Por Francisco José dos Santos Braga
Dedico este ensaio ao Prof. JOSÉ CIMINO, escritor, poeta, filósofo e referência intelectual em Barbacena, membro da ABL-Academia Barbacenense de Letras e presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos e da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras (MG Leste).
Batuque. Rugendas: Caderno do Arquivo 1, APM, 1988, p. 21. |
Como oficial de 3ª classe do Itamaraty, Rosa ganhava um ordenado insuficiente para um chefe de família, quando tomou conhecimento de um concurso de poesias promovido pela Academia Brasileira de Letras. Após aconselhar-se com seu tio paterno Vicente Paulo Guimarães, poeta experiente, relatou-lhe sobre a sua pretensão de concorrer com um livro de poemas, declamando dois dos poemas do futuro livro: "Caminhos de Minha Roça" e "Adeus do Lázaro". Do depoimento de seu tio, após ouvi-lo, colheu-se o seguinte trecho: "De emoção, meus olhos ressumbraram lágrimas. Eu lhe disse: Faça todos os seus poemas desse quilate e poderá contar com o prêmio. Nenhum candidato escreverá melhores", conforme [BARBOSA, 2007, 169-170].
Reproduzo aqui trecho do parecer de Guilherme de Almeida, o qual, acatado pela ABL, deu o prêmio ao livro de Rosa. Inicialmente vejamos como a poesia de Guimarães Rosa é avaliada pelo escritor paulista in [ROSA, 1997; p. 6]:
“Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos. Há aí vivo de beleza todo o Brasil: a sua terra, a sua gente, a sua alma, o seu bem e seu mal. Aí estão “Iara”, os “Ritmos Selvagens”, a “Boiada”, “Gruta de Maquiné”, a “ Maleita”, o “Luar na mata”, o “Batuque”, o “Caboclo d' ́água”, e, principalmente, aquela “Resposta”, que é, sem dúvida, uma das mais espantosamente verdadeiras e doloridas páginas da nossa literatura; e todos os quatro poemas de “No Araguaia”, uma quase epopeia na sua verde simplicidade de água e vegetal. E ao lado disso, as mais finas emoções líricas, como, por exemplo,“Elegia” e “Ausência”.
Concluindo: — É, pois, meu parecer que seja o 1º prêmio do Concurso de Poesia de 1936 concedido ao livro "Magma", de João Guimarães Rosa; e que não seja a ninguém, neste torneio, conferido o 2º prêmio, tão distanciados estão do primeiro premiado os demais concorrentes. Proponho, entretanto, sejam concedidas, em igualdade de condições, duas menções honrosas aos livros "Noite confidente", de Mário Donato (inscrito sob nº 13) e "Livro de poemas de 1935", de Odilo Costa Filho e Henrique Carstens (inscrito sob o nº 24).
Tal é, salvo melhor juízo, o meu parecer.
São Paulo, 22 de novembro de 1936.
(ass.) Guilherme de Almeida, Relator
De acordo: (ass.) Laudelino Freire”
Observe que Guilherme de Almeida teve a antevisão de toda a obra rosiana, tendo indicado os principais pontos sobre os quais a crítica se debruçaria: o universalismo e o regionalismo, a performance linguística de Rosa e o seu aproveitamento da literatura mundial.
II. DESENVOLVIMENTO DO TEMA
De acordo com [FREITAS, 2006, 9],
“o parecer de Guilherme de Almeida enaltece a criatividade e inovação do poeta mineiro que apresenta uma poesia telúrica, cuja temática se concentra em elementos que remetem à questão da identidade nacional.”
[FREITAS, idem, 14] indaga: Como o Brasil é imaginado pelo eu-lírico rosiano? O próprio [FREITAS, ibidem, 10] responde à questão:
“O nosso país aparece através da fauna e da flora, do índio, do negro, do caboclo, dos mitos folclóricos e da crendice e superstição populares, temáticas bem exploradas pelo canto poético rosiano.” (...)
Com seu livro de poemas intitulado Magma conquistou o 1º lugar, concorrendo a um prêmio em dinheiro (cinco contos de réis ao vencedor). GR recebeu o prêmio pessoalmente, na ABL, em 29/06/1937. Discursou em agradecimento. Foi seu primeiro discurso.
