domingo, 14 de janeiro de 2024

O PREFACIADOR DE “JARDINS E RIACHINHOS”


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Dedico este ensaio aos filólogos em geral e, em especial, à minha amiga, poetisa e filóloga HILMA RANAURO, por seu reconhecido amor à palavra e ao discurso, bem como pela sua ânsia de aprender e compartilhar o conquistado.
Edição comemorativa dos 75 anos do nascimento de Guimarães Rosa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O livro "JARDINS E RIACHINHOS" (1983) constitui uma edição comemorativa dos 75 anos de Guimarães Rosa (1908-1983), homenagem que lhe é prestada pelas Empresas Petróleo Ipiranga. Segundo a Apresentação da obra, "era desejo do próprio Guimarães Rosa reunir estas crônicas em um livrinho, como ele mesmo se referia, que se chamaria Jardins e Riachinhos." O que era um desejo se concretizou em realidade 16 anos após a sua morte (1967) com os contos rosianos ilustrados pelas magníficas fotos de Luiz Cláudio Marigo. 
 
Os contos escolhidos para integrar a nova coletânea foram extraídos da sessão homônima "Jardins e Riachinhos" do livro póstumo de Guimarães Rosa, intitulado Ave, Palavra (na edição da GLOBAL Editora: pp. 285-309), organizado por Paulo Rónai, assim denominados: Jardim fechado, O riachinho Sirimim, Recados do Sirimim, Mais meu Sirimim e As garças. 
 
Consta ainda do livro, além dos textos de Guimarães Rosa, um Perfil de Guimarães Rosa por Renard Perez e uma Bibliografia de & sobre João Guimarães Rosa
 
Para prefaciador do notável livro foi convidado Geraldo França de Lima (1914-2003), natural de Araguari-MG, escritor que recebeu durante sua vida inúmeras premiações por seus romances, razão por que foi eleito para ocupar a Cadeira 31 da ABL-Academia Brasileira de Letras, onde foi recebido em 19 de julho de 1990 pelo Acadêmico Lêdo Ivo. 
 
A Academia Barbacenense de Letras, sob a presidência do Prof. Mário Celso Rios, achou por bem dedicar o seu Anuário 2000 a João Guimarães Rosa, que desembarcara em Barbacena a 3 de abril de 1933 para assumir o posto de capitão-médico no 9º Batalhão de Infantaria, hoje 9º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais (9º BPM) e deixara essa cidade a 8 de agosto de 1934, tendo aí completado 25 e 26 anos de idade. Antes de editar o dito Anuário comemorativo, Prof. Mário Celso Rios escreveu uma correspondência a Geraldo França de Lima, àquela altura já Acadêmico imortal da ABL, para solicitar-lhe que lhe enviasse alguma nota para figurar no Anuário comemorativo. 
 
ANUÁRIO 2000 "João Guimarães Rosa" da Academia Barbacenense de Letras

 
O famoso romancista laureado enviou-lhe não só seu famoso depoimento intitulado "O homem Guimarães Rosa" (in "Em memória de João Guimarães Rosa", Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, 1ª edição), como também ainda enviou para o Anuário 2000 da Academia Barbacenense de Letras o seguinte testemunho, segundo [RIOS, 2000, 8-9] no referido Anuário:
"Eu era dono do jornal "O Quepe". O dia: uma Quarta-feira de Trevas (sic). Quando entrei no Grande Hotel, local em que morava, aproximei-me de um capitão da Polícia Militar, que estava sentado no salão de entrada e ofereci a ele uma assinatura do jornal. Ele mostrou-se interessado e me respondeu que nem endereço tinha para que o referido lhe fosse enviado, uma vez que acabara de ser transferido para Barbacena e não havia encontrado acomodação em lugar algum.
Esse capitão era Guimarães Rosa.
Aí, eu disse para ele que, após a Semana Santa, ele encontraria um lugar para se hospedar e, enquanto isso não acontecia, poderia ficar numa vaga improvisada no quarto que ocupava.
Daí nasceu nossa amizade.
Posteriormente, ajudei-o como procurador e recordo-me de ter-lhe oferecido o edital para o concurso do Itamarati."

