Por Francisco José dos Santos Braga
I. INTRODUÇÃO
Sócrates e seu pálio, figurado na tela "A Morte de Sócrates" de David (1787) |
O título acima traz a expressão, tornada proverbial entre os Romanos, e foi utilizada, por ser o tema do texto apresentado aqui.
Mais comum entre nós, porém, é dizer que "o hábito não faz o monge", equivalente ao dito que aparece no título deste artigo. Neste caso, a palavra "hábito" tem o sentido de "roupagem de frade ou freira", conforme apresentado pelo Aurélio. Esse dito popular, equivalente ao utilizado no título, constata o valor exagerado dado por nós às aparências (a barba, o hábito) e sugere que é preciso ir além dos traços exteriores e buscar o âmago e a essência do ser.
Para demonstrar a correção desta última afirmativa, sirvo-me de um texto do miscelanista Aulo Gélio (c. 123-c. 169 d.C.), extraído de Noites Áticas ("Noctes Atticae"), uma compilação em 20 livros, de caráter enciclopédico, que fornece um retrato original do século II da era cristã. Digno de destaque é o uso do humor e da ironia nas suas descrições de celebridades controvertidas, como as de Favorino e de Herodes Ático. Gélio foi um escritor muito lido na Idade Média, tendo sido um dos favoritos de Erasmo de Rotterdam, que extraiu anedotas e citações das encantadoras "Noites Áticas", recomendando-as aos professores como uma útil fonte de conhecimento. Erasmo também classificou Gélio entre "os grandes autores" latinos cujo estilo era digno de imitação, juntamente com Cícero, Tito Lívio, Quintiliano, Apuleio e Plínio. ¹
Comparativamente pouco é conhecido sobre a vida do autor de "Noites Áticas" e nossas fontes de informação são quase inteiramente seus próprios escritos, pois há diferentes versões sobre a data e o local de seu nascimento e de sua morte, bem como a época e a duração de sua permanência em Atenas. ² Alguns pensaram que era de origem africana, mas isso foi questionado por outros. O certo é que, se não era romano, já estava em Roma na época em que assumiu a toga virilis, na idade entre 15 e 17 anos, onde estudou gramática e retórica. Estava em Atenas depois de 143 d.C., pois lá, nessa ocasião, ele se refere a Herodes Ático, que foi cônsul naquele ano. Ainda em Roma, entre seus instrutores em gramática, estava o celebrado cartaginês Sulpício Apolinário e, em retórica, Antônio Juliano, Tito Castrício e, talvez, Marco Cornélio Frontão. Ao completar seus estudos em Roma, seguiu para Atenas para sua instrução em filosofia, possivelmente na idade de 19 a 23 anos. Sua vida estudantil em Atenas combinava trabalho sério com entretenimento agradável. Com Calvísio Tauro estudou Platão e Aristóteles; parece ter visto muito de Peregrino Proteu, do qual nos dá uma impressão muito diferente da transmitida por Luciano, e privou de familiaridade com o famoso retórico Tibério Cláudio Herodes Ático, que foi, mais tarde, em Roma, preceptor de Lúcio Vero e Marco Aurélio. Com seus colegas desfrutou da hospitalidade de Herodes em sua villa em Kefissiá ³ e em outros locais. Fez uma excursão à ilha de Égina com seus camaradas, e com Calvísio Tauro uma viagem a Delfos. Toda semana os jovens filósofos se encontravam para um jantar, onde se entregavam a várias diversões intelectuais. De volta a Roma, deu continuidade a seu interesse pela filosofia, instruindo-se mais ainda, quando se aproximou de um amigo do imperador Hadriano, Favorino, cuja "História Universal" pode ter sugerido a forma de "Noites Áticas", sendo possível que Gélio tenha se apropriado de algum material ali utilizado. Além de Favorino, fez amizade com os poetas Júlio Paulo e Aniano, bem como com outros intelectuais de sua época. Logo também iniciou sua carreira jurídica, como juiz extra ordinem, provavelmente aos 25 anos de idade. Se levarmos em conta o que afirma Radulfus de Diceto (c. 1202?), Gélio morreu após 169 d.C. ⁴
A obra "Noites Áticas" é uma coleção de interessantes apontamentos sobre gramática, antiguidades públicas e privadas, história e biografia, filosofia (inclusive filosofia natural), temas de direito, crítica a textos, história, crítica literária e vários outros assuntos. Oferece-nos informação valiosa em muitos campos do conhecimento e contém extratos de muitos escritores gregos e romanos, cujos trabalhos estão inteiramente ou em grande parte perdidos. Embora sua habilidade seja apenas moderada, Gélio é principalmente exato e consciencioso, embora às vezes dê a impressão de que tenha consultado outras autoridades (mas não alguém anterior a Marco Terêncio Varrão, que viveu de 116-28 a.C.) ou de que tenha usado material de terceiro.