Eis dois pequenos trechos do discurso de GR, ao receber o prêmio da ABL:
“O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem vossa consagração me força a respeitar.”
“O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são ideias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto.” (...)
Vejamos Batuque no livro MAGMA in [ROSA, 1997: 104-107]:
Batuque
A negrada dança,
e nunca descansa,
no chão do terreiro,
de pés no chão...
— “A premera imbigada
é papudo qui dá.
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...”
E o batuque ferve,
e a sanfona geme,
e a violada chora,
arrastando a função...
comidas finas, querendo comer,
bebidas finas, querendo beber:
pau-a-pique, cobu, bolo de fubá,
cachaça queimada, garapa e aluá...
Cheiro de negro, catingada brava,
chitas luzentes, já amarrotadas.
o Felão que não veio, graças a Deus,
que eu tenho muito medo de seu Felão...
(Tenente Felão, cabra malvado,
que foi capitão-do-mato, noutra encarnação...,
— “Felão veio?”
— “Num vei não...”
— “Pruquê qui nun veio?...”
— “Nun sei não...”
Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,
pisando, pelados, aos pulos pesados,
a poeira do chão...
— “Corre, gente, fui envém sordado!...
Some, gente, qui envém Felão!...”
— “Pula, negrada, no meio do terreiro,
que eu vou ensiná vocês a dançá!...
Dança de refe, sanfona e rebenque,
Olá, violero, começa a tocá!...
Quem fugi, fogo nele, no meio da testa,
E não tem i nem a, se a justiça manda!...”
E têm de dançar a noite inteira,
a noite toda, sem parar...
— “Canta, cambada, o que tavam cantando
antes de Felão chegá!...”
— “Felão veio?...”
— “Nun vei não...”
— “Pruquê que nun veio?...”
— “Nun sei não...”
E a negada dançando, e os refes batendo
nossa gente preta,
que em trezentos anos
sofreu a apanhar...
A negrada dança,
e nunca descansa,
no chão do terreiro,
de pés no chão...
— “A premera imbigada
é papudo qui dá.
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...”
E o batuque ferve,
e a sanfona geme,
e a violada chora,
arrastando a função...
comidas finas, querendo comer,
bebidas finas, querendo beber:
pau-a-pique, cobu, bolo de fubá,
cachaça queimada, garapa e aluá...
Cheiro de negro, catingada brava,
chitas luzentes, já amarrotadas.
o Felão que não veio, graças a Deus,
que eu tenho muito medo de seu Felão...
(Tenente Felão, cabra malvado,
que foi capitão-do-mato, noutra encarnação...,
— “Felão veio?”
— “Num vei não...”
— “Pruquê qui nun veio?...”
— “Nun sei não...”
Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,
pisando, pelados, aos pulos pesados,
a poeira do chão...
— “Corre, gente, fui envém sordado!...
Some, gente, qui envém Felão!...”
— “Pula, negrada, no meio do terreiro,
que eu vou ensiná vocês a dançá!...
Dança de refe, sanfona e rebenque,
Olá, violero, começa a tocá!...
Quem fugi, fogo nele, no meio da testa,
E não tem i nem a, se a justiça manda!...”
E têm de dançar a noite inteira,
a noite toda, sem parar...
— “Canta, cambada, o que tavam cantando
antes de Felão chegá!...”
— “Felão veio?...”
— “Nun vei não...”
— “Pruquê que nun veio?...”
— “Nun sei não...”
E a negada dançando, e os refes batendo
nossa gente preta,
que em trezentos anos
sofreu a apanhar...
Quem era esse personagem tão presente na consciência dos negros e tão estranho à dança que se desenrola durante o poema?
Felão, "tenente que foi capitão do mato", é uma presença ameaçadora sentida mas não realizada: uma espécie de sensação que lança uma sombra sobre a dança dos negros, fazendo-a parecer menos importante do que o próprio título sugere, obscurecendo e ofuscando o ambiente que devia ser de congraçamento e alegria.
Rosa faz uso da técnica literária do "overshadowing" para eclipsar o ambiente que devia ser festivo.
A sensação da presença de Felão objetiva criar uma sensação de des-ordem na ordem natural das coisas.
O próprio nome Felão evoca "felonia", termo que significa traição, deslealdade, perfídia e até admite o significado de crueldade.
