quarta-feira, 31 de maio de 2017

FELIX MENDELSSOHN: REVITALIZANDO AS OBRAS DE JOHANN SEBASTIAN BACH


Por Performing Arts Encyclopedia e Klaus Winkler

Traduzido por Francisco José dos Santos Braga

Felix Mendelssohn Bartholdy (☆ Hamburgo, 1809-✞ Leipzig, 1847)


A estatura de Johann Sebastian Bach como compositor de extraordinário gênio e ampla influência está tão firmemente estabelecida na cultura ocidental que é difícil imaginar que, apenas há pouco mais de um século e meio, sua música e reputação se esvaíam na obscuridade, virtualmente desconhecidas por todos, exceto por alguns especialistas. Foi através do reconhecimento de Mendelssohn do gênio de Bach e dos esforços do primeiro em tornar as obras de Bach acessíveis a um público mais amplo que essas obras hoje são reconhecidas como ápices da expressão musical.
Felix Mendelssohn Bartholdy, descendente de Johann Sebastian Bach
Devido ao curioso número de coincidências envolvendo os cruzamentos de membros tanto da família Bach quanto da família Mendelssohn, foi talvez inevitável em retrospectiva que Felix Mendelssohn salvasse a música de Bach do esquecimento iminente. A tia-avó Sarah Itzig Levy(1761-1854) uma irmã de Bella Salomon, avó materna de Mendelssohn deu apoio a um ativo salão de música em sua casa berlinense onde cultivava devoção à música de Johann Sebastian Bach. Sarah era uma musicista consumada, tendo estudado o clavicórdio com o filho primogênito de Bach, Wilhelm Friedemann Bach ou W.F. Bach; também encarregou obras e adquiriu manuscritos de outro filho de Bach, o segundo mais velho, Carl Philipp Emanuel Bach. R. Larry Todd, estudioso especializado em Mendelssohn, aponta que o "estilo galante" de várias sinfonias para cordas do jovem Felix, datando da década de 1820, pode ter sido influenciado pelas obras de C.P.E. Bach.

A admiração de Sarah Levy pela música de J.S. Bach também incentivou-a a tornar-se membro no coro da respeitável Berlin Singakademie, que tinha sido fundada em 1791 por Carl Friedrich Christian Fasch a fim de promover o repertório coral sacro alemão. C.F.C. Fasch, ele próprio um entendido nos motetos de Bach, dirigiu a instituição até sua morte em 1800; seu sucessor, Carl Friedrich Zelter (1758-1832), foi contratado mais tarde (1819), talvez por recomendação de Sarah, como tutor musical dos jovens Felix e Fanny. Sob a direção de Zelter, muitas obras do repertório alemão (tanto corais quanto instrumentais) que tinham caído em desuso inclusive as de Bach (a saber, sua Missa em si menor) foram desenterradas e estudadas. Tanto Felix quanto Fanny se juntaram ao coro da Singakademie, e assim participaram ativamente da redescoberta desse repertório.
Felix Mendelssohn e sua irmã, Fanny Mendelssohn Hensel

Enquanto Zelter era principalmente conhecido como compositor, regente e professor durante sua vida, seu maior legado foi ter criado programas abrangentes de educação musical e instituições de treinamento por toda a Alemanha. Para o jovem Felix, contudo, e durante os sete anos que estudou com Zelter, o velho compositor permaneceu uma influência musical dominante, munindo seu aluno com um sólido treinamento musical arraigado nas tradições do século XVIII.

Também coincidiu que, à época do nascimento de Felix, seu pai Abraham entrou na posse  de uma coleção de manuscritos de obras de J.S. Bach, adquiridos num leilão em Hamburgo em 1805; quarenta e três desses manuscritos foram subsequentemente (em 1811) enviados à Berlin Singakademie para custódia. De acordo com R. Larry Todd, Zelter pressionou Abraham a prosseguir em seus esforços de "salvar" outras obras de Bach, com a seguinte ressalva: excetuando os entendidos, "quem mais nestes nossos tempos compreenderia tais coisas?

