Por ILSETRAUT HADOT *
Introdução, tradução do francês e dois comentários por Francisco José dos Santos Braga
Ilsetraut HADOT, viúva de Pierre Hadot, ambos filósofos. |
I. INTRODUÇÃO
Ilsetraut Ludolff, nascida a 20 de dezembro de 1928 em Berlim, é filósofa e historiadora da filosofia especializada em estoicismo, neoplatonismo e, mais geralmente, em filosofia antiga.
Ela conheceu Pierre Hadot durante um simpósio em Colônia em 1962. Em 1966, ela obteve o título de PHD na Universidade Livre de Berlim com sua tese intitulada Seneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenleitung [Sêneca e a tradição greco-romana da orientação da alma], que se dedicava sobretudo às epístolas senequianas como movimento de condução espiritual do discípulo (HADOT, 1969).
Ilsetraut Ludolff (nome anterior Marten) se casa com Pierre Hadot pouco tempo após a defesa da tese dela, em 1966, adotando o sobrenome do marido.
De acordo com [SILVA, 2017, 25-26], "O campo de pesquisa da filósofa em seu doutorado na Freie Universität Berlin era precisamente a Filosofia Helenística. Muito embora livros essenciais sobre os exercícios espirituais na Antiguidade já estivessem publicados, como o livro tão citado por Pierre Hadot, Seelenführung [A condução da alma] de Paul Rabbow (1954], a tese da filósofa berlinense constituiu uma notável contribuição ao problema do tratamento da alma, com a particularidade de enfocar o problema a partir da filosofia helenística."
Michael Chase (2013) chega a dizer que, sob a influência e inspiração de Ilsetraut Hadot, o marido filósofo cada vez mais se aproximaria do estudo das práticas na filosofia helenística, começando, no início da década de 1970, a ministrar cursos sobre o filósofo e imperador Marco Aurélio na École Pratique de Hautes Études.
Em 1977, ela defendeu sua tese de Doutorado em Artes (Doctorat d'État), na Universidade Paris-Sorbonne (Paris IV), que na França era considerado um segundo doutorado, de mais alto nível comparado com o primeiro, conhecido como doutorado de 3º ciclo (literalmente doutorado em nível de pós-graduação).
Em 2004, o casal, em coautoria, lançou pelo Livre de poche um volume sobre o comentário de Epicteto por Simplício, natural da Cilícia, intitulado Apprendre à philosopher dans l'Antiquité. L'enseignement du Manuel d'Epictète et son commentaire néo-platonicien (Trad. Aprender a filosofar na Antiguidade. O ensino do Enchirídion de Epicteto e seu comentário neoplatônico).
Com o presente artigo, a filósofa Ilsetraut Hadot, esposa de Pierre Hadot falecido em 2010, decide rebater a hipótese de Pierre Vesperini sobre o trabalho de seu marido em razão de ele não mais poder se defender dos ataques à sua obra. Para a argumentação do primeiro, seria indispensável, segundo a filósofa, provar que P. Hadot tinha sido fortemente influenciado pelo "idealismo alemão" desde o início de sua carreira e ao ponto de não mais poder abordar a Antiguidade de uma maneira objetiva. Com base na obra de seu marido, ela tem certeza de que P. Vesperini não consegue provar nem uma coisa nem outra.
II. ARTIGO DE ILSETRAUT HADOT
Se agora reajo publicamente à hipótese de Pierre Vesperini ¹ evocada no título, é somente depois de já ter-lhe comunicado sem sucesso minhas objeções em particular, e não é apenas na qualidade de viúva de Pierre Hadot que estou dando esse passo, mas também em meu próprio nome como historiadora da filosofia antiga: de fato, embora P. Vesperini nunca me cite, os julgamentos críticos que ele faz sobre a obra de Pierre Hadot também me dizem respeito, pelo menos em parte, como veremos. Como não tenho conhecimento dos trabalhos do sr. Foucault, vou me concentrar nas partes das exposições de P. Vesperini que se relacionam com a obra de meu falecido marido. Espero provar que o itinerário intelectual de P. Hadot reconstruído por P. Vesperini é simplesmente fantasioso e sem base conceitual. Eu me basearei nos escritos do meu marido, mas também em elementos cronológicos, a saber, nas datas das suas publicações (e também minhas). Não vou me referir à já publicada tese ² de P. Vesperini, julgando que a crítica da Sra. Gretchen Reynold-Schils ³, especialista mundialmente reconhecida em filosofia romana, já apontou bastante suas deficiências.
Em seu relatório para o HASTEC, P. Vesperini descreve o objetivo da primeira parte de sua pesquisa da seguinte forma (p. 1): “por um lado, tratava-se de tentar restaurar em seu tempo e em sua trajetória pessoal e intelectual ⁴ a obra de Pierre Hadot e Michel Foucault, de modo a arrancá-los dessa espécie de atemporalidade a que o seu uso contemporâneo os reduz...”. Como o próprio P. Hadot fez um relato detalhado de sua "trajetória pessoal e intelectual", desde a infância até os primeiros anos de sua aposentadoria, no livro A Filosofia como Maneira de Viver: entrevistas com Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson ⁵, temos o direito de pensar que P. Vesperini teria se beneficiado muito com o uso dessa fonte inestimável de informações, cujo título pelo menos ele conhece ⁶. Mas não é o caso: ele nunca se refere ao que o próprio P. Hadot diz sobre sua carreira intelectual e as influências que sofreu. Contenta-se em apresentar suas próprias hipóteses, por assim dizer, no vácuo.
Comecemos por uma crítica dirigida por P. Vesperini a “Exercícios espirituais”, artigo que P. Hadot publicou pela primeira vez em 1977 ⁷. Citemos Vesperini (que se engana quanto à data):
“Que eu saiba, ninguém percebeu que a definição de 'exercícios espirituais' dada por Pierre Hadot em 1974 e depois repetida até seu último livro Não se Esqueça de Viver, passando por O Véu de Ísis, era formulada na linguagem do idealismo alemão ('mente objetiva', 'totalidade da psique' cujo pensamento [o entendimento] seria apenas uma expressão específica). O idealismo alemão do qual se nutre esta definição não é o de Hegel ('Espírito objetivo' tem um significado muito diferente daquele pensado por Hadot, mas o de Goethe ⁸, de Hölderlin, de Novalis e de Schelling. Parece-me que, muito mais do que a sua educação católica, muito mais do que as filosofias de existência em que foi iniciado, é esta tradição do idealismo alemão que constitui o terreno a partir do qual P. Hadot abordou a Antiguidade... Mas parece que Pierre Hadot só revelou muito gradualmente sua adesão a essa tradição.” ⁹
Digamos desde já que não é nem o catolicismo, nem o existencialismo, nem o idealismo alemão “que constituem o terreno a partir do qual P. Hadot abordou a Antiguidade”. Pelo contrário, o seu interesse pelas filosofias da Antiguidade foi o resultado lógico do desenvolvimento progressivo do seu trabalho científico, que foi, no início mas também ao longo da sua carreira, largamente filológicos (cf. abaixo). Com efeito, quando em 1952 deixou o sacerdócio e a religião católica, P. Hadot estava trabalhando (sob a direção de Paul Henry) em uma edição científica das obras de Marius Victorinus, um retórico romano e cristão. No entanto, Victorinus havia sido fortemente influenciado pelo neoplatônico Porfírio. É assim — numa abordagem primeiro puramente filológica — que P. Hadot se interessou pelo próprio neoplatonismo (Plotino ¹⁰ e os outros neoplatônicos de Porfírio a Damascius), e depois por todas as escolas filosóficas helenísticas. Só mais tarde ele abordou as pesquisas sobre a influência que certos elementos da filosofia antiga tiveram sobre o pensamento moderno. O seu passado clerical apenas lhe tinha proporcionado um conhecimento do cristianismo, uma certa bagagem filosófica: principalmente o tomismo e o existencialismo (a partir do existencialismo cristão ¹¹), e um conhecimento muito bom das línguas clássicas necessárias para iniciar uma carreira de investigador no C.N.R.S. Seu grande interesse pelo estoicismo (especialmente Marco Aurélio), bem como pela obra de Goethe, veio a ele sob minha influência ¹².
