Por Francisco José dos Santos Braga
I. ALGUNS DADOS BIOGRÁFICOS DE CIRO II, O GRANDE
[ARAÚJO, 2019, 2-3] inicia seu artigo sobre o império persa e o pensamento político clássico nos seguintes termos:
“Ao celebrar, em outubro de 1971, os dois mil e quinhentos anos do Império Persa, Mohammad Reza Pahlavi, então xá do Irã, regozijava-se na ignorância dos anos vindouros. Envolvendo o país em cerimônia, com pompa e circunstância, endereçou emocionado discurso a Ciro, o Grande, após colocar-se de pé diante da tumba do fundador (Curtis, 2005, p. 257). Em Pasárgada, o monarca deu início às festividades. Já em Persépolis, escolhida para sediar uma parada militar comemorativa, o rei instalou um jardim de rosas e ciprestes à moda francesa. Banqueteando juntos, os convidados ilustres, chefes de Estado, chefes de governo e suas comitivas, deliciavam-se ao sabor do caviar iraniano e, de forma geral, aproveitavam uma estadia luxuosa. Nas palavras de Orson Welles, aquele não era um acontecimento qualquer, mas “uma celebração de vinte e cinco séculos” (Kadivar, 2002). O evento deu ensejo a diversas leituras ideológicas e tornou-se instrumento e combustível de propaganda política. (...)”
Ciro II, o Grande (600-530 a.C.), mencionado no trecho acima e homenageado em 1971 pelo xá do Irã, rei da Pérsia, foi uma figura das mais celebradas na Antiguidade e mencionada na Bíblia como um enviado de Deus para libertar o povo hebreu do degredo e na Literatura Clássica greco-latina. Heródoto (484-425 a.C.) foi um dos primeiros a registrar historicamente esse rei; Xenofonte (430-355 a.C.) tornou-o imortal na sua Ciropédia (ou Educação de Ciro), uma biografia onde o exalta como exemplo de liderança.
Em certa ocasião, o guru da Administração Peter Drucker chamou a Ciropédia de primeiro e melhor manual de Administração jamais escrito. Por oportuno, sugiro que, para seus insights, diretores e gerentes de empresas primeiramente voltem seu olhar para a literatura clássica; talvez, desta forma, o mundo se veja livre de um monte de livros de Administração e, quiçá, de administradores pouco capazes.
Na sua Ciropédia, Xenofonte "narra" o que Ciro supostamente teria dito no seu leito de morte a seus filhos. Marco Túlio Cícero, no final de seu tratado Cato Maior De Senectute (Catão, o Antigo, sobre a Velhice), fez uma tradução para o latim de parte da fala do rei persa, em que trata da imortalidade da alma.
A presente postagem de "Recupere seu Latim" submete à apreciação do leitor a minha tradução portuguesa para a versão latina de Cícero, autor latino que incluiu, quase no fim de seu tratado, um trecho do texto grego de Xenofonte.
Há ainda o seguinte ponto a observar: resumidamente, Cícero, a exemplo de Platão, preferiu a forma do diálogo à do ensino, em quase tudo o que escreveu sobre eloquência e filosofia. Mas existem várias maneiras de escrever um diálogo.
Assim, no tratado sob o título CATÃO, O VELHO, SOBRE A VELHICE, Cícero, dirigindo-se a seu melhor amigo Tito Pompônio Ático, relata-lhe um diálogo que supõe ter ocorrido entre Catão ¹, Cipião ² e Lélio ³. Esses três interlocutores falam cada um por sua vez, e o que dizem é precedido de seu nome, como nos diálogos de Luciano, como nas tragédias e comédias. Esse método é certamente o mais conveniente: dispensa repetir as fórmulas usuais, "disse", "continuou", "respondeu", cada vez que um interlocutor particular toma a palavra.
Em suma, no tratado sobre a Velhice, Cícero põe em cena seus atores, deixa-os agir e falar, e se apaga inteiramente.
[BARAZ, 2012, 173-4] faz uma ponderação interessante a respeito do tratado de Cícero, que acho importante resumir aqui. Ela entende que Cícero abre o prefácio ao tratado De Senectute com uma deferência ao seu homenageado, Tito Pompônio Ático (109-32 a.C.), seu melhor amigo, desde sua juventude até sua morte. Até aqui não há nada de especial. O que constitui novidade é que Cícero utiliza uma série de citações modificadas dos Annales X de Quinto Ênio (239-ca. 169 a.C.), ou seja, os fragmentos de número 195, 196 e 197. De Senectute é o único tratado de Cícero que começa com uma citação, uma prática quase só reservada para o menos formal gênero de cartas. A citação permite entrever que Cícero assim mostra que vai explorar uma importante fonte de validação, que é o passado, como atestam aqui as utilizações feitas por ele de citação dos Anais de Quinto Ênio e de trecho da Ciropédia de Xenofonte. Que melhor jeito de começar uma obra literária do que estabelecendo-se como um tributo à única mais imponente e mais romana obra até então, os Anais de Quinto Ênio? A familiaridade íntima do autor com aquele texto arcaico atesta a linhagem da obra atual: De Senectute provém do que é mais venerável na literatura romana, e Cícero reivindica um lugar para si mesmo naquela tradição. O passado particular que Cícero escolhe para invocar também não é acidental: as realizações da nobreza romana celebradas por Ênio devem ter sensibilizado a audiência aristocrática de Cícero, que na época vive com vergonha sob uma ditadura altamente irregular.
