domingo, 12 de junho de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 10: TRECHOS DE TRATADOS DE CÍCERO EM FORMA DE DIÁLOGOS


Por Francisco José dos Santos Braga

Quadro de Jean Léon Gérome exposto em 1861: OS DOIS ÁUGURES / "Eu imagino como dois áugures possam se olhar sem rirem..."

  

1) Marco Túlio Cícero: Da Adivinhação, livro II, 24, 51 e 24, 52 
 
Vetus autem illud Catonis admodum scitum est, qui mirari se aiebat, quod non rideret haruspex, haruspicem cum vidisset. Quota enim quaeque res evenit praedicta ab istis? aut, si evenit quippiam, quid adferri potest, cur non casu id evenerit?
 
Minha tradução: Mas este é um dito bastante perspicaz de Catão, que dizia: "Eu me admiro que um áuspice não ria quando vê outro áuspice. Pois quantas coisas preditas por eles se realizam realmente? Se alguma se realiza, então qual razão pode ser aventada para que a concordância do acontecimento com a profecia não tenha sido devido à sorte?

Comentário: Áugures ou arúspices eram sacerdotes da Roma Antiga que usavam os hábitos das aves para tirar presságios. Exemplos disso são o seu voo, o seu canto e suas próprias entranhas, e o apetite dos frangos sagrados. Nada de importante se fazia sem consultá-los. Sob o pretexto de que os auspícios não eram favoráveis, um áugure poderia impedir até uma execução pública. Formavam um colégio venerado em Roma. É curioso que o próprio Cícero, tendo sido um áugure, coloque na boca de Catão, o Velho, o dito jocoso que ele mesmo poderia ter dito por experiência própria. 
 
2) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro V, 92
 
Diógenes de Sinope, o cínico, a Alexandre Magno: "Desejo que saias do meu sol."

Diogenes Alexandro, roganti ut diceret, si quid sibi opus esset, libere, ut cynicus, respondit: «Nunc quidem paulum a sole absis.» Offecerat videlicet apricanti. His auditis, Alexandrum dixisse ferunt : «Nisi Alexander essem, libenter essem Diogenes.» Multo potentior multoque locupletior tunc erat Diogenes omnia possidente Alexandro. Etenim aliquid majus erat, ilium nolle accipere quod offerretur, quam hunc posse dare. Et qui gloriari solebat a nullo se beneficiis victum, eo die victus est, quo vidit aliquem cui nec dare quidquam posset, nec eripere. 
 
Minha tradução: A Alexandre que pedia que Diógenes lhe dissesse se precisava de alguma coisa, (o filósofo) respondeu com a liberdade de um cínico: "Agora na verdade (eu desejo) que te retires um pouco do meu sol." 
Evidentemente (o rei) lhe impedia de tomar sol. Dizem que Alexandre teria dito: "Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes." 
Com certeza, então Diógenes era muito mais poderoso e mais rico do que Alexandre, dono do mundo, pois é algo da mais alta grandeza aquele não querer aceitar o que lhe era oferecido do que este poder dar. E quem costumava vangloriar-se de não ter sido superado por ninguém em benefícios, foi vencido naquele dia em que viu alguém, ao qual não podia dar nem tomar coisa alguma.

Comentários: Marcos Túlio Cícero redigiu “Disputas tusculanas” por volta de 45 a.C. para divulgar a filosofia estóica. Uns tradutores preferem por o título Discussões tusculanas ou Questões tusculanas, enquanto outros optam por Conversas em Tusculum (notadamente os alemães), referindo-se ao fato de Cícero possuir uma vila na área de Tusculum. 
Endereçada a Marcos Bruto, a obra constante de cinco livros registra a exposição entre um mestre e um aluno sobre os meios de alcançar a felicidade. A conjuntura para Cícero não era a das melhores: perdera a filha Túlia e retirara-se da vida pública para sua vila em Tusculum, nas colinas albanas no Lácio. Desse modo, a consecução da felicidade não é simples. 
Conforme no prólogo de sua obra “Da Adivinhação”, Cícero sumariza sua obra “Disputas Tusculanas da seguinte forma: 
[...] tratavam dos fundamentos da vida feliz, a primeira sobre o desprezo da morte, a segunda sobre suportar a dor, a terceira sobre mitigar a dor, a quarta sobre as perturbações psicológicas e a quinta sobre a coroa de toda a filosofia: a afirmação (estóica) de que a virtude é em si mesma suficiente para a vida feliz”. 
 
