Por Francisco José dos Santos Braga
Em memória de Santo António de Pádua, O.F.M. (✰ Lisboa, 1195 - ✞ Pádua, Itália, 13/06/1231, aos 35 anos de idade. Em 1263, teve suas relíquias reconhecidas por São Boaventura, que encontrou incorrupta a língua do pregador sacro, assim permanecendo até o tempo presente.
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Capa da edição de 1874 de "Des Knaben Wunderhorn"
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Começando pelo início, o Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua (em alemão, Des Antonius von Padua Fischpredigt) é um poema que serviu de base para um Lied de Gustav Mahler, tendo sido extraído de uma publicação literária intitulada A Trompa Mágica do Menino ou, em alemão, Des Knaben Wunderhorn (referindo-se a um objeto mágico como a cornucópia) em três volumes, lançada em Heildelberg entre 1805 e 1808, consistindo numa coletânea de textos de canções folclóricas alemãs publicada pelos escritores Achim von Arnim (1781-1831) e Clemens Brentano (1778-1842). Essa primeira coleção continha texto de canções desde a Idade Média até o século XVIII inclusive.
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Imagem do Sermão aos Peixes de Santo António de Pádua
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Foi essa primeira coleção que inspirou Gustav Mahler a compor seu ciclo de 24 Lieder "Wunderhorn", como passaram a ser chamados (sobre poemas do Des Knaben Wunderhorn). De fato, suas vinte e quatro canções tiveram a inspiração 'Wunderhorn', sendo que nove pertencem às canções da juventude (1ª fase); doze formam a base do agora denominado ciclo Des Knaben Wunderhorn (composto entre 1892 e 1895, durante suas férias de verão em Steinbach-am-Attersee) (2ª fase); e, finalmente, três foram compostas mais tarde (3ª fase). Interessa-nos tratar aqui da canção nº 6, Pregação aos peixes de Antônio de Pádua, que faz parte do ciclo de 12 canções, que didaticamente chamamos de 2ª fase.
Embora haja alguma controvérsia, consta-nos que foram as seguintes as 12 canções:
1. Canção noturna do sentinela
2. Tudo em vão (literalmente 'Esforço perdido')
3. Consolo na desgraça
4. Quem inventou esta cançãozinha?
5. Vida terrena
6. Sermão aos peixes de Santo Antônio de Pádua
7. Pequena lenda do Reno
8. Canção do prisioneiro na torre
9. Lá onde soam os belos trompetes
10.Louvor a uma mente brilhante
11.Três anjos cantavam
12.Luz primordial
Esta coleção de 12 Lieder de Mahler foi publicada em 1899 sob o título "Humoresques" para voz e piano, entre os quais figura a Pregação aos Peixes de Antônio de Pádua de nº 6 (portanto, até então nenhuma versão orquestral tinha sido produzida pelo compositor). O referido Lied é para barítono com acompanhamento de piano. O andamento exigido pelo compositor para a interpretação desse Lied é descrito como "Behäbig, mit Humor", ou, em português, Relaxante com Humor. O mesmo cantor deve interpretar vários personagens nessa mesma canção, algo complexo, posto que são vários os peixes que devem se apresentar ao longo da canção. Para cada um dos personagens, requer-se um tipo de inflexão vocal característica.
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Foto das primeiras páginas de Des Antonius von Padua Fischpredigt, partitura editada por G. Schirmer, Inc. para voz (low voice) e piano
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[MANNIS & ZAMPRONHA, 2005], no trabalho em que se propõem a verificar a relação estreita entre os materiais utilizados nas Canções Wunderhorn e no primeiro movimento da 3ª Sinfonia de Gustav Mahler, observam corretamente que
“(...) concomitantemente verificou-se, através de dados históricos e musicais, que três das Sinfonias de Mahler (a segunda, a terceira e a quarta) podem ser agrupadas em uma trilogia. Esta trilogia costuma ser denominada "Wunderhorn", uma vez que se identifica grande influência de um ciclo de canções de mesmo nome composto praticamente no mesmo período (Gartenberg, 1978:263).”
Mahler também reelabora, altera e amplia suas canções, como ocorre com Des Antonius von Padua Fischpredigt (Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua), que se converte no terceiro movimento inteiramente instrumental de sua segunda sinfonia (intitulada "Ressurreição"). Este parece ser o eixo através do qual se pode compreender como a redução para voz e piano influenciou trechos do 3º movimento da 2ª sinfonia de Mahler. Por isso, a canção 'Wunderhorn' nº 6 é fundamental tanto para a compreensão dos procedimentos composicionais quanto dos materiais utilizados por Mahler no 3º movimento de sua 2ª Sinfonia.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=4MPuoOj5TIw (vídeo para toda a 2ª Sinfonia de Mahler gravada em 21/08/2003 sob a regência de Cláudio Abbado à frente da Orquestra do Festival de Lucerna. O 3º movimento vai de 32:25 até 43:43)
Segundo [GROUT & PALISCA, 1994, 655-9], a Sinfonia nº 2 de Mahler
“é uma obra tipicamente romântica: longa, formalmente complexa, de caráter programático, requerendo enormes recursos de execução. (...)
