terça-feira, 3 de dezembro de 2019

MORTE DE UM JOVEM, por Kostís Palamás


Traduzido e comentado por Francisco José dos Santos Braga


“Esta história apareceu pela primeira vez, há dez anos atrás, na “Estía” de Drossínis. Pequena e invisível, com um seu artigo no “Fígaro” de Paris; para cuidar dela, nomeamos Psicháris. Entretanto, eu a esqueceria, caso não incentivasse para trazê-la novamente a lume o meu amigo Pállis.” 


“Esta história dedico a ti, mulher simples e de poucas letras, a ti, pobre Aurora. Escutei-a de tua boca e tentei conservá-la com a maior fidelidade possível, para poder chegar a ser teu próprio eco. Porque, quando tu falas, é todo um povo o que te sussurra as palavras. Cada história tua, sem que chegues a compreendê-lo, é um poema da (nossa) raça. Não és uma mulher, és a Fama arauta; não tens nada carnal, és alma unicamente. Teus olhos nunca repousam, nunca se obscurecem. Tudo o que dizes, tu o miras vívido diante de ti, e tudo o que vês, – como o vê a Fantasia – o contemplas. Por isso, tuas palavras são tão expressivas, quão sábia é tua língua, mulher simples e de poucas letras. Magnetizam-me teus olhos e me enfeitiçam tuas palavras e sinto que algo, dia a dia, me liga mais estreitamente a ti. Tu foste a primeira a cantar para mim quando bebê no berço; as últimas palavras que escutarei em meu leito de morte quero que saiam de tua boca.”  ¹

¹  Esclareço aos leitores que os dois textos acima (advertência e dedicatória) se encontram nas páginas 3 e 4 da 2ª edição de Θάνατος Παλληκαριού de 1901, publicada por Typographia “Estía” de Atenas, e foi o próprio Palamás que fez constar ali. Mas foram omitidos na versão simplificada que adotarei. Essa versão simplificada realizada pela Profª Marinéta Papachimóna e publicada com o mesmo título pelas Edições Nóstos de Atenas em 1999 atende o espaço limitado de um blog e respeita plenamente o estilo de Palamás, excluindo elementos que lhe pareceram dispensáveis. Lembro que a escolha da Profª Marinéta para essa tarefa foi muito adequada, devido à sua larga experiência docente e, além disso, por ter-se notabilizado como autora do livro didático “Grego Agora” (1987), um dos melhores manuais utilizados no ensino da língua grega demótica, também editado pelas Edições Nóstos. Nas pouquíssimas situações que me pareceram haver corte exagerado por parte da autora da versão (como os dois textos utilizados na abertura da novela), adotei o critério de repor e traduzir o que estava no original de Palamás para não fugir ao espírito da obra e complementar o texto da Profª Marinéta, mas repito que isso ocorreu pouquíssimas vezes.
Acho importante destacar ainda que a dedicatória da novela à “mulher simples e de poucas letras” evidencia que muito cedo Palamás compreendeu a importância de valorizar a língua grega demótica (do povo) e de utilizá-la em todas as circunstâncias em desfavor da língua purista praticada pelos letrados (katharévoussa), sendo muito natural ser considerado a figura central desse rebelde movimento linguístico.
Esta novela ilustra perfeitamente a atitude precoce e respeitosa de Palamás em relação ao legado transmitido pela língua do povo.
Finalmente, informo que, em vez de adotar o trabalho da pintora e gravurista grega Vásso Katráki (1919-1988) entre os "capítulos" (como o fez Profª Marinéta), preferi aproveitar na diagramação do meu trabalho as telas da pintura a óleo do norte-americano Winslow Homer (Boston, 1836-Prout's Neck, 1910), por ver muitas semelhanças de motivos no trabalho do homem de letras grego e do pintor norte-americano.
Além disso, fiz uso de um vetor desenho com motivos marítimos e uma imagem para a feiticeira Mórfo, ambos encontrados na Internet.


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“Dedico este trabalho intelectual a meu amigo Professor Aléxandros Orfanídis, que hoje reside em Atenas, com eterna gratidão e estima por ter-me iniciado nos segredos da tradução do grego moderno.” 

Noite de Sexta-feira Maior: mal tinha passado da meia noite e ninguém tinha ido para a cama. Os sinos mudos e as três capelas da Aldeia Costeira. Apenas as crianças correm de um quarteirão ao outro e de porta em porta trazendo para fora o pessoal com seus gritos.
“Hora de rezar! Hora de rezar!”
E os poucos que caíram no sono saltam da cama desconcertados e correm à janela, julgando que o dia nasce e que passa a Procissão do Santo Enterro.
Na Sexta-feira Maior, apenas os sinos emudecem, porque os habitantes da aldeia estão todos despertos. Também naquela noite, mulheres e homens, uns sós, outros acompanhados, saíam das casas e dos cafés e iam às igrejas.
Noite de abril, as igrejas iluminadas com as portas escancaradas, de vez em quando se ouve a voz do papás também de fora. Mas, do lado de fora das igrejas faz-se grande festa.
Em volta de grandes fogueiras cheias de madeiras, cestas, até mesmo gelosias, saltam, correm e gritam crianças também mal educadas e, no meio delas, também homens com bigodes.
E brilha a noite e o sossego é quebrado pelos foguetes e os busca-pés, todos feitos com arte de canas e papelão, recheados com pólvora.
“Salva, Senhor, o Teu povo...”
A aldeia rescendia a pólvora. Uma bandeja para compra da pólvora dava a volta dentro das igrejas. Homens e crianças brincavam destemidamente com a pólvora, pelo amor de Cristo.
Àquela hora não só as igrejas estavam escancaradas; aqui e ali se mostrava semi-aberta alguma taberna, algum café. A Procissão do Enterro sairia às três da madrugada e, até vir aquela hora, o pessoal não podia ficar de pé dentro da igreja. Com um café forte bem adocicado, um aperitivo e dois goles de vinho, depois de quarenta dias de jejum, ganhas força para acompanhar a Procissão do Santo Enterro.
Ultimamente, tinha-se esquecido na taberna de Psimenos uma companhia alegre: Mitros o rumeliota, Yanakós o tarnánamas, Marcos o de Kanínia ¹ e o filho de Charítena que ninguém o chamava pelo nome, tanto que também ele próprio o esqueceu e atendia somente quando o chamavam “Taría Tarela”. E os quatro, marinheiros: o primeiro tinha um barco de pesca, o segundo trabalhava no barco do primeiro, o terceiro viajava com as lanchas, e Taría Tarela era pescador. Os quatro tinham vinte e cinco anos, amigos desde os seus tenros anos. O vinho e a conversa lhes subiam à cabeça, e se não fosse Sexta-feira Maior, já teriam cantado. De repente perceberam que se atrasaram. No São Nicolau, poucos metros mais abaixo, começaram a cantar salmo.
“Todas as gerações...”
A taberna de Psimenos estava pronta para ser trancada. Assim que ouviram, saíram imediatamente para fora. Acharam-se na rua.
“Ó meu, esqueci os foguetes”, grita Kanínia.
Tinham os foguetes para acendê-los na Procissão do Santo Enterro, como era costume na sua aldeia.
“Deixei-os aos pés direitos da mesa. Esperem-me e os trago”, diz Mitros e apressado fez um movimento para voltar ao café. Mas, ao voltar, escorrega sobre algo, e estatelou no chão e ouviu-se um barulho seco.
Três gargalhadas secas escaparam das bocas de Marcos o Yanakós e de Taría Tarela e uma voz, um “matei-me!”, da boca de Mitros.
“Ainda bem, ó meu, que te mataste!”
“Levanta-te agora.”
“Será que te feriste?”
E chegou ao ouvido deles um gemido, um grito queixoso, alterado pela dor, sem vida.
“Matei-me, lhes digo. Não posso levantar-me. Não creem em mim?”
Um suor frio encharcou os três. Viram que não estava fazendo fita.
“Ó meu, Mitros”, puderam dizer e correram a ajudá-lo a lhe darem a mão para levantar-se.
“Assim por nada... tropecei ... escorreguei... Sim, sobre uma casca. Seria casca de limão... que me traga essa desgraça. Ufa!”
Dizia o que dissesse cada vez mais devagar, cada vez mais queixosamente. Tentou levantar-se sozinho. Viu que não podia; os outros o ergueram.
“Coragem, Mitros!”
Mitros não podia ficar de pé. Uma perna, a direita, não a sentia, não podia mexê-la. Pegaram-no pelos sovacos. Psiménos, o taberneiro, tinha fechado o seu estabelecimento e tentava ajudar também.
Acolá ouviam-se as vozes das crianças e assoviavam os foguetes. Das janelas e das portas do São Nicolau as velas e os círios pareciam estrelas. Vozinhas infantis frescas salmodiavam:
Ó minha doce primavera, meu filho dulcíssimo, cuja beleza se pôs.
“Vamos para casa”.
“Vá à igreja e chame a minha mãe, Kanínia”.

