domingo, 13 de junho de 2021

SERMÃO AOS PEIXES DE ANTÓNIO DE PÁDUA

Por Francisco José dos Santos Braga

 
Em memória de Santo António de Pádua, O.F.M. (✰ Lisboa, 1195 - ✞ Pádua, Itália, 13/06/1231, aos 35 anos de idade. Em 1263, teve suas relíquias reconhecidas por São Boaventura, que encontrou incorrupta a língua do pregador sacro, assim permanecendo até o tempo presente. 

Capa da edição de 1874 de "Des Knaben Wunderhorn"

 

Começando pelo início, o Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua (em alemão, Des Antonius von Padua Fischpredigt) é um poema que serviu de base para um Lied de Gustav Mahler, tendo sido extraído de uma publicação literária intitulada A Trompa Mágica do Menino ou, em alemão, Des Knaben Wunderhorn (referindo-se a um objeto mágico como a cornucópia) em três volumes, lançada em Heildelberg entre 1805 e 1808, consistindo numa coletânea de textos de canções folclóricas alemãs publicada pelos escritores Achim von Arnim (1781-1831) e Clemens Brentano (1778-1842). Essa primeira coleção continha texto de canções desde a Idade Média até o século XVIII inclusive. 

Imagem do Sermão aos Peixes de Santo António de Pádua

Foi essa primeira coleção que inspirou Gustav Mahler a compor seu ciclo de 24 Lieder "Wunderhorn", como passaram a ser chamados (sobre poemas do Des Knaben Wunderhorn). De fato, suas vinte e quatro canções tiveram a inspiração 'Wunderhorn', sendo que nove pertencem às canções da juventude (1ª fase); doze formam a base do agora denominado ciclo Des Knaben Wunderhorn (composto entre 1892 e 1895, durante suas férias de verão em Steinbach-am-Attersee) (2ª fase); e, finalmente, três foram compostas mais tarde (3ª fase). Interessa-nos tratar aqui da canção nº 6, Pregação aos peixes de Antônio de Pádua, que faz parte do ciclo de 12 canções, que didaticamente chamamos de 2ª fase. 

Embora haja alguma controvérsia, consta-nos que foram as seguintes as 12 canções: 
1. Canção noturna do sentinela 
2. Tudo em vão (literalmente 'Esforço perdido') 
3. Consolo na desgraça 
4. Quem inventou esta cançãozinha? 
5. Vida terrena 
6. Sermão aos peixes de Santo Antônio de Pádua 
7. Pequena lenda do Reno 
8. Canção do prisioneiro na torre 
9. Lá onde soam os belos trompetes 
10.Louvor a uma mente brilhante 
11.Três anjos cantavam 
12.Luz primordial 
 
Esta coleção de 12 Lieder de Mahler foi publicada em 1899 sob o título "Humoresques" para voz e piano, entre os quais figura a Pregação aos Peixes de Antônio de Pádua de nº 6 (portanto, até então nenhuma versão orquestral tinha sido produzida pelo compositor). O referido Lied é para barítono com acompanhamento de piano. O andamento exigido pelo compositor para a interpretação desse Lied é descrito como "Behäbig, mit Humor", ou, em português, Relaxante com Humor. O mesmo cantor deve interpretar vários personagens nessa mesma canção, algo complexo, posto que são vários os peixes que devem se apresentar ao longo da canção. Para cada um dos personagens, requer-se um tipo de inflexão vocal característica. 
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=7lmjMpRoZ9Q (vídeo na voz do barítono Hermann Prey e piano de Michael Krist gravado pela Phonogram GmbH em 1972) 

Foto  das primeiras páginas de Des Antonius von Padua Fischpredigt, partitura editada por G. Schirmer, Inc. para voz (low voice) e piano