Mas, como o próprio P. Hadot diz, o início de sua carreira de pesquisador, que antecede seu afastamento da Igreja por pouco tempo e coincide com o início de sua colaboração com Paul Henry, o editor de Plotino, representou graças a este uma viragem decisiva no seu método de trabalho:
“Até então, diz ele, eu era um puro filósofo. ... mas a partir daquele momento fiz meu aprendizado como filólogo e historiador. Descobri disciplinas filológicas que nunca tinha praticado, a crítica dos textos, a leitura dos manuscritos, pelo menos manuscritos latinos. Para me preparar para essa leitura, fiz cursos na École des Chartes e na IVª Seção da École Pratique des Hautes Études... Naquela época, descobri também o método histórico. Antes, eu tratava os textos filosóficos, seja de Aristóteles, seja de São Tomás, ou de Bergson, como se fossem atemporais, como se as palavras tivessem sempre o mesmo significado em qualquer época. Compreendi que era preciso levar em conta a evolução dos pensamentos e das mentalidades ao longo dos séculos. Um dia, Henri-Irénée Marrou dedicou uma separata a mim, escrevendo: 'Ao filósofo que se tornou historiador, um historiador que se tornou filósofo.'” ¹³
E neste mesmo contexto P. Hadot observa:
“Muitos filósofos não percebem o que representa o estudo de textos antigos. Tenho a oportunidade às vezes, ao traduzir Marco Aurélio por exemplo, trabalho um dia inteiro para descobrir o que uma determinada palavra grega pode significar em um determinado contexto.” ¹⁴
Este é um grande ponto de inflexão na "trajetória pessoal e intelectual" de P. Hadot, a da filosofia rumo à filologia e às pesquisas históricas, ponto de inflexão que se manifesta brilhantemente em todas as suas obras posteriores ao encontro com P. Henry, mas que P. Vesperini nem menciona. Estamos, portanto, diante de um paradoxo: Vesperini censura P. Hadot por sua total falta de senso histórico, que consistiria em querer interpretar a filosofia antiga a partir do idealismo alemão, enquanto, segundo seu próprio testemunho, P. Hadot estava no mais alto grau de consciência das questões históricas, uma consciência que ele procurou transmitir a seus alunos durante os inúmeros anos de seu ensino.
Vejamos agora o que o próprio P. Hadot relata sobre a evolução, a partir do ano de 1968 ¹⁵, de seu ensino na École Pratique des Hautes Études, e vale a pena citar esta passagem na íntegra ¹⁶:
“Em primeiro lugar, no meu ensino, desenvolvi minhas pesquisas sobre os tratados místicos de Plotino e experimentei finalmente o desejo, que só se concretizou mais tarde, de fazer uma tradução comentada dos tratados de Plotino. Mas o próprio Plotino, e especialmente Marco Aurélio, sobre quem comecei então a dar palestras, levaram-me desta vez a tentar pensar de maneira mais geral o que chamo de fenômeno da filosofia antiga: fenômeno não apenas exatamente no sentido de fenômeno espiritual, mas também de fenômeno social, sociológico. Tentava me fazer a pergunta: o que era um filósofo? em que consistiam as escolas de filosofia? Foi assim que fui levado a imaginar que a filosofia não era uma pura teoria, mas um modo de vida.
Por essa época, comecei a dar grande importância à existência de exercícios espirituais na Antiguidade, ou seja, práticas que podiam ser de ordem física, como o regime alimentar, ou discursiva, como o diálogo e a meditação, ou intuitiva, como a contemplação, mas todas destinadas a provocar modificação e transformação no sujeito que os praticava. O discurso do mestre de filosofia podia, aliás, assumir a forma de um exercício espiritual, na medida em que o discípulo, ouvindo-o ou participando de um diálogo, pudesse progredir espiritualmente, transformar-se interiormente. Foi nessa época que li o livro chamado Seelenführung ('direção das almas') de Paul Rabbow, que expunha as diferentes formas que essas práticas poderiam assumir entre os epicuristas e entre os estóicos, e que também tinha o mérito de marcar a continuidade existente entre a espiritualidade antiga e a espiritualidade cristã, mas limitando-se talvez exclusivamente demais aos aspectos retóricos dos exercícios espirituais.
O livro de minha esposa ¹⁷ e as entrevistas que fizemos juntos revelaram-me novos aspectos do fenômeno que eu tentava compreender. Isso levou, finalmente, em 1977, ao artigo introdutório da Vª seção, que foi intitulado “Exercícios espirituais.”
Assim, n'A Filosofia como Maneira de Viver, esse tipo de autobiografia escrita nove anos antes de sua morte, ao lado de sua obra sobre Plotino e sobretudo Marco Aurélio, P. Hadot menciona como fontes de suas inspirações para seu artigo “exercícios espirituais' o livro de P. Rabbow e o meu; nem neste contexto nem em outro lugar lemos neste pequeno livro a menor alusão ao idealismo alemão como “o terreno a partir do qual” P. Hadot teria, segundo P. Vesperini, “abordado a Antiguidade”. No entanto, esta autobiografia pertence ao período de sua vida em que ele já havia — segundo Vesperini — desvendado plenamente a influência exercida sobre ele pelo idealismo alemão.
E acima de tudo, o mesmo termo 'exercícios espirituais' já havia sido usado por mim em alemão ('geistige Übungen' ¹⁸ [para não confundir com 'geistliche Übungen']) em minha tese alemã, e essas palavras tinham o mesmo significado que mais tarde em P. Hadot a expressão 'exercícios espirituais', uma expressão que somente é uma tradução francesa ¹⁹ dessas palavras alemãs ²⁰. A prioridade das expressão "exercícios espirituais" neste contexto preciso ²¹ diz respeito a mim, e não pode haver uma influência do idealismo alemão em minha compreensão da Antiguidade, pela simples razão de que nunca me interessei pelo idealismo alemão ²². Aliás, nem minha escolha de trabalhar sobre "Sêneca e a tradição greco-romana de direção espiritual", nem minha decisão de conduzir estudos de filologia clássica (grego e latim) eram de minha parte fruto de uma busca existencial, pois se tivesse a possibilidade de seguir minhas próprias inclinações, teria estudado medicina. A dureza dos anos do pós-guerra tanto em Berlim quanto em toda a RDA, superou minhas aspirações.
Se grifei o fato de que meus estudos de filologia clássica, bem como a escolha do tema de minha tese alemã, não resultaram de uma escolha existencial, é porque P. Vesperini, em seu Relatório final ²³, havia classificado os antiquários da seguinte forma:
“Poder-se-ia dizer que, entre os antiquários, uns concebem o seu trabalho como uma atividade profissional distinta da sua vida privada, e outros o concebem como uma parte, até mesmo como a totalidade, da sua existência. Nenhuma dessas duas categorias, como tal, é 'melhor' que a outra. É verdade que a primeira parece menos promissora que a segunda. Mas um 'profissional' escrupuloso pode fazer avançar a ciência muito mais do que um cientista 'comprometido', cuja paixão poderia se extraviar. Na segunda categoria, pode-se ainda distinguir entre os os cientistas movidos por um puro 'pathos da verdade', obcecados pela busca do verdadeiro e pela refutação do falso, e os cientistas que, através de suas pesquisas, perseguem uma busca pessoal, existencial. Um Pierre Bayle, um Louis Robert poderiam entrar no primeiro grupo: eles querem dizer a verdade e desmascarar seus colegas preguiçosos, bagunceiros, conformistas. Pierre Hadot e Michel Foucault pertencem, creio que não há como negar, ao segundo grupo.”
Estamos, pois, diante de P. Hadot colocado no segundo grupo da segunda categoria, portanto, no dos profissionais sem escrúpulos, que não fazem avançar a ciência, que não são animados por um puro 'pathos da verdade', que não estão obcecados em encontrar o verdadeiro e refutar o falso; em suma, P. Hadot é desqualificado, tanto científica quanto moralmente, como alguém que nunca deveria ter sido qualificado para ensinar. Não acredito que haja um único aluno ou colega de P. Hadot que o reconheça neste retrato ²⁴. P. Hadot era conhecido por ter um caráter muito equilibrado, sem nenhum problema psicológico que teria exigido (como sugere P. Vesperini) “uma busca existencial pessoal” até o fim de sua vida, e por ter simplesmente amado seu trabalho, como eu amava o meu, deixando bastante espaço para a vida privada: a música (P. Hadot tocava piano e órgão, e eu mesma tocava piano e violoncelo), a literatura, o teatro, as viagens tiveram um grande papel em nossa vida conjunta.
