Por Francisco José dos Santos Braga
I. INTRODUÇÃO
Em sua abordagem sobre as diversas metodologias de ensino de línguas estrangeiras através dos tempos, [CESTARO] analisa a metodologia tradicional ou clássica nos seguintes termos:
"Na Europa, durante a Idade Média, o latim possuía muito prestígio, sendo considerado a língua da igreja, dos negócios, das relações internacionais, das publicações filosóficas, literárias e científicas (Puren, 1988). (...)
No plano metodológico, vale salientar que é o modo de ensino do latim que prevalece durante toda a Idade Média e que o ensino das línguas vivas ou modernas vai se basear no modelo de ensino do latim. (...)
O latim era ensinado na língua dos alunos e as lições eram constituídas de frases isoladas, na língua materna, escolhidas em função do conteúdo gramatical a ser ensinado e memorizado pelos alunos. (...)
A partir do século XVIII, no entanto, os textos em língua estrangeira tornam-se objeto de estudo; os exercícios de versão/gramática passam a substituir a forma anterior de ensino que partia de frases isoladas tiradas da língua materna. É com base nesse modelo de ensino que o século XVIII assistirá à consagração do chamado “método gramática-tradução” mais comumente chamado “tradicional” ou “clássico”. (...)
A abordagem tradicional, também chamada de gramática-tradução, historicamente, a primeira e mais antiga metodologia servia para ensinar as línguas clássicas como grego e latim. É a concepção de ensino do latim; língua morta, considerada como disciplina mental, necessária à formação do espírito que vai servir de modelo ao ensino das línguas vivas (GERMAIN, 1993). Os objetivos desta metodologia que vigorou, exclusiva, até o início do século XX, era o de transmitir um conhecimento sobre a língua, permitindo o acesso a textos literários e a um domínio da gramática normativa. Propunha-se a tradução e a versão como base de compreensão da língua em estudo. O dicionário e o livro de gramática eram, portanto, instrumentos úteis de trabalho.
A aprendizagem da língua estrangeira era vista como uma atividade intelectual em que o aprendiz deveria aprender e memorizar as regras e os exemplos, com o propósito de dominar a morfologia e a sintaxe (ibid.). Os alunos recebiam e elaboravam listas exaustivas de vocabulário. As atividades propostas tratavam de exercícios de aplicação das regras de gramática, ditados, tradução e versão. A relação professor/aluno era vertical, ou seja, ele representava a autoridade no grupo/classe, pois detinha o saber. Pouca iniciativa era atribuída ao aluno; a interação professor/aluno era praticamente inexistente. O controle da aprendizagem era, geralmente, rígido e não era permitido errar. (...)
Até aproximadamente a década de 40, o principal objetivo da aprendizagem da língua estrangeira era o ensino do vocabulário. A ênfase era dada à palavra escrita, enquanto que as habilidades de audição e de fala eram praticamente ignoradas (NORRIS apud BOHN e VANDRESEN, 1988)." (grifos nossos)
[MARTINS, 2016: 277-8], tomando uma perspectiva muito particular do ensino do Latim na França do século XVIII, esclarece:
"Na educação do século XVIII, a história e a cultura antiga exercem o papel de distinção social para a identidade da elite. Assim, os modelos antigos eram elevados pelos padres católicos à função de representação de valores e de prática de pensamento, por meio do aprendizado das línguas clássicas e da retórica. Com efeito, a educação diferenciava não só as elites dos pobres, mas católicos de protestantes, produzindo um ideal de educação baseado na virtude antiga. Além dos vários elementos históricos, essa educação significava, sobretudo duas (coisas), uma oposição ao protestantismo e uma forma de superioridade do humanismo frente ao cientificismo. Os ecos destes valores educacionais são observados, tanto nos educadores, quanto nos filósofos iluministas, assim, criando, uma cultura baseada no encontro com o clássico. (...)