Em 1823 (ou possivelmente 1824), a avó materna de Felix, Bella Salomon, brindou-o com um presente que deveria alterar o curso de vida dele: a partitura manuscrita da Paixão segundo São Mateus de J.S. Bach, feita por um copista. Enquanto Felix ficava familiarizado com apenas alguns trechos da obra durante a época em que foi corista na Singakademie, deve ter sido nada menos do que uma revelação seu primeiro encontro com a partitura integral de uma das obras mais profundas e grandiosamente concebidas. (Deve ser creditado a Bella e à sua sensibilidade musical, que reconheceu na Paixão, obra que era essencialmente desconhecida naquela época, um dos trabalhos mais profundamente espirituais jamais escritos; aparentemente ela enfrentou alguma dificuldade debatendo com Zelter quando tentou resgatar dele a cópia da obra para mandá-la copiar por Eduard Rietz para seu neto.)

A partitura assaltou a imaginação de Felix. Apesar de a reputação de Bach ser geralmente desfavorável naquela época (era considerado um pouco mais do que um "matemático" musical, referência àquilo que eventualmente seria reconhecido como seu uso extraordinário do contraponto e da simetria musical) e às inúmeras dificuldades apresentadas pela partitura (isto é, a complexidade e a estranheza de sua linguagem), Felix contudo concebeu a ideia de preparar toda a Paixão segundo São Mateus para apresentação.  

Embora o próprio Zelter tivesse anteriormente tentado montar a apresentação da Paixão sem sucesso, essa tarefa monumental iria requerer os esforços de um indivíduo com a visão e gênio para completá-la uma tarefa para a qual Mendelssohn convinha perfeitamente. Cinco anos mais tarde, realizava-se o sonho de Mendelssohn: foi preparada e também ensaiada e regida por ele, numa apresentação na Singakademie em 11 de março de 1829, uma versão reduzida da obra (incluindo cortes e alterações de algum material, compromissos julgados necessários na esperança de tornar mais acessível às audiências da época). Pela primeira vez em um século, a beleza da Paixão segundo São Mateus foi revelada ao público alemão, provocando uma recepção não diferente daquela experimentada pelo jovem Felix ao ver a partitura da obra pela primeira vez. A histórica apresentação, devido em grande parte à visão de Mendelssohn (ele tinha apenas quinze anos quando viu pela primeira vez a partitura da Paixão, e vinte, quando seus esforços de apresentar a obra foram concretizados), resultou num ressurgimento em larga escala e reavaliação das obras de Bach por toda a Alemanha e além, e num reconhecimento universal do seu gênio e significância.

Nas suas preparações para apresentar outras obras de Bach, o próprio Mendelssohn copiava as partes instrumentais. Entre as poucas partes que foram preservadas, estão as do manuscrito de Mendelssohn para clarineta e fagote para a Cantata BWV 106 de Bach, "Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit", que constitui acervo das coleções da Biblioteca do Congresso.

Durante os últimos anos de sua vida, Mendelssohn prestou homenagem adicional a J.S. Bach preparando uma edição das obras para órgão deste último (publicada em Londres por Coventry e Hollier, 1845-46). As próprias (i.e. por Mendelssohn) Seis Sonatas para órgão, op. 65 (1845) não apenas renovaram o interesse no repertório para órgão, e especialmente no de Bach, mas também impeliram à composição de novas obras para órgão por outros compositores importantes. 
Uma das gravações da música integral para órgão composta por Mendelssohn

O ressurgimento das obras de Bach que Mendelssohn tinha iniciado quase vinte anos antes, continuou a ser cultivado ao longo da vida do compositor: os resultados desses esforços altruístas não estão menos diminuídos em nossos dias.


Crédito: Biblioteca do Congresso, Divisão de Música.

Fonte: Felix Mendelssohn: Reviving the Works of J.S. Bach. Online Text. Retrieved from the Library of Congress, https://www.loc.gov/item/ihas.200156436/. (Accessed May 26, 2017.)



