quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS: análise descritiva e interpretativa

Por Francisco José dos Santos Braga

Este texto tem o objetivo de analisar "O homem que sabia javanês", de Lima Barreto, realizando, de forma sucinta, a análise descritiva e interpretativa desse conto, com base inicialmente em conhecimentos adquiridos no decorrer do 2º semestre de 2002 na disciplina Leitura e Produção de Textos, ministrada pelo professor Ignácio Camillo Álvares Navarro na UnB, e em leitura diversificada posterior.
Gostaria adicionalmente de confessar minha simpatia atual por um estudo com o título "O homem que não sabia javanês" (paradoxalmente em oposição ao título escolhido por Lima Barreto para seu célebre conto) por Cid Ottoni Bylaardt, publicado na Revista Contexto (revista semestral do programa de Pós-graduação em Letras pela UFES), 2011/1, pp. 303-321), cujas contribuições aproveito principalmente na parte introdutória.

Livro em javanês - Crédito: https://paginadoricardo.wordpress.com/2020/04/04/resumo-o-homem-que-sabia-javanes-lima-barreto/

 
Lima Barreto, 1917

I. INTRODUÇÃO 
 
Üm dos estudos teóricos mais relevantes sobre o malandro é "Dialética da malandragem”, de autoria do crítico Antônio Cândido (1970). O referido estudioso caracteriza o malandro como o indivíduo que vive fora das normas estabelecidas, utilizando seu talento para não trabalhar, desse modo tentando conseguir a ascensão social de forma facilitada. 
Outro estudioso que se dedicou à pesquisa da malandragem brasileira foi o antropólogo Roberto da Matta. Para ele, o malandro é um personagem deslocado, que “não cabe nem dentro da ordem nem fora dela: vive nos seus interstícios, entre a ordem e a desordem, utilizando ambas e nutrindo-se tanto dos que estão fora quanto dos que estão dentro do mundo quadrado da estrutura" [DAMATTA, 1997, 172]
Assinala também que o malandro vive entre a ordem e a desordem, não tem um lugar determinado na sociedade, pois ele transita de um polo a outro, sem se fixar em nenhum deles, corroborando o posicionamento de Cândido, que aponta a itinerância e o trânsito entre a ordem e a desordem como elementos fundamentais de sua caracterização. 
DaMatta ainda ressalta que o personagem malandro na literatura brasileira resulta em um “anti-herói” que representa uma sociedade problemática e com princípios não fundamentados. O anti-herói malandro, por suas atitudes anti-heróicas, não segue padrões estipulados pela sociedade, passa momentos conturbados, almeja viver na riqueza, não gosta do trabalho formal, lança-se a buscar novos desafios e sempre dá um “jeitinho” para se safar de situações conflituosas. O malandro é definido como um ser marginal, que narra suas próprias aventuras, busca a ascensão social e denuncia os problemas sociais existentes. 
 
Acreditamos que as observações dos dois autores contribuem para a análise psicológica do malandro brasileiro, entretanto não são suficientes para a análise do conto barretiano em questão. 
Segundo [BYLAARDT, 2011, 318], é impensável uma dialética da malandragem neste conto de Lima Barreto quando os enigmas não se resolvem, a escritura não se estabiliza, os contrários não se apaziguam. Também foi infrutífera a tentativa de apreender a semântica através da burla do malandro no caso de Massaud Moisés [MOISÉS, 2004, 93], que aponta no conto em questão uma "falha no plano de ação, que consistiria em "breves deslizes representados por minúcias completamente dispensáveis, no caso a cena dos personagens a beberem cerveja numa confeitaria do centro do Rio de Janeiro durante a fabulação do relato. Completou sua crítica ao declarar que as informações "inúteis" de Lima Barreto "decerto promanam do intuito detalhista do narrador, e, portanto, de seu horror às implicações ou aos subentendidos”. Podemos sim identificar tais subentendidos também noutros grandes contistas brasileiros, tais como Machado de Assis (no capítulo LXXI de Memórias Póstumas de Brás Cubas, intitulado "O senão do livro", onde confessa que "este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem"; e Guimarães Rosa em "O meu tio o Iauaretê" e "Antiperipleia", em que se instalou um falar, que é a pura desordem, ideológica e linguística, o delírio da cachaça. 
 