Mas deixemos mais uma vez que o próprio P. Hadot explique os pontos de partida de sua pesquisa sobre os exercícios espirituais:
"Sempre fiquei impressionado com o fato de que os historiadores diziam: 'Aristóteles é incoerente', 'Santo Agostinho compõe mal'. e foi isso que me levou à ideia de que as obras filosóficas da Antiguidade não foram compostas para expor um sistema, mas para produzir um efeito formativo: o filósofo queria fazer funcionar a mente de seus leitores ou ouvintes, para que eles se colocassem em uma certa disposição. Este é um ponto bastante importante, creio eu: não parti de considerações mais ou menos edificantes sobre a filosofia como terapia, etc., como concorrente do budismo, por exemplo. ... Não, era realmente um problema estritamente literário, a saber: por que os escritos filosóficos antigos em geral dão essa impressão de incoerência? Por que é tão difícil reconhecer o plano deles?” ²⁵
Quanto aos protestos de P. Vesperini contra o uso por P. Hadot da palavra “espiritual” ao falar da Antiguidade, já vimos que eles dizem respeito tanto a mim quanto a P. Hadot; eis um exemplo disso ²⁶:
“Ancorada no idealismo alemão, a categoria de ‘espiritual’, aplicada à filosofia antiga, apresenta um risco óbvio: o de conduzir a uma cama historiográfica de Procusto *, ou seja, de eliminar as práticas filosóficas irrecuperáveis para o intérprete 'espiritualista', e por outro lado, de interpretar os testemunhos recuperáveis aplicando-lhes uma situação que lhes é estranha.”
Acusada de “aplicar para a Antiguidade uma situação que lhe é estranha”, também eu deveria desmoronar sob o peso de uma acusação que é a pior que se pode fazer contra uma filóloga clássica. Mas nem todos têm a mesma opinião de P. Vesperini no que diz respeito à palavra “espiritual”: em particular, os membros do júri da minha tese alemã (1965, Paul Moraux e H. Schwabl); os estudiosos (P.M. Schuhl e P. Boyancé) que, após sua publicação (em 1969), acharam que deveria ser traduzida para o francês; bem como A. I. Davidson, que publicou a tradução de uma versão atualizada de minha tese (em 2014); por fim, os membros da Academia Francesa que premiaram esta tradução (2015), não levantaram objeções ao emprego, aplicado a formas da filosofia antiga, das palavras "exercícios espirituais", que ali aparecem frequentemente ²⁷, em francês e alemão, nem contra a própria palavra “espiritual”, que se estende até ao título francês.
Mas voltemos novamente à crítica de P. Vesperini ao artigo “Exercícios espirituais” de P. Hadot. Desta vez é uma frase retirada de um texto em que P. Hadot tenta explicar o que quer dizer com a expressão “exercícios espirituais”. Vale a pena citar boa parte desse texto ²⁸:
“‘Exercícios Espirituais’. A expressão confunde um pouco o leitor contemporâneo. Antes de tudo, não é mais de bom gosto hoje usar a palavra “espiritual”. mas é preciso nos resignarmos a usar este termo, porque os outros adjetivos ou qualificadores possíveis: 'psíquico', 'moral', 'ético', 'intelectual', 'mental', 'anímico' não cobrem todos os aspectos da realidade que queremos descrever. Poderíamos obviamente falar de exercícios de pensamento, pois, nesses exercícios, o pensamento se toma como matéria e ele mesmo procura modificar-se. Mas a palavra 'pensamento' não indica com suficiente clareza que a imaginação e a sensibilidade intervêm de maneira muito importante nesses exercícios. Pelas mesmas razões, não podemos nos contentar com 'exercícios intelectuais', embora os aspectos intelectuais (definição, divisão, raciocínio, leitura, pesquisa, amplificação retórica) aí desempenhem um grande papel. “Exercícios éticos” seria uma expressão bastante sedutora, pois os exercícios em questão contribuem poderosamente para a terapêutica das paixões e se relacionam com a condução da vida. No entanto, isso ainda seria uma visão muito limitada. de fato, estes exercícios... correspondem a uma transformação da visão do mundo e a uma metamorfose da personalidade. A palavra 'espiritual' deixa claro que esses exercícios são obra não apenas do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo e, acima de tudo, revela as verdadeiras dimensões desses exercícios: graças a eles, o indivíduo se eleva à vida do Espírito objetivo, ou seja, recoloca-se na perspectiva do Todo.”
Vejamos o comentário de P. Vesperini ²⁹ sobre a frase do texto de P. Hadot que grifei:
“Se fizermos, portanto, a arqueologia do discurso foucaultiano sobre a filosofia antiga, deparamo-nos com Hegel. Eu disse: a definição que Hadot dava à palavra “espiritual” era diferente. mas também remontava ao idealismo alemão: a elevação do indivíduo à vida do 'Espírito objetivo' é um tema hegeliano, assim como a ideia de uma 'totalidade do psiquismo' cujo pensamento (o entendimento) só seria uma expressão pontual. Mas Hadot dá ao "Espírito objetivo" de Hegel um significado pessoal. Em Hegel, é nas instituições políticas e jurídicas que o “Espírito” se objetiva. Em Hadot, é no Todo, o cosmos. Os autores que se destacam por trás da definição que Hadot dá do “espiritual”, mais do que Hegel, são Goethe, Novalis, Schelling, mas também Hölderlin, ou mesmo Wilhelm von Humboldt ³⁰. Mas para além dessas diferenças, se fizermos a arqueologia do discurso assimilando a filosofia antiga a uma forma de "espiritualidade", cairemos num 'solo', para dizer com Foucault, que é o do idealismo alemão.”
Digamos desde já que este argumento não se sustenta, e isso pela simples razão de que na parte da frase de P. Hadot “graças a eles (isto é, os antigos exercícios espirituais) o indivíduo ascende à vida do espírito objetivo, ou seja, recolocar-se na perspectiva do Todo”; são os exercícios espirituais estóicos que são visados. Basta citar outra frase do mesmo artigo de P. Hadot ³¹:
“Para o estóico, filosofar é, portanto, praticar o 'viver', ou seja, viver consciente e livremente: conscientemente ultrapassando os limites da individualidade para reconhecer-se como parte de um cosmos animado pela razão...", e mais adiante no livro, em conexão com o capítulo intitulado "A física como exercício espiritual em Marco Aurélio" ³², com as seguintes frases: "É, em última análise, na perspectiva cósmica da natureza universal que objetos e acontecimentos são recolocados: 'Um imenso campo livre se abrirá diante de ti, pois abarcas pelo pensamento a totalidade do universo, atravessas a eternidade da duração, consideras a rápida metamorfose de cada coisa individual, a brevidade do tempo que escoa do nascimento à dissolução, o infinito que precede o nascimento ' (= Marco Aurélio, IX, 32). O olhar da alma coincide com o olhar divino da natureza universal.”
Ademais, os platônicos também desejam ampliar a perspectiva humana recolocando-a na perspectiva da totalidade do universo.
Por questões cronológicas é felizmente impossível, mesmo para P. Vesperini, acusar Marco Aurélio de ser influenciado pelo idealismo alemão. Da mesma forma, a frase de P. Hadot (citada acima, p. 203): “A palavra 'espiritual' deixa claro que esses exercícios são o obra, não apenas do pensamento, mas de toda o psiquismo do indivíduo...” não tem nada a ver com o idealismo alemão, mas é uma continuação do que ele escreveu acima: "mas a palavra 'pensamento' não indica de forma suficientemente clara que a imaginação e a sensibilidade intervêm de maneira muito importante nesses exercícios", passagem que , em sua segunda parte, é apenas uma descrição objetiva dos exercícios espirituais antigos. Além disso, P. Hadot, após enfatizar a insuficiência deste termo, deu no texto citado acima uma explicação detalhada do significado que ela dá ao adjetivo 'espirituais' na expressão 'exercícios espirituais', explicação que equivale a uma definição ³³. Vesperini pode muito bem fazer uma "arqueologia comparada da noção do espiritual" ³⁴, mas esta diz respeito apenas a ele e não pode de forma alguma invalidar a explicação que o próprio P. Hadot dá de sua própria compreensão desta palavra, que é a única coisa que importa neste contexto.
Mas, como veremos também adiante ³⁵, não é hábito de Vesperini ler um livro ou artigo inteiro, pelo menos no que diz respeito à obra de P. Hadot ³⁶. Logo no início do artigo "Exercícios espirituais", P. Vesperini para diante das expressões 'todo o psiquismo' e 'espírito objetivo' - o resto não lhe interessa mais - e quer reconhecer nelas a terminologia de Hegel, embora admitindo que a explicação que P. Hadot dá do termo 'espírito objetivo' (= o todo) não é realmente hegeliana. Mas não importa: se não é Hegel, é qualquer outro representante do idealismo alemão.