Estreada em 1895, exige, além de um grande naipe de cordas, 4 flautas (duas são às vezes substituídas por flautins), 4 oboés, 5 clarinetes, 3 fagotes e 1 contrafagote, 6 trompas e 6 trombetas (mais quatro trompas e quatro trombetas, com percussões, formando um grupo à parte), 4 trombones, 1 tuba, 6 tímbales e numerosos outros instrumentos de percussão, 3 sinos, 4 ou mais harpas e órgão, a que se somam um soprano e um contralto solistas e um coro. (...)
Num esforço fáustico de abarcar tudo, Mahler esteve em perfeita sintonia com o espírito romântico, de que a 2ª Sinfonia é a encarnação mais perfeita. (...)
Mahler é um dos compositores mais audaciosos e mais exigentes no tratamento das combinações orquestrais, só comparável talvez a Berlioz neste domínio; o seu gênio natural para a orquestração foi estimulado pela atividade constante como maestro, que lhe deu a oportunidade de aperfeiçoar até ao pormenor as partituras à luz da experiência prática. (...)”
Em outro trecho,
[idem, ibidem] observa o seguinte:
“A 2ª Sinfonia, uma das obras mais frequentemente executadas de Mahler, é conhecida como Sinfonia da Ressurreição. Tal como Beethoven, Mahler utiliza aqui as vozes no clímax final da obra”
e neste ponto se estende sobre a concepção da Sinfonia da Ressurreição:
“A um primeiro movimento longo, agitado e extremamente desenvolvido segue-se um andante no ritmo fluente, dançante e de tipo popular de um Ländler ou valsa lenta austríaca. O terceiro movimento é uma adaptação sinfônica de uma das canções do ciclo Wunderhorn e o breve quarto movimento é uma nova versão para contralto solista de outra canção da mesma coletânea ¹. Este movimento serve de introdução ao finale, que, após uma seção orquestral expressiva e dramática, ilustrando o dia da Ressurreição, prossegue com um trecho monumental para solistas e coro que toma como ponto de partida o texto de uma ode sobre a Ressurreição do poeta setecentista alemão Klopstock.”
I. NOTA EXPLICATIVA
¹ Trata-se da canção intitulada Urlicht ou Luz primordial (composta em 1892? e orquestrada em 1893) que foi rapidamente incorporada (com orquestração expandida) na 2ª Sinfonia como quarto movimento.
II. Letra do Sermão aos Peixes de António de Pádua (em minha tradução do alemão)
António encontra a igreja vazia
Quando queria pregar
Ele vai aos rios
E prega aos peixes.
Eles abanam sua cauda,
Brilhante ao sol.
As carpas com ovas
Vieram aqui
Abriram suas bocas
Ouvindo interessadas;
Não há pregação de que
Tenham mais gostado.
Percas inteligentes
Brigando todo o tempo
Rápido nadaram
Para ouvir o pio;
(De nenhuma pregação
As percas gostaram mais.) *
Também fadas
Que sempre se apressam;
Quero dizer os codfishes
Que vêm para o sermão.
Codfish nunca tinha ouvido
Um sermão tão amável.
Boas enguias e esturjões
Que os nobres saboreiam
Até aqueles condescendem
Assistir ao sermão:
(De nenhuma pregação
As enguias gostaram mais.) *
Lagostas, tartarugas
Por um lado mensageiros lentos
Levantam-se rápido do chão
Para ouvirem essa boca!
Nenhuma pregação agradou
Tanto as lagostas!
Peixe grande, peixe miúdo!
Nobres e arraia miúda,
Ergam as cabeças
Como criaturas sábias.
Para ouvir à pregação
Como Deus deseja.
Ao fim da pregação,
Todos voltam à estaca zero,
As percas ficam ladras,
Enguias amam demais.
A pregação agradou
Mas eles ficam os mesmos.
As lagostas andam para trás,
Codfishes ficam gordos,
As carpas são gulosas,
A pregação é esquecida.
A pregação agradou
Mas eles ficam os mesmos.
* Trechos omitidos por Mahler na sua canção 'Wunderhorn'.