 
[MANNIS & ZAMPRONHA, 2005], no trabalho em que se propõem a verificar a relação estreita entre os materiais utilizados  nas Canções Wunderhorn e no primeiro movimento da 3ª Sinfonia de Gustav Mahler, observam corretamente que 
(...) concomitantemente verificou-se, através de dados históricos e musicais, que três das Sinfonias de Mahler (a segunda, a terceira e a quarta) podem ser agrupadas em uma trilogia. Esta trilogia costuma ser denominada "Wunderhorn", uma vez que se identifica grande influência de um ciclo de canções de mesmo nome composto praticamente no mesmo período (Gartenberg, 1978:263).
Mahler também reelabora, altera e amplia suas canções, como ocorre com Des Antonius von Padua Fischpredigt (Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua), que se converte no terceiro movimento inteiramente instrumental de sua segunda sinfonia (intitulada "Ressurreição"). Este parece ser o eixo através do qual se pode compreender como a redução para voz e piano influenciou trechos do 3º movimento da 2ª sinfonia de Mahler. Por isso, a canção 'Wunderhorn' nº 6 é fundamental tanto para a compreensão dos procedimentos composicionais quanto dos materiais utilizados por Mahler no 3º movimento de sua 2ª Sinfonia. 
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=4MPuoOj5TIw (vídeo para toda a 2ª Sinfonia de Mahler gravada em 21/08/2003 sob a regência de Cláudio Abbado à frente da Orquestra do Festival de Lucerna. O 3º movimento vai de 32:25 até 43:43)
 
Segundo [GROUT & PALISCA, 1994, 655-9], a Sinfonia nº 2 de Mahler 
é uma obra tipicamente romântica: longa, formalmente complexa, de caráter programático, requerendo enormes recursos de execução. (...) 
Estreada em 1895, exige, além de um grande naipe de cordas, 4 flautas (duas são às vezes substituídas por flautins), 4 oboés, 5 clarinetes, 3 fagotes e 1 contrafagote, 6 trompas e 6 trombetas (mais quatro trompas e quatro trombetas, com percussões, formando um grupo à parte), 4 trombones, 1 tuba, 6 tímbales e numerosos outros instrumentos de percussão, 3 sinos, 4 ou mais harpas e órgão, a que se somam um soprano e um contralto solistas e um coro. (...)
Num esforço fáustico de abarcar tudo, Mahler esteve em perfeita sintonia com o espírito romântico, de que a 2ª Sinfonia é a encarnação mais perfeita. (...) 
Mahler é um dos compositores mais audaciosos e mais exigentes no tratamento das combinações orquestrais, só comparável talvez a Berlioz neste domínio; o seu gênio natural para a orquestração foi estimulado pela atividade constante como maestro, que lhe deu a oportunidade de aperfeiçoar até ao pormenor as partituras à luz da experiência prática. (...)
Em outro trecho, [idem, ibidem] observa o seguinte: 
A 2ª Sinfonia, uma das obras mais frequentemente executadas de Mahler, é conhecida como Sinfonia da Ressurreição. Tal como Beethoven, Mahler utiliza aqui as vozes no clímax final da obra
e neste ponto se estende sobre a concepção da Sinfonia da Ressurreição: 
A um primeiro movimento longo, agitado e extremamente desenvolvido segue-se um andante no ritmo fluente, dançante e de tipo popular de um Ländler ou valsa lenta austríaca. O terceiro movimento é uma adaptação sinfônica de uma das canções do ciclo Wunderhorn e o breve quarto movimento é uma nova versão para contralto solista de outra canção da mesma coletânea ¹. Este movimento serve de introdução ao finale, que, após uma seção orquestral expressiva e dramática, ilustrando o dia da Ressurreição, prossegue com um trecho monumental para solistas e coro que toma como ponto de partida o texto de uma ode sobre a Ressurreição do poeta setecentista alemão Klopstock.

