Dedico esta pesquisa à minha linda e querida sobrinha e afilhada Bianca Girafa Braga (✰ Rio de Janeiro, 24/03/1975 - ✞ Niterói, 10/09/2020), que desde ontem "passeia antigas lembranças amáveis, à sombra dos flamboyants" da antiga Thule, ilha que, segundo a tradição mito-poética, tem o dom de serenar todas as veleidades, paixões e vaidades humanas.
Depois de ter esquadrinhado alguns dos mistérios do mundo grego, Dimítris Mikhalópoulos, desta vez se afasta do Mediterrâneo, para navegar nos mais frios mares, aqueles que tiraram da rota mais de um navegante. Ele se muniu de uma ferramenta nova e surpreendente... O dicionário copta/latim de Fernand Crombette. É para a misteriosa Thule que ele aponta seu sextante, apesar dos obstáculos colocados por hipóteses multisseculares...
A história de Pytheas é bem conhecida: originário de Massalia (atual Marselha), realizou na segunda metade do século IV a.C. uma viagem de exploração nos mares do Norte. Ele navegou ao longo das costas ocidentais da Península Ibérica e da França, bem como as da Bélgica e da Holanda; foi então para a Britannia (hoje Grã-Bretanha), que descreveu muito bem, porque a percorreu a pé ¹ e finalmente atingiu um país, onde, durante os meses de verão, a noite só durava muito pouco. Ele falou, além disso, de uma ilha, Thule (do grego Θούλη, pron. Thoúlē), muito nórdica ², que ficava "perto do mar congelado" a uma distância de seis dias de navegação ao norte da Britannia ³, e próxima a uma área do Oceano Atlântico, em que a navegação era impossível, porque o mar parecia um 'pulmão' feito de água ⁴.
Tendo-se perdido a obra de Pytheas, levantaram-se várias hipóteses, desde a antiguidade até os dias atuais, sobre suas façanhas de exploração. Por mais que seja considerado teratologista ⁵, não há dúvida de que percorreu grande parte da costa da Europa Ocidental e da Britannia. Porventura ele entrou no mar Báltico? ⁶ O que ele quis dizer quando falou de um "pulmão marinho"? E sua Thule, onde se acha?
Em relação ao mar Báltico, não teria importância uma resposta categórica, porque com toda a probabilidade os países por ele banhados eram conhecidos na Grécia durante a Alta Antiguidade. Seu "pulmão marinho", que impossibilitava a navegação, era sem dúvida uma mistura de água e gelo anunciando os icebergs do Pólo Norte. Em relação a Thule, no entanto, ainda é uma questão em debate. Em todo caso, era uma ilha localizada perto da "zona congelada" ⁷ (o Círculo Polar Ártico). Lá, devido à pouca luz solar, não se podia cultivar o trigo e, como resultado, o alimento consistia principalmente de milhete e raízes. ⁸ Trata-se da Islândia? Da Groenlândia? Sendo a vida humana "cheia de surpresas", é Fernand Crombette quem, graças ao seu dicionário copta-latim e latim-copta, nos possibilita dar uma resposta, senão categórica, pelo menos razoável.
Em primeiro lugar, vejamos o testemunho de nosso antigo explorador. Conforme atestado, Thule é uma ilha que se acha a seis dias de viagem da costa britânica (noroeste) e em direção ao norte. Consequentemente, não pode ser a Islândia, porque, de acordo com os cálculos de distâncias feitos por nossos Antigos, o tempo de viagem dado por Pytheas é muito longo. É preciso, de fato, levar em conta que a viagem da Europa à América é muito mais fácil do que na direção oposta. ⁹ É por isso que, durante a Antiguidade Tardia, se estimou em apenas cinco dias a duração da travessia da atual Grã-Bretanha até Ogígia, uma ilha próxima à América do Norte (a Grande Bermuda, com toda probabilidade) a apenas cinco dias. ¹⁰ Portanto, é totalmente impossível pensar que eram necessários seis dias de navegação para ir da Britannia à Islândia. Portanto, a conclusão razoável é que Thule de Pytheas é a Groenlândia.