E como prova, P. Vesperini cita a seguinte passagem do livro tardio de P. Hadot, O Véu de Ísis, passagem que se encontra em um capítulo com o subtítulo “A Ísis do pré-romantismo e romantismo alemães” ³⁷:
“Esta alusão à imortalidade, ou seja, em última análise, ao poder do espírito, deixa entrever que o tema do véu de Ísis foi interpretado no período romântico na perspectiva de uma filosofia idealista. Tirar o véu de isis é reconhecer que a Natureza nada mais é do que o Espírito inconsciente de si mesmo, que o Não-Eu que é a Natureza é, em última análise, idêntico ao Eu, que a Natureza é a gênese do 'Espírito'. Apesar das profundas diferenças que existem entre as várias filosofias românticas, sejam elas de Fichte, de Schelling, de Hegel, mas também de Novalis, mantém-se constante a mesma tendência fundamental para identificar, em diferentes perspectivas, a Natureza e o Espírito.”
Mas onde está a prova que P. Vesperini pensa ter fornecido citando esta passagem? P. Hadot não diz que ele, Hadot, interpreta a inscrição de Saïs no véu de Ísis, "na perspectiva de uma filosofia idealista", embora seja Novalis quem interpreta a inscrição de Saïs do ponto de vista de uma filosofia idealista !!!
E leiamos novamente o final do comentário de P. Hadot sobre a forma como Novalis interpreta a inscrição de Saïs ³⁸:
“Para Novalis, é a exploração da vida interior que nos permitirá descer às fontes da natureza. É voltando a nós mesmos que podemos compreender a natureza, e a natureza é, de certa forma, um espelho do espírito. Essa ideia será encontrada em toda a filosofia romântica.”
E P. Hadot acrescenta em nota ao final da última frase citada ³⁹ que essa tradição romântica tem suas raízes no antigo neoplatonismo. longe de ver a Antiguidade através dos óculos do idealismo alemão, P. Hadot, ao contrário, enfatiza as antigas raízes do idealismo alemão. De forma mais geral, um dos principais objetivos dos dois últimos livros de P. Hadot, ou seja, O véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de Natureza e Não se esqueça de viver! Goethe e a tradição dos exercícios espirituais, foi para mostrar a influência da Antiguidade sobre o pensamento moderno. Fazer o contrário, ou seja, querer explicar a Antiguidade pelo pensamento moderno, era um dos vícios cometidos por alguns filósofos contemporâneos que ele mais abominou.
Mas deixemos P. Hadot falar por si mesmo ⁴⁰:
“Se é possível atualizar uma atitude, um exercício espiritual, um ato interior, um texto, ao contrário, deve ser compreendido e interpretado na perspectiva de sua época. Mesmo se houver criadores insensatos, que inesperadamente trazem novos conceitos, isso não significa que se possa atualizar um texto à custa de interpretações equivocadas. A exigência de objetividade nunca deve desaparecer. Dito de outra forma, e voltamos ao ponto de partida desta conversa, não podemos tratar um texto antigo como um texto contemporâneo, corremos o risco de distorcer completamente o seu sentido. Muitas vezes é um erro dos filósofos analíticos tratar os filósofos sem qualquer perspectiva histórica. Quase se acreditaria que eles ficam surpresos com o fato de que, curiosamente, Aristóteles tenha ignorado os Principia Mathematica de Russel e Whitehead. Parece-me que a primeira qualidade de um historiador da filosofia, e sem dúvida de um filósofo, é possuir um senso histórico.”
Eis agora ainda um outro exemplo dos estranhos processos pelos quais P. Vesperini pensa provar que P. Hadot depende do idealismo alemão em sua interpretação da Antiguidade:
“Foi provavelmente depois da sua eleição para o Collège de France que Pierre Hadot se sentiu mais livre para afirmar a sua ligação à tradição idealista alemã (sic!) ⁴¹: na coletânea de seus artigos intitulada Exercícios espirituais e filosofia antiga, ele acrescenta um índice de passagens extraídas de Kierkegaard e Nietzsche. [...] O gesto de publicar este index locorum no final de sua coletânea foi uma manifestação, uma profissão de fé que não poderia ser mais eloquente: o autor mostrou que não se podia ler os antigos sem passar por esses dois grandes filósofos. E, de fato, uma figura tão fundamental quanto Sócrates é interpretada a partir de Kierkegaard como de Nietzsche. ⁴²”
Em primeiro lugar, há um gafe filológica, mas essa gafe leva a um grave erro de interpretação. A frase: "na coletânea de seus artigos intitulada Exercícios espirituais e filosofia antiga, ele acrescenta um índice de passagens extraídas de Kierkegaard e Nietzsche", é tão imprecisa quanto possível e só pode induzir a erro o leitor, por duas razões:
1) Esta coletânea de artigos teve nada menos que quatro edições ⁴³, e P. Vesperini não especifica a edição que cita. Agora, os dois índices só se verificam a partir da terceira edição revista e ampliada de 1993: o leitor que utilizar a primeira ou a segunda edição ficará surpreso ao não encontrar essas duas índices, tão importantes, segundo P. Vesperini, para demonstrar que no livro inteiro a noção de “exercícios espirituais” está enraizada no idealismo alemão.
2) A outra consequência desta gafe: o leitor que não está familiarizado com a coletânea de artigos intitulada Exercícios espirituais e filosofia antiga de P. Hadot deve imaginar que os famosos índices dizem respeito a todos os artigos escritos em várias datas e reunidos nesses livros. No entanto, não é nada disso. O único artigo a que se refere o índice de citações de Nietzsche e Kierkegaard é o que é intitulado “A figura de Sócrates”, artigo presente nas quatro edições sucessivas. Se P. Vesperini, em vez de dar uma olhada rápida em todo o livro, tivesse ocupado seu tempo, como uma pesquisa séria requer, e em particular se tivesse examinado atentamente esses dois índices, teria percebido que eles só fazem completar e mesmo substituir, por referências às edições científicas modernas, as referências a citações de Kierkegaard e Nietzsche fornecidas pelas notas deste artigo (referências a traduções francesas), e ele teria podido constatar que, nestas coleções de 6, 11 ou 18 artigos, cuja maioria apóia sobre a Antiguidade, esses índices nunca se reportam a Nietzsche e Kierkegaard em outro lugar além daquele artigo.
A ausência desses dois índices nas duas primeiras edições da coletânea Exercícios espirituais e filosofia antiga (1981 e 1987) se explica por razões de circunstâncias. De fato, este artigo foi originalmente uma palestra proferida na Suíça para um grande público e publicada nos Annales Eranos, e as referências nesta publicação, portanto, remetiam a traduções francesas convenientemente acessíveis. Como, depois que P. Hadot entrou no Collège de France, os pedidos de tradução de suas obras para línguas estrangeiras se multiplicaram (até agora foram traduzidos para 22 idiomas), P. Hadot achou útil e até foi necessário adicionar referências aos textos de Kierkegaard e Nietzsche em edições científicas (disponíveis nas principais bibliotecas da maioria dos países), referências que foram dadas em anexo ⁴⁴ da terceira edição.
Passemos agora ao essencial, ou seja, à conclusão geral que, a partir destas dois pequenos índices, P. Vesperini acreditou poder disparar contra aquilo que é, segundo ele, a origem dos 'exercícios espirituais' de Pierre Hadot: o idealismo alemão, origem que este último teria finalmente admitido claramente ao produzir esses índices. Por fim, passemos a palavra ao próprio P. Hadot, e eis o que ele escreve no parágrafo 2º do artigo em questão, intitulado “A figura de Sócrates” (grifos nossos):
“Falar de Sócrates é obviamente expor-se a toda sorte de dificuldades de ordem histórica. Os testemunhos sobre Sócrates, os de Platão, os de Xenofonte, transformaram, idealizaram, deformaram o Sócrates histórico. Não estou tentando aqui redescobrir, reconstituir esse Sócrates histórico. O que vou tentar apresentar a vocês agora é a figura de Sócrates tal como atuou em nossa tradição ocidental, concentrando-me porém — pois se trata de um fenômeno gigantesco — na figura de Sócrates tal como aparece no Banquete de Platão e tal como é percebida por esses dois grandes socráticos, Kierkegaard e Nietzsche.”