O estilo de Gélio é às vezes obscuro e mostra uma tendência arcaizante (que é uma característica da época), adotando palavras em desuso, arcaísmos e expressões obsoletas. Frequentemente cita Cícero e Virgílio e sempre se refere a eles respeitosamente. Santo Agostinho o chama de "homem de discurso elegantíssimo e de ciência eloquente" ⁵. Erasmo fala dos "comentários de Gélio, pelos quais nada pode ser feito mais claro nem mais erudito" ⁶.
II. MINHA TRADUÇÃO DO CAPÍTULO II DO LIVRO IX DE "NOITES ÁTICAS", por Aulo Gélio
Em que termos Herodes Ático desmascarou um tal que pleiteava o título e o caráter
de filósofo com uma falsa aparência e um manto.
I. Fomos testemunhas de como se
aproximou de Herodes Ático, ex-cônsul, famoso pelo humor agradável e pela eloquência
em língua grega, um tipo com um pálio ⁷ e com uma cabeleira longa e uma barba
abaixo da cintura, pedindo que lhe fosse dado dinheiro para comprar pão. II.
Herodes lhe perguntou quem ele era. III. E este, com semblante e tom de voz recriminatórios,
respondeu-lhe ser filósofo, acrescentando também sua estranheza pela pergunta
de Herodes sobre algo que saltava à vista. IV. “Estou vendo”, disse Herodes, “uma
barba e um pálio, mas ainda não um filósofo. V. Peço-te que tenhas a bondade de dizer-me
de que razões crês que possamos servir-nos para reconhecer que tu sejas um
filósofo.” VI. Entrementes, alguns dos que estavam com Herodes acusaram o pretenso
filósofo de vagabundo, um joão-ninguém frequentador de sórdidos botecos que
costumava reagir com gritos injuriosos se não recebia o que pedia. Interveio
então Herodes: “Seja qual for a condição dele, demos a ele algumas moedas, não
por ele ser homem, senão porque o somos”, VII. e mandou dar-lhe o preço do pão de
trinta dias. VIII. Então, voltando-se para nós que o acompanhávamos, disse: “Musônio ⁸ mandou
fossem dados mil sestércios ⁹ a um mendigo deste tipo que posou como filósofo, e
como muitos lhe dissessem que o fulano era um patife, cafajeste e um homem que não servia para nada, ele replicou com um sorriso, referindo-se a este: 'então ele merece o dinheiro'”. IX. E Herodes acrescentou: “Mas, antes, é isso que me causa dor e aflição: ver seres sujos e maus deste
tipo usurpar o mais santo nome, dizendo-se filósofos. X. Os Atenienses, meus ancestrais ¹⁰, proibiram por um decreto público aos escravos darem os nomes daqueles valorosíssimos jovens Harmódio e Aristogíton, que, para
recuperarem a liberdade, tentaram assassinar o tirano Hípias ¹¹; pois consideravam uma impiedade levarem ao contato da servidão nomes dedicados à liberdade da pátria. XI. Por que então nós suportamos o nome ilustríssimo da filosofia ser manchado nos piores homens? Ouço dizer que os antigos Romanos deram um exemplo semelhante, ainda que num gênero oposto, quando decretaram que os pré-nomes de certos patrícios, condenados por atentado contra a república, jamais seriam usados por algum membro da mesma família. Isso era para que seus próprios
nomes passassem por infames e mortos, como aqueles.”
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Cit. in "Humanism and Scholasticism in Sixteenth-Century Academe. Five Student Orations from the University of Salamanca". Disponível in http://www.thefreelibrary.com/Humanism+and+Scholasticism+in+Sixteenth-+Century+Academe.+Five+...-a064057474 (Acesso em 16/07/2016)
² O que está descrito até o final desta seção foi adaptado da Introdução ao livro "Aulus Gellius, Attic Nights", por John C. Rolfe, Ed.
Cf. in http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2007.01.0073%3Abook%3Dintro
³ Na virada do milênio, tive a sorte de poder ir à Grécia, pela primeira vez, e frequentar, em janeiro de 2000, um centro para ensino de língua grega e manifestações culturais gregas, chamado "Greek House-Ellinikí Estía", que tinha sido fundado em setembro de 1999 e estava localizado na rua Georganta, nº 11, no bairro chique de Kifissiá, em Atenas.