No entanto, como afirma [GRELL, 1995, 12], das seis horas diárias de curso, apenas uma era dedicada ao grego, todas as outras eram dedicadas ao latim. Isso parece ser um indício da supremacia do humanismo representado pelo latim sobre a ciência, do qual a língua grega era apenas representante. Sobretudo, o objetivo era claro: fazer falar, escrever, compor e pensar em latim. Também, associava-se a (língua latina) ao fator da tradução, pensar o latim junto ao francês, fenômeno que ocorria pelo menos até 1785, quando a língua francesa substitui o latim como língua de instrução (GRELL, 1995, p. 12). Além de seu caráter tradicional, a língua latina derivada do ensino de Filosofia, de História e de Retórica e da introdução ao grego antigo permitira reconsiderar a própria língua francesa e conceder um novo reconhecimento estilístico. Isso se deu porque os códigos de gramática que regem as sintaxes e os léxicos do latim e do grego são semelhantes, por isso a sua apropriação tornava mais compreensível a própria língua francesa. Segue-se que o estudo das línguas antigas, embora enfrentando um certo declínio no século XVIII, promovera as práticas escritas em francês. (...)
Assim, o educador do século XVIII estabeleceu uma aproximação entre o cultivo da virtude e do conhecimento doado pelas antigas civilizações. Para Rollin, o antigo tem elementos exemplares para trazer do passado um outro modo de viver o presente. Defendeu esta posição na conclusão do discurso preliminar em “De la manière d'enseigner et d'étudier les belles-lettres”, ou simplesmente, “Traité des études”. Para ele, o aluno encontraria nos textos antigos todas as virtudes morais (ROLLIN, 1810, p. 48), porque
[...] o propósito dos mestres na longa carreira dos estudos é acostumar seus discípulos ao trabalho sério [...]. Eles treinam a mente e o coração, para inspirá-los com os princípios de honra e probidade, e tomar os bons hábitos (ROLLIN, 1736, p. 349)." (...)
II. TEXTOS DE BOSSUET (1627-1704) E CHARLES ROLLIN (1661-1741), ADAPTADOS E VERTIDOS PARA O LATIM POR ANSELME MOUCHARD (1855-1928) E TRADUZIDOS PELO AUTOR
Contracapa do mesmo livro |
1) Ad Christum infantem
Felices qui te, infans amabilis. e cunabulis brachia explicantem viderunt manibusque porrectis sanctæ matri blandientem venerandoque illi seni qui sibi te adoptaverat, aut potius cui te ipse dederas filium, et, illo fulciente, ingredi incipientem! Felices qui te linguam solventem atque Dei patris laudes incerta voce dicentem audierunt! Te ut deum, infans carissime, veneror ætate in dies proficientem, sive nutricem vocabus clamore puerili, sive ejus in gremio quiescebas. Te silentem colo; sed jam tempus te loqui incipere. Omnia in te gratia redundabant; si solummodo cibum poscis, te ea necessitate constrictum veneror quam tibi ipse fecisti, nostri causa. Quæ in te est divina gratia, eam ex omnibus quæ agis percipere volo.
Quid multa? Te oro ut ingenuitate atque innocentia infantem me efficias.
Obs.: texto XII extraído de "Thèmes Latins" por Anselme Mouchard, 1907, p. 23 e 25.
Trad.: A Jesus Cristo criança
Criança adorável! Bem-aventurados aqueles que te viram do berço abrir os braços, estender as mãozinhas, acariciar a tua santa Mãe e o santo velhinho que te adotou, ou melhor, a quem te entregaste como filho; dá teus primeiros passos com ele; solta sua língua e gagueja os louvores de Deus teu Pai! Eu te adoro, querida criança, em todo o progresso de tua idade, seja quando por teus gritos infantis chamavas aquela que te alimentava, ou quando descansavas em seus braços. Eu amo o teu silêncio; mas começa, é hora de fazer tua voz ser ouvida. Tudo em ti estava cheio de graça; e se tivesses pedido apenas tua comida, adoro esta necessidade em que tu te colocas por nós. A graça de Deus está dentro de ti, e quero recolhê-la de todas as tuas ações.
O que mais posso dizer? Peço-te que faças de mim criança na inocência e na simplicidade.
Bossuet. Elevações sobre os mistérios.