Mas por que Thule? O que essa denominação significa? Nunca é demais repetir que a chave de tal mistério nos é oferecida por Fernand Crombette, que nos impele constantemente para a língua do antigo Egito. No entanto, fiquem tranquilos! Não precisamos seguir os passos de Champollion, porque o copta, língua em que o egípcio antigo sobreviveu ¹¹, felizmente está escrito no alfabeto grego. A palavra copta "thoulīs" significa: “lama”. ¹² A conclusão? Thule é, muito simplesmente, um "[local] enlameado", descrição mais ou menos exata que diz respeito a várias ilhas e países nórdicos devido ao derretimento do gelo, ainda que temporário, que lá acontece. É por isso que os Romanos falavam de várias Thule, uma das quais era a “última”, a saber, a mais afastada... ¹³; e não há dúvida de que esta Última Thule fosse para eles a Groenlândia. ¹⁴
Também é muito importante notar que sempre existem topônimos derivados do egípcio thoulīs. Em primeiro lugar, conhecemos Toula, uma cidade russa localizada às margens do rio Oupa. ¹⁵ Ora, Toula não é uma palavra russa e seu significado "é obscuro". ¹⁶ A cidade de Toula, além disso, no México, a inimiga obstinada dos Astecas, tinha a particularidade de ser atravessada por um riacho de mesmo nome... ¹⁷ etc., etc.
O que tudo isso significa? Em primeiro lugar, que a ideia de Crombette se revela, em princípio, correta, segundo a qual devemos buscar a solução dos mistérios etimológicos, e até mesmo da gnose de nossa existência na língua egípcia. Eis, então, que uma nova "frente de pesquisa" se abre diante de nós. "Dêem-me a origem das palavras e eu lhes reconstruirei a história do mundo", teria declarado Thiers; e eu acrescento: "e Crombette a nos mostrar o caminho a seguirmos..." Porém, antes de engajarmos no caminho trilhado por este, é preciso reconhecer que, por sua vez, os Ingleses têm razão: Deus tem humor! Vocês conhecem, de fato, as histórias sobre Thule, supostamente o berço místico dos Hiperbóreos, terra ideal que devemos resgatar para iniciar o renascimento da humanidade. Vocês já ouviram falar da famosa Thule-Gesellschaft, cujo brilho ofusca, mesmo atualmente, as mentes das pessoas de muito boa fé até hoje. Vocês sabem, graças às suas leituras, o misticismo desenvolvido em torno da existência mítica dos seres quase sobrenaturais que outrora habitavam a sonhada Thule... Como então explicar a todo o mundo que "Thule" apenas significa "lugar lamacento"?
Aqui está um nó górdio que devemos desatar...
I. NOTAS EXPLICATIVAS
Link: https://ceshe.fr/actualites/11_ultima-thule-ou-dieu-a-de-l-humour.html
II. COMENTÁRIOS pelo tradutor
“Políbio, em sua corografia da Europa, nos diz que não é sua intenção examinar os escritos dos antigos geógrafos, mas as declarações dos que os criticaram, tais como Dicearco de Messana na Sicília, Eratósthenes que foi o último dos que em seu tempo trabalharam em geografia, e Pytheas, por quem muitos foram enganados. É esse último escritor que afirma que viajou a pé por toda a Britannia, e que a ilha mede acima de 40.000 estádios em circunferência. Igualmente é ele que descreve Thule e outras localidades vizinhas, onde, segundo ele, nem terra, nem água, nem ar existem separadamente, mas um tipo de mistura de todos esses (elementos), assemelhando a esponja marinha, na qual a terra, o mar e todas as coisas estavam suspensas, assim formando, como um elo a unir o todo. Através dele não se pode nem navegar nem velejar. Quanto à tal substância, ele afirma que a contemplou com seus próprios olhos; o resto, narra com base na autoridade de outros. Não se deve contar com as declarações de Pytheas, que nos diz, além disso, que, ao retornar dali, atravessou todas as costas da Europa, de Gades ao Don.”