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¹  Sobrenome ou nome de família.

Winslow Homer (1836-1910)

A viúva Dímena, mãe de Mitros, tinha ido à igreja com as outras mulheres desde o anoitecer e estivera em vigília junto do Senhor Morto.
Ainda jovem perdera seu marido e, desde então, renunciara às alegrias da vida. Sua vida se resumia a ir de casa à vinha, da vinha à casa e cuidar de Mitros, seu filho único e adorado. Para ir à vinhazinha passava pelo cemitério e de vez em quando parava no túmulo do defunto e lhe acendia alguma vela e queimava um pouco de incenso. Era mulher trabalhadeira e digna. E quando cresceu o seu filho, continuou o ofício do pai. Viajou com os barcos e aos poucos adquiriu seu próprio barco.
Então a viúva Dímena ficou descansada e começou a pensar muito mais em Deus. Seu rapaz se cuidou; ela precisava cuidar de sua alma também.
E, desde então, ia à igreja mais frequentemente. E quanto mais passavam os anos – já tinha mais de sessenta anos de idade –, tanto mais temia a Deus. Contudo, para dizermos a verdade, tinha mais medo de feitiçaria e dos feitiços, sem compreendê-lo ela mesma.
“Senhora Dímena, precisam de você lá fora, o seu filho...”, sussurraram-lhe ao ouvido, puxando-lhe a saia.
“O meu filho? E o que quer comigo?”
Não teve tempo de pensar e eis diante dela Kanínia, ofegante.
“Não é nada, torceu seu pé.”
Saiu para fora imediatamente. Ao redor dela formou-se uma balbúrdia, e começaram os murmúrios.
“Silêncio, mulheres”, gritaram zangados os papás e os salmistas. Mas era impossível calarem-se.
“Que torção era essa?”
“Provavelmente alguém teria se queimado com os foguetes?”
“Vai ver que alguém teria sido esfaqueado!”
Num minuto esvaziou a igreja. Como se controlar o pessoal? Pode-se sempre topar com a igreja de novo, mas coisas como essas – Deus nos guarde! – não acontecem todos os dias!
“Meu filhinho! Meu menino Jesus!”, gritou a mãe acorrendo. E fora da igreja vê seu filho de pé, junto de seus amigos, apoiar-se na parede.
“Não é nada, mãe. Tropecei e caí. Machuquei um pouco o joelho. Vamos para casa para por algo em cima.
Quando o viu à frente dela, de pé, ao luar meio apagado, uma pedra escapou do seu peito. Tinha imaginado o pior.
“Ah! Má hora, meu filho. Ajuda-nos, Cristo!”
E como não imaginasse que ele não podia ficar de pé nem um minuto! E que ele tinha dito aos amigos para apoiá-lo na parede, para ela não vê-lo no chão e assustar-se.
Porém, embora tenha dito isso, o pensamento de Mitros voou também para outra e disse algo mais que não chegou a seus lábios.
“Como me vai ver a Frosine!”
Frosine era a sua noiva.
Levaram-no para casa, ora segurando-o, ora erguendo-o, ora arrastando-o.
Amanheceram junto da sua cama. Não pregou olho.
Sentia dor, mugia como um leão ferido. A perna inchava, virava uma coluna.
Naquele ano, a viúva Dímena, Kanínia, Yanakós e Taría Tarela não aproveitaram a Procissão do Santo Enterro.

Vetor desenho do barco e barqueiro em ondas de um mar-Crédito: Vetor por alexcosmos

Trouxeram o melhor médico da aldeia. Médico estudado. Parecia mais um capitão (de barco) do que um doutor. Salvara muitos das garras da Morte.
Os aldeões, porém, primeiro chamavam os curandeiros e as curandeiras; e, quando se desesperavam deles, chamavam, no último momento, o médico. De qualquer modo, este fazia seu trabalho; e uma vez que salvava o doente, censurava-os, pouco se lixando se lhe pagavam ou não:
“Idiotas! Colocam em perigo a sua própria vida com os charlatões.”
Desta vez Kanínia, Yanakós e Taría Tarela comportaram-se dignamente e com juízo. Não ouviram Dímena que queria que chamassem Dona Mariguí, de Constantinópolis, que desfazia o mau olhado e repunha os ossos fora do lugar e era boa para tudo. Recorreram imediatamente ao médico, que viu a perna.
“Ó meu, que contusão dos diabos! Dentro do joelho.”
Examinou-o cuidadosamente, e logo o amarrou firmemente dentro de canas e lhe diz:
“Não o mexas. A tua perna ficará bem, mas precisa de bastante tempo e muita paciência. Agora, pelo teu próprio bem, não toques nele.”
E dizia e voltava a dizer:
“Não toques nele.”
Ele sabia muito bem como os aldeões eram cabeças duras.