 

I. NOTA EXPLICATIVA

 

¹  Trata-se da canção intitulada Urlicht ou Luz primordial (composta em 1892? e orquestrada em 1893) que foi rapidamente incorporada (com orquestração expandida) na 2ª Sinfonia como quarto movimento. 
 
 
II. Letra do Sermão aos Peixes de António de Pádua (em minha tradução do alemão)
 
 
António encontra a igreja vazia 
Quando queria pregar 
Ele vai aos rios 
E prega aos peixes. 
 
Eles abanam sua cauda, 
Brilhante ao sol. 
 
As carpas com ovas 
Vieram aqui 
Abriram suas bocas 
Ouvindo interessadas; 
 
Não há pregação de que 
Tenham mais gostado. 
 
Percas inteligentes 
Brigando todo o tempo 
Rápido nadaram 
Para ouvir o pio; 
 
(De nenhuma pregação 
  As percas gostaram mais.) *
 
Também fadas 
Que sempre se apressam; 
Quero dizer os codfishes 
Que vêm para o sermão. 
 
Codfish nunca tinha ouvido
Um sermão tão amável. 
 
Boas enguias e esturjões 
Que os nobres saboreiam 
Até aqueles condescendem 
Assistir ao sermão: 
 
(De nenhuma pregação 
   As enguias gostaram mais.) *
 
Lagostas, tartarugas 
Por um lado mensageiros lentos 
Levantam-se rápido do chão 
Para ouvirem essa boca! 
 
Nenhuma pregação agradou 
Tanto as lagostas! 
 
Peixe grande, peixe miúdo! 
Nobres e arraia miúda, 
Ergam as cabeças 
Como criaturas sábias. 
 
Para ouvir à pregação 
Como Deus deseja. 
 
Ao fim da pregação, 
Todos voltam à estaca zero, 
As percas ficam ladras, 
Enguias amam demais. 
 
A pregação agradou 
Mas eles ficam os mesmos. 
 
As lagostas andam para trás, 
Codfishes ficam gordos, 
As carpas são gulosas, 
A pregação é esquecida. 
 
A pregação agradou 
Mas eles ficam os mesmos.
 
* Trechos omitidos por Mahler na sua canção 'Wunderhorn'.
 
O texto de Des Antonius von Padua Fischpredigt provavelmente seja  o equivalente de uma cena de algum  medieval retábulo alemão que Mahler se baseou para, primeiro compor a redução musical para voz e piano, e mais tarde desenvolvê-la no scherzo de sua Sinfonia nº 2. Neste painel, Santo Antônio, farto da indiferença de sua congregação, desce ao rio para pregar aos peixes. A piada (e a moral) é: por mais que todos gostem do sermão, essas criaturas de sangue frio não são melhor reformadas por ele do que seus equivalentes humanos. 
 
Na redução para voz e piano, o cenário de Mahler tem um senso de humor maravilhosamente direto, seu ostinato 3/8 repleto de peixes que se lançam, também mergulham nas profundezas do teclado em reluzentes terças paralelas. Quando o deleite dos peixes é expresso ('De nenhuma pregação...'), o Ländler subjacente se torna uma dança aberta, exibindo seu material com uma politonalidade quase bergiana, enquanto uma seção fá maior mais suave e nobre em 'Boas enguias e esturjões' transmite perfeitamente distinções de posição. No final, entretanto, tudo é desilusão; o verso final é sustentado por um pedal de dó menor e a cena se dissolve em uma passagem cromática descendente que é notavelmente semelhante ao final de Das ist ein Flöten und Geigen do ciclo Dichterliebe (Amor de Poeta) de Schumann. 



III. BIBLIOGRAFIA


GARTENBERG, Egon: MAHLER, THE MAN AND HIS MUSIC. Londres: Panther, 1978

GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V.: HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL, Lisboa: Gradiva Publicações Ltda, 1994, 1ª edição, 759 p.

