segunda-feira, 30 de maio de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 8: CARTA DE PLÍNIO, O JOVEM, NARRA AVENTURAS DE UM MENINO COM UM GOLFINHO EM HIPONA


Por Francisco José dos Santos Braga


Cavaleiro-golfinho gravado no reverso da moeda, datada de 340-335 a.C., cunhada na cidade grega de Taras (atual Tarento, na Itália). No anverso, um cavaleiro comum com seus cavalos; no reverso, um menino cavalga de lado um golfinho, enquanto se vira para pegar um peixe com seu tridente. Na parte inferior as ondas completam a cena. Crédito: Jafet Numismática.


I. ALGUNS DADOS BIOGRÁFICOS DE PLÍNIO, O JOVEM

  
Caio Plínio Cecílio Segundo (em latim: Caius Plinius Caecilius Secundus) ✰ Como, 61 ou 62 d.C. — ✞ Bitínia?, 114 d.C.), também conhecido como Plínio, o Jovem, foi orador insigne, jurista, político e governador imperial na Bitínia (111-112 d.C.). 
 
Sobrinho-neto de Plínio, o Velho, que o adoptou, estava com ele no dia da grande erupção do Vesúvio (79 d.C.), mas não o acompanhou na viagem de barco até o vulcão em erupção que se revelaria mortal. Em carta a Tácito, sua narrativa sobre esse dia, no qual Pompeia se afogou em cinzas, é o principal documento escrito que versa a respeito de como sucedeu tal erupção. Os historiadores modernos nunca teriam aprendido alguns detalhes sobre a erupção do Vesúvio, se não fosse pela descrição dada por Plínio, o Jovem, a Tácito.
 
O seu legado principal são as suas litterae curatius scriptae, 247 missivas escritas a amigos, no estilo da época entre os anos de 97 e 109. Nelas encontramos das melhores descrições da vida quotidiana, política, etc. da Roma Imperial. 
 
Suas cartas estão agrupadas em nove livros, acrescidos de um décimo volume, que contém as duas célebres cartas (Plin. Ep. X, 95, 96) que abordam o tema do cristianismo, um dos primeiros documentos não neotestamentários sobre a igreja primitiva. As cartas que compõem o Livro X foram escritas durante o seu consulado na Bitínia: são 122 ao todo, trocadas com o imperador Trajano, onde é visível a sua grande proximidade e confiança mútuas. 
 
Essas cartas, preservadas até os dias de hoje, são consideradas um dos mais valiosos documentos para entender a organização e a vida quotidiana do império romano da época. 
 
 
II. Carta de Plínio, o Jovem, ao poeta romano Canínio Rufo (Livro IX, 33), narrando peripécias que envolvem um golfinho e um menino, natural de Hipona. 
 
Busto de Canínio Rufo, a única imagem existente do poeta latino, que aparece na fachada superior do Liceo Volta em Como

 
Plinius Caninio suo s.
Incidi in materiam veram sed simillimam fictæ, dignamque isto lætissimo altissimo planeque poetico ingenio; incidi autem, dum super cenam varia miracula hinc inde referuntur. Magna auctori fides: tametsi quid poetæ cum fide? Is tamen auctor, cui bene vel historiam scripturus credidisses. 
Est in Africa Hipponensis colonia mari proxima. Adiacet navigabile stagnum; ex hoc in modum fluminis æstuarium emergit, quod vice alterna, prout æstus aut repressit aut impulit, nunc infertur mari, nunc redditur stagno. Omnis hic ætas piscandi navigandi atque etiam natandi studio tenetur, maxime pueri, quos otium lususque sollicitat. His gloria et virtus altissime provehi: victor ille, qui longissime ut litus ita simul natantes reliquit. Hoc certamine puer quidam audentior ceteris in ulteriora tendebat. Delphinus occurrit, et nunc præcedere puerum nunc sequi nunc circumire, postremo subire deponere iterum subire, trepidantemque perferre primum in altum, mox flectit ad litus, redditque terræ et æqualibus. Serpit per coloniam fama; concurrere omnes, ipsum puerum tamquam miraculum aspicere, interrogare audire narrare. Postero die obsident litus, prospectant mare et si quid est mari simile. Natant pueri, inter hos ille, sed cautius. Delphinus rursus ad tempus, rursus ad puerum. Fugit ille cum ceteris. Delphinus, quasi invitet et revocet, exsilit mergitur, variosque orbes implicat expeditque. Hoc altero die, hoc tertio, hoc pluribus, donec homines innutritos mari subiret timendi pudor. Accedunt et alludunt et appellant, tangunt etiam pertrectantque præbentem. Crescit audacia experimento. Maxime puer, qui primus expertus est, adnatat nanti, insilit tergo, fertur referturque, agnosci se amari putat, amat ipse; neuter timet, neuter timetur; huius fiducia, mansuetudo illius augetur. Nec non alii pueri dextra lævaque simul eunt hortantes monentesque. Ibat una — id quoque mirum — delphinus alius, tantum spectator et comes. Nihil enim simile aut faciebat aut patiebatur, sed alterum illum ducebat reducebat, ut puerum ceteri pueri. Incredibile, tam verum tamen quam priora, delphinum gestatorem collusoremque puerorum in terram quoque extrahi solitum, harenisque siccatum, ubi incaluisset in mare revolvi. Constat Octavium Avitum, legatum proconsulis, in litus educto religione prava superfudisse unguentum, cuius illum novitatem odoremque in altum refugisse, nec nisi post multos dies visum languidum et mæstum, mox redditis viribus priorem lasciviam et solita ministeria repetisse. Confluebant omnes ad spectaculum magistratus, quorum adventu et mora modica res publica novis sumptibus atterebatur. Postremo locus ipse quietem suam secretumque perdebat: placuit occulte interfici, ad quod coibatur. Hæc tu qua miseratione, qua copia deflebis ornabis attolles! Quamquam non est opus affingas aliquid aut astruas; sufficit ne ea quæ sunt vera minuantur. Vale. 
 