2) De Græcia et Asia
Asiaticas gentes jam inde priscis ab ætatibus oderunt Græci illudque odium eis quasi natura insitum erat. Cum aliis de causis, tum propterea Homeri carmina placebant quod Asia victa et superata a Græcia canebatur. Ab Asia stabat Venus, scilicet voluptas et mollitia; a Græcia Juno, scilicet gravitas atque conjugii fides, Mercurius cum eloquentia, Jupiter cum prudentia civili. Ab Asia Mars, violentus et immitis, scilicet bellum ferociter gestum; a Græcia Pallas, scilicet scientia militaris et ratione ducta virtus. Quo quidem ex tempore semper Græci arbitrati erant se intelligentiam ac veram fortitudinem esse sortitos. Hoc igitur minime ferre poterant ut Asiatici homines sibi jugum imponere vellent; quod si subissent, credidissent se voluptati virtutem subigere, corpori animum, et veram fortitudinem insanis illis viribus quae multitudine tantum constabant.
Obs.: texto XVIII extraído de "Thèmes Latins" por Anselme Mouchard, 1907, p. 35.
Trad.: Sobre a Grécia e a Ásia
Os Gregos odiavam os Asiáticos desde os primeiros tempos e aquele ódio era como inato para eles. Então, por isso, uma das coisas que agradou na poesia de Homero é que ele cantou as vitórias e vantagens da Grécia sobre a Ásia. Do lado da Ásia estava Vênus, isto é, prazer e indolência; do lado da Grécia estava Juno, isto é, gravidade, com amor conjugal, Mercúrio com eloquência, Júpiter com sabedoria política. Do lado da Ásia estava Marte violento e cruel, isto é, a guerra travada com fúria; do lado da Grécia estava Pallas, ou seja, a arte militar e a coragem conduzida pelo espírito. A Grécia, desde aquela época, sempre acreditou que inteligência e verdadeira coragem eram seu atributo natural. Ela não podia permitir que a Ásia pensasse em subjugá-la e, caso tivesse se submetido a esse jugo, teria feito crer que sujeitava a virtude à volúpia, a mente ao corpo e a verdadeira coragem àquelas forças insanas que consistiam apenas de uma multidão.
Bossuet. Discurso sobre a história universal, III, 5.
3) De vi disciplinæ
Olim Lycurgus duo catulos arreptos admodum diversa disciplina educandos curavit, ita ut alter edax atque fur efficeretur, alter feræ vestigia sequendi venandique peritus. Lacedæmoniis quadam die congregatis : «Nihil», inquit, «æque ac præcepta quibus imbuuntur homines ad virtutem pariendam conferre manifesto argumento confestim confirmaturus sum.» Tum duo catulos adduci jussit atque immitti, posita coram scutella intrita plena atque lepore vivo: hic leporem invasit, scutellam ille. Cum autem Lacedæmonii nondum intellegerent quo rem deducere Lycurgus vellet: «Hi canes», inquit, «communi genere orti sunt; sed quia diversa disciplina sunt educati, alter edax, venator alter evasit.»
Obs.: texto XXXVII extraído de "Thèmes Latins" por Anselme Mouchard, 1907, p. 79.
Trad.: Da eficácia da educação
Um dia Licurgo pegou dois cães jovens e os criou de maneira bem diferente. Ele fez um, guloso e ladrão, o outro, hábil em seguir um rastro e em caçar. Então, um dia, vendo os Lacedemônios reunidos: "Nada contribui tanto para gerar a virtude", disse-lhes, "do que os ensinamentos que recebemos: em breve lhes darei uma prova manifesta disso".
Então ele trouxe os dois cães e os soltou, depois de colocar uma tigela de sopa e uma lebre viva na frente deles. Um correu para a lebre, o outro se jogou na tigela. Os Lacedemônios ainda não entendiam aonde Licurgo queria chegar: “Esses dois cães”, disse-lhes, “têm uma origem comum; mas, como receberam uma educação diferente, um tornou-se ganancioso, o outro caçador.”
Charles Rollin. História Antiga.
III. AGRADECIMENTO
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo produzido por mim.
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESTARO, Selma Alas Martins. O Ensino de Língua Estrangeira: História e Metodologia.