(Rio de Janeiro 28-12-98)

Segundo a biografia de Geraldo França de Lima no site da ABL, o futuro romancista laureado
"em 1929 (isto é, pouco mais de três anos antes de Guimarães Rosa), seguiu para Barbacena, matriculando-se no internato do Ginásio Mineiro. Ali permaneceu por cinco anos, distinguindo-se no aprendizado de línguas e sendo um dos mais assíduos frequentadores da biblioteca. Em 1932, os estudantes do último ano do ginásio, levados pela efervescência cultural de Barbacena, transformaram o grêmio literário no grupo literário Arcádia Ginasiana de Letras. Geraldo França de Lima foi eleito seu presidente e diretor do jornal O Quépi, semanário de ideias em Barbacena. Nesse jornal, apareceram suas primeiras poesias. (...)
Em 1934, no Rio de Janeiro, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil e obteve o primeiro emprego, como revisor do jornal A Batalha, de Júlio Barata, estreando também como articulista. (...)
Em 9 de dezembro de 1938 colou grau de bacharel em Ciências Jurídicas. Depois de rápida passagem por Araguari, voltou para Barbacena, como professor do Ginásio Mineiro, nomeado pelo governador Benedito Valadares. Em Barbacena, nos dias incertos da Segunda Guerra Mundial, conheceu o escritor francês Georges Bernanos, de quem se tornou amigo e confidente. Ali, iniciou vagarosamente todo o plano da obra literária. (...)
O ano de 1961 foi o ano do ingresso de Geraldo França de Lima em definitivo na vida literária. Guimarães Rosa, almoçando em casa do amigo, encontrou na escrivaninha os originais do romance "Uma cidade na província". Levou-os consigo e, entusiasmado, leu-os no mesmo dia. Pela madrugada, ao terminar a leitura, telefonou para dona Lygia, esposa do romancista e, emocionado, transmitiu-lhe sua impressão: "Ou muito me engano ou estou na frente de um grande romancista." Mudou o nome para "Serras azuis", providenciou a publicação, indo pessoalmente procurar o editor Gumercindo Rocha Dórea. Na tarde do lançamento, na Livraria Leonardo da Vinci, em 2 de junho de 1961, Guimarães Rosa pediu a palavra e em discurso relatou sua amizade com Geraldo França de Lima, terminando com a apologia do romance. O sucesso alcançado valeu ao livro o Prêmio Paula Brito Revelação Literária 1961, da Biblioteca Pública do Estado da Guanabara."
São estas algumas interações que divisei entre os dois amigos e irmãos nas Letras.
 
 
Na próxima sessão, constataremos o fato de que não poderiam os editores de "Jardins e Riachinhos" ter encontrado alguém mais digno da divulgação da obra do que Geraldo França de Lima, conhecedor que era da intenção de seu amigo e irmão nas Letras, eis que sabia ele que "a paixão superior e convergente de Guimarães Rosa foi a palavra", que para este "se revestia de um caráter sacramental, supremo", fazendo todo o sentido Ave, Palavra de 1970 ter alcançado 5 edições subsequentes pela Editora Nova Fronteira e em 2022 uma nova edição pela GLOBAL Editora.
 
Abaixo se lerá o prefácio (pp. 6-7) do livro JARDINS E RIACHINHOS da autoria de Geraldo França de Lima.
 
PREFÁCIO 
 
Por GERALDO FRANÇA DE LIMA 
 
CONHECI JOÃO GUIMARÃES ROSA ao acaso numa esplêndida manhã de Quinta-feira Santa, em Barbacena, no hall do Grand'Hotel, no ano remoto de 1933  e naquele instante começou a nossa amizade, constante, duradoura. Sem recurso a qualquer hipérbole, posso dizer que somente a morte nos separou. Conheci-o num encontro fortuito: ele, capitão da Polícia Militar; eu, no último ano de preparatório. Sua condição de médico e minha situação de aluno do Ginásio Mineiro não impediram que entre nós crescesse e florescesse a mais sólida de todas as amizades. Ele mesmo repetia: Somos irmãos e quando me apresentou ao grande José Olympio, fê-lo com estas palavras: É mais que um amigo, é meu irmão. 
 
