quarta-feira, 1 de maio de 2024

Após cinco anos de batalha judicial, a justiça carioca profere sentença favorável à edição e distribuição da biografia de Guimarães Rosa, por Alaor Barbosa


Por Francisco José dos Santos Braga
Recentemente, publiquei um post sobre a intolerância de uma personalidade pública (no caso, o cineasta Stanley Kubrick) em relação a um livro de Neil Hornick sobre seus filmes. De acordo com o cineasta, o crítico de cinema ousou abordar suas falhas, especificamente em "Lolita" (1962), um longa-metragem de comédia dramático-romântica baseado no romance homônimo escrito por Vladimir Nabokov em 1955. A editora, por sua vez, tinha assinado um acordo com o cineasta, comprometendo-se a não publicar nada sem os conteúdos da obra merecerem a aprovação dele, razão por que remeteu a Kubrick uma versão inicial do manuscrito. Após lido, Kubrick desaprovou o conteúdo do livro e, intolerante, barrou a publicação. O resultado foi que o livro de Hornick foi barrado por Kubrick que se julgou injuriado pela sua crítica. Agora, mais de meio século na gaveta e 25 anos após a morte do cineasta, finalmente o livro foi lançado por outra editora nova-iorquina.
No Brasil, houve a proibição de circularem no mercado biografias de pelo menos três figuras públicas como Roberto Carlos, Garrincha e João Guimarães Rosa. Em 2008, tivemos o início de uma disputa judicial entre a filha de João Guimarães Rosa, Vilma Guimarães Rosa (✰ Itaguara, 1931 ✞ Rio de Janeiro, 2022), autora da biografia de seu pai, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai (1983), e sua editora, Nova Fronteira, contra a LGE Editora por ter ousado imprimir, sem sua autorização, outra biografia do escritor mineiro, intitulada Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa (2007) por Dr. Alaor Barbosa, cujo desdobramento e desfecho descreverei neste trabalho.

Capa do livro de Alaor Barbosa de 2007, barrado de circular no mercado em 2008

 
O articulista Leo Bicudo, estupefato, se indigna com a audácia da biógrafa, que, ao pedir a proibição da biografia de seu pai por outro autor que não fosse ela própria, se atreveu a considerar a sua visão a única possível, investindo contra quaisquer iniciativas de outros autores de terem diferente visão e de fazerem diferentes abordagens à vida e obra do biografado. O jornal Hoje em Dia, estampou na edição de 02/03/2008, na coluna de Leo Bicudo: 
Depois das biografias de Roberto Carlos e Garrincha, chegou a vez da história de João Guimarães Rosa não poder ser contada. A filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa, desautorizou a publicação do livro Sinfonia Minas Gerais, elaborado pelo estudioso Alaor Barbosa, que chegou a conviver com Guimarães Rosa. O livro, que comemoraria o centenário de nascimento do escritor brasileiro, está encalhado na editora (LGE Editora). Vilma afirma que é a única que possui direito para fazer uma biografia do pai. O livro não atenta contra a moral de Guimarães Rosa. Ao contrário, relata os feitos fantásticos do romancista mineiro. Será que a moda pega e deixaremos de ter acesso a outros grandes nomes de nossa história?
 