Em vez de um relato das artimanhas e subterfúgios de um malandro brasileiro através dos quais atinge ascensão social, o conto "O homem que sabia javanês" admite a leitura de um texto sobre um indivíduo que transita entre a ordem e a desordem como elementos fundamentais de sua caracterização. O relato do personagem central (Castelo)/narrador em 1ª pessoa no conto, regado a cerveja, nunca é da ordem da compreensão; antes, é uma escritura desprovida de espelho, na qual é impensável a visão simplista de uma dialética da malandragem no texto de Lima Barreto, "uma vez que os enigmas não se resolvem, a escritura não se estabiliza, os contrários não se apaziguam". A impropriedade da desordem permanece como traço da escrita em seu devir, excluindo a propriedade da ordem como algo empobrecedor e instaurando uma configuração mais próxima da festa da linguagem  encharcada de cerveja , da celebração de um não-saber.
Deste modo, é possível pensar o texto principalmente como desprovido do conforto da ordem e do saber, a partir do seu título que deveria ter sido "Um homem que não sabia javanês" dentro de uma visão realística; por outro lado, o título original restabeleceu a ilógica escritural que foi instaurada com a noção da desordem que vai persistir ao longo do conto. 
 
II. ANÁLISE DESCRITIVA E INTERPRETATIVA DO CONTO 
 
Na abertura do conto, somos informados de que dois amigos conversavam numa mesa de confeitaria. Um deles, Castelo, contava a seu amigo Castro "as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver." Com tal referência, já se observa que o seu discurso não se fará dentro dos padrões tradicionais de civilidade e que do diálogo nascerá alguma contestação de alguns valores geralmente aceitos. Também, logo de imediato cognatos essenciais desfilam no bate-papo: viver, vivido, vida, etc., todos eles relacionados ao personagem central/narrador. 
Antes do diálogo propriamente dito, ficamos sabendo, pelo narrador, que é o próprio Castelo, algo que pode ser considerado seu primeiro "causo". Quando esteve em Manaus, "foi obrigado a esconder a sua qualidade de bacharel, para ganhar mais confiança dos clientes na sua arte de feiticeiro e adivinho". 
Aqui também se observa sua ojeriza às formalidades, a etiquetas e a títulos.
 
Na primeira aparição no diálogo entabulado com seu amigo Castro, Castelo resume sua posição contrária ao trabalho formal. Paradoxalmente critica a rotina diária dos funcionários com emprego fixo; não obstante, reconhece que tem aguentado a rotina no consulado. Conforme o narrador: "Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas, Castro? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!" Diante da admiração de Castro por ter vivenciado tantas aventuras "neste Brasil imbecil e burocrático", Castelo informa que, ainda assim, aqui mesmo é possível "arranjar belas páginas de vida" e exemplifica com o fato de ter sido professor de javanês, no Brasil antes do consulado. 
Convidado pelo colega para contar como foi, relembrou tempos difíceis quando chegou ao Rio (vindo de Canavieiras, na Bahia, como ficamos sabendo mais tarde, e "fugindo de casa de pensão em casa de pensão", em absoluta miséria). Regado por várias garrafas de cerveja, Castelo conta ao amigo como, em condições tão desfavoráveis de sobrevivência, leu no Jornal do Comércio um anúncio de que alguém precisava de um professor de javanês. Pensou que provavelmente não haveria muitos pretendentes a ensinar uma língua tão esquisita. Antes de redigir a resposta afirmativa, dirigiu-se à Biblioteca Nacional e consultou a Grande Encyclopédie, letra J de Java, onde obteve informações gerais sobre a sua língua, o seu alfabeto malaio, convencendo-se erroneamente de que aquela era a língua mais fácil do mundo. No dia seguinte, foi à redação do jornal e propôs-se ao professorado do idioma oceânico. Enquanto aguardava a resposta, de volta à biblioteca, continuou acumulando conhecimentos sobre Java e a língua malaia. Castelo nos conta:
Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
E, continuando seu diálogo com o amigo Castro, observa:
É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" — e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.
Dois dias depois, recebeu uma carta para ir falar com o Barão de Jacuecanga (título pomposo, mas sem lastro no novo regime político: República), na sua residência.
 