Desde o primeiro instante em que o vi  num momento em que se angustiava por não ter achado na cidade, toda voltada para as devoções da Semana Santa, um lugar onde ficar, onde dormir,  percebi a força de sua personalidade. No entanto, uma força amena, que não impunha, mas cativava, misturada, diluída numa bondade imensa, numa compreensão intensa, numa tolerância envolvente. 
 
De rara erudição, consolidada nas contínuas incursões pelo universo das bibliotecas, era pessoa simples, modestíssima. Detestava o pedantismo das citações exibicionistas, o inapelável dogmatismo das opiniões decisivas. Só aos poucos, vencida a timidez, lançava uma ideia, que rebrilhava instantaneamente com a energia de rutilante luz. Fora das enfermarias do batalhão, fechava-se em casa debruçado sobre os livros ou estudando línguas. Nunca em toda a sua existência teriam escoado três horas sem que tivesse um livro sob os olhos. À noite enfrentávamos o frio seco de Barbacena com um passeio que terminava no cinema. 
 
Benfazejamente dotado, com uma sensibilidade à flor da pele, com a esmerada persistência de um filigranista, amava também a linha e a cor: lápis em punho apanhava o traço grave dos sobradões ou a silhueta graciosa das igrejas de Minas, dessa Minas que ele ampliou nas páginas permanentes de seus livros. A sua paixão, porém, superior e convergente, foi a palavra e que por isso afirmava ser maior do que o homem. Porque se o homem não tivesse tido o dom de falar perder-se-ia no amontoado das coisas inúteis. E a palavra para Rosa revestia-se de um caráter sacramental, supremo. Com a palavra Rosa brincou na sua infância solitária; pela palavra varou os caminhos que o conduziram aos altiplanos do gênio. Amava inventá-las, alimentá-las com um substrato inédito, dando-lhes dimensão tão infinita quanto o pensamento. A palavra em si, como a nota musical, ou a cor, movimento ou risco, constituía a razão imanente da arte, o logos determinante de qualquer concepção estética. Para que a Literatura se renovasse, nutrindo-se de seiva agreste e quente, mister se tornava que a palavra, como inspiração, brotasse do nada. E Rosa via nesse nada, naquele nonada incipiente e exclamativo com que rompe a obra-prima, "Grande Sertão: Veredas", numa síntese prodigiosa, a origem de tudo. Em verdade, nos termos da linguagem bíblica, Deus tirou o mundo do nada. Para Rosa, a palavra é tão vasta na sua expressão quanto o infinito  e a arte nada mais é do que a projeção do pensamento nesse infinito. 
 
O sentido da ciclópica obra de Rosa  chantada entre o grandioso e o incomensurável  destaca-se pelo gigantismo da concepção e pela exuberância da originalidade. 
 
Num dia de maio de 1933, quando as paineiras ainda trajavam um roxo claro e as quaresmeiras enfeitavam as serras, fugimos, Rosa e eu, pela bitolinha da Oeste de Minas, para São João d'el Rey e Tiradentes. Integrados na compacta beleza daquelas cidades, Rosa só tinha exclamações de pasmo e de assombro ante o mistério da criação ali caprichosamente reunido. O artista,  afirmava , por um instinto indefinível se aparta do comum das coisas, para deixar-se guiar por um toque transcendente e sobrenatural. 
 
Rosa foi o fiel enamorado da morte, a nela pensar a todo instante, deduzindo, no entanto, que, no seu macabro triunfo, imortalizaria o homem, como magistralmente asseverou noutra síntese admirável na oração de sua posse na Academia: "As pessoas não morrem, ficam encantadas". 
 
Serão poucos, por mais numerosos, repetidos e avolumados, os aplausos à Empresa Petróleo Ipiranga por ter patrocinado a publicação desta finíssima obra d'arte, de gosto aprimorado, imaginada por Salamandra, sob a direção idealista de Geraldo Jordão Pereira, em cujas veias corre o sangue de seu pai  José Olympio , o benemérito maior das Letras no Brasil. 
 
Quem ler as páginas que adiante se vão abrir há de ver que Rosa fez da palavra a sua profissão de fé e por outro lado bendirão a todos os que colaboraram na feitura deste livro, um hino à palavra, instrumento de que Rosa se serviu para transmitir pelos tempos afora a emocionada mensagem com que marcou, em sulcos indeléveis, sua meteórica passagem pela Terra. 
 
