sábado, 18 de julho de 2020

ARQUEOLOGIA APELA PARA AÇÕES DE PROTEÇÃO AOS MONUMENTOS


Por Francisco José dos Santos Braga


O Anuário da Escola Arqueológica Italiana de Atenas e das Missões Italianas no Oriente é uma publicação periódica de grande interesse de arqueólogos de todo o mundo. Em 2014, a edição da Revista (constituindo o volume XCII, série III, 14) foi comemorativa, em homenagem aos cem anos que o Anuário vinha circulando. Em vista do acontecimento um século de publicação ininterrupta do Anuário a redação da Revista comemorou com o anúncio abaixo, conforme nossa tradução para o português: 
Por ocasião da publicação do volume do Anuário que data de 2014, portanto, cem anos após a primeira edição de 1914, pedimos a um grupo de colegas competentes que expressasse um breve julgamento sobre a nossa Revista. Publicamos os comentários e augúrios de uma atividade sempre profícua e agradecemos sinceramente a todos os que quiseram nos honrar com suas mensagens.¹
Entre as ricas mensagens vindas de especialistas de diversos países encontramos duas que nos chamaram a atenção: a de uma brasileira, Maria Beatriz Borba Florenzano, professora titular de Arqueologia Clássica e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, à página IV, e a de um francês, Alain Schnapp, professor emérito de Arqueologia Grega da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, à página VIII.

A contribuição da professora brasileira versa sobre a importância de um trabalho daquela envergadura após um século de conquistas, que avalia da seguinte forma:
“O Annuario della Scuola Archeologica di Atene e delle Missioni Italiane in Oriente completa com este volume 100 anos! Posicionado entre os melhores periódicos de Arqueologia Mediterrânica, oferece um espaço fundamental tanto para a divulgação de alto nível das mais recentes descobertas arqueológicas quanto também para o debate científico que muito contribui para o avanço do nosso conhecimento sobre o Mediterrâneo antigo.
Neste sentido, não é demais lembrar as importantes contribuições que o Annuario vem dando ao divulgar os importantes resultados de seus trabalhos sobre Atenas, sobre a arqueologia de Esparta e sobre as escavações mais recentes em Lemnos. Sem contar, é evidente, com a continuidade dos importantes estudos sobre a Arqueologia de Creta, com destaque para Gortina.
O Annuario é, hoje, um reflexo da vitalidade da Scuola Archeologica Italiana di Atene nas suas duas principais vertentes: a de ampliação constante da pesquisa arqueológica e da capacitação de quadros competentes em Arqueologia.
No Brasil, estudantes e pesquisadores nessa área, acompanham com grande interesse as publicações do Annuario que nos mantêm atualizados e que nos incitam à reflexão.
Por isto, ao mesmo tempo que parabenizamos a Scuola Archeologica Italiana di Atene pelo centenário da Revista, fazemos os votos que ela continue sendo publicada regularmente, quem sabe, por mais cem anos!”

A contribuição do professor francês, em nossa tradução para português, é um verdadeiro panfleto e tem título: CONTRA OS FILISTEUS! Por filisteus, entenda-se "indivíduos rudes de gosto vulgar, fechado às artes e às letras, bem como às novidades". Sem mais preâmbulos, vamos ao texto do especialista francês:

CONTRA OS FILISTEUS!

“O velho combate dos Românticos contra todas as formas de agressão à cultura parece jamais ter fim. Na hora em que monumentos arqueológicos são destruídos porque encarnam a diversidade cultural, em que arqueólogos são assassinados porque tentam velar sobre sítios que exploraram ao longo de toda a sua vida, é desencorajante assistir ao triste espetáculo da imperícia dos Estados e das instituições culturais face a esses comportamentos. Desde as devastações antigas de Ur e da Suméria até a dos Budas de Bamyan, passando pelas canhonadas de Morisini sobre a Acrópole ², a gente imaginava tudo isso ter chegado ao fim, mas a guerra que se tornou endêmica no Oriente Próximo, e que se espalha, é carregada de novas ameaças.