Para os que não conhecem o imbroglio envolvendo as duas biografias de pessoas públicas como Roberto Carlos, Garrincha e Raul Seixas, reproduzo aqui o ocorrido, segundo [CUNHA, 2015]
Em 2013, medalhões da MPB, como o ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos, reunidos no grupo Procure Saber, defenderam que o direito à intimidade justificaria a necessidade de aval preliminar para a publicação de biografias. Roberto Carlos é um caso exemplar. Em 2006, o escritor Paulo Cesar de Araújo lançou Roberto Carlos em Detalhes; no ano seguinte, Roberto entrou na Justiça, que lhe deu ganho de causa e determinou que 11 mil exemplares fossem recolhidos das livrarias. (...) 
Celebridades são públicas e, muitas vezes, peças importantes para os historiadores resgatarem certa época, daí porque censurar previamente uma biografia é tentar, inutilmente, amordaçar a história. Filosoficamente falando, biografias contêm tanta ficção e delírios quanto Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. (...)
Em 2008, o jornalista Ruy Castro, ao lançar a biografia de Garrincha, foi processado duas vezes: pelas filhas e por uma ex-companheira do astro do futebol. Ruy ganhou um dos processos, mas foi condenado no outro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estipulou indenização de 5% sobre o total de vendas do livro, com juros de 6% ao ano. Em 2009, depois que a imprensa divulgou que Ruy Castro estava escrevendo a biografia de Raul Seixas, o autor foi advertido por uma das cinco ex-mulheres do cantor baiano de que entraria na Justiça caso o livro fosse publicado. (...)
 
Com efeito, a LGE Editora foi condenada a retirar do mercado o livro de Alaor Barbosa. A decisão foi do juiz Marcelo Almeida de Moraes Marinho, da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro. O juiz afirmou que a venda do livro causaria lesão aos direitos da personalidade de Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor, e da Editora Nova Fronteira. Alegava também que o livro de Barbosa continha informações erradas sobre o escritor e que a publicação ocorreu sem a autorização de Vilma, que é a responsável pelos direitos de natureza civil de Guimarães Rosa, por ser filha dele. 
A primeira instância concedeu tutela de urgência para determinar a retirada do mercado dos exemplares do livro em 24h sob pena de multa diária de R$ 1 mil. A editora e o escritor recorreram. Argumentaram que, conforme a Lei de Direitos Autorais, não constitui ofensa aos direitos autorais a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada. Também alegaram prejuízo para a editora e para o autor. 
O Tribunal de Justiça do Rio acolheu parte do argumento. A 2ª Câmara Cível mudou a sentença apenas para aumentar o prazo de 24 horas para retirar os exemplares do livro, para 10 dias. “O prazo concedido pelo julgador se mostra exíguo para o cumprimento da medida, ensejando a incidência da multa aplicada”, afirmou o desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes. Quanto ao argumento de prejuízo, o relator ressaltou que a editora sabia do risco assumido quando veiculou “trabalho com inúmeras citações a outra obra, sem a necessária autorização”. 
Tanto Vilma quanto a editora detentora dos direitos de publicação de quase toda a obra de João Guimarães Rosa alegaram prejuízo aos direitos autorais de Vilma, pois a inserção pura e simples de 103 trechos do livro dela na nova biografia de seu pai por Alaor, sem autorização ou mesmo consulta ao autor e editor, prejudicaria a nova edição da obra pré-existente, precisamente no momento de seu relançamento pela editora. 
Quanto aos direitos autorais, a Editora Nova Fronteira e Vilma Guimarães Rosa defendiam que o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais afirma que “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: reprodução parcial ou integral”. 
A filha do escritor ainda afirmava que “o leitor atraído por uma biografia de João Guimarães Rosa certamente não tem interesse algum nos longos relatos de Alaor Barbosa sobre suas viagens pelo estado de Minas Gerais, nem muito menos sobre os elogios que João Guimarães Rosa supostamente dirigiu a Alaor Barbosa, aos quais Sinfonia de Minas Gerais: A vida e a literatura de João Guimarães Rosa dá bastante ênfase”. 
A advogada de Vilma, Susana Paola Barbagelata Kleber, defendeu que não há censura. O que se pretendeu foi mostrar que a biografia não está à altura de Guimarães Rosa.
 