Quanto a mim, continuarei a guardar de Rosa a saudade imorredoura, a recordação aveludada, que torna vivos os mortos inesquecíveis. 
 
Rio, setembro, 83  
 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog do Braga agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 
 
III. BIBLIOGRAFIA 
 
 
ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS: ANUÁRIO 2000 "João Guimarães Rosa", Ano XXI, vol. 19, 107 p.
 
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Biografia de Geraldo França de Lima 

RIOS, Mário Celso: Guimarães Rosa em Barbacena, in Anuário 2000 "João Guimarães Rosa, pp. 08-23.
 
ROSA, João Guimarães: AVE, PALAVRA, São Paulo: GLOBAL Editora, 2022, 1ª edição, 319 p. (na qual foram incluídas: na abertura do livro, Nota da primeira edição e Advertência da segunda edição, ambas da autoria de Paulo Rónai (org.) das 6 seis edições lançadas pela Editora Nova Fronteira; no encerramento do livro, o texto "Fita verde no cabelo": a perenidade do era uma vez, publicado originalmente em Veredas de Rosa, em Belo Horizonte, pela PUC Minas, no ano de 2000. 
 
________________________: JARDINS E RIACHINHOS, Rio de Janeiro: Salamandra, Empresas Petróleo Ipiranga, 1983, 79 p.

8 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Há pouco mais de 40 anos era publicada a obra JARDINS E RIACHINHOS de Guimarães Rosa, que já fazia parte do livro póstumo rosiano intitulado AVE, PALAVRA que teve sua primeira edição em 1970.
O fulcro do presente trabalho é reproduzir no Blog do Braga o prefácio de Jardins e Riachinhos, que esteve a cargo de GERALDO FRANÇA DE LIMA na edição independente de 1983.
Não podia haver alguém mais digno da divulgação da obra do que Geraldo França de Lima, conhecedor que era da intenção de seu amigo e irmão nas Letras, eis que sabia ele que "a paixão superior e convergente de Guimarães Rosa foi a palavra", que para este "se revestia de um caráter sacramental, supremo", fazendo todo o sentido Ave, Palavra de 1970 ter alcançado 5 edições subsequentes pela Editora Nova Fronteira e em 2022 uma nova edição pela GLOBAL Editora.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/01/o-prefaciador-de-jardins-e-riachinhos.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Ronaldo Rodrigues (coordenador de Marketing da GLOBAL Editora) disse...

Agradecemos o compartilhamento.
Att,

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...

Obrigado, Braga. Oportuna a publicação. É uma forma de homenagear de uma só vez, os dois renomados e inesquecíveis escritores.

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Diplomado em Direito, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, Membro Correspondente do IHG de Minas Gerais, entre outras importantes instituições culturais de Minas. Membro Efetivo da Academia Valencia de Letras, onde participou da diretoria por mais de 12 anos sucessivos. disse...

Caro amigo Braga
Agradecemos por nos permitir conhecer o brilhante prefácio de autoria de Geraldo França de Lima no Livro “Jardins e Riachinhos” de Guimarães Rosa: uma das principais expressões da literatura brasileira e, certamente, um dos mais importantes autores da língua portuguesa, que ele soube “reinventar” como nenhum outro escritor.
Abraços saudosos, meus e de Beth.
Mario P. Cupello

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

"Ave, Palavra" é uma preciosidade, caro Francisco Braga.
E traz muitas referências à viagem que Rosa fez ao sul do antigo Mato Grosso.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Hilma Pereira Ranauro (escritora, autora de "Descompasso" e "O Falar do Rio de Janeiro" e membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Virtual Mageense de Letras) disse...

Grata por me homenagear.

Um abração.

Hilma

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Vívido depoimento ! Um prefácio motivador para uma obra rosiana !
Saudações pela publicação.
Cupertino

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (professor, escritor e editor da Revista Saberes Interdisciplinares da UNIPTAN e membro da Academia de Letras de SJDR) disse...

Caro Confrade Francisco Braga
Gratidão pela remessa do link acima, falando sobre O prefaciador de jardins e riachinhos
Abraços,
Pe. Sílvio