II. "CATÃO, O ANTIGO, SOBRE A VELHICE", por Marco Túlio CÍCERO
XXII. 79 Apud Xenophontem autem moriens Cyrus maior haec dicit: ‘Nolite arbitrari, O mihi carissimi filii, me, cum a vobis discessero, nusquam aut nullum fore. Nec enim, dum eram vobiscum, animum meum videbatis, sed eum esse in hoc corpore ex eis rebus quas gerebam intellegebatis. Eundem igitur esse creditote, etiamsi nullum videbitis.
80 Nec vero clarorum virorum post mortem honores permanerent, si nihil eorum ipsorum animi efficerent, quo diutius memoriam sui teneremus. Mihi quidem numquam persuaderi potuit animos, dum in corporibus essent mortalibus, vivere, cum excessissent ex eis, emori, nec vero tum animum esse insipientem, cum ex insipienti corpore evasisset, sed cum omni admixtione corporis liberatus purus et integer esse coepisset, tum esse sapientem. Atque etiam cum hominis natura morte dissolvitur, ceterarum rerum perspicuum est quo quaeque discedat; abeunt enim illuc omnia, unde orta sunt, animus autem solus nec cum adest nec cum discedit, apparet. Iam vero videtis nihil esse morti tam simile quam somnum.
81 Atqui dormientium animi maxime declarant divinitatem suam; multa enim, cum remissi et liberi sunt, futura prospiciunt. Ex quo intellegitur quales futuri sint, cum se plane corporis vinculis relaxaverint. Qua re, si haec ita sunt, sic me colitote,’ inquit, ‘ut deum; sin una est interiturus animus cum corpore, vos tamen, deos verentes, qui hanc omnem pulchritudinem tuentur et regunt, memoriam nostri pie inviolateque servabitis.’
III. MINHA TRADUÇÃO DO LATIM PARA O PORTUGUÊS
XXII. 79 Apud Xenofonte ⁴, Ciro, o Grande, no instante em que morria, disse estas palavras: “Não creiam, ó meus caríssimos filhos, que, após eu ter deixado vocês, não estarei em nenhum lugar nem existirei mais. Mesmo quando eu estava em sua companhia, vocês não viam minha alma, mas vocês sabiam de sua presença no meu corpo pelos atos que eu praticava. Então, acreditem que continue sendo a mesma, mesmo que vocês não a vejam.
80 Os grandes homens não seriam honrados, se suas almas não atuassem em nós para que sua lembrança permanecesse em nós por mais tempo ⁵. Para mim, nunca pude persuadir-me de que as almas vivas enquanto estão ligadas a corpos mortais deixem de existir quando elas os abandonem; nem tampouco posso crer que a alma perca toda inteligência quando tenha deixado um corpo não inteligente; prefiro crer que no momento em que, liberta de toda união com o corpo, ela fique pura e íntegra em sua essência e então passe a ser sábia. E também, quando o organismo humano é dissolvido pela morte, vê-se claramente aonde vai cada um dos outros elementos constituintes: pois todos voltam ao lugar donde provieram ⁶; porém, só a alma é invisível, tanto em vida, quanto na morte. Vocês podem constatar também que nada se assemelha tanto à morte quanto o sono.
81 Ora, as almas dos que dormem manifestam mais claramente sua natureza divina: pois, descontraídas e livres (dos grilhões do corpo), elas prevêem muitas coisas futuras ⁷. Daí se compreende quais sejam os fatos futuros quando se soltarem inteiramente dos vínculos do corpo. Por isso, se for assim, honrem-me então como um deus; se, pelo contrário, minha alma tiver que morrer juntamente com meu corpo, vocês entretanto por temor dos deuses que vêem e governam esta beleza universal, guardarão de nós uma memória com afeto e respeito. Tais foram as palavras de Ciro às portas da morte (...)”