Os aldeões possuíam milhares de opiniões sobre a mesma coisa, mas sobre Mitros, uma.
“Mitros é um "palikári".”
Não era alto nem baixo; de preferência, magro do que gordo; moreno com um bigode fino e cabelos densos, crespos.
Mitros não pôs o pé na escola. Seus professores: o sol, o vento e as ondas. Com uma camisa de flanela passava os invernos e os verões. E contudo, dessa estatura normal saía a bravura no porte que tinha, no seu olhar, no seu andar, em cada movimento seu. E nos seus vinte e cinco anos, Mitros podia demolir o mundo e construir o mundo. Ninguém ganhava dele na corrida; com seu punho derrubava um boi. Quando lutava, ninguém podia mover seus pés, cravados no chão.
Um dia, Yanakós, Kanínia e Taría Tarela, os três juntos, tentaram durante uma hora derrubá-lo, mas nada, um rochedo; ao fim desistiram de fazê-lo; por pouco não morreram do coração.
Mas quando conduzia a dança, essas pernas de ferro, rígidas soltavam chamas.
Todo ano, como se fizesse uma promessa, trajava o saiote do seu avozinho com um cinto vermelho na cintura e ia dançar na festa de Santo Elias juntamente com outros aldeões.
E os festeiros deixavam sua própria festa, punham-se em círculo ao redor dele e o admiravam encantados. Cada passo leve seu levava a gente a outro mundo, ao mundo dos contos e dos valentes.
E as mulheres que o viam, admiravam-no e, meses depois, sonhavam com ele e não o esqueciam.
E das aldeias vizinhas, todo ano, vinham, não tanto pela festa de Santo Elias, quanto pelo dançarino.
Ali o viu Frosine, filha de Sevdás, a primeira de Melíssi, que fica a três horas de distância da aldeia. Eles se viram e formaram um par.
E, depois de meses, pela primavera, o pai dela enviou um casamenteiro a Dímena. A negociação resultou bem e fixou-se também o compromisso de noivado em Melíssi. À cerimônia de noivado foram Mitros, sua mãe e seus três amigos inseparáveis, além de toda a parentela. E, após poucos dias, foi com os mesmos acompanhantes e a presenteou com seda, pulseiras e brincos de prata. E divertiram-se durante dois dias e duas noites com violinos. O casamento se faria no segundo dia da Páscoa; mas antes de chegar a Páscoa, aconteceu a grande desgraça, que não deu a Mitros tempo de ir de novo a Melíssi.


Muitas moças invejaram a sorte de Frosine, mas a filha de Garoufaliá, Mórfo, muito mais do que as outras. Era morena, cheia de sorrisos e maneiras afetadas. A louca Mórfo, como a chamava a vizinhança. Quase explodiu de inveja, quando ouviu sobre o noivado. Desde então, não reapareceu no quintal para regar seu manjerico ¹ e sua hortelã, cantando “Κάτω στον Άι Λια” ², a canção amada de Mitros, que, quando a dançava, era todo uma chama. Completamente chama, como cantava também Mórfo, e lançava olhares ardentes à volta dela e suspiravam as vizinhas.
Desde então, silêncio. Só tarde da noite, algumas vizinhas que espiavam pelas frestas das suas janelas, viram-na duas ou três vezes, coberta até a cabeça com um xale, passar pela casa de Mitros, fazer uma breve parada em frente da sua janela iluminada, levantar os olhos dela e depois fugir como uma corça alvejada.
O amor dela por Mitros a queimava e tinha a oculta esperança de que, um dia, se tornaria esposa dele.
Mitros, o Rumeliota era um verdadeiro "palikári" e tinha todas as virtudes de um "palikári": as palavras, o ímpeto, a bondade, a beleza e o orgulho, o amor pela vida e o desprezo pela morte. Tinha passado por mares revoltos sem conta. Quase afogara milhares de vezes, mas nunca lhe faltou a coragem. Sem mais nem menos, não dava confiança a ninguém. Que alguém não o molestasse; não lhe tocasse onde não devia, senão não escaparia. Certa vez, sozinho ficou enfezado com um grupo de dez rumeliotes e os perseguiu até a igreja.
Yanakós, Marcos e Taría Tarela apostavam com os outros rapazes que ele era um valente e que nascera com rabo de leão e diziam que viram. A verdade é que não temia nada. Não calculava o perigo, não temia a doença, não temia a morte.
Só uma coisa não suportava, gelava-lhe o sangue. Não queria jamais ficar marcado, defeituoso. O golpe da perna custava-lhe mais do que qualquer desgraça.
“Se for para ser curado, quero ficar bem sem cicatriz”, dizia aos seus. “Se tiver que me levantar da cama, não quero levantar-me cambeta.”
Mitros, sem senti-lo muito bem, adorava somente um Deus: A Beleza.

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¹  Manjerico é a planta aromática dos namorados e, por excelência, a planta e flor dos santos populares. Em Portugal, o manjerico é uma planta tradicionalmente associada com as festas de Santo Antônio e de São João, realizadas a 13 de junho e a 24 de junho, respectivamente.

²   Κάτω στον Άγιο Ηλία

Winslow Homer - Crédito: VÍRUS DA ARTE & CIA.

Três meses se passaram desde aquela noite que se feriu. Pacientemente suportou os três meses. O médico lhe disse que se curaria. Porém, mal se levantou da cama para andar, imediatamente viu que a sua perna torcia, não dobrava, mancava. Desesperou-se; apoderou-se dele o ressentimento.
Imediatamente mandou ao diabo o médico e os medicamentos e desmoronou-se psicologicamente. Em vão tentou consolá-lo sua desventurada mãe que naqueles três meses tinha envelhecido três anos.
“Deixa de palavras, mãe! Ou consertará a minha perna ou não quero viver. Não me chamarão de marcado.”
E quando algum dos seus lhe dizia:
“Homem, já não tens nada! Não sejas prosa, coitado! Vamos, levante para irmos a Melíssi. Sua noiva não o tem visto há muito tempo! “
Mitros ficou zangado.
“Se tiver que vê-la em tal estado deplorável, que eu não a veja nunca. Melhor um monge vagando nas montanhas do que um noivo com uma perna torta!”
Sofria cada vez que pensava na sua namorada.
Como ir a Melíssi? O que vão fazer com ele? Sentá-lo numa cadeira, convidando para passarem para admirá-lo? Imaginava-se noivo, a dançar a dança de Isaías manco num pé só! Para não poder sentar-se com as pernas cruzadas à refeição, puxar a dança, correr, combater, festejar? E se via sobre a sua barca segurando uma bengala, apoiando-se nas cordas para não cair e esperando os outros para o ajudarem em tudo.
“Prometeram à noiva um valente e lhe dariam uma pessoa manca?”
Por mais que ela também fingisse que não a aborrecia, a tristeza a corroía por dentro! Ele próprio não queria escravizá-la.
“Vou perder-te, meu filho; não pela tua perna, mas pela dor que te consome”, dizia Dímena chorando e persignando-se.
E seus três amigos inseparáveis não o tiravam nem um minuto do pensamento. Mal terminavam o seu trabalho, corriam a fazer companhia junto dele e a consolá-lo. Inutilmente porém, pois ele não queria ouvir nada.