Felix Mendelssohn apresentou a Paixão segundo São Mateus em Berlim em 1829 e 1841. Em 11 de março de 1829, a Paixão foi ouvida de novo pela primeira vez em 100 anos. A apresentação marcou a redescoberta de Bach como compositor, tendo começado uma revitalização de suas obras. Como parte dos "Concertos Históricos", uma apresentação da Paixão se deu em 4 de abril de 1841, no Domingo de Ramos, na igreja de São Tomás, em Leipzig, o local de sua primeira apresentação.

As circunstâncias do concerto de Berlim estão excepcionalmente bem documentadas. Conta-se que Felix Mendelssohn ganhou de sua avó uma cópia da partitura da Paixão segundo São Mateus pelo Natal de 1823 ou pelo aniversário em 3 de fevereiro de 1824. 

Os ensaios começaram em 2 de fevereiro de 1829 na Singakademie; os ensaios orquestrais, em 6 de março. O coro era composto de 158 cantores. Mendelssohn regeu a apresentação, de um piano de cauda com uma batuta. O Rei com sua corte, os preeminentes intelectuais da época, inclusindo Schleiermacher, Heine, Hegel, Spontini, Zelter e a nata da sociedade berlinense assistiram à performance. Em 21 de março de 1829, aniversário de Bach, realizou-se uma segunda apresentação. A obra foi ouvida uma terceira vez na Sexta-feira Santa, 17 de abril de 1829, regida por Zelter.

A música usada para ambas as apresentações é igualmente bem documentada, e está preservada na Bodleian Library em Oxford. Igualmente sobreviveram, como a cópia da partitura já mencionada, todas as partes instrumentais para as apresentações de 1829 e 1841, juntamente com um conjunto de partes corais para ambos os coros.

Para a primeira apresentação, Mendelssohn fez anotações na partitura a lápis, e as poucas alterações subsequentes para a segunda apresentação se destacam a caneta de tinta vermelha e a lápis comum, bem como com diferentes estilos caligráficos.

Felix Mendelssohn encurtou a Paixão segundo São Mateus para a apresentação berlinense em dez árias, quatro recitativos "accompagnato" e seis corais. Para a apresentação de 1841 ele então readmitiu cinco movimentos.

Sua ideia básica com o arranjo era, por um lado, produzir uma concentração dramática do conteúdo sobre o texto bíblico e, por outro lado, acentuar as emoções no sentido do período romântico, e atingir isso omitindo aquelas partes que eram tributárias da doutrina barroca dos afetos ¹ e que podiam apenas ser reconstruídas cem anos mais tarde.

Os recitativos "secco" ², que o próprio Mendelssohn tinha acompanhado ao piano em 1829, foram alocados a dois violoncelos (usando duas cordas numa mão e o arco na outra) e um contrabaixo na apresentação de 1841. Precisamente aqueles recitativos que fazem avançar o conteúdo do enredo receberam um arranjo particular de Mendelssohn. Como a cópia da partitura disponível a ele não contivesse nenhum cifra abaixo ou acima da linha do baixo, ele procedeu à harmonização dos recitativos que desejava por conta própria (sua harmonização diferindo fundamentalmente da de Bach em muitos lugares). As fermatas ocasionais sobre notas individuais, indicações de tempo, instruções quanto à dinâmica, articulação e acentos, sobretudo na parte do Christus, também melhoram a concentração do conteúdo. O arranjo de Mendelssohn é concebido, em outras palavras, com vista a destacar os momentos cruciais, para dar expressão a emoções humanas de uma forma exacerbada.

As instruções de tempo de Mendelssohn para os coros da turba devem também ser entendidas nesse contexto. Seu objetivo era retratar o enredo dramático enfaticamente com pessoas de "carne e sangue". Os coros de abertura e final da primeira parte ³, "O Mensch, bewein dein Sünde groß" (Ó homem, chora sobre teu grande pecado), contêm marcações mais cuidadosas no estilo romântico.

A orquestração de Bach foi alterada em alguns movimentos. O uso de clarinetas, substituindo os oboés baixos (oboé d'amore e oboé da caccia), é impactante. Mendelssohn não deu mais ao órgão uma função de destaque, de modo que os recitativos "secco" eram ou acompanhados por ele ao piano, ou pelos violoncelos e contrabaixo. O órgão foi usado nos corais e em pontos selecionados em algumas árias e coros como um timbre adicional.

