segunda-feira, 26 de junho de 2023

VELHO VENTO

Por Francisco José dos Santos Braga 
  
VELHO VENTO (2015), por Eduardo Pinto Canabrava

 
Neste artigo com o título sugestivo de VELHO VENTO, dei tratos à bola para decidir como homenagear três autores, de uma só vez, utilizando o tema proposto e dado o fato de terem os três publicado livros tratando do referido tema, de forma única e original, cada um a seu modo. São eles: o poeta simbolista Cruz e Sousa (1861-1898), o poeta Eduardo Pinto Canabrava e o escritor Lúcio Flávio Baioneta. 
 
I.  VELHO VENTO ¹ (2015), pelo poeta Eduardo Pinto Canabrava 
 
Inicialmente, cabe observar que o nome do poema a seguir é também título do livro. Vamos à sua leitura: 
 
Velho vento, muito velho o vento. 
Enrustido no morro da Garça desce invernoso, 
despirocado e esparrama-se no cerrado. 
Bole veredas a dormir sob buritizeiros e a lua. 
Saracoteia ipês e desnuda-os no frio da noite,
libidinagem imprópria a um velho vento. 
Fustiga e eriça os pelos dos animais noturnos. 
Mofento, caquético, é o guardião 
das saudades e segredos do povo do sertão. 
Penetra nas vilas e cidades, bate janelas  
[entreabertas, 
escorrega nas frestas das portas e dos telhados, 
intimidade de velho conhecido. 
Atiça o lume das brasas adormecidas nos fogões a 
 [lenha e 
geme nas esquinas as dores da senectude. 
Desperta os pássaros bem antes de raiar o dia 
e incita casais ao aconchego nas madrugadas frias. 
Velho vento. 
Vento bandalho. 
 
Curiosamente o poeta não se furta a meditar sobre a velhice e acrescenta, a modo de crônica, sua reflexão em noite do Natal de 2015: 

Não se chega aos 80 anos de idade impunemente, mormente em época defaróis à noite apagados /por ventos desesperados ² , no dizer do referido poeta simbolista, minha fonte de inspiração. 
 
O tempo passa, e como passa... Até dizem que o tempo é remédio para tudo. Para longevos, o tempo retorna com a força dos Velhos Ventos, aconchega-se na sala de estar, pede água e fica. Ao idoso tudo é permitido, até mesmo inventar, ornar e musicar suas andanças. Caminhar nem sempre é um movimento para frente, pode ser um retorno ao mundo da memória ou o reencontro com a identidade perdida ao longo da luta pela sobrevivência. 
 
Viver é perigoso”, ensinou-nos o sertanejo ilustre, João Guimarães Rosa, mas deixar de viver por conta disso é abdicar do sagrado direito de ser feliz. O psicólogo austríaco Paul Watzlawick (1921-2007) concluiu que “qualquer pessoa pode ser feliz, mas se tornar infeliz é algo que requer aprendizado”. Muitos só descobrem isso no final, quando não há mais tempo para encontrar o caminho de volta. 
 
Aprendem a ser infelizes, gostam e consideram a infelicidade uma fatalidade. 
 
A velhice é o retorno ao deslumbramento do lúdico da infância. Dizem que a sabedoria é produto do conhecimento e das experiências vividas. Lao-Tsé nos ensinou que conhecer os outros é inteligência, mas conhecer a si mesmo é a verdadeira sabedoria.
 
Nesse particular, sábio é aquele que perdoa a si e elege o direito ao contraditório como princípio de liberdade. Aceitar a maravilha da natureza e seus contrastes e não se desesperar diante das incertezas. 
 
Este é o milagre: nascer, viver e morrer. Não há segredo. Tudo é possível. Façamos da vida uma canção e da morte uma apoteose, síntese na dialética do existir. 
 
Estes escritos são produtos da ociosidade. Peço desculpas pela ousadia. Em nenhum momento fui possuído por pretensão literária... seria um despropósito. Trata-se de catarse ou uma forma de encher lingüiça com narrações sobre acontecidos na minha infância e adolescência. Muitas são verdadeiras, outras “inventórias”, mas que podem ser reais. Se não, deveriam. As lembranças se perdem ou se fantasiam no rolar dos anos. Dizem que o tempo é o senhor da razão. Tenho minhas dúvidas. O tempo não julga, não condena nem absolve. Não tem o poder dos juízes nem a força dos deuses. Já o vento tem o poder saneador. É como crustáceo, limpador e lixeiro do mar. Gibran Khalil Gibran mostra-nos o grande papel do vento, no seu belo livro O Profeta :
Somos as sementes de uma planta tenaz, e é quando amadurecemos e atingimos a plenitude de coração que o vento se apodera de nós e nos espalha.
 