Sem dinheiro no bolso, teve que empreender a "viagem" a pé. Chegou suadíssimo. Entretanto, foi "com maternal carinho" que a natureza o acolheu, reconfortando-o e, de certa forma, conspirando para o êxito feliz do primeiro encontro com o aluno. 
Não passa despercebido o olhar cômico e humorístico do narrador principalmente na descrição de pessoas e coisas a partir deste momento. Assim, não lhe escapa o maltrato que sofria o solar ("os beirais do telhado... como dentaduras decadentes ou mal cuidadas" e "a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias"). Porém, teve ótima impressão do interior do solar com sua sala munida de uma galeria de retratos e um jarrão de porcelana chinesa ou indiana; seu lado cômico se manifesta nos "doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão". 
A apresentação do dono da casa não foi tão favorável: ancião, trôpego, cheirando rapé e surdo. Para fazer-se respeitado pelo Barão, o suposto professor de javanês inventou que seu pai "era javanês, tripulante de um navio mercante" que viera dar na Bahia. 
Neste primeiro contato, o Barão disse que o seu interesse em aprender javanês se prendia a um "velho calhamaço" que seu avô, Conselheiro Albernaz, tinha ganho de um hindu ou siamês, com a promessa de que o tal livro "evitava desgraças e trazia felicidades para quem o tinha", deixando claro que sua motivação interior para estudar o javanês era cumprir um juramento de família. Em seguida, contou a Castelo que seu pai não acreditava muito na história e que ele próprio chegou até a esquecer-se do livro, mas "de uns tempos a esta parte, vinha passando por tantos desgostos, tantas desgraças que se lembrou do talismã da família", chegando à conclusão de que precisava lê-lo para conciliar o sono e recuperar a boa sorte. Entre suas desgraças, resumiu algumas: "perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante". Indagado se queria ver o tal alfarrábio, Castelo assentiu. 
Como o velho livro é na realidade o móbil de toda a trama do conto (podendo ser considerado um personagem), a sua apresentação é objeto de viva expectativa, principalmente da parte do candidato a professor de javanês. Quando chegou o livro, Castelo foi salvo pelo gongo, simbolizado em "umas páginas de prefácio em inglês", que, lidas sofregamente, lhe deram condições de esclarecer o aluno de "que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito". Claro, o velho barão não percebeu que ele havia chegado aí pelo inglês e ingenuamente atribuiu ao seu saber malaio essas informações que lhe eram dadas. Para florear o seu dito, Castelo ficou ainda "folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço". Finalmente, foram contratados o preço e hora, comprometendo-se o pretenso professor de javanês a "fazer com que o aluno lesse o tal alfarrábio antes de um ano". Logo ficou claro que o barão não conseguiria atingir seu objetivo: "aprendia e desaprendia", isto é, tinha péssima memória. 
Nesta altura, o narrador volta ao diálogo entre Castro e Castelo, no momento em que entram em cena a filha do Barão, Maria da Glória, e o genro, "que era desembargador, homem relacionado e poderoso", e ambos podiam, se quisessem, intervir no bom trato dispensado pelo velho Barão a seu professor de javanês. O narrador informa que, pelo contrário, "acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo", e o genro, este então, nutria a maior admiração pelo professor de javanês. 
"Ao fim de dois meses, (o velho Barão) desistira da aprendizagem" ("Basta entendê-lo", disse) e contentou-se com a tradução de trechos do "livro encantado", um dia sim outro não. 
 