Chegou agosto e Mitros ficava fechado em casa. Queria que ninguém o visse e o jeito como estava andando.
Sentava-se à janela desde a manhã até a noite. Via o sol brilhar e ficar escuro. Contemplava o mar mudar mil cores: azul e róseo, de manhã; prata e ouro, ao meio dia; verde e negro, de tarde; violeta, quando o sol ia se por. E ele lhe dava outras cores quando soprava o vento do norte, outro encanto lhe dava o vento do noroeste, outro aroma lhe dava o vento do sul. E via as barcas com os remos, as barquinhas com as velas brancas rasgarem as águas tranquilas e mal se podia distingui-las das gaivotas. E via os barcos de pesca indo e vindo carregados descarregarem na doca. E da janela traseira via a linha verde da planície e as vinhas cheias de uvas. Como todas as coisas cheiravam bem!
E os aldeões, uns com os seus cestos e outros com as suas pás, a passarem debaixo de sua janela, cheios de preocupações do trbalho. E o mar lhe enviava a sua salmoura; o campo, o seu zumbido. E enquanto ele se sentia aleijado, tanto mais bonito lhe parecia o mundo. Enquanto via a sua mocidade definhar-se, cada vez mais vivo parecia o mundo.
Onde estaria neste tempo? Onde trabalharia? Aonde viajaria?
Os amigos dele tentavam não o afligir. Faziam tudo para agradar-lhe.
“Vê só, a tua perna ficará perfeita.”
“Mas precisa de tempo.”
“Paciência.”
Não queria ouvir nada sobre nenhum médico, nem mesmo também daqueles vindos de Atenas. Todos os que o visitavam, jovens, pescadores, capitães, o professor, o papás e até mesmo o presidente da Câmara começaram a lhe falar sobre os curandeiros da aldeia, que curavam todas as moléstias com os próprios medicamentos e poções. Todos lhe diziam as mesmas coisas:
“Fica longe dos médicos. Vimos a merda que fazem.”
“Não desistas, coragem!”
E como acontece normalmente, cada um deles tinha a lhe contar a sua própria história. Como um conhecido ou parente deles, condenado pelos médicos, se salvou por um charlatão! Afinal de contas o mundo está cheio de práticos, há séculos. Esses fazem um trabalho correto.
Um dia, no 15 de agosto, veio correndo, tarde da noite, Yanakós.
“Tenho notícia importante para lhes contar. Sabem quem chegou à nossa aldeia. Kopanitsas, de Lygariá!”
“Epa! E quem é este?”
“É famoso curandeiro. Toda a Rúmeli e metade do Peloponeso o conhecem. Melétis, o padeiro, o chamou para curá-lo de sarna. Toda a aldeia corre ao seu encontro. Conhece todas as doenças e as cura todas. É também cirurgião excepcional.
“Ó meu, estás exagerando!”, disse Mitros olhando para ele.
“A quantos perguntou Yanakós, sempre a mesma coisa: faz milagres, digo-lhes. Por que também nós não o chamamos para te ver? O que temos a perder?”
Mitros convencera aos poucos todos os que o amavam e cuidavam dele que o pior não era o ferimento, mas a sua perna manca. Era preciso, então, provarem de tudo. E para não alongar-me, trouxeram-lhe Kopanitsas. Todos o queriam: Mitros, a mãe, os três amigos, a parentela. E a quantos perguntavam, respondiam-lhes:
“Leve-o consigo.”


E veio Kopanitsas. Trajava saia plissada curta, mais ou menos cinquentão, alto, magro, narigudo e com um olho vesgo, mas que olho! Via por dois. Kopanitsas entrou na casa com grande segurança. Desde o instante que viu Mitros marcado, admirou-se. Ele examinou a perna cuidadosamente, girou-a, dobrou-a e disse:
“Eu vou te curar a perna, mas do jeito que eu sei.”
“Encomendo-me a Deus e às tuas mãos, doutor.”
“Primeiro passarão três dias. Hoje são treze. Veremos que haverá a luz da lua no dia dezesseis. Porque é preciso esperarmos o dia bom. Se não fizermos tudo direitinho, o doente pode sofrer um grande mal.”
E depois ordenou à Dímena:
“Tome 16 gramas de resina de lentisco, 26 gramas de incenso, 13 gramas de canela e 1 alho. Moa bem. Depois, tome 1.280 gramas de mel, e ferva tudo junto. Misture-os e dê-lhe para comer. Precisa ganhar forças. Esta poção faz milagres.”
Como o deixarem ir a um hotel! Deviam ser totalmente agradecidos ao médico. Pernoitaria em sua casa, comeria o que quisesse, até mesmo o que de melhor existisse no mundo e, quanto ao vinho... o melhor.
E ele, de apetite, nem se fala. E era todo histórias sobre doentes que curava.
Yanakós, Marcos e a Taría Tarela não saíam de perto dele. Ouviam-no de boca aberta.
Finalmente chegou o dia que esperavam. Dia 16, junto com a primeira chuva e as últimas andorinhas. Diz Kopanitsas a Mitros:
“Preciso de você aqui, meu rapaz. Sentirás um pouco de dores, mas depois passará.”
“Não temo a dor, doutor. A minha perna é preciso ficar bem.”
Kopanitsas fez um aceno a Marcos e aos outros dois:
“Segurem-no bem e firme... Tu, Dímena, estenda um cobertor embaixo.”
E a mãe dele estendeu um edredon e cobertas no chão, no meio do quarto.
“Está pronto o rakí?”
“Pronto. Aqui está a garrafa.”
“Beba, Mitros.”
E Mitros o sorveu todo de um gole.”
“Saúde, meu rapaz!
E pega a perna direita, a que dói, e a leva ao ombro esquerdo, e toma a perna esquerda e a leva ao ombro direito. E depois, pisa com toda a força sobre o joelho ferido. Ouve-se um crac! A casa tremeu. Mitros rugiu feito um leão ferido. Como podiam os três amigos segurá-lo, se saltava e vazava!
“Ajudem-nos, meu Cristo e minha Nossa Senhora!”, urrou Dímena.
“Coragem, Mitros”, gritavam-lhe os outros.
“Me mataste. Ai!”, mugia Mitros.
“Agora ficarás bem. Em 14 dias sairás para fora”, disse Kopanitsas e ordenou de novo depressa à Dímena.
“Moa chumbo. Jogue-lhe vinagre. Deixe-o por dois dias e depois queime-os junto com enxofre. Junte a sua cinza e misture-a com tinta vermelha, vela, incenso e azeite. Será feita uma pomada. Colocarás a pomada na perna pela manhã e à noite.”
Fora o esperava a sua mula. Pôs no seu bolso as duas liras, como tinham combinado, despediu-se deles e ninguém tornou a vê-lo. 