Cícero, nas “Disputas Tusculanas”, revela a objetividade prática, um traço característico da Weltanschauung romana. Não se debruça sobre questões metafísicas; aborda temas que inquietam qualquer vivente, perplexo ante problemas inevitáveis e sem soluções visíveis: a morte, a dor física, o sofrimento moral, a busca de felicidade, o beate vivere.
 
3) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro V, 20
Diogenes quidem praedicare solebat, quanto ipsum regem Persarum felicitate superaret: Sibi nihil deesse, illi nihil satis unquam fore; se ejus voluptates non desiderare, quibus nunquam satiari ille posset; suas eum consequi nullo modo posse. Haec vere Diogenes: nam Xerxes refertus omnibus praemiis bonisque fortunae, non peditatu, non equestribus copiis, non navium multitudine, non infinito pondere auri contentus, praemium proposuit ei qui invenisset novam voluptatem. Qua inventa ipse non fuit contentus. Neque enim unquam finem invenit libido. 
 
Minha tradução: Diógenes costumava dizer quão mais afortunado se achava do que o poderoso rei dos persas. Pois, dizia ele, nada me falta, enquanto ele nunca está satisfeito; seus prazeres, que não lhe dão qualquer satisfação, não me fazem falta; também ele não pode, de forma alguma, no seu poder conquistar o meu.
Diógenes estava certo, pois Xerxes, embora abundantemente suprido com dádivas e honras mais seletas da sorte, não estava contente nem com sua infantaria nem com sua cavalaria, nem com sua imensa frota nem com sua ilimitada reserva de ouro; por isso, ofereceu um prêmio a quem inventasse uma nova forma de prazer. Foram inventados novos prazeres, porém ele ainda não estava contente, nem jamais o desejo desenfreado realmente encontrará um limite. 
 
4) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro I, 43
Durior Diogenes, et id quidem sentiens, sed, ut Cynicus, asperius, projici se jussit inhumatum. Tum amici, Volucribusne et feris? Minime vero, inquit; sed bacillum propter me, quo abigam, ponitote. Qui poteris? non enim senties. Quid igitur mihi ferarum laniatus oberit, nihil sentienti? 
 
Minha tradução: Diógenes era mais rude, embora da mesma opinião (de Sócrates), mas, como cínico, mais rude ainda, ordenou que seu corpo fosse jogado em qualquer lugar sem ser sepultado. Ao que seus amigos indagaram: 
O quê? Às aves e às feras?
De forma alguma, ele disse. Coloquem o meu cajado perto de mim, para que eu as afaste”. 
“Como podes fazer isso?”, eles respondem. “Pois estarás privado de sensação.” 
“Que mal, portanto, farão as bestas que me devoram (se estarei) privado de sensação?” 
 
5) Marco Túlio Cícero: Paradoxos dos Estóicos, Paradoxo I, cap. I, 8-9
Quamobrem irrideat si quis vult: plus apud me vera ratio valebit quam vulgi opinio: neque ego umquam bona perdidisse dicam, si qui pecus aut supellectilem amiserit, nec non saepe laudabo sapientem illum, Biantem, ut opinor, qui numeratur in septem; cuius quom patriam Prienam cepisset hostis ceterique ita fugerent, ut multa de suis rebus asportarent, cum esset admonitus a quodam, ut idem ipse faceret, 'Ego vero', inquit, 'facio; nam omnia mecum porto mea.' 10 Ille haec ludibria fortunae ne sua quidem putavit, quae nos appellamus etiam bona. Quid est igitur, quaeret aliquis, bonum? Si, quod recte fit et honeste et cum virtute, id bene fieri vere dicitur, quod rectum et honestum et cum virtute est, id solum opinor bonum.
 