Link: http://www.hottopos.com/videtur6/selma.htm 👈
GRELL, Chantal. LE DIX-HUITIÈME SIÈCLE ET L'ANTIQUITÉ EN FRANCE 1680-1789. V. I. Oxford: Voltaire Foundation, 1995.
MARTINS, Adilton Luís. Educação e Antiguidade no século XVIII francês, Dourados-MS: Fronteiras: Revista de História, vol. 18, núm. 31, jan/jun, 2016, pp. 276-295. Trecho possivelmente proveniente de sua tese de doutorado em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com estágio pós- doutoral em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
MOUCHARD, Anselme Marie Eugène. THÈMES LATINS: Textes et Traductions, para 3ª série (5ª e 6ª classes), Paris: Librairie Vve Ch. Poussielgue, 1907, 159 p.
6 comentários:
Prezad@,
Convido-@ a ler a 6ª edição da série RECUPERE SEU LATIM, um projeto que foi interrompido pelo Blog do Braga devido à urgência de outras matérias, mas que agora retoma sua programação com muita firmeza e determinação.
Na série de artigos com esse título, sempre tenho feito um retrospecto de assuntos e episódios curiosos que costumávamos encontrar em manuais de ensino de Latim para uso de ginasianos e alunos do curso clássico até a década de 1960, enquanto esteve vigente no Brasil esse curso secundário (pari passu com o científico).
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/05/recupere-seu-latim-parte-6-lingua.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Muito interessante, parabéns!
Obrigado meu amigo Francisco Braga.
Bom fim de semana,
Abraço.
Diamantino
Que riqueza essas lembranças sobre o estudo do latim, sobre o humanismo, a filosofia e o esforço civilizacional. Um banho para a alma.
Comentei lá no blog, caro Francisco.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Caro amigo Braga
Li, com grande interesse, sua postagem sobre o LATIM, pelo que lhe felicito por mais estas preciosas informações, dada a sua importância e influência na origem de várias “línguas” europeias, chamadas de “tronco latino”, como: português, espanhol, castelhano, francês, italiano, o romeno, o galego e o catalão.
Como sabe o ilustre amigo Braga, de língua morta o latim não tem nada, pois está viva em nosso dia-a-dia.
Quem nunca ouviu falar em habeas corpus? em data venia?, em renda per capita? ou então post scriptum? O Latim está, também, na fecundação in vitro e no fac símile. São expressões como: a priori, alter ego, causa mortis, ex libris, exempli gratia, homo sapiens, in continenti, in loco, ipsis litteris, lapsus linguae, modus vivendi, mutatis mutandis, pari passu, persona non grata, ad hoc, sine qua non, scilicet, sic, status quo, carpe diem, sui generis, ab imo pectore, tabula rasa, vade mecum, vade retro, ou até no abominável Aedes aegypti, só para citar as expressões mais comuns.
Quem nunca mandou um curriculum vitae?
Amigo Braga, o Latim está também, e de forma apropriada, em seu Blog: Verba volant. Scripta manent!
Infindáveis seriam outros exemplos!
Eu e minha esposa Elizabeth, assim como o amigo Maestro Braga, estudamos latim no antigo Ginásio e ela também no antigo Curso Clássico. Mais tarde, também nos deparamos com o latim, ao cursarmos a Faculdade de Direito.
Permita-me, ainda, mais uma particularidade: uma lembrança de minha infância. Quando menino, e já faz algum (bastante) tempo, fui Coroinha nas missas da Igreja Catedral de Valença RJ, quando a Santa Missa ainda era rezada em Latim: após as invocações do sacerdote, todos nós respondíamos em latim, mesmo na época sem sabermos o significado daquelas palavras.
Lembro-me até hoje do sacramental antigo, como: Dominus vobiscum, et cum spiritu tuo... ou então a oração do Confiteor; Confiteor Deo omnipotenti et vobis, fratres, quia peccavi nimis cogitatione, verbo, opere et omissione; mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa... E assim por diante...
Foi bom recordar ...
Receba o meu abraço fraterno e o de Beth.
Mario.
Postar um comentário