Pode-se também aventar a possibilidade de Vilma ter-se magoado por razões inconfessas nos autos, os quais submeteram o biógrafo de seu pai e sua editora a um extenuante périplo pelos tribunais. Para não me alongar demais expondo essas prováveis razões que aumentaram a beligerância das apelantes, vou concentrar-me numa única razão que suponho tenha-as incomodado muito. Na página 132 do seu livro, o goiano Alaor Barbosa escreve: “Afirma Ismael de Faria que a frase ‘As pessoas não morrem, ficam encantadas’, que João Guimarães Rosa proferiu quase ao encerrar o seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em 16 de novembro de 1967, foi pronunciada por ele 37 (Ismael de Faria errou na conta: foram 41) anos antes, no velório de um colega da Faculdade, Oséas Antônio da Costa Filho, morto de febre amarela em 1926”. Ismael repetiu que essas mesmas palavras foram usadas por Guimarães Rosa ao se referir à morte de seu antecessor, o acadêmico João Neves da Fontoura.” Alaor ainda acrescenta que Pedro Nava, no livro “Beira-Mar”, assinala que o desventurado Oséas era goiano.
 
Alaor Barbosa recorreu da decisão da 24ª Vara Cível do Rio de Janeiro junto à 4ª Câmara cível do Tribunal de Justiça de Goiás, não só por ter sido chamado por Vilma de “mentiroso, doido e nojento”, mas também por ter ela desqualificado o conteúdo da nova biografia de sua autoria. Após a publicação do livro sobre a vida e obra de Guimarães Rosa, Vilma deu entrevistas a três jornais brasileiros criticando Alaor Barbosa, dizendo que a dedicatória de seu livro era “cínica e vigarista”, além de acusá-lo de plágio e de publicar fotos não autorizadas. 
Segundo [CUNHA, 2023], que teve acesso à defesa do biógrafo goiano, o que as autoras da ação pretendiam era garantir reserva de mercado para faturar em cima de Guimarães Rosa: “A Editora Nova Fronteira acaba de relançar obra de autoria de Vilma Guimarães Rosa, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai, livro publicado em 1983, com pouco sucesso comercial e que não se configura tecnicamente uma biografia, mas sim um livro que procura mostrar, em sua visão de filha de Guimarães Rosa, quem seria o seu pai, principalmente por meio da transcrição de cartas escritas e recebidas por Rosa ao longo de sua vida”. 
E adiante: “Evidente que as autoras da ação se aproveitam do ano de centenário de morte de Guimarães Rosa para, absurdamente, tentarem obter vantagens econômicas; sendo certo que buscam o Poder Judiciário visando a uma espécie de exclusividade em relação à história de um dos maiores escritores brasileiros; história esta cuja importância em muito transcende os laços de parentesco. Trata-se, como restará demonstrado, de uma evidente pretensão de apropriação da figura, da vida e da obra de João Guimarães Rosa por parte de uma sociedade editorial de grande porte, que, repita-se, tenta se utilizar do Poder Judiciário para potencializar o seu já notável poderio econômico; buscando, absurdamente, vedar a concorrência”.
 
A decisão da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás foi unânime e seguiu voto do relator, juiz substituto em segundo grau Sebastião Luiz Fleury, que reformou parcialmente sentença do juízo da 6ª Vara Cível de Goiânia. Foi determinado ainda que a sentença fosse publicada, “de forma sintetizada por certidão circunstanciada” nos jornais O Popular (de Goiânia/GO), Folha de S. Paulo e Correio Braziliense, com o mesmo destaque das entrevistas publicadas em cada um e com tamanho proporcional, no prazo de 15 dias. Aos três citados jornais, Vilma atacou o biógrafo dizendo que a dedicatória de seu livro era "cínica e vigarista”, além de acusá-lo de plágio e de publicar fotos não autorizadas. 
Em primeiro grau, a herdeira de Guimarães Rosa foi condenada a pagar R$ 30 mil por danos morais e materiais, por ter sido retirado de circulação o livro de Alaor. A Editora Nova Fronteira e Vilma Guimarães Rosa recorreram: Vilma pedia a reforma da sentença ou, alternativamente, a redução da indenização. Vilma também pedia a exclusão da determinação de publicação da decisão nos jornais aos quais ela havia concedido entrevista. Em seu voto, Sebastião Luiz Fleury entendeu que estavam comprovados a existência de ato ilícito praticado por Vilma e o dano à honra do autor, “restando cristalino o dever legal de indenizar”. Ele acatou o pedido de Alaor. 
Quanto ao pedido de Vilma para excluir a publicação da decisão nos três jornais, o magistrado esclareceu que o direito de resposta proporcional está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso V, e “é um direito fundamental de defesa em um Estado Socioambiental e Democrático de Direito”.
 