IV. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), conhecido por Catão, o Velho, ou CATÃO, O CENSOR. Em Roma, o censor tinha o dever não só de fazer o censo do povo, mas também vigiava os costumes, tarefa que Catão cumpriu com severidade incomum, sobretudo em face da influência helênica, que, aos seus olhos, desvirtuava a sociedade romana. Ele mesmo levou uma vida austera com conduta irrepreensível. Era opositor dos Cipiões, tradicionalista e a favor do costume nacional contra as inovações helenizantes, que para ele corrompiam a vida política e moral dos romanos. Cícero, usou o atributo Velho para Catão para distinguir de Catão mais jovem (conhecido por “Uticense”).
Catão, o Censor, passou à história de Roma como o defensor mais ferrenho da latinidade mais genuína. Catão também foi orador notável.
Segundo várias fontes antigas, depois de ter participado de uma embaixada a Cartago em 157 a.C. e visto a prosperidade dos arqui-inimigos dos romanos, acabava todas as suas orações no Senado — não importava de que tratassem — dizendo algo como “Cētĕrum cēnsĕō Carthāgĭnem esse dēlendam”, ou seja ‘De resto, penso que Cartago deve ser destruída’. Cartago foi efetivamente destruída em 146 a.C., na 3ª Guerra Púnica, dois anos após a morte do Censor.
A obra ‘Sobre o cultivo do campo’ de Catão é a mais antiga obra em prosa da literatura latina que nos chegou inteira.
² Cipião Emiliano, também chamado CIPIÃO AFRICANO MENOR, após a destruição de Cartago em 146 a.C.
³ Caio LÉLIO, cônsul em 140 a.C. A ele Cícero dedicou o tratado Sobre a Amizade.
⁴ Xenofonte: Ciropédia ou A Educação de Ciro, livro VIII 7, 17-22.
⁵ Aqui se manifesta a crença de que as almas de pessoas famosas de alguma forma interagem com os vivos a fim de que mantenham viva sua memória por mais tempo.
⁶ Provavelmente Cícero esteja querendo dizer que os elementos dos quais se compõe o corpo (água, fogo, ar e terra) retornam a suas respectivas formas.
⁷ O conceito de que o futuro possa ser revelado em sonhos de um corpo dormindo, donde se recomenda nunca acordar alguém subitamente enquanto a alma dela pode ainda estar vagando.
Estátua de mármore do filósofo romano Cícero, Palácio da Justiça (Roma, Itália). Foto: Cris Foto / Shutterstock.com |
V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, M. T. M. (2019). O império persa e o pensamento político clássico: um panorama. Brasília: Archai 25, e02503.
BARAZ, Yelena: A Written Republic: Cicero's Philosophical Politics, Princeton: Princeton University Press, 2012, 252 p.
NATIVIDADE, E. S.: Os Anais de Quinto Ênio: estudo, tradução e notas, dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, para obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas, São Paulo, 2009, 255 p.
PEREIRA, João Félix: Xenofonte: CIROPEDIA, Rio de Janeiro: W.M. Jackson Inc., 1956 (e-book de 2006 por eBooksBrasil)
The Latin reading blog: Cicero, de Senectute: Cyrus the Great on the soul
6 comentários:
Prezad@,
Tive a honra de revisitar o tratado, no formato de diálogo entre três interlocutores (Catão, Cipião e Lélio) do escritor, político, filósofo e orador romano MARCO TÚLIO CÍCERO (✰106 - ✞ 43 a.C., assassinado), que foi objeto de exame de meu saudoso professor PADRE LUIZ ZVER, no meu primeiro ano da Faculdade Dom Bosco de São João del-Rei, em 1968. Trata-se da obra imortal CATO MAIOR DE SENECTUTE (Catão, o Antigo, sobre a Velhice), que na presente postagem será reexaminada.
Com que entusiasmo exaltava Pe. Luiz os textos clássicos, como o trecho do tratado que aqui será lido em minha tradução e comentários!
Tive a sorte de ter um mestre de elevada estatura lecionando matérias especializadas em literatura antiga, filologia românica, linguística, pedagogia, etc.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/06/recupere-seu-latim-parte-9-ultimas.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Hermenegildo de Barros (ex-ministro do STF, desembargador do TJMG, juiz e escritor, autor de “Memórias do juiz mais antigo do Brasil”), a que me referi no e-mail de ontem, conhecia bem o latim, estudou no Caraça.
Ministro do STF, hoje, não tem cultura e nem ética...
Abs
Meu Caro Francisco Braga,
Com que entusiasmo exalto a sua feição clássica e o seu amor pela bela tradição românica!
Abraço do Gilberto Mendonça Teles.
Muito obrigado
Estimado Amigo Braga.
Abraço.
Diamantino
Oi, Francisco, não sei se meu latim é recuperável, mas com certeza a sua tradução me faz ver/rever belas páginas clássicas.
Abraço de
Anderson
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