Através de atividades – cursos, seminários, palestras e, às vezes, exibições artísticas – oferecidas pelo Greek House, pude como estrangeiro ter um primeiro contato com a língua, história, cultura e moderno modo de viver na Grécia através de um corpo docente experiente e constituído de profissionais nativos, com formação especializada em Linguística e/ou Filologia, que realmente amavam seu trabalho e os estudantes. Esse primeiro contato foi determinante para a minha crescente admiração e amor pelo povo grego, sua história, cultura e tradições.
Encontrei seu "home site" na Internet e reproduzo aqui para algum leitor que queira também recorrer a essa Instituição de ensino, quando eventualmente for à Grécia: https://www.greekhouse.gr/
Por fim, eis o certificado de minha participação naquele evento marcante para mim:
Flyer da Greek House |
⁴ De Viris Illustr.: "Agellius scribit anno XCXIX."
⁵ De Civ. Dei, IX, 4: "vir elegantissimi eloquii et facundae scientiae".
⁶ Adagiorum Chilias L, cent. 4, prov. XXXVII: "Gellii comentariis, quibus nihil fieri potest neque tersius neque eruditius".
⁵ De Civ. Dei, IX, 4: "vir elegantissimi eloquii et facundae scientiae".
⁶ Adagiorum Chilias L, cent. 4, prov. XXXVII: "Gellii comentariis, quibus nihil fieri potest neque tersius neque eruditius".
⁷ Pallium, nome dado pelos Romanos ao manto dos Gregos (τρίβων), simplesmente uma tira de tecido usada sobre os ombros.
Mais tarde, o pálio também passou a ser usado sobre os ombros de autoridades eclesiásticas (papas, arcebispos e até bispos), representando um símbolo de poder e autoridade de um líder religioso do Catolicismo. Ainda no contexto da liturgia católica, um possível significado para o pálio é um dossel portátil, um tecido que é sustentado por quatro varas, usado em cortejos ou procissões para abrigar o sacerdote ou a hóstia consagrada que está sendo transportada.
Em sentido figurado, pálio significa grandeza e ostentação, transmitindo a ideia de imponência. No Hino da República, a palavra "pálio" aparece logo no início, na frase "seja um pálio de luz desdobrado" do primeiro verso, indicando que o hino pretende ser um manto de luz que é estendido sob os céus, iluminando a todos.
⁸ Caio Musônio Rufo, filósofo estóico do primeiro século da era cristã e mestre de Epicteto, era etrusco. Musônio Rufo nada escreveu, mas dois de seus alunos incumbiram-se disso, deixando 21 diatribes e fragmentos do mestre. Grande parte do que nos chegou sobre o pensamento de Musônio foi preservada por Estobeu, eclesiástico do século V, mais exatamente, as 21 diatribes e 19 ditos, bem como por Aulo Gélio (4 ditos nas "Noites Áticas"). Esses trabalhos de Musônio Rufo são importantes porque escritos sob o prisma do estoicismo romano. Cf. maiores informações in http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/178/DIATRIBES%2012%20E%2013%20DE%20MUS%C3%94NIO%20RUFO%20SOBRE%20COISAS%20RELATIVAS%20A%20AFRODITE%20E%20CASAMENTO.pdf
⁹ Pequenas moedas de cobre.
¹⁰ Ao considerar os Atenienses seus ancestrais, Herodes Ático revela-se um autêntico filélinas (φιλέλληνας), significando alguém que ama o povo grego.
¹¹ Harmódio e Aristogíton, célebres tiranicidas, foram dois antigos atenienses que se tornaram heróis por terem tentado, em 514 a.C., assassinar os irmãos Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato (este, responsável pela introdução da tirania em Atenas). Chegado o momento de executar o plano, agiram de forma precipitada, só conseguindo matar Hiparco. Após a morte do irmão, Hípias tomou medidas autoritárias, que geraram descontentamento entre a população. Em certa medida, o ato de Harmódio e Aristogíton levaria ao fim da tirania em Atenas, já que em 510 a.C. o rei espartano Cleómenes I invadiu Atenas, levando Hípias a fugir e refugiar-se junto ao rei persa Dario I. Esses fatos foram narrados pelo historiador Tucídides em sua obra História da Guerra do Peloponeso.