E passaram quatorze dias e Mitros não tinha levantado do colchão nem se ergueu de novo. A perna dele se infeccionou e definhava pela dor. E passaram ainda dois meses e entrou o inverno. Durante quarenta dias e noites chovia sem parar. A umidade lhe perfurava os ossos.
Naquele inverno ocorreu ter passado pela aldeia também outro curandeiro, Moraítis, apelidado Kuzunópulos. Desta vez trouxe Marcos as notícias. Se caíres uma vez nas mãos dos curandeiros, ai! Não se desembaraças facilmente deles. Quando estás desesperado, é difícil recusares a esperança, por pequena que seja.
“O que a gente está esperando?”
“Vamos recebê-lo.”
E ele se chamava a si mesmo cirurgião. E o que ele dizia, não se escrevia! Pura fanfarronice.
“Hum... Sim.. mas eu... sou passante pela vossa aldeia. Vim para um outro assunto meu. Não me convém ficar apenas por um doente. Além disso, não leva a nada se o vir apenas uma vez. Demanda tempo, talvez meses. É preciso examiná-lo uma noite e um dia. Tendes dinheiro? Quanto tendes? Me esperam em outra aldeia. Faço-vos um favor de agora estar a falar. Perco um tempo precioso.”
E a mãe de Mitros e os inseparáveis companheiros tomaram a decisão. Juntaram quanto tinham e quanto não tinham. Venderam terrenos, vinhas, tomaram empréstimo aqui e acolá. Não hesitaram nem um minuto de darem quantas economias tinham. Até os marinheiros deram o que podiam. Amavam o desventurado Mitros. E ele, na situação deles, faria o mesmo e talvez muito mais.
“Te daremos cinquenta liras. Mas primeiro vais curá-lo... Vamos depositá-las em outra mão. Vais recebê-las do Papathymios ¹.
“Que seja assim”, disse ele e acomodou-se na casa do doente.
Por cinquenta dias permaneceu na casa. Comia, bebia, dormia com um paxá e Dímena gastava. Aplicava em Mitros algumas próprias pomadas e compressas com algum sumo. A ferida encheu-se de pus. De noite a abria, de manhã a comprimia.
“Como vai, meu doutor?”
“Cada dia melhor. Vós mesmos não vedes?”
No fim lhes pediu cinquenta liras; assim para ter, ele também, algum no bolso dele.

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¹  Parece tratar-se do herói grego Thymios Blachávas (c. 1760, Kalambáka-1809, Ioânnina), que se notabilizou pelo enfrentamento dos turcos antes da Independência, foi capturado e teve seu corpo esquartejado para ser exposto à execração pública em Ioânnina. Como no início de sua carreira, foi ordenado papás (sacerdote ortodoxo), é geralmente chamado Papathymios. A vida e o fim heróico de Papathymios inspiraram Panagyiótis Soútsos a escrever o seu drama homônimo “Euthymios Blachávas” (1851).
Fonte: https://el.wikipedia.org/wiki/%CE%92%CE%BB%CE%B1%CF%87%CE%AC%CE%B2%CE%B1%CF%82


Dia após dia, hora após hora, Mitros ia cada vez pior.
Passaram-se oito meses e não reapareceu nenhum dos curandeiros, apenas o médico da aldeia, o primeiro que o tinha examinado.
Caíram a seus pés. Mas quando viu Mitros, ele quase chorou. Teve tanta pena dele que não teve força nem para zangar-se, nem para xingá-los, como costumava.
“Ainda estás no colchão?”, disse-lhe.
“Alguma coisa fizeste. Não te disse para não mexeres o joelho? Me ouçam; para vocês significa 'não me ouçam'. Vocês fazem da sua maneira.”
Examinou muito cuidadosamente a perna dele. Mudo, como poderia dizer-lhe a verdade, da forma como o via?
“Eh! Não tens nada. Ficarás bem.”
Mas ocultamente disse à mãe dele e aos outros:
“Levem-no a Atenas. É preciso cortar-lhe a perna. Os charlatões que vocês trouxeram, mataram o homem. Infeccionou-se. A gangrena está profunda. Salvem-no. Partam o mais depressa possível.”
Três dias e três noites, a mãe dele, os seus amigos, o professor, o presidente da Câmara, o papás tentaram convencê-lo. Três dias e três noites, ouvia-os e dava a mesma resposta.
“Melhor morrer do que andar numa perna.”
A verdade é: eles próprios não tinham imaginado que ele iria alguma vez a Atenas. Tinham a crença de que estava escrito: vontade de Deus. Não o ocultemos: todos eles arrepiavam-se quando imaginavam Mitros com uma perna!
Quanto à mãe dele, desde meses atrás, eram poucas palavras e um pensamento a torturava.
“Meu filho está enfeitiçado. Esta enfermidade não era de Deus, porém mal humano. É magia.”
A mãe de Mórfo, Garoufaliá, que dá as cartas e invoca os espíritos, pôs mau olhado em seu filho, meteu na cabeça enfeitiçá-lo com a sua filha.
Um dia, sua vizinha Argyró, inclinou-se e lhe disse:
“Garoufaliá, mãe de Mórfo, o enfeitiçou. Viu que o teu filho não foi seduzido pela filha dela, vai casar-se com outra. Enfureceu-se. Deu as cartas e ordenou a todos os demônios jogar um grande mal sobre ele.”
“Falas muito bem. Mas, como sabes disso?”, disse a mãe dele baixinho. E Argyró continuou:
“Uma noite que passava pela fonte, vi duas mulheres debaixo da vossa janela. Havia lua e as vi bem. Uma levantou a sua mão e ameaçava, e a outra, a mais baixa, soltou um grito estridente: Vais pagá-lo.”
Uau. Bem lhe disseram essas coisas: Lámbrena, Dorogyánena, e Marigó, a divorciada. Toda a aldeia zumbia, já não era segredo.
Garoufaliá queria o mal dele.
“A mãe dela também foi pedir ajuda às bruxas que moram em Arta.”

A feiticeira Mórfo, filha de Garoufaliá
“Desde o dia em que Mitros noivou, a filha dela, Mórfo, a puta, inscreveu Mitros na lista dos mortos. Fez mesmo para ele todos os serviços religiosos em memória de defuntos; nos terceiro, nono e quadragésimo dias, e também quando se completaram três meses, seis meses e um ano ainda por cima”, disse Dorogyánena  e se persignou.
“A própria mãe dela e ela”, murmurou Marigó.
“Ah! a puta Mórfo, se faz magia, nada está livre dela”, suspirou Lámbrena.
Garoufaliá, a mãe dela, tinha enviado uma casamenteira a Mitros e Dímena tinha dito a ela:
“Eu o criei com muito custo e lágrimas e o fiz um rapaz de 28 anos. E agora que começo a vê-lo prosperar, vou querer casá-lo tão novo? E com quem vai casar-se? Com Mórfo?”
Enviou também outra casamenteira e a esta respondeu:
“Se Mitros quiser tomá-la por esposa, tome-a. Mas na minha casa não quero tornar a vê-lo.”
E, em pouco tempo, Mitros trocou anéis com Frosine, a filha de Sevdás.