Minha tradução: E assim, mesmo que alguém queira zombar disso, contudo a razão certa valerá mais para mim do que a opinião da plebe: nem eu jamais direi que terá perdido bens, aquele que tiver perdido o rebanho ou a mobília; nem deixarei de louvar, muitas vezes, aquele sábio, Bias, que, como penso, conta-se entre os sete. Quando o inimigo tomou Priene, a sua pátria, e os demais fugiram carregando muito das suas coisas, ao ser exortado por alguém a ele próprio fazer o mesmo, dizia: “Eu, de fato, estou fazendo-o: pois todas as minhas posses carrego comigo”. [9] Decerto, ele não considerava como sua propriedade esses joguetes da fortuna, os quais nós ainda chamamos de “bens”. Alguém perguntará: o que é, então, o bem? Se dizemos, com razão, ser bem feito algo que se faça de forma correta, honesta e com virtude, sou de opinião que somente o que é correto, honesto e com virtude é um bem.

Comentários: 1) "Os sete sábios” (οἱ ἑπτὰ σοφοί) é o epíteto dado a algumas figuras gregas lendárias, que teriam vivido entre 620 e 550 a.C, e que se destacaram não somente pela excelência do caráter e pela agudeza da mente. A lista dos sete varia de acordo com os diferentes autores, mas todos incluem Sólon, Tales, Pítaco de Mitilene e Bias de Priene. Algumas das máximas a eles atribuídas, como “nada em excesso”, “conhece-te a ti mesmo” parece terem inculcado na cultura grega (e depois romana) as noções de submissão, piedade e virtude. Algumas dessas máximas foram inscritas no templo de Apolo em Delfos. 
2) Paradoxa Stoicorum, primeira obra propriamente filosófica de Cícero (ca. 46 a.C.). O texto revela um exame dos princípios da filosofia helenística – especialmente do Estoicismo –, corrente em Roma em meados do século I a.C.; quanto à forma, o texto parece seguir os princípios gerais da dispositio oratoria; daí, os Paradoxos dos Estóicos aparecerem em meio à Oratória de Cícero. 
De fato, o texto se inicia com uma captatio benevolentiae; traz, em seguida, sua experiência pessoal, como uma forma de validação do ponto de vista a ser defendido e como uma forma de expor a res oratoriae; passa, depois disso, para a narratio, elencando o panteão dos grandes nomes da república romana que foram virtuosos sem possuírem riquezas ou viverem uma vida de prazeres; apresenta, então, a refutatio dos argumentos contrários e, finalmente, encerra com uma breve peroratio, na qual o autor reafirma a tese defendida.
 
6) Marco Túlio Cícero: Do Orador, II, 268
Arguta etiam significatio est, cum parva re et saepe verbo res obscura et latens inlustratur; ut, cum C. Fabricio P. Cornelius, homo, ut existimabatur, avarus et furax, sed egregie fortis et bonus imperator, gratias ageret, quod se homo inimicus consulem fecisset, bello praesertim magno et graui «nihil est, quod mihi gratias agas», inquit «si malui compilari quam venire;» (...).
 
Minha tradução: Há também uma alusão arguta, quando uma circunstância obscura e encoberta é esclarecida com uma pequena frase e frequentemente com uma palavra: como, quando Públio Cornélio Rufino, homem, que era considerado avaro e inclinado ao roubo, porém um general respeitado, forte e hábil, agradecia a Caio Fabrício Luscino, de ter-lhe, apesar de inimigo, dado o seu voto para o consulado, sobretudo no momento duma guerra difícil e perigosa, (este) disse: "Prefiro ser roubado a ser vendido."