 
 III. MINHA TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS 
 
 
Plínio a seu amigo Canínio ¹, saúde!
Encontrei um assunto cujo fato é verdadeiro, embora tenha todo o ar de ficção: merece ser tratado por um engenho tão fértil, tão elevado, tão poético quanto o teu. Topei com ele durante um jantar, onde cada um contava em desafio o seu prodígio. 
 
O autor ² é digno de fé; e, afinal, que importa a verdade para um poeta? No entanto, ele é um autor, no qual tu não deixarias de acreditar, se estivesses escrevendo História.
 
Perto da colônia de Hipona ³, na África, à beira-mar, vemos uma lagoa navegável, donde sai um canal que, como um rio, adentra o mar ou retorna à própria lagoa, conforme o fluxo ou o refluxo. 
 
Toda idade vem ali desfrutar do prazer de pescar, velejar, banhar-se, especialmente as crianças, cuja inclinação as leva  à diversão e ao ócio. Elas colocam sua glória e sua coragem em avançar o mais longe possível da costa: quem vai mais longe dela, e que deixa para trás todos as outras, é o vencedor. 
 
Nesse tipo de combate, um menino mais ousado que seus companheiros se afastou tanto que se apresenta um golfinho,  que ora o precede, ora o segue , ora gira em volta dele. Enfim, carrega o menino sobre seu dorso, depois o joga na água; em seguida, retoma-o  e arrasta-o todo trêmulo ao mar aberto; mas logo depois, ele retorna à terra e o devolve à costa e a seus companheiros. 
 
O boato se espalha pela colônia. Multidões acorrem: cada um vê nessa criança um prodígio. Ninguém se cansa de interrogá-la, de ouvi-la contar sua história. No dia seguinte, todo o povo cerca a costa. Todos os olhos estão fixos no mar, ou no que se assemelha a ele. As crianças se põem a nadar, e, entre elas, aquele (menino) de que falo, mas com mais cautela.
 
O golfinho volta no mesmo horário e de novo com o mesmo menino. Ele foge com os outros. 
 
O golfinho, como se quisesse chamá-lo de volta e induzi-lo, salta, mergulha e faz uma centena de giros diferentes. A mesma cena no dia seguinte, ainda no outro dia, e em vários dias seguidos, até que uns homens, criados no mar, corassem de vergonha. 
 
Eles aproximam-se do golfinho, chamam-no pelo nome , brincam com ele, tocam-no e também apalpam aquele que se deixa afagar. Este teste os encoraja: principalmente (encoraja) o menino que fez a primeira experiência de nadar junto ao golfinho flutuante, e salta sobre o seu lombo, é carregado e trazido de volta: na opinião dele, apesar de reconhecer-se como sendo amado, ele o ama por sua vez: nenhum dos dois inspira medo: a confiança de um aumenta com a docilidade do outro. 
 
Os outros meninos até  o acompanham nadando à esquerda e à direita e o animam com seus gritos e apupos. 
 
Junto com nosso golfinho ia outro (e isso é também admirável), seu parceiro e espectador. Este não fazia nem sofria nada semelhante, mas conduzia e recolhia aquele outro, como as outras crianças fazem com o menino. Será difícil de acreditar (e, no entanto, isso não é menos verdadeiro do que os fatos precedentes), o golfinho, que brincava com essa criança e a carregava, tinha o costume de vir à costa; depois de se secar na areia, assim que começava a sentir o calor, jogava-se de volta ao mar. 
 
É certo que Otávio Avito, general do pró-cônsul, tendo sido impelido à praia por uma vã superstição , derramou um unguento sobre o golfinho, cuja novidade e odor o fizeram retirar-se para o mar aberto. Vários dias se passaram sem que ele fosse visto. Por fim voltou, a princípio lânguido e triste: logo depois, com suas forças recuperadas, retomou suas brincadeiras e seus giros costumeiros. 
 