II.  Correspondência de Lúcio Flávio Baioneta ³ a Eduardo Pinto Canabrava, em elogio pelo lançamento de "Velho Vento" (2015):
 
O VELHO VENTO
 
Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2016.
 
Meu prezado Eduardo Pinto Canabrava,
 
Um dia, madrugada ainda, sol com medo de sair por causa do brilho da lua que iluminava os ermos da Serra do Cabral, eu caminhava por uma trilha de areia muito fina e muito branca, boca de vereda, buscando um lugar bem lá no alto, onde um outro Eduardo Canabrava , seu conterrâneo e parente, há muitos anos, tinha passado, dias e dias, acampado num rancho feito de pindoba e folhas de buriti. Dizia-me que ficava pintando os grandes vazios, as veredas com seus buritizais a perder de vista, e se deslumbrando com os peixes transparentes que ele descobrira nas lagoas perdidas naqueles socavões. Às vezes, quantas vezes, ele relembrava aquelas aventuras e, rindo, me contava partes delas. Tempo longe. 
 
Eu andava e, de repente, um pé de vento passou por mim, falando alguma coisa ao meu ouvido. Tentei, mas não consegui entender. Daí a pouco, o vento voltou, falou de novo, balançou o capim fino a minha volta, espantou as folhas secas de meu caminho e, não querendo aparecer, levantou poeira e sumiu, enrolando em si próprio. Lá na frente, levantou novamente poeira branca na mesma trilha em que eu andava, parecia querer marcar um rumo. Talvez. Continuei sem entender e, impaciente, perguntei a Raimundo Vaqueiro, preto velho que era meu guia naquelas andanças, o que o vento estava querendo me dizer. 
 
Ele parou, descansou o alforje feito com couro de campeiro que trazia no ombro e, com aqueles olhos cansados de tanto viver, disse-me pausadamente: 
Este vento, moço, começa numas árvores grandes, muito grandes, que estão longe daqui. Elas balançam para um lado e para outro e, nesse jogo de vai e vem, elas abanam o vento. Se balança muito, açoita. É de lá que ele começa a navegar. Ganha umas planuras e vem rompendo, vem rompendo até chegar nas gerais. Daí ele começa a bestar, de vereda em vereda, de buriti em buriti, passando os beiços nas folhas verdes, que negaceiam. O balanço das folhas do buriti é o beijo do vento. Quando a folha vira duma vez é porque ela não quer o beijo, negaceia. Quando aquele vento aparta das veredas, ele encontra as águas do Velho Chico, aquele mesmo rio que alguns índios velhos chamam de Opará. Aí ele embala outra vez e vem rio acima até encontrar a embocadura do rio das Velhas, Ali ele abandona o Velho Chico e se enrabicha com o das Velhas. Nessa correria doida, ele topa com o paredão da Serra do Cabral. Empina, sobe o paredão e, cansado, esmorece e vira a brisa que está falando com o moço. O vento fica encantado, começa a falar e começa a mudar de nome:
Vento carinhoso da manhã. Vento cheiroso da madrugada indecisa, enluarada. Vento despertador que assobia no telhado. Vento amigo, vento dengoso, vento coiteiro, vento que ri e cochicha pra vosmecê. Sabe o que ele está dizendo, moço? "Bom dia, a vida é linda, curta e perigosa. Viva sem medo de ser feliz." 
O vaqueiro, quando terminou de falar do vento, colocou o alforje no ombro, tirou um palheiro atrás da orelha, passou o dedo na cinza, bateu a binga, assoprou a brasa do pavio e o acendeu. Uma fumaça azul tomou conta da manhã mais azul ainda. Nunca mais o vi. 
 
Meu caro Eduardo, foi lindo ler seu livro Velho Vento
 
Voltei, nas asas daquele velho vento, à nossa cidade do Curvelo. 
 
Apeei na porta da loja do meu pai, do outro lado da casa onde vocês moravam, na praça da Matriz, bem em frente ao coreto. Nos meus olhos, as lembranças, a saudade e as lágrimas que teimavam em distorcer as imagens da praça. Fui criança outra vez. 
 
Parabéns! 
 
Quando, um dia, eu viajar na ponta de uma nuvem, naquela viagem sem volta, vou levar comigo o seu livro para o Eduardo Canabrava Barreiros. Ele vai adorar. 
 
Abraços do Lúcio Flávio Baioneta.
 