Catánia, Antiquário do Teatro. Estátua de Leda com o cisne, encontrada no Teatro (© foto G. Fragalà) 
Já no século XIII no Cairo, um antiquário conhecido como al Idrîsî denunciava a injúria feita às pedras como uma violência contra o espírito: 
Quando eu me lembro dos acontecimentos do tempo e dos episódios do passado, retorna à minha memória que, em companhia de meu imortal pai, chegamos ao templo de Luxor sobre o Nilo, quando voltávamos das aldeias de Sama e Tana. Naquela época a mão da destruição não tinha ainda atingido os relevos desse templo que o passar do tempo tinha deixado intactos, e, sobre as placas de pedra de suas paredes, as inscrições não tinham sido apagadas. Esse templo figura entre os mais espaçosos e possui as paredes mais altas e sublimes. Mas me assustou a queixa dolorosa das pedras atacadas pela machadinha dos quebradores de pedras. As imagens ameaçadoras do templo nos sugerem assim a gente gostaria de pensar dor e lamentação sobre a terrível sorte que lhes adveio (da mão dos destruidores). Meu pai me disse: "meu filho, veja o que os Faraós construíram, e como esses tolos o destruíram! Causa-me pena e me preocupa a única destruição de todo o saber que visitantes atentos retiram dessas inscrições, e todos aqueles que são capazes e aptos a recebê-lo. Se tivesse o poder, impediria esses imbecis de terminar sua obra de destruição! Pois, que sabedoria desaparece da terra com eles! As éguas dos companheiros do Profeta, que Deus lhes conceda sua graça, depois que haviam conquistado o Egito e avançaram na direção da Etiópia, não pisaram este solo e não perambularam neste país? E esses homens de mérito viram com seus olhos todos esses monumentos e não estenderam a mão para destruí-los. Eles deixaram-nos de pé como uma advertência a todos os que querem se instruir e mantêm seus olhos abertos, e como uma lembrança para todos os que sabem e se informaram. ³
Sob a agressão do choque por que passou face às construções selvagemente destruídas, al Idrîsî simplesmente inventou uma ética da responsabilidade que prefigura o que Riegl chamou o culto moderno dos monumentos. Folheando os números do Annuario della Scuola Archeologica di Atene, nós participamos, sem o sabermos, desta cadeia ininterrupta de respeito e de estudo das obras do passado. Neste momento em que as boas almas contestam o abandono das línguas antigas ou inventam procedimentos de proteção e de gestão do patrimônio arqueológico, tão complexos que é impossível impô-los, o Annuario estabelece um ponto entre passado e futuro, e oferece-nos uma ferramenta incomparável para acessar diretamente a cultura da Grécia antiga nas suas dimensões tanto arqueológicas quanto antropológicas. O ilustre Manuele Crisolora tinha dado a seguinte definição do saber arqueológico:
naquelas obras (as estátuas de Roma) pode-se observar tudo como se se vivesse naqueles tempos e entre os diversos povos, de sorte que elas constituem uma espécie de história que descreve tudo com uma completa precisão. Trata-se, com efeito, não de uma obra histórica, mas, por assim dizer, quase de uma visão direta (autopsia) e de uma presença efetiva (parousia) de tudo o que, naqueles tempos, se desdobrava em todo lugar.
Desejamos vida longa a este ágalma único que é o Annuario.
Alain Schnapp
Professor Emérito de Arqueologia Grega
Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne



NOTAS EXPLICATIVAS



¹ In occasione della pubblicazione del volume dell’Annuario che reca la data del 2014, dunque cento anni dopo il primo numero del 1914, abbiamo chiesto a un gruppo di autorevoli colleghi di esprimere un breve giudizio sulla nostra Rivista. Pubblichiamo i commenti e gli auguri per una sempre proficua attività e ringraziamo di cuore tutti coloro che hanno voluto onorarci con i loro messaggi.