O texto de Des Antonius von Padua Fischpredigt provavelmente seja o equivalente de uma cena de algum medieval retábulo alemão que Mahler se baseou para, primeiro compor a redução musical para voz e piano, e mais tarde desenvolvê-la no scherzo de sua Sinfonia nº 2. Neste painel, Santo Antônio, farto da indiferença de sua congregação, desce ao rio para pregar aos peixes. A piada (e a moral) é: por mais que todos gostem do sermão, essas criaturas de sangue frio não são melhor reformadas por ele do que seus equivalentes humanos.
Na redução para voz e piano, o cenário de Mahler tem um senso de humor maravilhosamente direto, seu ostinato 3/8 repleto de peixes que se lançam, também mergulham nas profundezas do teclado em reluzentes terças paralelas. Quando o deleite dos peixes é expresso ('De nenhuma pregação...'), o Ländler subjacente se torna uma dança aberta, exibindo seu material com uma politonalidade quase bergiana, enquanto uma seção fá maior mais suave e nobre em 'Boas enguias e esturjões' transmite perfeitamente distinções de posição. No final, entretanto, tudo é desilusão; o verso final é sustentado por um pedal de dó menor e a cena se dissolve em uma passagem cromática descendente que é notavelmente semelhante ao final de Das ist ein Flöten und Geigen do ciclo Dichterliebe (Amor de Poeta) de Schumann.
III. BIBLIOGRAFIA
GARTENBERG, Egon: MAHLER, THE MAN AND HIS MUSIC. Londres: Panther, 1978
GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V.: HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL, Lisboa: Gradiva Publicações Ltda, 1994, 1ª edição, 759 p.
MANNIS, Guilherme & ZAMPRONHA, Edson: Inter-relações entre o ciclo "Des Knaben Wunderhorn" de Gustav Mahler e sua Terceira Sinfonia, trabalho apresentado no XV Congresso da ANPPOM - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gradução em Música, 2005, disponível na Internet em PDF.
13 comentários:
Ao ensejo da comemoração do Dia de Santo Antônio neste dia 13 de junho de 2021, data de sua morte, julguei ser propícia a publicação de matéria relativa à sua pregação da doutrina cristã aos peixes, já que ela não tinha encontrado guarida entre os homens.
Para tratar desse assunto, recorri a uma peça de GUSTAV MAHLER, identificada com o curioso título "Sermão aos Peixes de António de Pádua", publicada pela Schirmer, Inc. como canção "Wunderhorn", para piano e voz (barítono), carregada de humor e frescor, com enredo característico.
Também é examinada a adaptação sinfônica da mesma canção, que constitui o terceiro movimento da sua 2ª Sinfonia.
São igualmente apresentadas sugestões para que o leitor desfrute de um bom momento musical.
https://bragamusician.blogspot.com/2021/06/sermao-aos-peixes-de-antonio-de-padua.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Parabéns, gratidão.
Tudo de bom.
BELÍSSIMO!
ISSO NOS REMETE TAMBÉM AO PADRE VIEIRA.
ABS.
ROGÉRIO
Agradeço pelo “Sermão aos Peixes”, Francisco.
Louvo tua proficiência e tua constância no trabalho de cultura que te distingue.
Abraço
Anderson
Prezado: com satisfação lhe parabenizo por mais esta postagem, que assim como as outras leva a marca de sua competência inquestionável. Recordo-me agora de uma trova popular, expressão devocional singela, corrente em nossa amada "São João dos Queijos":
"Antônio é santo
é de coração!
Até os peixinhos
lhe dão atenção!"
Na Igreja de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno há um painel de pintura parietal que representa a pregação do grande taumaturgo aos peixes.
Parabéns!
Belíssimo.
Obrigada, Salomea
Prezados Prof. Bechelaine e Dra. Maria de Fátima.
Bom dia, boa semana.
Encaminho-lhes este maravilhoso texto do Dr. Francisco acerca de Santo António de Pádua.
Fraternal abraço.
Arnaldo
Caro amigo Francisco Braga,
Graça e paz!
Gratidão pela remessa da mensagem anexa.
Abraço,
Pe. Sílvio
Caro professor Braga;
Belíssima maneira de marcar o dia deste verdadeiro fenômeno de devoção que é Santo Antônio, trazendo a magnífica peça de Mahler.
Saudações!
Cupertino
Obrigado pela mensagem, meu amigo.
Boa tarde, Francisco. A princípio os peixes pararam encantados com o que nunca tinham ouvido. Desfeito o encanto, fizeram "ouvidos de mercador" ao Santinho. E a vida voltou ao que era antes. Como acontece
aos humanos !?...
Contudo, a singeleza de Antônio é-nos de muito bom grado.
Agradeço pelo envio desta deliciosa peça.
Santo Antônio na capelinha
de lírios, de manjericão.
Dê-nos a todos proteção
e, lá no céu uma estrelinha.
MARIA AUXILIADORA MUFFATO
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