Não se pode dizer com mais clareza que este artigo sobre "A figura de Sócrates" ⁴⁵ não tem por objetivo fazer uma pesquisa sobre o verdadeiro Sócrates histórico, mas sobre a impressão que a imagem dada por Platão desse personagem em sua Apologia de Sócrates deixou no pensamento moderno, e sobretudo na obra de Kierkegaard e Nietzsche. P. Hadot não interpreta "uma figura tão fundamental quanto Sócrates" a partir de Kierkegaard e Nietzsche, como afirma P. Vesperini, mas relata as interpretações de Kierkegaard e de Nietzsche para mostrar a influência que a figura de Sócrates teve na tradição ocidental.
Em P. Hadot, portanto, trata-se de um estudo das visões modernas de Kierkegaard e de Nietzsche sobre o Sócrates de Platão. Ver nestes dois índices adicionais "uma manifestação, uma profissão de fé que não poderia ser mais eloqüente", significando que "o autor mostrou que não se poderia ler os antigos sem passar por esses dois grandes filósofos [Kierkegaard e Nietzsche]", pode ser apenas fruto de uma imaginação transbordante e beira a malandragem ⁴⁶. Se queremos que esses índices mostrem algo, seria antes uma “profissão de fé que não poderia ser mais eloquente”, gabando-se do rigor filológico.
Se P. Hadot tivesse tido a oportunidade de ler as elucubrações de P. Vesperini sobre sua obra, parece-me que ele as teria incluído de bom grado em seu julgamento sobre os métodos de certos autores modernos. Com efeito, ele escreve no prefácio de sua Introdução aos Pensamentos de Marco Aurélio ⁴⁷:
“Fiz questão de citar abundantemente os Pensamentos. Odeio aquelas monografias que, ao invés de dar voz ao autor e ficar próximo ao texto, se entregam a elucubrações obscuras que pretendem decodificar e revelar o não-dito do pensador, sem que o leitor tenha ideia do que aquele pensador realmente 'disse'. Tal método, infelizmente, permite todas as deformações, todas as distorções, todos os 'empurrõezinhos'. Nosso tempo é cativante por muitas razões, mas, muitas vezes, poderíamos defini-lo, do ponto de vista filosófico e literário, como a era do nonsense, senão do trocadilho: uma bobagem sobre que besteira!”
Falemos agora de Goethe: segundo P. Vesperini, disseram, foi com os olhos de Goethe, entre outros, que P. Hadot viu e deformou as realidades da Antiguidade. Goethe é de fato o assunto do último livro de meu marido intitulado Não se esqueça de viver! Goethe e a tradição dos exercícios espirituais, publicado em 2008), e também parcialmente de seu penúltimo livro (O véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de Natureza, publicado em 2004). Digamos desde já que, em P. Hadot, o interesse por Goethe não foi despertado por sua formação no seminário menor e maior de Reims, nem por seus estudos filosóficos posteriores. Quando o conheci, ele conhecia dois ou três pequenos poemas de Goethe, e era tudo. Mas depois de nosso casamento em 1966, ambos nos propusemos a apresentar um ao outro os tesouros de nossas respectivas culturas. Graças a meu marido, ao programa de leitura que ele tinha planejado para mim e à nossa frequência regular à Comédie Française, pude adquirir um conhecimento bastante bom da literatura francesa. Acho que cheguei ao mesmo resultado para meu marido em relação à literatura alemã. Quanto a Goethe, eu havia trazido para a França discos de quase todas as peças teatrais de Goethe e nós os ouvimos juntos. Seu contato com o livro de Goethe intitulado Die Metamorphose der Pflanzen (A Metamorfose das Plantas) ocorreu em 1967 por acaso e através do Ensaio sobre a Geografia das Plantas de Alexander von Humboldt ⁴⁸. Em seguida, eu sugeri que ele lesse as Afinidades Eletivas, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, Poesia e Verdade e, finalmente (ele já lecionava no Collège de France) o enigmático e polêmico Fausto II, cuja representação parcial tínhamos visto na Alemanha, da qual não havíamos entendido grande coisa. Para elucidar as dificuldades desta obra, trocamos correspondência com Hans-Jürgen Schings, grande conhecedor de Goethe, e com Michael Jaeger, renomado germanista, que então escrevia seu livro intitulado Fausts Kolonie (publicado em 2004), livro que viria a ser a controvérsia em torno da interpretação de Fausto II. Meu marido, já aposentado, mantinha com o sr. Jaeger uma troca de opiniões bastante intensa sobre Fausto II, troca que este evoca em vários lugares em seu livro recente (publicado em 2015) com o título Wanderers Verstummen, Goethes schweigen, Fausts Tragödie. ou: Die gross Transformation der Welt.
No que diz respeito ao penúltimo livro de P. Hadot, O véu de Ísis, "trata-se sobretudo, diz P. Hadot ⁴⁹, de uma obra histórica, que se refere sobretudo ao período que vai da Antiguidade ao início do século século XX, e que traça a evolução das atitudes do homem em relação à natureza apenas na perspectiva da metáfora do desvelamento." O último livro, intitulado Não se esqueça de viver. Goethe e a tradição dos exercícios espirituais ⁵⁰, estuda, como explica P. Hadot, "a prática, em Goethe, do que chamo de 'exercícios espirituais', inspirados na filosofia antiga, mas retomados e desenvolvidos por uma longa tradição na filosofia ocidental." Nesses dois livros, a demonstração sempre ilumina a influência da Antiguidade sobre o pensamento moderno.
Creio ter assim demonstrado que o interesse de Pierre Hadot por Goethe, muito vivo, mas relativamente tardio, não poderia de modo algum ter influenciado seu artigo "exercícios espirituais", datado de 1977, mas que foi, ao contrário, sua obra sobre a importância dos exercícios espirituais para a filosofia da Antiguidade que o levou mais tarde a trabalhar em seu Nachleben (Vida pós-morte).
Muito mais amplamente, tendo examinado a tese de P. Vesperini segundo a qual os trabalhos de Pierre Hadot sobre a Antiguidade teriam sido influenciados pelo idealismo alemão a ponto de esta influência o ter impedido de abordar a Antiguidade de forma objetiva ⁵¹, espero ter mostrado que essa tese é pura invenção de seu autor e não se baseia em nada ⁵².
* Ilsetraut Hadot é filósofa e historiadora da filosofia especializada em estoicismo, neoplatonismo e, mais geralmente, em filosofia antiga.
Fonte: HADOT, Ilsetraut. L’idéalisme allemand a-t-il, chez Pierre Hadot, perverti la compréhension de la philosophie antique ?. In: Revue des Études Grecques, tome 129, fascicule 1, janvier-juin 2016. pp. 195-210;
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Sobre o "Relatório de atividade final, Contrato de pós-doutorado", de P. Vesperini na Internet (http://www.hesam.eu/labexhastec/files/VeSPerini-rapport-dactif%CC%-Final-du-labex-hastec.pdf *) para o Labex HASTEC (= Laboratório europeu de história e antropologia dos saberes, técnicas e crenças), ano letivo 2013-2014, intitulado “De volta à ética dos Antigos: para um exame crítico das teses de Pierre Hadot e Michel Foucault” [= Vesperini, "Rapp." a partir de então] e da conferência dele intitulada «Para uma arqueologia comparativa da noção de 'espiritual'. Michel Foucault e a 'filosofia antiga' como 'espiritualidade'”, anexa a esta exposição nas páginas 14-28 e a ser publicada nos anais do Colóquio “Michel Foucault e as religiões”, realizado em Lausanne em outubro de 2014 [=Vesperini, "Conf.", a partir de então]. O texto da conferência será citado conforme a paginação do Relatório.
* N.T.: O link fornecido para acesso ao site do Labex HASTEC não mais permite o download que certamente esteve disponível no momento do lançamento deste artigo (2016). Para busca na Internet, sugiro que se utilize o Safari, entrando com os seguintes títulos em francês:
"Retour sur l’éthique des anciens : pour un examen critique des thèses de Pierre Hadot et de Michel Foucault",
"Pour une archéologie comparative de la notion de ‘spirituel’. Michel Foucault et la ‘philosophie antique’ comme ‘spiritualité’" e
"Michel Foucault et les religions".