Todos os magistrados dos lugares vizinhos apressavam-se a presenciar o espetáculo. A sua chegada e a sua permanência comprometeram esta cidade, bastante pobre, a novas despesas, que acabaram por esgotá-la. Finalmente, ela perdeu a doçura da tranquilidade e do isolamento. 
 
Portanto, acharam por bem matar secretamente o objeto da admiração geral. 
 
Que compaixão sua morte despertará em teus versos! Com que força, com que graça embelezarás esta história! Embora seja necessário que não inventes nem acrescentes algo; basta que não tires os fatos que são verdadeiros. Adeus! 
 
O menino e o golfinho

 
 
IV. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  Caninius Rufus, compatriota de Plínio (natural de Como), amava a poesia, com a qual celebrou as campanhas de Trajano contra a Dácia. Vide Livros I, 3 e VIII, 4. 
²  O autor é Plínio, o Velho, tio do missivista, que conta a mesma história (Historia Naturalis, IX, 7).  
³ A colônia de Hipona. Havia na África duas cidades com este nome, Hippo regius, e Hippo Diarrhytus. Trata-se aqui desta última que devia seu sobrenome às águas que a irrigam. Ainda hoje se vêem as ruínas perto do reino de Túnis.  
Outras edições trazem: et nunc praecedere puerum, nunc sequi
  Plínio, o Jovem chama assim a lagoa e o canal que a anexava ao mar. 
  Plínio, o Velho (IX, 7) narra que os golfinhos respondem com grande prazer, ao nomeá-los  Simão: "Rostrum delphinis simum: qua de causa nomen Simonis omnes miro modo agnoscunt maluntque ita appellari." Para admitir o fato, era preciso supor que os peixes tinham um perfeito conhecimento de suas próprias formas e da língua latina. 
O general do pró-cônsul acreditava ver uma entidade oculta sob as formas do golfinho. Teria ele submetido o golfinho a um ritual de exorcismo?
Para os gregos antigos, os golfinhos eram considerados um guia marítimo, ajudando os navegantes perdidos a encontrarem a rota certa. Eram animais ligados a Apolo (deus da ordem e da música), pois em um de seus mitos, Apolo teria se transformado em golfinho para guiar navegadores até seu templo sagrado! 


V. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo produzido por mim.

 
VI. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

 

BRAGA, F. J. S.: DESTRUIÇÃO DE POMPÉIA PELO VULCÃO VESÚVIO > > > Parte 1, in Blog do Braga, post de 25/01/2010. 
 
––––––––––––––––––––– EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA: “UMA VIAGEM AO MUNDO ANTIGO – EGITO E POMPEIA", in Blog do Braga, post de 28/04/2019. 

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de apresentar-lhe minha tradução da Carta nº 33 do Livro IX d de PLÍNIO, O JOVEM. Como visto, a carta em questão pede ao poeta CANÍNIO RUFO, que verta para a forma de poema um caso que ouviu durante um jantar em que vários contadores de história contavam um prodígio de seu conhecimento. Entre os comensais presentes, ali se achavam ele próprio e seu tio-avô, PLÍNIO, O VELHO, naturalista, escritor, historiador, gramático, administrador e oficial romano. Seu sobrinho não nos informa se seu tio ganhou o desafio, mas parece que foi do agrado geral.
Sobre Plínio, o Velho, devo ainda mencionar que, de sua vasta obra, sobreviveu apenas sua História Natural, em 37 volumes, onde compilou o conhecimento científico até o começo do cristianismo, com citação sobre 35.000 fatos úteis. Nesta obra citou mais de dois mil livros de 146 autores romanos e 327 estrangeiros.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/05/recupere-seu-latim-parte-8-carta-de.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Muito obrigado Francisco Braga.
Abraço.
Diamantino

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito bom
Abs

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Olá, Francisco e Rute! Que quantidade extraordinária de obras literárias de um escritor!!! Grande abraço do irmão fr. Joel

José Carlos Gentili (pioneiro de Brasília, advogado, jornalista, empresário, historiador, romancista, conferencista e poeta; Presidente de Honra Perpétuo da Academia de Letras de Brasília; integra a Academia das Ciências de Lisboa, como correspondente brasileiro; é Membro Patrono da Associação Internacional dos Colóquios de Lusofonia, com sede em São Miguel, nos Açores; e faz parte do Conselho-Geral do Museu da Língua Portuguesa de Bragança) disse...

Meus agradecimentos, caro ilustre Braga.
Daqui da Itália, envio-lhe meu fraternal abraço.
Gentili

Eudóxia de Barros (insigne pianista, concertista e membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Sempre grata !!!
Muito bom sempre !
Abraço,
Eudóxia.

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, diplomado em Direito,Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. disse...

Caro amigo Braga
Que bom termos a oportunidade de conhecer essa estória tão interessante, de uma época tão longeva.
Agradecemos pelo envio.
Abraços, do amigos Mario e Beth.