Não sei se é possível estabelecer uma relação causal entre a ordem de retirar do mercado o livro de Alaor e o fato de que, desde 2010, a LGE Editora tenha encerrado suas atividades e, a partir de 2011, tenha suspendido os pagamentos dos direitos autorais e, posteriormente, em 2016, tenha tido sua falência decretada devido à inatividade desde 2010. (Informação extraída do verbete “Editora Lge - Jurisprudência, utilizando o Safari)
 
Em 2014, Alaor conseguiu expressiva vitória no TJ/RJ, quando a desembargadora Elisabete Filizzola da 2ª Câmara Cível em que as apelantes eram Vilma Guimarães Rosa e Editora Nova Fronteira, e a apelada, LGE Editora, em 08/10/2014 prolatou a sentença, absolvendo a biografia de Alaor Barbosa, conclusivamente, verbis
“Repise-se, portanto, que, em regra, quem deve avaliar a qualidade, profundidade e fidedignidade da biografia é o público e a crítica em geral, isto é, partindo-se do pressuposto de que a biografia esteja em livre circulação no mercado, repudiando-se a censura prévia e, pior ainda, vazia de fundamento, como no caso. 
Afinal de contas, é como dissera a própria Vilma Guimarães Rosa, a propósito da deliberação fruto de uma conversa com sua irmã, a respeito da publicação de determinada obra do mestre literário (Relembramentos..., p. 59): “Finalmente concluímos que as Obras de João Guimarães Rosa não pertencem somente a nós, suas herdeiras, porém a toda a humanidade”. 
Exatamente.”
 
Ou seja, o autor da biografia, Alaor Barbosa, reconquistou o direito de publicar a obra ao vencer na justiça, o processo que moveu contra a herdeira, por danos morais, em outubro de 2014. 
Na mesma ocasião, sobre a vitória histórica na ação de proibição do seu livro proposta em julho de 2008 contra a sua editora, a LGE Editora, Alaor Barbosa assim se manifestou em entrevista ao [ESTADÃO, 2014]
“Uma sentença que vai entrar na história da liberdade de expressão do pensamento no Brasil. Muito bem fundamentada, não somente no brilhante laudo da perita do juízo, Carolina Mori Ferreira, mas também em outros argumentos muito bem expostos pelo juiz. (...) 
A sentença, logo que começou a ser divulgada, causou um imenso júbilo no meio literário brasileiro. É preciso assinalar que, desde a proposição da ação e a proibição do meu livro, intelectuais e escritores de várias partes do Brasil se manifestaram de modo uníssono e unânime solidários aos meus direitos e em protesto contra a errônea proibição ocorrida.”
Apesar da conquista, Alaor Barbosa diz que neste momento não pensa em recolocar a biografia de Guimarães Rosa nas livrarias, conforme a mesma entrevista: “Eu teria que retirar partes do livro por questões pessoais, por minha decisão. São as citações que faço ao livro dela (de Vilma) — que na verdade são de terceiros — mas que eu retiraria por um motivo moral. Não sei se quero mais mexer com isso”, diz o autor de 74 anos, que passou cinco pesquisando sobre a vida do escritor. E completa: “Toda essa minha luta foi pelo princípio da liberdade da criação intelectual, que é um princípio universal. Eu já consegui minha vitória.”
 
