-lhe instrumentos que o satisfizessem e, principalmente, para reparar aqueles que lhe interessassem. Foi o caso, por exemplo, do CD 205 ou do CD 90, dos quais Gould gostou durante algum tempo, mas dos quais se afastou pela rigidez da sua ação. Durante este tempo, continuou a sentir saudade do seu Chickering, falando do seu “deslumbramento diante da sua versatilidade de interpretação, da sua capacidade de modificação, da soberba exuberância da sua paleta tonal”. 
 
O encontro de Gould com o instrumento que se tornaria objeto de uma predileção absoluta não pode ser datado com precisão. Em junho de 1960, cansado de procurar um novo instrumento, Gould visitou o Auditório da Eaton, onde o CD 318 se encontrava por acaso. Quando começou a tocá-lo, reconheceu o instrumento que desde sempre procurava. Assim se iniciou uma história, onde se reúnem as preferências estéticas de um artista que havia atingido a maturidade de sua arte e de um instrumento já velho e deteriorado, mas que apresentava, nas palavras de Gould, “o som mais translúcido” que um piano possa oferecer. O seu técnico em afinação, Verne Edquist, rapidamente concordou que este instrumento era “um piano com alma”. O relato de Katie Hafner sobre a relação de Gould e Edquist com o instrumento ilustra o desafio estético do que iria se tornar uma luta contínua para levar o CD 318 aos seus limites extremos. A gravação dos Intermezzi de Brahms, onde se combinam a intimidade da interpretação e a austeridade da leitura, nos coloca frente a frente com esta questão. Gould encontrou o instrumento no qual reconheceu sua própria voz. Por ocasião do seu último concerto público, em Los Angeles, em março de 1964, ele tocou no CD 318. 
 
Após sua retirada do concerto, a vida do CD 318 se transformou. Gould concentrou-se na gravação e sua busca pela perfeição atinge tais limites que até mesmo Verne Edquist considerou impossível alcançá-la. Sua cumplicidade com o artista exigia dele habilidade técnica no dia a dia, mas ele sabia que o instrumento havia se tornado, como escreve Katie Hafner, “a extensão do próprio Gould”. Foram produzidas mais de noventa gravações com o CD 318, e o repertório é muito diversificado, apesar de incluir um núcleo significativo de obras de Bach. Mas esse idílio ia conhecer um destino desastroso. Em setembro de 1971, enquanto Gould se preparava para gravar o Segundo Concerto de Beethoven com a Orquestra de Cleveland, ele cancelou a sessão. Ele previu o que iria acontecer? O piano já estava a caminho e teve que ser repatriado para Toronto. Quando a caixa foi aberta, constatou-se que ele estava gravemente danificado. 
 
Gould ficou muito consternado com esse acidente que arruinava seus esforços, e sem dúvida por muito tempo, mas durante vários meses não se desesperou em restaurá-lo. Apesar de várias tentativas, nenhum técnico foi capaz de obter êxito. Porém, adquiriu-o em 14 de fevereiro de 1973, após a decisão da empresa de rescindir o contrato de aluguel. Até 1980, continuou a mandar fazer vários trabalhos no instrumento, muitas vezes considerados irrealistas pelos seus técnicos, mas ao final Gould teve que se resignar. Ficou arriscado continuar gravando num instrumento que era apenas uma sombra de si mesmo. Enquanto trabalhava no Cravo Bem Temperado, na companhia de Bruno Monsaingeon que estava rodando um filme, o piano deixou de funcionar. Este foi o fim do CD 318. Como continuar? A busca por um novo instrumento levaria ao rompimento com a empresa Steinway: Gould ficou impressionado com um instrumento Yamaha e, embora diversas falhas tenham impedido o esquecimento do CD 318, um novo relacionamento foi formado. A segunda gravação das Variações Goldberg foi feita no novo Yamaha e sem dúvida ele teria se tornado a nova figura do ideal se a vida de Gould não tivesse terminado tão repentinamente em 4 de outubro de 1982, após uma grave hemorragia cerebral. 
 
Túmulo de Glenn Gould, com a inscrição das Variações de Goldberg de Bach
 
Este livro sensível e meticuloso conta uma história rara, mas vai muito além das inúmeras anedotas que reproduz. Dá-nos acesso a um elo que toca a própria essência do ato musical: a exigência do artista quanto ao seu instrumento. Não é de estranhar que o próprio Gould tenha sido o exemplo de uma relação alimentada pelo excesso, ele que nunca deixou de esticar até aos limites mais improváveis ​​a procura do que esperava da música. O instrumento,  somos assim levados a compreender,  acaba por ultrapassar a instrumentalidade: torna-se parte integrante da arte. 
 
* Professor na Universidade de Quebec em Montreal
 

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Na crônica anterior, intitulada "A dura vida do afinador" de João Marcos Coelho, tive a oportunidade de afirmar que o afinador de piano é o "alter ego" dos grandes pianistas clássicos em todos os tempos, já que desempenha um fino e indispensável trabalho de ourivesaria.
O artigo de GEORGES LEROUX, cuja recensão crítica de dois textos de KATIE HAFNER traduzi do francês, vem comprovar minha afirmação, através da análise sensível e meticulosa da autora sobre a busca incessante do genial pianista canadense GLENN GOULD (1932-1982) pelo instrumento ideal.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/01/a-busca-pelo-instrumento-ideal-os.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Anônimo disse...

Parabéns meu caro vizinho ! A história dos grandes se confunde com a dos seus instrumentos!

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, Membro Correspondente do IHG de Minas Gerais, entre outras importantes instituições culturais de Minas. Membro Efetivo da Academia Valencia de Letras, onde participou da diretoria por mais de 12 anos sucessivos. disse...

Caro amigo Braga
Com muita atenção e interesse, li o interessante artigo de Georges Leroux que o ilustre amigo traduziu do francês. Agradeço-lhe pelo envio e devo dizer-lhe que apreciei saber detalhes e características de fabricação de pianos, que muito evoluíram graças às exigências de pianistas como o canadense Glenn Gould, diante de sua constante procura por um instrumento que pudesse chegar à perfeição, para atender à sua refinada genialidade musical.
Abraços meus e de Beth.
Mario Cupello

Ivan Alves Filho (historiador, documentarista, jornalista e autor de 20 livros) disse...

Parabéns pelo trabalho impecável.
Um abraço.
Ivan.

Rafael dos Santos Braga (pesquisador graduado em Filosofia pela UFSJ) disse...

Interessante !

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

É da reciprocidade entre as genialidades e aptidões entre instrumentistas e fabricantes que a Arte se beneficia e transcende a si mesma.
Saudações,
Cupertino

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Obrigado, Braga. Boa noite! Vamos, aqui, à leitura. Estamos certos de que será, como sempre, interessante e enriquecedora. (Geraldo Reis e Maria Lúcia Camello).