Voltando ao diálogo entre Castro e Castelo, este comentou em tom de pilhéria sua nova burla: "Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote..." E, em tom sarcástico, comentava: "Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo.
Em breve, crescia a familiaridade entre os dois: o aluno convidava o professor para morar em sua casa, enchia-o de presentes, aumentava-lhe o ordenado. O narrador concluiu: "Passava, enfim, uma vida regalada". Ali começava uma fase de boa sorte para a qual não participou em absolutamente nada. 
Conforme o narrador, "contribuiu muito para isso o fato de vir o barão a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês"; que, por sua vez, acrescentou ironicamente: "e eu estive quase a crê-lo também". Com esse evento favorável para ambos, não surpreende que Castelo sentiu aplacar sua própria consciência com a seguinte observação: "Fui perdendo os remorsos..."
Castelo tinha certeza de que estava burlando do velho barão, fazendo-se passar por professor de uma língua malaia, da qual possuía vaga noção do seu alfabeto e informações gerais colhidas na Grande Encyclopédie. O seu maior temor é "que lhe aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio". O seu temor aumentou, "quando o doce barão o mandou com uma carta de apresentação ao Visconde de Caruru", para fazê-lo diplomata. Mesmo a contragosto, obedeceu e foi ter com o Visconde. 
A reação do Visconde foi realista, mais ou menos a esperada por Castelo que dele ouviu: "O senhor não deve ir para a diplomacia: o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Linguística..." Eis o contrassenso: Castelo estava empregado! Logo ele, que na abertura do conto criticara o emprego formal.
[BYLAARDT, 2011, 310] assim se manifesta sobre esse contrassenso:
Belas páginas de vida, vida contada como professor de javanês, que subiu na escada social devido a um não-saber, e ao chegar lá, chegada que não garante o desenlace – no caso, ao cargo de cônsul – não sabe como tem-se aguentado, ou como a escritura tem-se aguentado, apesar de se mostrar contente ao final... A própria ambiguidade de quem conta sua história reflete a errância do relato: ser cônsul é bom, sem dúvida, mas permanecer como tal não é cair no vulgar?...
A seguir, o narrador traz a informação da morte do barão, não sem antes constituí-lo herdeiro no testamento, passando o livro ao genro com a indicação de fazê-lo chegar ao neto quando chegasse a uma idade conveniente. 
O narrador ainda encerra essa fase envolvendo o barão e seu livro com a seguinte observação: "pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia meio!"
Para [Idem, ibidem, 311],
as condições da enunciação a seguir remetem ao estado alterado de consciência pela ação do álcool, que mata a memória erigindo qualquer coisa linguageira em seu lugar, misto de sonho e desejo. No plano desdobrado subsequentemente, entremostra-se um enunciador misterioso, que não revela a ninguém o conteúdo de seu texto, o referente vazio que propicia todas as outras elocuções, a sustentação da literatura, seu início impossível, e único possível. (...)
Ao mesmo tempo, percebe-se que, a partir daqui, a carreira do narrador decola, pelo menos no que é relatado. Castelo, que em Manaus se transmutara de bacharel em feiticeiro, no Rio adaptou-se ainda mais, e, aproveitando o golpe de sorte que o destino lhe oferecia, alçou-se a professor de javanês e, agora, a cônsul.
 
[Idem, ibidem, 317-8] coloca alguns questionamentos sobre
um fato curioso: ele paga uma fortuna em um jantar em sua própria homenagem, 'oferecido' pelos 'leitores' de suas obras. Mas que leitores? De que obras? As obras que ele não escreveu? ? Há referência a um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna, em que o autor copia 'dicionários e umas poucas de geografias', citando 'a mais não poder', publicado no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro. Há menção a um outro texto, com o retrato do autor, e 'notas biográficas e bibliográficas' publicado no Mensageiro de Bâle (no Rio de Janeiro? Em Paris? Na própria ilha de Bâle, próxima ao arquipélago de Java?) Desse artigo  científico? , foram publicados extratos  resumos do que já não era nada  em Berlim, Paris e Turim. E ele que não estudou nada, que não escreveu nada, que não sabia língua estrangeira, fala em aperfeiçoar os estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia  em Havana!
Finalmente o "estar contente" do diálogo final, enunciado por Castelo, não sinaliza para uma situação estável, ao chocar com o "Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!", enunciado no diálogo inicial pelo mesmo Castelo. 
Também, conforme [Idem, ibidem, 319], a alternativa de ser "bacteriologista eminente", caso não estivesse contente no consulado,
deve ser entendido como aquele caminho tão improvável quanto o consulado patrocinado pelas ciências da linguagem, desta vez ao abrigo das ciências microbiológicas, aquelas que pretendem revelar ao mundo o que não se vê a olho nu. É de se esperar que Castelo, como microbiólogo, vá fazer revelações semelhantes às que fez como linguista de idiomas exóticos (...) no consulado.
Parece que o termo "bacteriologista eminente", enunciado por Castelo, faz referência ao périplo de desgraça e sucesso do cientista Oswaldo Cruz.
 
 
III. OBSERVAÇÕES FINAIS
 
 
São vítimas da própria estupidez o barão, seu genro, o visconde, os sábios e todos os que se convenceram da notoriedade de Castelo, e por isso mesmo, legitimaram suas ações, burlas e fraudes. Além de estúpidos e crédulos sem critério, esses mesmos senhores normalmente foram forjados por uma política corrupta, regida pelos favores, pelo QI ("Quem Indica") e pelo nepotismo, que são aspectos de uma realidade minada pela desordem  o avesso daquilo que se apresenta como ordem. 
As obras de Lima Barreto e, em especial "O homem que sabia javanês", apresentam uma linguagem coloquial e fluida. Uma das características é o teor satírico e humorístico presente em seus escritos. 
Com a história de Castelo, Lima Barreto nos apresenta um país que sofre de anomia social e pouco preocupado com o mérito autêntico, talentos comprovados ou inteligências sinceras. 
Satírico na sua essência, "O homem que sabia javanês" é uma crítica acerba aos políticos, a muitas figuras públicas na gestão de sua imagem (os assim chamados "influencers" e "socialites"), dadas à mania de ostentação, ao vazio intelectual e à incompetência  denúncias que, lamentavelmente, permanecem atuais. 
 