Comentário: Públio Cornélio Rufino foi um político romano e general do século III a.C. Ele é muitas vezes considerado um filho de Públio Cornélio Rufino, ditador em 334 a.C., mas isso é impossível porque os Fasti Capitolini dizem que seu pai era um certo Gnaeu Cornélio Rufino e seu avô era um certo Públio Cornélio Rufino, provavelmente o ditador (observe o intervalo de 44 anos entre a ditadura de Públio, o Velho, e o primeiro consulado de Públio, o Jovem). Rufino foi cônsul duas vezes e ditador uma vez, este último em ano desconhecido (provavelmente em 275 a.C.). Ele pôs fim à Guerra Samnita em seu primeiro consulado, em 290 a.C., com seu colega Mânio Cúrio Dentato. Nas eleições de 277 a.C., Caio Fabrício Luscino, cônsul no ano anterior, foi adversário de Rufino, mas votou nele mesmo assim, visto que Rufino era o único candidato com gênio militar. Quando Rufino lhe agradeceu o apoio, ou quando o povo perguntou porque ele votou em seu oponente, Fabrício respondeu: “Prefiro ser roubado por um compatriota a ser vendido pelo inimigo [como escravo].” Rufino pegou novamente em armas por causa da vulnerabilidade do inimigo, em seu segundo consulado em 277 a.C., no qual capturou a cidade de Croton e Locri, mas sua reputação sofreu severamente por causa de sua avareza e crueldade. Dois anos depois, Rufino foi expulso do Senado por Fabrício, que era censor na época, quando se descobriu que aquele possuía mais de dez libras de prata. Ele também foi o tataravô do infame ditador Lúcio Cornélio Sulla, e pai de Públio Cornélio Sulla, Flamen Dialis (sumo sacerdote de Júpiter) ca. 250 a.C.

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Apresento, na série RECUPERE SEU LATIM do Blog do Braga, trechos selecionados de TRATADOS DE CÍCERO, que o grande orador costumava expor em forma de diálogos. Tais trechos virão acompanhados de minha tradução para o português e comentários de minha autoria.
Nesses tratados percebe-se que Cícero revela a objetividade prática característica dos Romanos. Não se interessa em debruçar-se sobre questões metafísicas. Aborda temas que inquietam qualquer vivente, perplexo ante problemas inevitáveis e sem soluções visíveis: a morte, a dor física, o sofrimento moral, a busca de felicidade, o beate vivere.
Cícero costumava pregar o seguinte princípio da filosofia estóica: Sapientes student beate vivere et honeste,id est cum virtute vivere. (Os sábios aspiram a viver de modo feliz e honesto, isto é, com virtude.)

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/06/recupere-seu-latim-parte-10-trechos-de.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia
Muito obrigado, grande amigo.
Boa semana.
Abraço.
Diamantino

Anônimo disse...

Forte abraço, caríssimo Braga!

Mario Pellegrini Cupello disse...

Caro amigo Braga
Agradecemos pela gentileza do envio desta interessante postagem.
Receba o abraço fraterno,
Dos amigos Mario e Beth.

Anônimo disse...

Excelente o seu trabalho. Parabéns! Marcelo Guimarães

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito bom!

Conceição Cruz (escritora, servidora aposentada da Justiça Federal de Divinópolis e acadêmica das Academias de Letras de Pará de Minas e de Divinópolis) disse...

Parabéns, Confrade Braga!
Brilhante iniciativa!
Quero acompanhar este seu trabalho.
Tenha uma excelente semana.
Conceição Cruz

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Caro Francisco Braga,
Muito bom fazer esse passeio pela filosofia de Cícero com você.
Sou apaixonada pelas "Catilinárias".
Envio-lhe texto em anexo.
Espero que goste.
Abraço grande,
Raquel Naveira

António Carlos Duarte (arquiteto, autor do livro "Arquitetura Moderna - Juiz de Fora") disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
António Carlos Rebelo Duarte (autor de "Políticas e estratégias marítimas da Europa e de Portugal") disse...

Muito Obrigado.
Com tradução até eu me aventuro no latim .......
Abraço com os melhores votos para o desafio semanal e seguintes.
ard