15 comentários:
THULE era o lugar localizado no mais distante Norte, próximo ao Círculo Polar Ártico, e que foi mencionado na Antiguidade Clássica tanto na literatura quanto na cartografia.
Na literatura clássica e medieval, Última Thule adquiriu um significado metafórico de qualquer lugar distante localizado além das "fronteiras do mundo conhecido", ou ilha habitada pelos Hiperbóreos, um povo que habitava o Norte da Europa em um território inatingível, onde não havia doenças nem guerras. Eles levavam uma vida perfeita sem a ajuda dos deuses, sendo aquele território visitado somente durante o inverno por Apolo. Era assim que rezava a mitologia grega.
Neste artigo examinaremos a evolução desse conceito na medida em que cientistas são chamados a participar do debate, com a admissão de geógrafos, polígrafos, etimólogos e historiadores.
https://bragamusician.blogspot.com/2020/09/ultima-thule-ou-deus-tem-humor.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Além da mitologia mediterrânica greco-romana nos livros, existe popular mitologia escandinava até hoje conhecedora das sagas nórdicas.
Além da Europa mais conhecida dos latino-americanos, estive em pessoa várias vezes em cidades e nos campos da Dinamarca e Suécia, e dos fjords da Noruega fui até a Islândia. Nas distantes cidades norueguesas e islandesas ainda hoje se fala o nórdico e são conhecidas de cór as sagas. A Última Thule é o paraíso das utopias deles.
Jorge Luis Borges é dos raros latino-americanos a conhecer e amar as sagas, e escreveu três poemas sobre a Islândia e Thule.
Caro professor Braga;
Excelentes notas sobre essa curiosa Utopia e mais uma oportunidade para tratar dos temas e autores da Cultura Clássica.
Obrigado pela sugestão de leitura.
Cupertino
Bom dia, meu caro amigo.
Muito obrigado por mais um texto.
Bom final de semana!
Cuide se bem.
Abraço,
Diamantino
Muito bom!
Prezado Braga, bom dia. Agradeço o texto enviado. Abraço do Fernando Teixeira para você e Rute. Pax.
Olá, Francisco e Rute.
Como cristãos todos nós acreditamos que um mundo melhor é possível. Mas não virá sem a nossa participação e nosso esforço.
Continuemos nos empenhando para a sua realização, para haver Justiça e Paz nesta terra.
Desejo-lhes um ótimo domingo e feliz nova semana.
f. Joel.
Oi, Braga
Tudo o que tenho para confortar uma pessoa se resume a duas frases, as quais fazem sentido mesmo sem comentários. Elas são:
O limite do amor é amar sem limite.
A saudade que fica, também é amor.
Fica para você pensar em Bianca.
Com o meu abraço.
José Fernando
Francisco, boa tarde.
Muita sensibilidade sua dedicar esse texto tão raro, fantástico e grandioso à sua afilhada Bianca. Com toda certeza Ela já está com Deus e todos nossos ancestrais, na “paradisíaca Thule”.
Obrigado pela distinção,
Fernando Braga
Um lugar
onde o tempo não existe,
e o espaço não se define.
Para lá as almas se mudam,
Já soltas dos elos corpóreos.
À região etérea transcende
o humano incenso dos afetos,
sublimados em saudade.
Francisco,
Que bela homenagem à Bianca. Muito bom o texto.
Aproveitando, envio também palmas para você e para Rute pela mensagem anterior (INVOCAÇÃO EM DEFESA DA PÁTRIA), no dia da Pátria.
Vocês formam um casal formidável.
Nosso abraço!
Bom dia!
Agradeço pelas informações!
Excelente!!!
Um grande abraço,
Sílvia
Querido Franz,
só hoje estou postando meu comentário. No dia em que li, mesmo em que você postou o estudo, estava muito tocada pelo falecimento prematuro da querida sobrinha e amiga Bianca.
Bonito estudo!
Que a Bianca esteja feliz na Thule ou na Ilha das Bem-aventuranças! Ela merece, lutou e fez o bem nesta vida.
Abraço carinhoso,
Petete
(Elizabeth dos Santos Braga)
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