O conto em questão parece ter sido escrito como uma sátira dirigida a Afrânio Peixoto, pois o autor não compreendia o seu sucesso e duvidava do seu conhecimento. A respeito disso, [BARBOSA, 2003, 221-222, apud ADORNO & BOTOSO, 2019, 172-173] faz o seguinte comentário:
Um de seus melhores contos, “O homem que sabia Javanês”, história de um mistificador que se torna, por isso mesmo, a glória nacional. Castelo, o professor de javanês, era de Canavieiras, e construíra toda sua reputação como especialista em Língua malaio-polinésia, as quais (sic) conhecia apenas da leitura da Grande Encyclopédie. A sátira parece dirigida a Afrânio Peixoto, a quem Lima Barreto sempre considerou um falso erudito e um péssimo escritor. No entanto, Afrânio tinha prestígio. E ele, não. Afrânio subia. E ele não podia subir, porque não o deixavam subir.
Lima Barreto foi o crítico mais agudo da época da Primeira República Brasileira (1889-1930), rompendo com o nacionalismo ufanista e pondo a nu a roupagem republicana que manteve os privilégios de famílias aristocráticas e dos militares.
 
A certa altura do presente conto, Castelo confidencia a seu amigo Castro: "Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios", trecho que representa uma crítica contundente à predominância das aparências nos meios sociais e políticos do período retratado.

Em sua obra, de temática social, privilegiou os pobres, os boêmios e os arruinados, assim como a sátira que criticava de maneira sagaz e bem-humorada os vícios e corrupção da sociedade e da política. Foi severamente criticado por alguns escritores de seu tempo por seu estilo despojado e coloquial, que Manuel Bandeira chamou de "fala brasileira" e que acabou influenciando os escritores modernistas. 
 
Conforme [MARTHA, 2000], de 1909 a 1922 foi excluído da crítica oficial com um "silêncio implacável" quanto aos seus escritos. Sua "posição combativa" e sua "crítica contundente" custaram-lhe a marginalidade e a indiferença da elite cultural.
 
 
IV. BIBLIOGRAFIA
 
 
ADORNO, V.N.M. & BOTOSO, A.: O personagem malandro no conto "O Homem que sabia javanês", de Lima Barreto, Campo Grande: Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul-UEMS, Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli | V. 8, nº 3, pp 161-186, set-dez 2019 
 
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto (1881-1922). 9ª ed., Rio de Janeiro: J. Olympio, 2003.
 
BARRETO, Lima: O homem que sabia javanês, Rio de Janeiro: Gazeta da Tarde, edição de 28/04/1911

BYLAARDT, Cid Ottoni: O homem que não sabia javanês, Vitória: Revista Contexto (revista semestral do programa de Pós-graduação em Letras pela UFES), 2011/1, pp. 303-321).
 
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (Caracterização das ‘Memórias de um sargento de milícias’). Revista do instituto de estudos Brasileiros, nº 8. Universidade de São Paulo, 1970, pp. 67-89.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FLORES, Tânia Maria Dantas: A representação das identidades no conto "O homem que sabia javanês" de Lima Barreto, Santo Amaro: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia-IFBA, pp. 45-50.
 
GODOY, A.S.M. & FUGA, B.A.S.: Triste Fim de Policarpo Quaresma - O homem que sabia javanês: Nacionalismo e Estelionato
 
GOMEZ, Nicolas: Lima Barreto no Rio da Prata: tradução comentada do conto "O homem que sabia javanês" para o espanhol rio-platense, Brasília: UnB, dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação  para obtenção do grau de Mestre em Estudos da Tradução,  2019, 449 p. 
 
MARTHA, Alice Áurea Penteado (2000). Lima Barreto e a crítica (1900 a 1922): a conspiração de silêncio. [S.l.]: Espéculo: Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutense de Madrid. Consultado em 15 de dezembro de 2025.
 
MOISÉS, Massaud: A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 2004.

OLIVER, Élide Vilarini: O saber em "O homem que sabia javanês", São Paulo: Revista USP, nº 87, pp. 214-224, set/nov 2010.

WIKIPEDIA: verbete Lima Barreto.