É como se, na peça teatral que se representa, se desenrolasse um "deus ex machina" às avessas, que gerasse a expectativa de um desastre. Contrariando a opinião generalizada de que o dispositivo do "deus ex machina" é utilizado pelo dramaturgo para evitar o seu constrangimento perante um final de enredo confuso na tragédia, — tão comum nas tragédias de Eurípides, — Rush Rehm, em particular, cita exemplos de tragédias gregas em que o "deus ex machina" complica a vida e as atitudes dos personagens confrontados pela divindade, ao mesmo tempo em que traz o drama para sua audiência.
Mas, quem é de fato esse Felão, que cria tanta turbulência para o bem-estar, a tranquilidade e a euforia dos negros?
Felão, "tenente que foi capitão do mato", é uma presença ameaçadora sentida mas não realizada: uma espécie de sensação que lança uma sombra sobre a dança dos negros, fazendo-a parecer menos importante do que o próprio título sugere, obscurecendo e ofuscando o ambiente que devia ser de congraçamento e alegria.
Rosa faz uso da técnica literária do "overshadowing" para eclipsar o ambiente que devia ser festivo.
A sensação da presença de Felão objetiva criar uma sensação de des-ordem na ordem natural das coisas.
O próprio nome Felão evoca "felonia", termo que significa traição, deslealdade, perfídia e até admite o significado de crueldade.
É como se, na peça teatral que se representa, se desenrolasse um "deus ex machina" às avessas, que gerasse a expectativa de um desastre. Contrariando a opinião generalizada de que o dispositivo do "deus ex machina" é utilizado pelo dramaturgo para evitar o seu constrangimento perante um final de enredo confuso na tragédia, — tão comum nas tragédias de Eurípides, — Rush Rehm, em particular, cita exemplos de tragédias gregas em que o "deus ex machina" complica a vida e as atitudes dos personagens confrontados pela divindade, ao mesmo tempo em que traz o drama para sua audiência.
Mas, quem é de fato esse Felão, que cria tanta turbulência para o bem-estar, a tranquilidade e a euforia dos negros?
Segundo [FREITAS, ibidem, 84],
“o poema Batuque deixa evidente a hierarquia dos valores na figura do capitão do mato Felão, que representa a ordem dos donos dos escravos: fazendeiros que usavam as negras como objeto de desejo e os negros como máquinas lubrificadas pelo suor provocado por meio do calor do sol que não iluminava a consciência desses que impunham aos negros os valores da Colônia. Ao contrário do índio, o negro, em nosso país, era um estrangeiro que não tinha nenhum privilégio.” (...)
[FREITAS, 85 apud SÜSSEKIND: 1982; 22]
“quando busca as representações do negro na literatura dramática brasileira, estabelece três conceitos relevantes em relação à função deste personagem. O negro é uma metáfora dentro de um discurso amoroso e patriótico; um arlequim, quando tece e desfaz tramas, mas está sempre submetido, enquanto eterna criança, à autoridade e ao lar senhoriais; e como negro, num momento posterior à Abolição, em que se necessita de uma máscara racial que, colada ao rosto negro, sirva de instrumento de controle nas mãos daqueles que desejam mantê-lo a seu serviço.”
O poema de Rosa, como observa a autora, traz a segunda perspectiva. O negro, dentro de sua senzala, dança provocado pelo ritmo da sanfona e da viola, o que mais tarde vai dar origem ao famoso samba brasileiro.
“O negro aparece no poema rosiano sob a perspectiva do segundo modo de representação: como um negro-arlequim que teme a chegada de Felão, tenente que foi capitão do mato, representação de figura senhorial, que, nestes versos, aparece para acabar com a alegria dos estrangeiros africanos. A dança perpassa todo o poema, o discurso coloquial, presente no poema em prosa, separa, pela hierarquia linguística da norma culta e coloquial, a voz do poeta e a do negro.”
Pelo valor social o negro pode ser visto sob dois aspectos, conforme [FREITAS, ibidem, 86 apud PRADO: 1931; 190],
“como fator étnico, intervindo pelo cruzamento desde os primeiros tempos da colônia, e como escravo, elemento preponderante na organização social e mental do Brasil.”