A viúva Dímena, em vez de pegar Mitros e levá-lo a Atenas, partiu uma manhã e foi à Patra encontrar uma adivinhadeira, conhecida em toda a Grécia. Predizia sobre o amor, a inimizade, tudo sobre e sob o mundo. Curava o mau olhado e dava-se bem com todos os duendes e as fadas. Topou com ela na sua cabana a misturar dentes de lobo com couro de serpente e outras ervas, em companhia com corvos embalsamados. Mal viu Dímena, moveu sua branquíssima cabeça e disse:
“Sei porque vieste; pelo seu filho. Trouxeste algo dele?” E Dímena, que tinha sido aconselhada, lhe deu fios dos seus cabelos.
“Amanhã de manhã vem receber a resposta.”
E foi de manhã e recebeu a resposta:
“Impossível que se cure. Fizeram-lhe um feitiço terrível. Na hora que caiu e se feriu, – antes de cair – doze armênias comiam e divertiam-se; ele pisou sobre a mesa delas. (E lhe mostrou uma casca de limão.) Uma delas, assim que o viu, invejou-o, empurrou-o, jogou-o ao chão, quebrou-o. Ele estava atravessado na garganta delas. – Deus te guarde de tais entidades – porque há tempos o teu filho estava inscrito na lista dos mortos.”
E lhe deu ervas mágicas para ferver e dar de beber a seu filho o suco delas, para passar a dor. E Dímena sentiu que as dava a ela como consolo e não para cura.
E voltou à aldeia e a seu filho e lhe deu apenas as ervas da feiticeira e silenciou quanto a todas as outras coisas. E o filho dela a esperava com agonia, porque podia não ter ouvido os médicos, mas acreditava na bruxaria.
Por isso, quando trouxeram a Melíssi outra feiticeira, uma judia, para vê-lo, Mitros a recebeu ali pregado no leito, como um capitão recebe a primeira brisa. No seu rosto opaco, brilharam seus olhos e um sorriso, como uma estrela nos céus, adoçou-lhe os lábios. Somente o viu, uma vez assim, a sua Frosine, sua noiva, e nenhuma outra. Fazia poucos dias que a judia viera de Ioânnina a Melíssi. Raptara-a certo Yaniótis de Ioânnina e a trouxera ali; ela foi batizada e casou-se. Presa pelo amor recentemente convertida, recentemente casada e bruxa! Morena clara, esbelta, bem feita e doce no falar; que falta fazia sua magia diante de seu olhar? Inclinou-se sobre ele, de tal forma que o mirou com seus olhos bonitos, um sorriso adoçava os lábios dele. Mitros imaginou que terminavam seus tormentos, e que só faltava que lhe desse a mão e lhe dissesse: “Levanta-te e anda!”. E que se levantaria e andaria. Acreditava nos encantamentos, encantava-lhe a beleza.
Ela lhe pediu um sapato direito; tomou-o e lançou algo dentro que parecia mercúrio e lhes disse para colocá-lo no telhado e deixá-lo ali toda a noite.
“O que quer que ouvirem hoje à noite, não contem.” Disse isso e repetiu-o.
“Creio que nos enviarão sinais, se o rapaz estiver com feitiço.”
Deu-lhes também algumas ervas para beber cozidas com vinho.


Como toda noite punha-se Dímena ao lado dele e deitava-se sem palavras perto dele. Ainda era inverno, mas a noite era primaveril, cheia de estrelas. Mas aquela noite era diferente.
O temor e a esperança velavam como eles. Em um canto da parede havia o altar doméstico. Uma candeia iluminava o Cristo escurecido e São Nicolau. Toda noite, Mitros fixava ali o seu olhar, às vezes na candeia, as vezes em Cristo, às vezes em São Nicolau. E via as sombras que se tornavam figuras esquisitas, cresciam, mudavam de lugar.
Quem sabe o que revelavam, almas ou a sua moira?
E seu coração batia forte. A sua mente estava cheia de histórias do outro mundo e contos de outra época. E esperava como prisioneiro para ver: iam levá-lo consigo ou iam deixá-lo viver?
E quando chegou a meia noite, quando tudo estava tranquilo, dentro das suas sombras, estoura sobre o telhado grande agitação.
Pedras, calhaus caem sobre o telhado como se alguém jogasse uma luta de pedras. Ouviam-se assovios e falas. O chão, as portas, as janelas rangiam. Diante dos seus olhos saltavam luzes e sombras, ícones e candeias.
“O que quer que ouvirem hoje à noite, não contem.”
Não pode respirar. Ao lado dele, sua mãe se encosta nele levemente. Compreendia que não estava só.
E ficaram ali, imóveis, sem falar até a meia noite. Ao amanhecer, ei-la, a feiticeira! Conta-lhe o que aconteceu de noite; ela pede o sapato; examina-o muito bem, pensa, ri docemente a Mitros e diz às ocultas a Dímena:
“Ai! Desde o começo eu o tinha entendido. O rapaz está enfeitiçado. Não se cura. Se não o tivésseis levado aos médicos e feito os exorcismos, iria se salvar. Agora é impossível.”


E enquanto se desesperavam, iam ora a um adivinho ora a outro, sempre com a esperança de ouvirem algo bom.
Desta vez ouviram sobre um adivinho que vivia na aldeia Épachto. Este tinha o livro de Salomão e estudava todos os mistérios da adivinhação. Não eram piadas. Dentro dele aprendia como se curava cada doença, mesmo a pior. Exorcizava os demônios e os encerrava dentro de garrafas. Depois os carimbava com o selo do próprio Salomão, a fim de não saírem. Sabia ainda onde nasce o trevo de quatro folhas e com ele fazia todos os duendes obedecerem a ele e fazerem o que ele queria. E enviaram para encontrá-lo Taría Tarela com cartas, dinheiro, um caracol dos cabelos dele e mil súplicas. Era a sua última esperança.
Com um barco de pesca chegou ao Épachto. Não parou nem um minuto e indagando à direita e à esquerda o encontrou na mesma noite. O adivinho era um amarelento com compridas barbas negras e vestia alguma roupa antiga. Falava devagar e nunca ria.
Taría Tarela pôs em sua mão uma moeda de 10 dracmas e lhe diz:
“Quero que examines alguém que está muito doente e vejas como vais curá-lo.”
E o adivinho lhe pediu imediatamente fios dos seus cabelos e lhe disse:
“Estejas aqui às quatro horas da manhã.”
E às quatro da manhã no outro dia, Taría Tarela ouvia o adivinho lhe dizer:
“O doente se chama Mitros e sua mãe, Dímena. É viúva. A sua casa está na Aldeia Costeira, em frente à igreja.” E Taría Taréla persignou-se. Não lhe tinha dito nada e a ninguém em Épachto. Como sabia das coisas? E depressa continuou o adivinho:
“Vesti-vos de negro, a partir de agora. O que podia (fazer), fiz. Invoquei todos os duendes. Tentei. Impossível. Este é o seu Destino. Não se escapa ao que está escrito. Mataram-no os feitiços do amor.”