(in BAIONETA, Lúcio Flávio: DE BANQUEIRO A CARVOEIRO, BH: Benvinda Ed., 2016, pp. 124-7)
 
Livro de Lúcio Flávio Baioneta

 
III. NOTAS EXPLICATIVAS

¹  VELHO VENTO: título de poema agrupado posteriormente e publicado em O Livro Derradeiro - Dispersas de Cruz e Sousa
Links: https://pt.wikisource.org/wiki/Dispersas 👈  e
https://literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=131324#Velhovento  👈
 
 
²  Dois versos do poema LITANIA DOS POBRES do livro Faróis de Cruz e Sousa 
 

 
³  Lúcio Flávio Baioneta é assíduo colaborador do Blog de São João del-Rei. Sua fantástica biografia pode ser lida in https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2015/05/colaborador-lucio-flavio-baioneta.html  👈
 
Eduardo Canabrava Barreiros (✰ Curvelo, 11 de julho de 1908 - ✞ Rio de Janeiro, 1981) foi um historiador, ilustrador, cartógrafo, escritor brasileiro e frequentador do Sabadoyle, ponto de reunião de grandes escritores brasileiros na casa do advogado e bibliófilo Plínio Doyle (Rio de Janeiro, 1906 -✞ Rio de Janeiro, 2000). 
Em 31 de maio de 1967 tornou-se sócio do IHGB-Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Era sócio efetivo do Instituto Militar de Engenharia do Brasil. 
Escreveu O Segrêdo de Sinhá Ernestina, sua autobiografia intitulada Semicírculo, além dos seguintes livros, que ganharam mais notoriedade: “Itinerário da Independência” (agraciado com o Prêmio Joaquim Nabuco da ABL, em 1974), “D. Pedro, Jornada a Minas Gerais em 1822” (1973) e As Vilas del-Rei e a Cidadania de Tiradentes (1976).
É o patrono da cadeira nº 34, cujo ocupante atual é Paulo Chaves Filho, do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei.
 

IV. BIBLIOGRAFIA

 
CANABRAVA, Eduardo Pinto: VELHO VENTO, editora do autor, 2015.

BAIONETA, Lúcio Flávio: DE BANQUEIRO A CARVOEIRO, BH: Benvinda Ed., 2016, 235 p.

11 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe minha homenagem a três escritores que trataram do tema VELHO VENTO, de forma única e original, cada um a seu modo. São eles: o poeta simbolista Cruz e Sousa (1861-1898), o poeta Eduardo Pinto Canabrava e o escritor Lúcio Flávio Baioneta.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/06/velho-mundo.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

António Valdemar (jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-cadeira nº 3) disse...

Caro Francisco,

Recebi e estou a felicitá-lo.

É um texto notável.

Abraço do António Valdemar

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

"Velho Vento"... muito poético, caro Francisco Braga.
Obrigada pela partilha.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

José Lourenço Parreira (capitão do Exército da arma de Artilharia, professor de música, violinista, maestro, historiador e escritor, além de redator do "Evangelho Quotidiano") disse...

Caríssimo amigo, precioso amigo, BRAGA,

como você sabe, estudei no Colégio Tiradentes sendo Diretores Major Bidart e Professora Antonina Gomes. Minha professora de Literatura foi Dalila Saavedra Rodrigues. Devo à Dalila o carinho que tenho por Cruz e Souza. Ela muito o admirava.

Deus o cubra de bênçãos, caríssimo Braga e à sua esposa Rute Pardini.
José Lourenço Parreira

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito bem!
Abs

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Bom dia! Obrigado!

Lúcio Flávio Baioneta (autor do livro "De banqueiro a carvoeiro", conferencista e proprietário da Análise Comercial Ltda em Belo Horizonte) disse...

Meu prezado amigo FJSBraga,
Fui agradavelmente surpreendido com seu email onde vc, ao analisar 3 versões diferentes sobre o "Velho Vento", resolveu incluir a minha versão, elevando-me ao patamar do Eduardo Pinto Canabrava, meu conterraneo, e do poeta simbolista Cruz e Souza.
Vou creditar este seu impulso ao imenso carinho que você tem com os meus escritos e também com a minha pessoa. Agradeço-lhe por tudo. Se vc me permitir, vou enviar a outros os seus escritos que sempre são uma obra- prima. Abs do amigo de sempre, Lúcio Flávio.

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "O Falar do Rio de Janeiro") disse...

Parabéns por seu trabalho, Francisco!

Obrigada por compartilhá-lo sempre comigo.

Já repassei alguns.

Hilma Ranauro

Benjamin Batista (fundador de diversas Academias de Letras na Bahia, presidente da Academia de Cultura da Bahia, showman e barítono de sucesso) disse...

Bravo!

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, diplomado em Direito, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Membro da Academia Valenciana de Letras . Membro Correspondente do IHG e da Academia de Letras e do Insgtituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, entre outras instituições. disse...

Caro amigo Braga
Parabéns por mais esta postagem.
Abraços de Mario e Beth.

João Bosco de Castro Teixeira (escritor, ex-reitor da UFSJ e ex-presidente e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Francisco valeria lembrar, pelo menos no título, "Esse velho vento da aventura" de Paulo Pinheiro Chagas? Gosto muito do romance.