[FREITAS, ibidem, 87 apud PRADO: idem; 193] ainda acrescenta:
“o negro não é um inimigo: viveu, e vive, em completa intimidade com os brancos”,
o que leva [FREITAS, ibidem, 87] a concluir que o negro é uma raça feliz que, mesmo sofrendo o poder de quem tem os chicotes na mão, contribui para a formação do povo brasileiro. Ou seja:
“A cultura africana também forma de maneira indireta a nossa cultura, através da culinária, dos dogmas religiosos, da dança, e principalmente por meio do respeito às alteridades sociais e hegemônicas. O aspecto culinário aparece nos sétimo e oitavo versos da segunda estrofe, através do pau-a-pique, cobu, bolo de fubá, cachaça queimada, garapa e aluá; aspecto religioso, pela recorrência a Deus para que seu Felão, representação do senhor, não chegue à senzala; e a dança é mais evidente na sexta estrofe pela aliteração da consoante “P”: sapateio, patadas, em pés, em pancadas,/ pisando, pelados, aos pulos pesados,/ a poeira no chão...” (...)
[NASCENTES, s/d, 20] analisa algumas estrofes do poema Batuque:
“Em Magma encontramos no poema Batuque, já musical no próprio título, o melhor exemplo de exploração do estrato fônico: "Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,/ pisando, pelados, aos pulos pesados,/ a poeira do chão..." A combinação da vogal /a/ com as surdas /p/, /t/ e /k/ e a sonora /d/ contribui para aumentar a intensidade do barulho produzido pela dança dos negros. Temos então aliterações /p/ e /d/ predominando no primeiro e segundo versos e coliteração /t/ /d/ só no primeiro. Como todo batuque é ritmado, o poeta cria cadência e ritmo no segundo verso através da cesura como técnica para construir duas redondilhas menores pi/san/do/ pe/la/dos aos/ pu/los/ pe/sa/dos, acrescidas de outra no verso seguinte, no qual o forte –ão encerra toda a cadeia melódica do trecho, como a nota mais alta de uma escala musical: a/ poei/ra/ do/ chão/...”
III. FORTUNA CRÍTICA DE BATUQUE, in MAGMA, de Guimarães Rosa
BARBOSA, Alaor: Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa-Tomo I, Brasília: LGE Editora, 2007, 388 p.
FREITAS, Sávio Roberto Fonseca: Representações do Brasil na poesia rosiana, dissertação de Mestrado para o Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, Recife: 2006, 135 p.
NASCENTES, Zama Caixeta: MAGMARANA: A poesia de Magma em Sagarana, de Guimarães Rosa, s/d, 25 p.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1931, 223 p.
REHM, Rush: Greek Tragic Threatre, Londres: Routledge, 1992, 178 p.
ROSA, João Guimarães: Magma, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, 148 p.
SÜSSEKIND, Flora: O Negro como Arlequim: Teatro & Discriminação, Rio de Janeiro: Achiamé, 1982, 78 p.
3 comentários:
Prezad@,
MAGMA é o único livro de poemas de João Guimarães Rosa, publicado postumamente pela Editora Nova Fronteira. Ganhador do concurso literário criado pela Academia Brasileira de Letras, quando o autor assinava sob o pseudônimo “Viator”, em 1936. E apesar de ter conquistado o prêmio, o livro ficou inédito por mais de 60 anos, sempre considerado uma obra menor pelo autor de Grande Sertão: veredas, que durante sua vida, não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em entrevista que o autor deu ao jornalista Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos realizado Gênova, em janeiro de 1965: Permito-me discordar do autor mineiro. Vejamos porquê.
"[...] escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes. [...]"
Permito-me discordar do autor mineiro. Vejamos porquê através da análise de seu poema BATUQUE.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/01/batuque-poema-rosiano.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro professor Braga
Fabuloso poema e interessante seu contexto, assim como sua análise ! A acolhida de G. de Almeida e ABL é aspecto importante, na medida em que GR explorou bem o imaginário do nacionalismo no movimento modernista. Já a presença da opressão escravista no poema - independentemente do recurso poético que possa ter sido usado - representa uma dívida social que até hoje é cara aos sinceros nacionalistas e "progressistas" brasileiros. Fica a dúvida quanto ao escritor considerá-lo um "desamor".
Excelente publicação!
Grato,
Cupertino
Caro Confrade Francisco Braga
Gratidão pela remessa do link acima, discorrendo sobre Batuque, poema rosiano.
Abraço,
Pe. Sílvio
Postar um comentário