Passou o inverno. Derreteram-se as neves e floresciam as amendoeiras. Reverdecia o manjerico, floresciam as rosas e as violetas. E o casebre mais pobre parecia rico de plantas aromáticas e flores. Chegaram as andorinhas e construíram destemidamente os seus ninhos. E as aves não pararam nas suas casas. Voaram para outra parte.
Na casa de Mitros não desabrochara nenhuma flor. Os vasos nus, não regados, secos. No inverno passado, um vento forte tinha jogado os vasos e as pranchas que os sustinham junto com os ninhos. Ninguém pensou em repô-los. Na cabeça de Dímena não cabia nenhum outro pensamento: apenas a dor pelo seu filho.
Passaram o entrudo e a Grande Quaresma e chegou a Semana Santa da Paixão. Abril recém-chegado rejuvenesceu a vida e espalhou novas forças para lutar pela vida. A alma sentia novas alegrias, novas preocupações surgiam na mente; assim como as flores se abriam para os amores, as igrejas abertas rescendiam a incenso, e corações, mais abertos, rescendiam a esperança. Nessa época, até mesmo o atormentado pela dor e o desenganado pelos médicos adoça-se, abraça a vida com mais força, considera como vendê-la o mais caro possível.
Mitros estava nas últimas. Contados estavam os seus dias. A sua perna tinha gangrenado. O veneno tinha subido pela corrente sanguínea e espalhava-se. Ele, mudo, imóvel, apenas seus olhos estavam irrequietos, brilhavam e iam de cá para lá, continuamente da direita para a esquerda como se esperassem alguém; estava pronto para lutar com ele.
A sua desventurada mãe estava irreconhecível pela insônia e pela tristeza, um verdadeiro traste. Mudos, Marcos, Yanakós e Taría Tarela e outros, não saíam de seu lado. Na Quinta-feira Santa trouxeram o papás Eutímio para dar-lhe a comunhão.
Amanheceu a Sexta-feira Maior com um céu completamente azul. O primeiro raio de sol escorregou por uma fenda até o colchão de Mitros. Ele agitou-se e gritou com voz forte:
“Mãe, abre a janela. Quero sol, quero ar.”
E ela abre a janela e derrama-se o sol por toda a parte, no chão, nas paredes, no leito. Abraça o enfermo e dirias que o sol era o melhor mago médico. E o ar matinal, que se esgueirou pela fresta aberta, mistura e brinca com os seus cabelos longos, despenteados. E seus olhos contemplam além o mar com as mil cores e os mil sonhos. O seu barco estava lá, abandonado, não tripulado. E sentiu que chegou o fim.
E o mago sol o inebriou com o seu próprio vinho, cheio de vida e morte. Deu-lhe força para preparar-se para a viagem ao Mundo Ínfero.
“Mãe, um espelho. Quero um espelho.”
E a sua mãe, que quedara muda pela desgraça, que olhava e não sentia, que sentia sem pensar, traz-lhe um espelho.
“Ouve, mãe... me esperam na festa...”
Acendeu-se-lhe de repente a preocupação de por-se elegante: queria alegrá-la por sua afoiteza para a viagem.
Parecia-lhe que se preparava para ir à festa de Santo Elias.
Pegou o espelho e começou a mirar-se nele.
Atrás do seu rosto via toda a sua vida. Milhares de imagens, amadas, esquecidas desde os seus anos mais tenros até os atuais.
E as memórias ressuscitavam e dançavam loucamente diante dele e perdiam-se as pretéritas com as futuras.
De repente, ficou só no espelho a olhar para o seu pálido rosto, e diz queixosamente:
“Ai! Formosa juventude que a terra comerá!”
E sentiu a sua juventude e a sua beleza e pediu um pente. Começou a pentear, a pentear seus cabelos crespos. Tinham alongado e crescido, completamente vivos como se tivessem sugado, parecia, todo o frescor e a força do corpo. Torceu seu bigode como se estivesse preparando para um segundo noivado e disse:
“Mãe, tanto tempo tomei coragem e dizia ‘Aguentarei e não morrerei’. Agora te peço um favor. Chora-me para que te escute.”
“Ora, meu filho, compreendes o que dizes? Chorar-te? Até aí chegaste? Gaguejou a mãe emudecida.”
“Sim, mãe, chora. Quero vivê-lo agora, ao sol, na luz, e não debaixo da terra.”
Parou por um instante e depois saltou e gritou:
“Não quero morrer sozinho. Quero gente. Abre a porta e as janelas, para que entre gente.”


Era quase meio-dia. Os aldeões voltavam da igreja com as flores do Santo Enterro na mão. Havia muita gente. De repente, ouviram um som demorado, pesaroso, rouco. Som que ora parecia uma canção e ora um urro de animal ferido. Pranto, riso, praga, um treno lento e arrepiaram-se. Um indagou ao outro:
“É canto fúnebre? Quem morreu?”
Então alguém mostrou a casa de Dímena.
“Da casa de Dímena sai o canto fúnebre. Mitros morreu.”
“Mitros morreu?”
E como se não o esperassem tantos meses, mulheres bem vestidas, com seus bebês no colo, e outras com lenços negros na cabeça, começaram a gritar, a chorar e a bater em si mesmas. Homens patrões, trabalhadores do mar e da terra, viam com pesar a casa de Dímena.
Como se juntou toda aquela gente?
Dir-se-ia que naquela casa se celebrava a Paixão de Cristo, e que tinha lugar outro Santo Enterro. E muitos levavam ainda flores do Santo Enterro e parecia que queriam colocá-las em cima do leito do morto, para perfumarem com elas o derradeiro sono, para santificá-lo morto!
Quando um jovem morre, também a vida morre muito mais.