MANNIS, Guilherme & ZAMPRONHA, Edson: Inter-relações entre o ciclo "Des Knaben Wunderhorn" de Gustav Mahler e sua Terceira Sinfonia, trabalho apresentado no XV Congresso da ANPPOM - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gradução em Música, 2005, disponível na Internet em PDF.

13 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Ao ensejo da comemoração do Dia de Santo Antônio neste dia 13 de junho de 2021, data de sua morte, julguei ser propícia a publicação de matéria relativa à sua pregação da doutrina cristã aos peixes, já que ela não tinha encontrado guarida entre os homens.
Para tratar desse assunto, recorri a uma peça de GUSTAV MAHLER, identificada com o curioso título "Sermão aos Peixes de António de Pádua", publicada pela Schirmer, Inc. como canção "Wunderhorn", para piano e voz (barítono), carregada de humor e frescor, com enredo característico.
Também é examinada a adaptação sinfônica da mesma canção, que constitui o terceiro movimento da sua 2ª Sinfonia.
São igualmente apresentadas sugestões para que o leitor desfrute de um bom momento musical.

https://bragamusician.blogspot.com/2021/06/sermao-aos-peixes-de-antonio-de-padua.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Gustavo Dourado (escritor, poeta de cordel e presidente da Academia Taguatinguense de Letras) disse...

Parabéns, gratidão.
Tudo de bom.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

BELÍSSIMO!
ISSO NOS REMETE TAMBÉM AO PADRE VIEIRA.
ABS.

ROGÉRIO

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Agradeço pelo “Sermão aos Peixes”, Francisco.

Louvo tua proficiência e tua constância no trabalho de cultura que te distingue.

Abraço

Anderson

Ulisses Passarelli disse...

Prezado: com satisfação lhe parabenizo por mais esta postagem, que assim como as outras leva a marca de sua competência inquestionável. Recordo-me agora de uma trova popular, expressão devocional singela, corrente em nossa amada "São João dos Queijos":

"Antônio é santo
é de coração!
Até os peixinhos
lhe dão atenção!"

Na Igreja de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno há um painel de pintura parietal que representa a pregação do grande taumaturgo aos peixes.

Merania Oliveira disse...

Parabéns!
Belíssimo.

Salomea Gandelman (professora universitária, autora do livro "36 Compositores Brasileiros-obras para piano (1950-1988)" disse...

Obrigada, Salomea

Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (escritor, advogado, professor universitário e presidente da Academia Itaunense de Letras) disse...

Prezados Prof. Bechelaine e Dra. Maria de Fátima.
Bom dia, boa semana.
Encaminho-lhes este maravilhoso texto do Dr. Francisco acerca de Santo António de Pádua.
Fraternal abraço.
Arnaldo

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor, escritor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Caro amigo Francisco Braga,
Graça e paz!
Gratidão pela remessa da mensagem anexa.
Abraço,
Pe. Sílvio

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;
Belíssima maneira de marcar o dia deste verdadeiro fenômeno de devoção que é Santo Antônio, trazendo a magnífica peça de Mahler.
Saudações!
Cupertino

Augusto Barbosa Coura Neto (natural de Ponte Nova, poeta consagrado, autor de livros, tais como "Alvorecer de um sonho" e "Sonho Realizado") disse...

Obrigado pela mensagem, meu amigo.

Maria Auxiliadora Muffato (poetisa são-joanense) disse...

Boa tarde, Francisco. A princípio os peixes pararam encantados com o que nunca tinham ouvido. Desfeito o encanto, fizeram "ouvidos de mercador" ao Santinho. E a vida voltou ao que era antes. Como acontece
aos humanos !?...
Contudo, a singeleza de Antônio é-nos de muito bom grado.
Agradeço pelo envio desta deliciosa peça.

Santo Antônio na capelinha
de lírios, de manjericão.
Dê-nos a todos proteção
e, lá no céu uma estrelinha.
MARIA AUXILIADORA MUFFATO