Alaor, num segundo processo junto ao TJ/DF, alegou que a biografia ficara cinco anos fora das livrarias, o que lhe acarretou prejuízos. O escritor ganhou o processo e o desembargador Fernando Habibe fixou a nova indenização em 50 mil reais. A Editora Nova Fronteira e Vilma recorreram. O recurso teve um desfecho no dia 16/06/2023 quando o TJ/DF decidiu que a Editora Nova Fronteira e o espólio de Vilma Guimarães Rosa (falecida em 2022) teriam que arcar com a indenização. 
[BELÉM, 2023] informa, no subtítulo de sua matéria, um dado importante: 
“Vilma Guimarães Rosa e Editora Nova Fronteira conseguiram retirar obra de Alaor Barbosa das livrarias. A primeira já pagou 140 mil reais para o biógrafo de Guimarães Rosa". E no interior da matéria de sua autoria menciona: “Dados os xingamentos (de Vilma, que chamou Alaor de 'mentiroso, doido e nojento'), que nada têm a ver com crítica — são ofensas graves —, Alaor Barbosa processou Vilma Guimarães Rosa. Como tem uma história positiva, do conhecimento geral, e citação, mesmo longa, não é plágio — o livro da filha de Guimarães Rosa é citado escrupulosamente como fonte (e é praticamente uma fonte primária — um documento) —, o escritor-biógrafo ganhou uma indenização de 140 mil reais.”
[CUNHA, 10/06/2023] assim se manifestou uma semana antes da decisão do TJ/DF sobre o recurso da Editora Nova Fronteira e de Vilma Guimarães Rosa contra o romancista e ensaísta goiano Alaor Barbosa: 
“A Justiça do Distrito Federal deverá bater o martelo sobre o recurso da Nova Fronteira e de Vilma Guimarães Rosa (que faleceu ano passado, aos 90 anos), sexta-feira 16/06, contra o romancista e ensaísta goiano Alaor Barbosa, que publicou, em 2007, há uma década e meia, portanto, a biografia Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, de 388 páginas, com selo de uma pequena editora de Brasília, LGE, hoje Libri Editorial, do editor Antonio Carlos Navarro. (...) 
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, por unanimidade, o fim da censura a biografias não autorizadas, apagando uma mancha que enodava a cultura brasileira. A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) foi impetrada pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) contra liminares de instâncias inferiores proibindo o lançamento de biografias não autorizadas. 
Agora, temos um marco legal sobre o limite entre o direito à privacidade e o da informação sobre pessoas de notória projeção pública e celebridades. Até então, no Brasil, havia uma enxurrada de ações judiciais contra editoras e autores de biografias por parentes de biografados, pedindo dinheiro por dano moral e a retirada do livro de circulação.
 
Em 10/6/2015, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI-Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815/2012, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), quando julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815, que sustentava que os artigos 20 e 21 do Código Civil conteriam regras incompatíveis com a liberdade de expressão e de informação e, no entendimento dos autores, liberava a publicação de livros e filmes biográficos sem a autorização prévia dos biografados. A ADI esteve sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, que achou por bem submeter o tema a uma audiência pública convocada em novembro de 2013, com a participação de 17 expositores. A decisão prolatada pelo STF na ADI 4.815, que julgou procedente a ADI 4815 e declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias, no entanto não implicou redução de texto ou nulificação dos mencionados dispositivos do Código Civil, já que os Ministros optaram por dar-lhes interpretação conforme à Constituição a fim de dispensar a autorização prévia para a publicação de biografias, seja do biografado ou de seus familiares, quando presente o interesse público na divulgação do escrito, sob pena de caracterização de censura prévia e ofensa à liberdade de expressão.
 