A casa da forma como a banhava o sol do meio-dia e com as portas escancaradas e com a gente empurrando-se para entrar, julgarias que era uma grande festa.
Ninguém podia conter a gente. Enchiam todos os quartos, os degraus, e aqueles que não cabiam enchiam o pátio, a rua. E os primeiros que entraram foram para a janela, pálidos, com a respiração cortada davam a notícia.
“Não morreu ainda, está agonizando! E mandaram que iniciem o canto fúnebre ainda vivo!
“Ó meu, tu te dás conta?”
“Deus meu, perdoai-nos. Nunca ocorreu coisa semelhante!”
Era verdade. Quantos entravam dentro da casa, ficavam atônitos.
Mitros sentado sobre o colchão com aparência selvagem e olhos enfurecidos, esbugalhados estava pronto a correr, para lutar, para dançar... Num canto Dímena, esquelética, sem vida, sem lágrimas, tinha se convertido toda em voz, mas não voz de mulher, senão a voz do próprio desespero. E cantava com ritmo próprio uma ária que não se ouvira jamais, e dizia: 
O moço bonito está agonizando, moço bonito está morrendo,
acendei círios verdes e candeias amarelas,
que alumiem o moço bonito a descer ao Hades.
Passo a passo descia, passo a passo está subindo.
Vassílo, a cunhada dela, correu a fim de interromper:
“Para. O teu filho vive e entoas um canto fúnebre para ele?”
Em vez de responder-lhe a mãe, respondeu o filho:
“Mete-te nas tuas coisas; agora quero que me chorem.”
E começaram todos a pranteá-lo e o canto fúnebre encheu toda a casa.
E, no meio do povo, Yanakós, Kanínias e Taría Tarela tinham pregado seus olhos sobre ele como cegos e, se não viam nada, não diziam nada.
Do lado de fora da casa, ouvia-se o carpinteiro cravar as tábuas do caixão.
Algumas vizinhas preparavam as roupas dele para a viagem derradeira. Sobre a mesa puseram o gorro bordado de ouro, último presente da sua noiva.
Desde o meio-dia e tanto, começou a luta com a Morte. Até à tardinha durou a agonia.
De vez em quando saltava como possesso.
“Ai! Ó meu, como sofri... Ah! Vestes saia plissada curta... Devagar, devagar... não pises nas minhas pernas... Vai, vai... Que gente é esta?... Mãe, não me pises mais... a âncora... Quero ar... Não me tapes o sol... Entreguei-me.”
E com esse “entreguei-me”, entregou a vida à Morte. Expirou ante os olhos da gente, nos braços dela. Foi ouvido um murmúrio:
“Pena para o jovem.”
“Foi-se injustamente.”
“Glória a Ti, Senhor, que lhe dês o repouso.”
Aquela hora o sol também se pôs. Acalmou-se a natureza, como se quisesse não perturbar o sono, o provisório, do Deus eterno, o sono eterno do homem efêmero.
E de repente, viram algo esquisito. Viram a velha Dímena deixar a cama do filho, onde se pregara, sem azos, sem sentido, sem lágrimas e já sem voz, viram-na lançar-se ameaçadora entre as pessoas no meio do quarto, como uma gata selvagem com cabelos hirtos, braços estendidos e dedos abertos, como se quisesse afogar alguém.
E então, viram uma moça muda, imóvel e calma olhar o morto. Os olhos dela brilhavam como de uma alegria oculta. E um leve sorriso estava em seus lábios. Sua cabeça estava coberta com um xale negro, mas seu rosto sobressaía formoso.
A velha lançou-se sobre ela.
Ouviram-se sussurros.
“Ó meu, a puta! A sem-vergonha!”
“Pode-se crer, a louca Mórfo?”
Porém, antes que Dímena tivesse tempo de alcançá-la, desapareceu. Esfumou-se como um sonho mau.
E ficou a velha a ameaçar o ar e, antes de desmoronar-se no chão de comprido, teve tempo de berrar:
“Ai! Ó minha! Para mim o mataste com seus feitiços! De todo jeito, não casaste com ele... a esposa dele é a Morte.”


––––––––––––––––––––––––––

Link da 2ª edição do livro original contendo 63 páginas:
https://anemi.lib.uoc.gr/metadata/d/d/6/metadata-184-0000042.tkl

PALAMÁS, Kostís: Θάνατος Παλικαριού, Edições Nóstos, Atenas, 1999, 84 p.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Eric Tirado Viegas (tradutor, escritor, proprietário dos blogs Eric Ponty Poesia Reunida e http://oranicefranco.blogspot.com.br/ (acervo de Oranice Franco), membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

brilhante

Gustavo Dourado (escritor, poeta de cordel e presidente da Academia Taguatinguense de Letras) disse...

Parabéns pelo texto, confrade, tudo de bom, abraços.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Parabéns pela perfeita tradução! O seu gênio é visível.

João Batista Ferreira (membro da AEXAM-Associação dos Ex-alunos dos Seminários de Mariana) disse...

OBRIGADO,
Braga!
Li com apreço a "prosaverso" na louca esperança de saborear novos textos e ouvir seus cantos.
Abraços. João

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Um verdadeiro poema em prosa é como posso classificar “Morte de um Jovem”, uma novela de costumes publicada em 1891 por KOSTÍS PALAMÁS (1859-1943), inédita em língua portuguesa.
Lamentavelmente continua inédita em língua portuguesa praticamente toda a sua extensa obra literária, apesar de sua importância na história da literatura grega, como se verá a seguir.

Kostís Palamás, autor da novela "Morte de um Jovem", é um dos grandes poetas da literatura neo-helênica, todo um símbolo para várias gerações de escritores. É o máximo representante da chamada geração de 1880, que reagiu contra a corrente romântica que havia dominado o panorama literário grego durante boa parte do século XIX. A partir dessa iniciativa foram abandonados o retoricismo e o estilo empolado e foram buscadas novas formas de expressão, virando o olhar para a língua popular (demótica) com o fim de explorar todas suas possibilidades como língua literária.

Submeto à sua apreciação este meu trabalho de tradução, bem como uma biobibliografia de Kostís Palamás, que redigi para homenagear quem Romain Rolland considerava o maior poeta da Europa.

Biobibliografia de Kostís Palamás
https://bragamusician.blogspot.com/2019/12/biobibliografia-de-kostis-palamas_3.html

TEXTO: Morte de um Jovem, por Kostís Palamás
https://bragamusician.blogspot.com/2019/12/morte-de-um-jovem-por-kostis-palamas.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Pe. Dr. Zdzislaw Malczewski SChr (escritor e redator da Revista Polonicus, revista de reflexão Brasil-Polônia) disse...

Caro Sr. Francisco,

Mui agradecido pelos links. Li os textos. Mui interessantes!
Mas para nossa revista temática nao ajuda... Lamento... Se no meio de tantos gregos aparecesse um polônico pelo menos, já daria incluir na Revista Polonicus. Ha.. - gargalhada foi dada em polonês!

Um grande abraco e uma saudação da Terra dos Gaúchos - pe. Zdzislaw

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;
Impressionante e comovente novela, em todos os sentidos, genial! Sua elaboração nesse texto do festejado Palamás e a divulgação de sua biobibliografia em língua portuguesa são verdadeiramente um marco, merecedoras de todo respeito. Parabéns.
Muitíssimo grato pela oportunidade.

Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...

Morte de um jovem -> muito bom!!!

Em um tempo mais recente, prof. Pe. Gruen escreveu que, se hoje fosse ensinar grego, iria até ao "demótico e atual" em lugar de ensinar o "bíblico".
Haveria maior interesse e possibilidades de praticá-lo, ou seja, mais eficiência didática.
Os que o dominassem fariam depois as necessárias adaptações para ler o texto do Septuaginta.
O contrário não funcionou bem e a maioria dos estudantes, como eu, acabaram por esquecer o que haviam estudado.
Heitor