² P. Vesperini, La philosophia et ses pratiques d’Ennius à Cicéron, Bibliothèque des Écoles Françaises d’Athènes et de Rome 348), Rome : École Française de Rome, 2012 (Trad. A filosofia e suas práticas de Ênio a Cícero, Biblioteca das Escolas Francesas de Atenas e de Roma 348), Roma: Escola Francesa de Roma, 2012).
³ Gretchen Reydams-Schils, Compte rendu de P. Vesperini, La philosophia et ses pratiques d’Ennius à Cicéron, Journal of Roman studies, mars 2015 (Trad. Análise crítica de P. Vesperini, A filosofia e suas práticas de Ênio a Cícero, Journal of Roman Studies, março de 2015).
⁴ Grifos nossos.
⁵ Publicado em 2001 por Albin Michel em Paris e posteriormente em livro de bolso (Biblio Essais) em 2003. As citações referem-se à primeira edição. Um resumo, com o título “Meus livros e minhas pesquisas”, pode ser encontrado em P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique (Trad. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga) da quarta edição (2002): cf. abaixo, nota 43.
⁶ Cf. Vesperini, "Rapp.", p. 4.
⁷ Como um artigo introdutório para tomo LXXXiV (1977) do Anuário da École des Hautes Etudes, Seção V, p. 25-70. P. Vesperini não dá o local da 1ª publicação nem a data exata, nem mesmo o título da coletânea em que o artigo em questão foi republicado (Exercices spirituels et philosophie antique, 1981). Esta coletânea teve quatro edições, revisadas e ampliadas a partir da segunda (ver abaixo, n. 43). Vesperini aparentemente cita a 4ª edição, uma vez que fornece a data, mas escreve incorretamente (na nota 3)'20022', mas o correto é em 2002. Não se trata da segunda edição, mas da quarta.
⁸ Observemos imediatamente que a personalidade muito complexa de Goethe não pode de forma alguma ser incluída no rótulo de "idealismo alemão": ele foi, entre outras coisas, fortemente influenciado pelo estoicismo, epicurismo, Spinoza e pelas ciências naturais de seu tempo. Sua compreensão da história é diametralmente oposta à de Hegel; ver Michael Jaeger, Wanderers Verstummen, Goethes Schweigen, Fausts Tragödie. Oder: Die grosse Transformation der Welt, Würzburg 2015. Sobre o interesse relativamente tardio de P. Hadot por Goethe, cf. mais adiante aqui.
⁹ Vesperini, "Rapp.", pp. 4 ss. Cf. Vesperini, "Rapp.", p. 5: “Foi provavelmente depois da sua eleição para o Collège de France que Pierre Hadot se sentiu mais à vontade para afirmar a sua ligação à tradição idealista alemã (sic!)...”. Essa frase, que sugere que meu marido se sentia menos livre para dizer o que pensava na École Pratique des Hautes Études do que no Collège de France, é uma observação totalmente gratuita e desprovida de realidade. Tendo sido sua esposa durante esses dois períodos de sua vida, nunca pude detectar em meu marido o menor sinal de pressão externa sobre seu pensamento. Pelo contrário, sempre apreciou muito as condições de investigação que estas duas instituições lhe ofereceram. Aliás, no relato autobiográfico que acabei de citar acima (nota 5), não há a menor alusão a qualquer constrangimento que teria sofrido durante o ensino na École Pratique des Hautes Études, pressão que ele não teria reprovado mencionar, pois nunca se absteve, seja em sua vida cotidiana ou nesta autobiografia, de apontar as práticas duvidosas na vida pública que chegaram ao seu conhecimento. Mas, como veremos, a hipótese segundo a qual P. Hadot foi fortemente influenciado pelo idealismo alemão desde o início de sua carreira, a ponto de não mais poder abordar a Antiguidade de maneira objetiva, é essencial para a argumentação de P. Vesperini; porque o artigo "Exercícios espirituais", seu alvo favorito, foi escrito por P. Hadot na época de seu ensino na École Pratique des Hautes Études, mas as provas que Vesperini se esforça em fornecer para provar sua hipótese são todas extraídas dos últimos livros de P. Hadot, escritos após sua aposentadoria. Ver, a esse respeito, a interpretação fantasiosa forçada por P. Vesperini (mais abaixo, aqui mesmo) no índice da coletânea de artigos Exercices spirituels.
¹⁰ Plotino lido desde antes de 1952 (cf. nota 15)
¹¹ A paixão de P. Hadot pelo existencialismo, muito em voga na Paris do pós-guerra, durou pouco e desapareceu antes de ele ingressar como diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études. Cf. La philosophie comme manière de vivre... (Trad. A Filosofia como Maneira de Viver...), p. 206-209 e Pierre Hadot, L’enseignement des antiques, l’enseignement des modernes (Trad. Pierre Hadot, O ensino dos antigos, o ensino dos modernos), sob a direção de Arnold I. Davidson e Frédéric Worms, Les rencontres de Normale Sup (Trad. Os encontros da Escola Normal Superior), edição Rue d'Ulm, Paris, 2010, pp. 32 ss.
¹² Ver abaixo, pág. 209 ss.
¹³ P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre... (Trad. A Filosofia como Maneira de Viver...), (2001), pp. 59 ss. Grifos nossos.
¹⁴ P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre... (Trad. A Filosofia como Maneira de Viver...), (2001), p. 59. Cf. também abaixo (nota 40).
¹⁵ Quanto aos seus estudos e trabalhos filosóficos anteriores a 1968, P. Hadot menciona (La philosophie comme manière de vivre..., pp. 39-67) o estudo do tomismo e do existencialismo; sua intenção inicial, mas rapidamente abandonada, de fazer uma tese sobre Rilke e Heidegger; sua presença em 1949 nas cursos de Hippolyte sobre Hegel e sobretudo sobre Heidegger (esta menção fugaz de Hegel é no período até 1968 a única que P. Hadot faz de um representante do idealismo alemão!); seu interesse pelo misticismo em todas as suas formas (religiosas e não religiosas): entre outras leituras de São João da Cruz e Plotino; seus 20 anos de trabalho (até 1968) sobre o retórico romano Marius Victorinus, cristão, mas influenciado pelo neoplatônico Porfírio (em colaboração com Paul Henry); neste contexto: estudos aprofundados sobre o neoplatonismo (Proclus, Damascius, Porfírio, entre outros nos cursos de A.-J. Festugière e P. Courcelle); mas ele também empreende, e isso é importante, estudos puramente filológicos como a crítica dos textos, a paleografia latina, a codicologia (na École Nacional des Chartes e na IV seção da École Pratique dês Hautes Études), como já foi dito; esses estudos conduziram a uma edição crítica completa das obras teológicas de Marius Victorinus (com P. Henry), à edição dos fragmentos do comentário sobre o Parmênides, que ele atribui a Porfírio, e à edição da Apologie de David (Trad. Apologia de Davi) de Ambrósio de Milão. Ele segue cursos sobre gnosticismo e maniqueísmo com A.-Ch. Puech; tradução alemã das obras teológicas de Marius Victorinus com o teólogo alemão C. Andresen; teses de doutorado em 1968: Marius Victorinus. Recherches sur sa vie et ses œuvres (Trad. Marius Victorinus. Pesquisas sobre sua vida e suas obras) (tese complementar publicada em Paris em 1971) e Porfírio e Victorinus I et II (Paris 1968). Durante esses 20 anos amplamente ocupados por Victorinus e Porfírio, P. Hadot também frequentou o grupo de pesquisa filosófica da revista Esprit, liderado por Paul Ricoeur, o Centro de Pesquisas em Psicologia Comparadas de Ignace Meyerson e o Collège Philosophique dirigido por Jean Wahl. Interessa-se pelo Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein (entre 1958-1960) em razão de “que este último falava de misticismo nas últimas páginas de sua obra” e publica uma série de artigos sobre este autor. Em 1963 escreve Plotin ou la simplicité du regard (Trad. Plotino ou a simplicidade do olhar). Quando, em 1964, P. Hadot é eleito Diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études, seção das Ciências Religiosas (cadeira de Patrística Latina), ali ministra cursos sobre os sermões de Ambrósio e as Confissões de Agostinho, e depois de mudar o título de sua cátedra, sobre Plotino, Marco Aurélio e a lógica antiga. Em 1968 P. Hadot dá uma palestra nos Encontros de Eranos de Ascona com o título “L’influence du néoplatonisme sur la philosophie de la nature" (Trad. "A influência do neoplatonismo na filosofia da natureza”). Ao longo desse período não há vestígios de um interesse particular de P. Hadot pelo idealismo alemão.