Gostaria de enriquecer este artigo com três parágrafos de um Discurso de Danilo Gomes dedicado ao nosso tema, quando recepcionou Alaor Barbosa em sua posse na Academia de Letras do Brasil, em Brasília, em 09/09/2010: 
“(...) Um dos mais importantes livros de Alaor Barbosa é esse “Sinfonia Minas Gerais”, da Editora LGE, de Brasília, livro todo centrado na vida e na obra de João Guimarães Rosa, de quem o autor goiano, jovem jornalista no Rio de Janeiro, se tornara amigo de muita estima recíproca. O livro (refiro-me ao 1º volume, pois o 2º ainda não saiu) é uma verdadeira ode em prosa ao grande escritor e diplomata, nascido em Cordisburgo, em l908. Coloca-o o autor nas alturas, no merecido Olimpo. Ora, não é que a obra é contestada, judicialmente, pelas duas filhas de Guimarães Rosa? Espantoso, inacreditável! Um absurdo, puro capricho, um despautério! A vida e a obra de Guimarães Rosa não pertencem apenas à sua família, pois se tornaram um patrimônio do Brasil e da literatura universal. As traduções de seus livros correm o mundo. 
A Associação Nacional de Escritores (então presidida pelo saudoso poeta Joanyr de Oliveira), pelo seu jornal mensal, editado pelo mestre Afonso Ligório Pires de Carvalho, saiu em defesa de Alaor Barbosa, naquele começo de 2008. Ouçamos este trecho: “Confiscar obras literárias e punir escritores são ações que, pela intolerância e pelo anacronismo que as apequenam, configuram verdadeiros autos-de-fé medievais, inconcebíveis para mentes ciosas da liberdade, da justiça e da cidadania, a duras penas conquistadas.
Na maré montante de indignação que tomou de assalto os intelectuais cultores do Estado de Direito, o Presidente da Academia Mineira de Letras, escritor, ex-Senador e ex-Ministro Murilo Badaró (falecido há dois meses), convidou o nosso autor para proferir palestra sobre o criador de “Grande Sertão:Veredas”, na sede da agremiação, no Auditório Vivaldi Moreira. Foi uma noite histórica. Tive o prazer e o privilégio de lá estar. Alaor Barbosa, ao final de sua conferência em torno do Mago de Cordisburgo, foi aplaudido de pé por um auditório cheio à cunha – bem se lembra a esposa do conferencista, Sra. Maria Gonçalves Ribeiro, lá presente. Era Minas, pela sua Academia hoje centenária, agradecendo a Alaor Barbosa por aquela sua magnífica “Sinfonia Minas Gerais”. Aliás, Alaor Barbosa tem sangue mineiro, pela vertente paterna, e paulista, pela vertente materna.”
 
E para encerrar, o jornal da ANE-Associação Nacional de Escritores, citada no discurso de Danilo Gomes, publicou uma matéria em janeiro de 2008 denominada “Uma biografia de Guimarães Rosa”, cujos dois últimos parágrafos reproduzirei aqui: 
“(...) Alaor Barbosa escreveu a biografia de João Guimarães Rosa movido pelo sentimento e convicção de que cumpria um múltiplo dever: para com o biografado, a quem conheceu pessoalmente, de quem foi amigo e a quem tributa profunda admiração pessoal; para com a literatura brasileira, cujos criadores devem ser mostrados, difundidos, cultuados; para com a língua portuguesa, que necessita e merece ser defendida; e para com a nacionalidade brasileira, que deve ser preservada principalmente mediante a valorização da sua cultura. 
Observe-se que esta biografia constitui a primeira parte de um trabalho mais amplo, que inclui, em segundo volume, uma análise de toda a obra literária de João Guimarães Rosa.”
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
 
Acórdão da 2ª Vara Cível do TJ/RJ 
 
AMAGIS: Filha de Guimarães Rosa terá de indenizar autor de biografia de seu pai 
 
BELÉM, Euler de França: Processo contra filha de Guimarães Rosa e editora deve render 50 mil reais para escritor goiano: Vilma Guimarães Rosa e Editora Nova Fronteira conseguiram retirar obra de Alaor Barbosa das livrarias. A primeira já pagou 140 mil reais para o biógrafo de Guimarães Rosa, matéria publicada no jornal OPÇÃO em 08/06/2023
 
CONSULTOR JURÍDICO: Filha pede proibição da biografia de Guimarães Rosa, s/d 
 
____________________: Filha de Guimarães Rosa terá de indenizar autor de biografia de seu pai 
 
COSTA, Priscyla: Mantida decisão que proíbe venda de biografia de Guimarães Rosa, revista Consultor Jurídico, edição de 29/11/2008 
 