Com o arranjo de Mendelssohn, agora está disponível uma versão durando um pouco mais de duas horas, que oferece uma interessante alternativa para audiências dos dias atuais .

Autoria: Klaus Winkler (trad. Elisabeth Robinson) from (t)akte 1/2009
Cf in https://messianicjewishhistory.wordpress.com/2016/03/11/11-march-1829-mendelssohn-performs-bachs-st-matthew-passion-otdimjh/



NOTAS  EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga



¹  Para uma discussão mais detalhada sobre a "teoria dos afetos", queira consultar http://historiadamusica2011.blogspot.com.br/2011/07/teoria-dos-afetos-teoria-dos-afetos.html

²   Bach concebeu as leituras do Evangelho, arranjadas como recitativo "secco" para o Evangelista, complementadas por recitativos e coros da turba. Bach destinou os recitativos "accompagnato" (não extraídos dos Evangelhos) para precederem as árias

³   Esquematicamente, esta é a estrutura das Paixões de Bach:

Primeira Parte 
•   Grande coro de abertura com "tutti" orquestral e coral 
•  Leitura de alguns versos do texto do Evangelho com um recitativo (secco), concluídos pela turba, coral e/ou (recitativo e) ária
•  Leitura da seção seguinte do texto do Evangelho da mesma forma, e concluído da mesma maneira.
•   (... continua com unidades semelhantes...)
•  Último recitativo da Primeira Parte: esta unidade é sempre concluída com um movimento com coro

Segunda Parte
•   Movimento com coro e/ou solista vocal abrindo a Segunda Parte
•   (... sequência de unidades como na Primeira Parte...)
•  Movimento(s) de encerramento da Paixão incluindo um movimento de grande coral. 
Exemplo de turba: "Lass ihn kreuzigen" (Que ele seja crucificado), repetido por 2 coros, no manuscrito da Paixão segundo São Mateus de Bach, começando em si menor e terminando em dó # maior (tonalidade com 7 "sustenidos" ou "Kreuzen" em alemão, também "cruzes" em português). Isto significa que todas as 7 notas da escala carregam cruzes (sustenidos), ou seja, a totalidade de notas na partitura (o orbe inteiro) pede a crucificação de Jesus. (Mt 27, 23b)
  A versão arranjada por Mendelssohn (Leipzig, 1841) para a Paixão segundo São Mateus de J.S. Bach está disponível na Internet com duração de 2h 12min 42seg. Execução: Chorus Musicus e Das Neue Orchester, sob a regência de Christoph Spering.
1ª parte: https://youtu.be/xJNs6-FRWE0 

2ª parte: https://youtu.be/G0HDRQnMhLU 

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tive a sorte de localizar na Internet dois textos interessantes "Felix Mendelssohn: Reviving the Works of J.S. Bach" na Performing Arts Encyclopedia e "11 March 1829 Felix Mendelssohn performs JS Bach's St Matthew Passion" (que constitui a efeméride neste dia na História Judaica Messiânica), uma apreciação crítica de Klaus Winkler esclarecendo a (particip)ação de Mendelssohn na versão da Paixão apresentada em 1829 e 1841 em Berlim, o qual na ocasião tinha a preocupação de, por um lado, produzir uma concentração do conteúdo sobre o texto bíblico e, por outro lado, realçar as emoções no sentido do período romântico. Para conseguir esse efeito desejável, Mendelssohn omitiu aquelas partes que eram tributárias da doutrina barroca dos afetos e que só poderiam ser reconstruídas 100 anos mais tarde.
Winkler explica que, com o arranjo proposto por Mendelssohn, está agora disponível uma versão durando um pouco mais de duas horas, que oferece uma interessante alternativa para as audiências dos tempos atuais.
O texto que apresento constitui um mix dessas duas abordagens, porque entendo que são complementares.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

A genialidade de Bach merece esse reconhecimento.

Agradecemos pelo envio.

Abraços.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Maravilhoso!
Obrigado!

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (desembargador, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Admiro o apurado gosto e imensa cultura musical do amigo.
Grande abraço.