¹⁶ P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre. Entrevistas com J. Carlier e Arnold I. Davidson, p. 67 ss. (ver acima, nota 5).
¹⁷ Trata-se de minha tese de doutorado alemã Seneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenleitung (Sêneca e a tradição greco-romana da direção espiritual), apresentada em 1965 à Faculdade de Filosofia da Freie Universität Berlin, publicada em Berlim em 1969 e em tradução francesa, publicada pela Librairie Vrin de Paris em forma atualizada em 2014: Sénèque. Direction spirituelle et pratique de la philosophie (Trad. Sêneca. Direção espiritual e prática da filosofia). Cf. P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre, p. 64: "Eu não tinha a menor ideia, quando a conheci, de que minha esposa estava escrevendo um doutorado para a Freie Universität Berlin, sob a orientação de Paul Moraux, sobre o tema 'Sêneca e a tradição da direção espiritual na Antiguidade', que estava extremamente próximo de minhas próprias preocupações, orientadas por muito tempo para a definição da filosofia como um exercício espiritual e como maneira de viver. Minha esposa teve uma influência muito importante na evolução do meu pensamento." Esta tese contém, entre outras coisas, um capítulo muito desenvolvido com o título "Die Seelenleitung der hellenistischen Philosophenschulen" (Trad. A direção espiritual das escolas filosóficas helenísticas) que antecipa as pesquisas posteriores de meu marido sobre este assunto, fato que também foi notado por outros, entre os quais:A. Bosch-Veciana, El moviment lector de Pierre Hadot. De l’Antiguitat Clàssica a la contemporaneïtat de la vida filosòfica, Barcelona 2013, pp. 43 e 50, e R.-P. Droit em sua resenha sobre a versão francesa de minha tese em alemão, publicada em 10 de abril de 2015 no jornal Le Monde.
¹⁸ Por exemplo, p. 60 (tradução francesa p. 120).
¹⁹ Cf. também A. Bosch-Veciana, op. cit., p. 160, nº 67. Lembro-me bem das discussões que tivemos, meu esposo e eu, na hora de escrever o artigo “Exercícios espirituais”, para encontrar termos mais adequados, mas sem sucesso. O resultado dessas reflexões pode ser lido na introdução do artigo “Exercices spirituels” de P. Hadot, citado mais adiante na nota 28. Aliás, o próprio P. Vesperini não poderia encontrar melhor.
²⁰ Sobre a dificuldade de encontrar melhor, cf. a nota precedente.
²¹ Ou seja, usado em conexão com todas as escolas filosóficas nos períodos helenístico e imperial. em outros contextos, essa expressão também foi usada, por ex. de G. Friedmann (cf. P. Hadot, Spiritual Exercises and Ancient Philosophy, (1993) p. 13 e de J.-P. Vernant, aplicada aos exercícios de rememorização atribuídos a Empédocles (Mythe et pensée chez les Grecs, p. 143).
²² Algumas explicações sobre o meu conhecimento do idealismo alemão: Ao contrário do que acontecia na França, o ensino da filosofia não tinha lugar na Alemanha na escola, nem no meu tempo nem no tempo dos meus pais e avós. Estudei filosofia moderna na Freie Universität de Berlim como parte de um Nebenfach (= disciplina subsidiária) ao lado das duas principais disciplinas: filologia latina e filologia grega, e isso significa que o objetivo era limitado: visava apenas adquirir um conhecimento básico e portanto, não muito completo, dos grandes sistemas principais da filosofia europeia moderna. Esta é provavelmente a razão pela qual nenhum dos grandes sistemas filosóficos, exceto o pensamento de Spinoza, realmente me impressionou, e depois não tive nem a oportunidade nem o tempo (eu não só pude iniciar meus estudos universitários aos 28 anos e em situação financeira precária) de aprofundar meus conhecimentos até mesmo na filosofia de Spinoza, da qual muito me arrependo. Por outro lado, nunca ouvi as palavras "idealismo alemão" pronunciadas durante meus estudos de filosofia antiga - ensino ministrado anteriormente na Freie Universität de Berlim no contexto da filologia grega e latina pelo professor belga Paul Moraux, que orientou minha tese em questão e que exigia de seus alunos sobretudo a busca pela objetividade histórica.
²³ Vesperini, "Rapp.", p. 3.
²⁴ P. Hadot muitas vezes apontou a necessidade de o historiador ser impecavelmente rigoroso na análise histórica e filológica, antes de fazer qualquer esforço para possivelmente extrair, dos textos estudados, um ‘alimento espiritual’. Cf. La philosophie comme manière de vivre, p. 105-106, 114-115, 119, 212(embaixo)-13, bem como seu prefácio a E. Bertram, Nietzsche. Essai de Mythologie, tradução francesa por R. Pitrou de 1900 (Éditions du Félin, Paris 1990), p. 34: "...é apenas a ascese do rigor científico...que pode nos dar o direito de nos envolvermos na história...". Cf. também acima, e ainda nota 40.
²⁵ P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre..., (2001), p. 101.
²⁶ Vesperini, "Conf.", p. 21.
* N.T.: Procusto era um assaltante mitológico, que vivia em uma floresta e que possuía uma cama, sobre a qual fazia deitar os viajantes que atravessavam sua floresta. Fazia deitar o viajantes altos sobre uma cama curta, cortando os pés dos que excediam o comprimento da cama. Por outro lado, fazia deitar os baixinhos em uma cama grande, para submetê-los ao suplício de esticar o seu corpo até atingir o tamanho da cama. Ou seja, o tamanho da cama era o padrão utilizado por Procusto.
Em psicologia, é conhecida a "síndrome de Procusto" que se refere a uma patologia de determinadas pessoas que não hesitam em diminuir e humilhar outras que as façam se sentirem ameaçadas.
Em psicologia, é conhecida a "síndrome de Procusto" que se refere a uma patologia de determinadas pessoas que não hesitam em diminuir e humilhar outras que as façam se sentirem ameaçadas.
²⁷ Entre outras coisas, na p. 60 de minha tese alemã, e na p. 120 embaixo da versão francesa.
²⁸ P. Hadot, "Exercices spirituels", Annuaire de l'École Pratique dês Hautes Études, V Seção, t. LXXXIV (1977), p. 5 ss. = P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, Études Augustiniennes, Paris 1993, p. 13-14. Grifo nosso na frase que Vesperini cita desse texto.
²⁹ Vesperini, "Conf.", p. 20.
³⁰ Frisamos que o Espírito de que fala P. Hadot para os textos antigos nada tem a ver com o idealismo alemão: é o "Noûs" de Plotino, de Aristóteles, dos neoplatônicos em geral e a razão universal dos estóicos; P. Hadot especifica várias vezes e com muita clareza: La philosophie comme manière de vivre ..., p. 127, 133, 139, 141, 216.
Sobre W. von Humboldt, receio que se trate de uma confusão por parte de Vesperini com o naturalista Alexander von Humboldt: cf. o índice de nomes do livro Le voile d'Isis (Trad. O Véu de Ísis).
³¹ P. Hadot, Annuaire, p. 37 (= P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, 1993, p. 25).
³² P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, p. 127.
³³ Em minha tese alemã de 1965 (Seneca und die griechisch-römische Tradition der Seelenleitung, p.7 ss.) como em sua versão francesa de 2014 (Sénèque. Direction spirituelle et pratique de la philosophie, pp. 21-23), eu havia feito o mesmo em relação à expressão 'Seelenleitung' traduzida por 'direção espiritual'.
³⁴ Veja o título da conferência dele: “Pour une archéologie comparative de la notion de ‘spirituel’...” (Trad. Para uma arqueologia comparada da noção de ‘espiritual’....) Na primeira página (p. 14 do "Rapp.") ele diz: “a tese que gostaria de defender é simples: acredito que o uso da categoria de 'espiritual' ou 'espiritualidade', em conexão com a cultura antiga, apresenta um problema, pelo menos por duas razões: seu significado francês [...] é notoriamente vago e plástico; por outro lado, esse significado ainda me parece derivar da cultura erudita do século XIX. [...] Para demonstrar essa tese, seria necessário identificar todas as categorias antigas que traduzimos como 'espirituais', o que revelaria imediatamente sua heterogeneidade (só para o grego: psychikós, noètos, pneumatikós, logikós) e interpretaria não de nossas concepções modernas do espiritual (que são elas próprias plurais), mas da cultura antiga; e, por outro lado, deve-se perguntar por que e desde quando falamos de 'espiritual' como dele tratamos.» Dado que o próprio P. Hadot deixou bem claro como entende o adjetivo 'espiritual' na expressão 'exercícios espirituais', toda a 'arqueologia comparada' de Vesperini é supérflua em relação a P. Hadot.