⁸ Caio Musônio Rufo, filósofo estóico do primeiro século da era cristã e mestre de Epicteto, era etrusco. Musônio Rufo nada escreveu, mas dois de seus alunos incumbiram-se disso, deixando 21 diatribes e fragmentos do mestre. Grande parte do que nos chegou sobre o pensamento de Musônio foi preservada por Estobeu, eclesiástico do século V, mais exatamente, as 21 diatribes e 19 ditos, bem como por Aulo Gélio (4 ditos nas "Noites Áticas"). Esses trabalhos de Musônio Rufo são importantes porque escritos sob o prisma do estoicismo romano. Cf. maiores informações in http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/178/DIATRIBES%2012%20E%2013%20DE%20MUS%C3%94NIO%20RUFO%20SOBRE%20COISAS%20RELATIVAS%20A%20AFRODITE%20E%20CASAMENTO.pdf
⁹ Pequenas moedas de cobre.
¹⁰ Ao considerar os Atenienses seus ancestrais, Herodes Ático revela-se um autêntico filélinas (φιλέλληνας), significando alguém que ama o povo grego.
¹¹ Harmódio e Aristogíton, célebres tiranicidas, foram dois antigos atenienses que se tornaram heróis por terem tentado, em 514 a.C., assassinar os irmãos Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato (este, responsável pela introdução da tirania em Atenas). Chegado o momento de executar o plano, agiram de forma precipitada, só conseguindo matar Hiparco. Após a morte do irmão, Hípias tomou medidas autoritárias, que geraram descontentamento entre a população. Em certa medida, o ato de Harmódio e Aristogíton levaria ao fim da tirania em Atenas, já que em 510 a.C. o rei espartano Cleómenes I invadiu Atenas, levando Hípias a fugir e refugiar-se junto ao rei persa Dario I. Esses fatos foram narrados pelo historiador Tucídides em sua obra História da Guerra do Peloponeso.
13 comentários:
Apresento-lhe minha tradução, comentada, para um texto curioso de AULO GÉLIO, um romano que nasceu e morreu no século II d.C. e, quando jovem, passou bom tempo na Grécia estudando filosofia e onde provavelmente começou a compor a coletânea que denominou NOITES ÁTICAS, em 20 livros.
Seus apontamentos foram tomados ao acaso, sem nenhuma ordem, mas preciosos para os estudiosos. Gélio soube escolher o que redigir, sendo sua obra um repositório de informações curiosas sobre um vasto campo do conhecimento humano.
Por outro lado, Gélio não é um mero compilador, pois julga, aprecia, raciocina e possui belas ideias pessoais, revelando-se um intelectual de gosto refinado.
Que coisa mais linda , adorei,texto perfeito.
Que privilegio ser amigo e receber estas perolas desse iluminado Francisco Jose dos Santos Braga que conheço desde nossos tempos do Batalhão Tiradentes.
Muito obrigado , um bom fim de semana com abraços na família.
Com admiração , seu amigo ,
Ray Pinheiro - Brasília - DF.
Meu prezado amigo FJSBRAGA, vc sempre me surpreende com seu extraordinário conhecimento.
Parabéns.
Lucio Flávio
Grato, Amigo.
E agora melhor, com letras maiores, tornando fácil a leitura.
Benedito Franco
De filósofa, Marilena Chauí nem a barba tem...
Caro Braga
Um belo trabalho!
Aulo Gelio e suas Noites Áticas.
Sua primorosa descrição cativou-nos, mostrando a excelência de sua manifestação literária.
Parabéns, mais uma vez.
Aproveito para comunicar que transmiti a presidência da Academia de Letras de Brasília ao acadêmico Tarcízio Dinoá Medeiros, culto confrade.
Receba o meu fraternal abraço.
Cordialmente
José Carlos Gentili
Caro amigo Braga
Como é bom desfrutar de seus refinados conhecimentos, tal como o ilustre amigo vem demonstrando em seus escritos no “Blog do Braga”, que sempre leio com muita atenção.
Parabéns por mais essa interessante tradução, desta feita de Aulo Gélio, através de um texto que prende o leitor desde o início. Agradeço pelo envio.
Um bom final de semana. Abraços,
Do amigo Mario.
Prezado Braga,
Muito obrigada por compartilhar essa verdadeira aula sobre a Roma éternelle. Uma leitura grandiosa, enriquecedora.
Parabéns, milhões de vezes.
Um abraço cordial
Marlene
Caro Braga,
agradeço o envio e pergunto se podemos eventualmente publicar seus textos na imprensa local.
Att.
Marcos Cotrim de Barcellos
Grato pelo envio da preciosa tradução. Fernando Teixeira
Lido e apreciado.
Abraço agradecido de
Anderson
Prezado Francisco, um bom texto para nos fazer refletir sobre o peso da barba na composição da personalidade ou da aparência. Ficou ainda mais pesado carregar a minha, companheira de mais de meio século: não consigo me pensar sem ela.
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