CRB-6 (Conselho Regional de Biblioteconomia da 6ª região/MG): entrevista intitulada "Uma sentença para a história da liberdade de expressão do pensamento no Brasil
 
CUNHA, Ray: Fim da censura a biografias não autorizadas. Casos de Roberto Carlos e Guimarães Rosa, 11/06/2015
 
__________: Justiça de Brasília decidirá sexta-feira 16 se a editora Nova Fronteira deve ou não indenizar Alaor Barbosa, biógrafo de João Guimarães Rosa, 10/06/2023 
 
ESTADÃO: Biografia não autorizada de Guimarães Rosa é liberada, matéria publicada na coluna Estadão Conteúdo de Júlio Maria em 15/10/2014 
 
GOMES, Danilo: Discurso de Danilo Gomes, recebendo Alaor Barbosa na Academia de Letras do Brasil, em Brasília, postado no blog Literatura Goiana em 10/09/2010 
 
HOJE EM DIA: Alaor Barbosa, na coluna de Leo Bicudo, p. 16, edição de 02/03/2008 
 
JARDIM, Lauro: Censura a biografia de Guimarães Rosa se aproxima de desfecho judicial 15 anos depois 
 
 ____________: Autor de biografia não autorizada de Guimarães Rosa será indenizado após censura, redação de O GLOBO, edição de 22/08/2023 
 
JORNAL DA ANE-Associação Nacional de Escritores: Uma biografia de João Guimarães Rosa, matéria de janeiro de 2008, Ano II, nº 7, p. 1 e continua na p. 11 
 
JUSBRASIL: Biografias não autorizadas, matéria publicada por Paulo Henrique Alves 
 
HORTA, Anderson Braga: Discurso de recepção acadêmica a Alaor Barbosa no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, publicado no Blog de São João del-Rei e postado do dia 19/05/2018 Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2018/05/discurso-de-recepcao-academica-alaor.html 
 
MIGALHAS: Biografia de Guimarães Rosa pode ser comercializada, 13/10/2014 
 
Portal do STF: STF afasta exigência prévia de autorização para biografias, 10/06/2015 

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Durante 5 anos, Dr. Alaor Barbosa pesquisou em profundidade a vida e obra de João Guimarães Rosa (1908-1967), "o Mago de Cordisburgo", e planejou lançar, através de uma pequena editora brasiliense, a sua biografia em 2008, intitulada Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, quando se comemorava o centenário de nascimento do escritor mineiro.
Qual não foi a sua surpresa quando a sua editora sofreu uma ação judicial por parte da justiça do Rio de Janeiro, barrando a circulação da sua obra já editada e que já se encontrava nos principais pontos de venda. Só então tomou conhecimento de que as apelantes eram Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor e autora da biografia de seu pai famoso, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai (1983), e a Editora Nova Fronteira, que publica a maior parte dos títulos do escritor mineiro.
A contenda durou muitos anos e demandou muitos recursos por parte da apelada, a LGE Editora, e de seu escritor Alaor Barbosa, advogado e dos bons, que alegaram danos morais e materiais, cabendo às apelantes, Vilma, detentora dos direitos da obra de seu pai, e Nova Fronteira, a respectiva indenização.
O meu trabalho pretende descrever o desdobramento e desfecho da notável batalha judicial que trouxe nova esperança aos biógrafos brasileiros.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/05/apos-cinco-anos-de-batalha-judicial.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Obrigado pela notícia. Abraço do Gilberto M. Teles

Fernando de Oliveira Teixeira (poeta e professor universitário, decano da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

A Justiça, às vezes, tira a venda de seus olhos.Abraço.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor

Notável processo no qual questões muito importantes estiveram envolvidas, para o bem da "liberdade de expressão" no país e para o conhecimento da vida de Guimarães Rosa.
Cumprimentos,
Cupertino