³⁶ Cf. acima.
³⁷ Vesperini, "Conf.", p. 21, nota 38, 2ª citação = P. Hadot, Le voile d'Isis, Essai sur l'historie de l'idée de Nature, Paris 2004, cap. VIII, 21, 4, p. 275, onde P. Hadot interpreta a seguinte passagem de Novalis: "Se é verdade que nenhum mortal consegue levantar o véu, como indica a inscrição que vejo ali, teremos que buscar tornar-nos imortais. Quem renuncia a levantar o véu não é um verdadeiro discípulo de Saïs.»
³⁸ P. Hadot, ibid., p. 275.
³⁹ Na nota 50, p. 364, reportando a seu artigo L’apport du néoplatonisme à la philosophie de la nature (Trad. A contribuição do neoplatonismo à filosofia da Natureza), in Tradition und Gegenwart, Eranos-Jahrbuch, 1968, Zürich 1970, p. 91-132.
⁴⁰ P. Hadot, La philosophie comme manière de vivre..., Paris 2001, p.123. Grifo nosso. Cf. também acima, p. 198 e P.Hadot, L’enseignement des antiques, l’enseignement des modernes (cf. acima, nota 11), p. 29 e 30.
⁴¹ Já refutei a primeira frase dessa citação na minha nota 9.
⁴² Vesperini, "Rapp.", p. 5. Grifo nosso. A questão de saber até que ponto seria possível ver em Kierkegaard e Nietzsche representantes do idealismo alemão não pode ser tratada aqui: Kierkegaard é, aliás, dinamarquês, e Nietzsche, pelo menos em parte de suas obras, é antes considerado como um precursor do existencialismo e da 'Lebensphilosophie'.
⁴³ As referências exatas dessas publicações sucessivas são as seguintes:
P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, études augustiniennes, Paris 1981 : contém 6 artigos.
P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, 2ª edição revista e aumentada, Institut d'Études Augustiniennes, Paris 1987 : contém 11 artigos.
P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, 3ª edição revista e aumentada, Institut d’Études Augustiniennes, Paris 1993 : contém 11 artigos.
P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique. Prefácio de Arnold I. Davidson, nouvelle édition revue et augmentée (en livre de poche), Albin Michel, Paris 2002 : contém 18 artigos.
⁴⁴ Um exemplo: na p. 85, nº 5 da terceira edição, P. Hadot dá a seguinte referência: "Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, § 40 (trad. G. Bianquis)", referência que o índice de citações de Nietzche substitui ou suplementa por "Jenseits von Gut und Böse (Além do Bem e do Mal) §§ 40 e 295, KSA, tomo V, pp. 58 e 237: NRF, t. VI, pp. 57 e 206.
(KSA = Friedrich Nietzsche, Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, ed. por G. Colli e M. Montinari, 15 tomos, Berlim (de Gruyter), 1980.
NRF = Frédéric Nietzsche, Œuvres philosophiques complètes, 14 tomos, Paris (NRF), 1974 e ss.)
⁴⁵ Na verdade, há outro artigo de P. Hadot com o mesmo título. Está na coletânea de artigos intitulada Qu’est-ce que la philosophie antique? (Trad. O que é Filosofia Antiga?)", Gallimard (Folio ensaios n° 280), Paris 1995, pp. 46-69, artigo cujo tema não é a interpretação da figura de Sócrates por Nietzsche e Kierkegaard, mas a interpretação de Sócrates de Platão por P. Hadot. É, portanto, este artigo que Vesperini deveria ter lido para saber como o próprio P. Hadot interpreta esse personagem.
⁴⁶ Igualmente a sra. G. Reydams-Schils (cf. as referência da nota 3), a sublinhar que "o método dele [i.é, o de P. Vesperini] desvia os seus leitores".
⁴⁷ P. Hadot, La citadelle intérieure. Introduction aux Pensées de Marc Aurèle (Trad. A cidadela interior. Introdução aos Pensamentos de Marco Aurélio), Paris 1972, Librairie Anthème Fayard, p. 10.
⁴⁸ Mas a leitura deste último só o levou, por volta de 1980, a realizar pesquisas aprofundadas sobre o contexto histórico da página de dedicatória de Humboldt a Goethe (cf. P. Hadot, Zur Idee der Naturgeheimnisse. Beim Betrachten des Widmungsblattes in den Humboldtschen "Ideen zu einer Geographie der Pflanzen, Akademie der Wissenschaften und der literatura mainz. Abhandlungen der Geistes- und Sozialwissenschaftlichen Klasse, Jahrgang 1982, n° 8, Wiesbaden 1982), pesquisas que levarão em 2004 à publicação de seu livro O véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de Natureza).
⁴⁹ P. Hadot, Le voile d’Isis, Paris 2004, p. 15.
⁵⁰ P. Hadot, N’oublie pas de vivre. Goethe et la tradition des exercices spirituels, Paris, Albin Michel, 2008.
⁵¹ Parece também que, segundo Vesperini, nenhuma abordagem objetiva é possível: ele faz parte, portanto, de uma certa corrente do pensamento contemporâneo. Ele é, de fato, da opinião de “que a filosofia antiga é sempre um objeto construído pelos próprios estudiosos” (Vesperini, “Rapp.”, p. 6). Vou deixar P. Hadot responder a tal opinião. Ele escreve em particular (p. 106): “portanto, pode-se emitir interpretações nas quais se diz qualquer coisa sobre qualquer coisa” (“interprétation, objectivité et contresens” em P. Hadot, La Philosophie comme manière de vivre..., Paris 2001, pp. 105-118 (Cf.também acima, p. 00 ss.), e P. Hadot, Prefácio a Ernst Bertram, Nietzsche, Essai de Mythologie, tradução francesa de R. Pitrou, Paris 1990, p. 20 ss.).
⁵² Estou prevendo o mesmo tipo de desinformação, também no que diz respeito ao trabalho de meu marido, desta vez sobre Marco Aurélio e o próprio imperador estóico, no futuro livro de P. Vesperini sobre este último.
III. AGRADECIMENTO
O gerente do Blog de São João del-Rei agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição da foto utilizada neste artigo.
IV. BIBLIOGRAFIA (recomendada pelo tradutor)
BRAGA, Francisco José dos Santos: Prefácio ao livro "Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga" de Pierre Hadot, postado em 04/07/2023 no Blog de São João del-Rei
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2023/07/prefacio-ao-livro-exercicios.html 👈
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CHASE, Michael: Remembering Hadot - Parte I
_____________: Remembering Hadot - Parte II
SILVA, João Gabriel Lima: A GRANDE TRADIÇÃO: Jacques Lacan, a Filosofia Antiga e o Cristianismo, Rio de Janeiro, 2017 (tese de doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da UFRJ para obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica)
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WIKIPEDIA: verbete 'Ilsetraut Hadot'
Link: https://fr.wikipedia.org/wiki/Ilsetraut_Hadot 👈
WIKIWAND: verbete 'Ilsetraut Hadot'
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4 comentários:
Hegel foi um filósofo destacado, sua sala de aula era repleta de alunos, o que despertava ciúme em Schopenhauer.
Pena que foi (mal) utilizado pelo marxismo.
Abs
Olá Francisco, muito obrigado pelo seu artigo sobre o relacionamento entre as obras de Pierre Hadot e o idealismo alemão no seu tempo, conforme a opinião da filósofa Ilsetraut Hadot.
Um professor de história num colégio americano em Buffalo, tinha a opinião de que, depois da primeira guerra mundial de 1914 a 1918, os aliados humilharam a Alemanha de tal maneira, que devia surgir um 'libertador', que foi Hitler!
Tudo o que acontece na história humana tem uma causa!. Melhores votos para você e para Rute!! Paz e Bem! fr. Joel.
Certamente interessante. Vamos, assim tomando conhecimento e colecionando as preciosidade que você nos oferece. Só temos a agradecer. Muito obrigado.
Caro professor Braga
Apesar da minha dificuldade em situar o contexto da polêmica, o debate me ajuda a conhecer mais sobre os temas da Filosofia Antiga e do próprio Idealismo Alemão.
Grato pela oportunidade de leitura a partir de sua tradução.
Saudações.
Cupertino
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