²  Em 1687, as Cariátides foram atingidas por tiros e destroços quando o Pártenon sofreu seu maior dano. Os venezianos, liderados por Francesco Morosini, atacaram Atenas e os otomanos usaram a edificação como paiol de pólvora. No dia 26 de setembro, um canhão veneziano, disparado da colina de Filopapo, acertou no paiol e o Pártenon foi parcialmente destruído.
Uma das seis Cariátides foi removida por Lorde Elgin, no século 19 e hoje está no British Museum. As outras cinco foram removidas do Erecteion em 1979, para protegê-las contra a poluição do ar e da chuva ácida, e foram substituídas por cópias.
Demorou cerca de sete meses para limpar cada uma das estátuas, esculpidas em tamanho natural em torno de 420 a.C. e que se encontram no Museu da Acrópole. O trabalho começou em 2011 e foi concluído em 2014. “O processo removeu toda a poluição, a fumaça e tudo o que se estabeleceu nas estátuas por mais de um século, deixando intacta a pátina, essa cor laranja que as estátuas ganharam com a passagem dos séculos”, disse Pantermalis, diretor do Museu.
Embora os exemplos mais antigos de pilares na forma humana da Grécia datem de um século mais tarde, as Cariátides são os mais famosos de sua espécie e foram amplamente imitadas desde os tempos romanos à revitalização clássica da Europa.
Link: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/cariatides-no-museu-acropole/

³  HAARMANN, Ulrich: ‘Luxor und Heliopolis. Ein Aufruf zum Denkmalschutz aus dem 13ten Jahrhundert n. Chr.’, MDAI, Abteilung Kairo 40, 1984, 156.

  MALTESE, Enrico & CORTASSA, Guido: Roma parte del cielo, confronto tra l’antica e la Nuova Roma di Manuele Crisolora, Torino, 2000; Maltese 2000, 65-66 ss 10 et 11, Patrologia Greca, 156, col 28.

9 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

O Anuário da Escola Arqueológica Italiana de Atenas completou 100 anos de circulação em 2014. Na edição daquele ano, publicou, entre outras matérias, mensagens das principais Escolas e Museus de Arqueologia Clássica de todo o mundo, comentando sobre as atividades arqueológicas cobertas pela Revista no período 1914-2014. Entre todos os comentários, o presente trabalho dá destaque a dois, um de uma brasileira e o outro de um francês, ambos professores de uma grande universidade.

https://bragamusician.blogspot.com/2020/07/arqueologia-apela-para-acoes-de.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Sonia Maria Vieira disse...

Meu caríssimo amigo Braga, agradeço-lhe por mais um, de seus trabalhos relevantes sobre cultura. É sempre uma alegria lê-los.
Cordial abraço,
Sonia Maria Vieira

Andreia Donadon Leal (membro efetivo da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais-AMULMIG) disse...

Prezado acadêmico, Francisco Braga.

Parabéns pelo artigo!
At.te.Andreia

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;
Interessantes artigos dos professores, sendo curiosa a preocupação com os "filisteus" na apresentação do professor francês. Aliás, parece que no caso do nosso país, nesse momento, o cenário oficial está dominado por uma espécie piorada deles, agravado por doses altas de obscurantismo e farisaísmo.
Obrigado.
Cupertino

Paulo Roberto de Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Prezado confrade Francisco Braga, bom dia. Obrigado pelos dois textos tão significados e tão atuais. Nos movimentos anti-violência contra negros vimos estátuas centenárias serem destruídas nos EUA e na Inglaterra e muitos monumentos no Brasil serem pixados de forma irresponsável. Aqui mesmo em SJDR os confrades Luiz Miranda e Ulisses Passarelli e a caminhante Ana Paula Ganen denunciam a destruição da pré-história são-joanense na Serra do Lenheiro, coisa que o Geraldo Guimarães já fazia há 20 anos atrás.

Cada dia fica mais claro que um povo que não guarda e cultua sua memória e história não tem futuro a não ser como colonizado e dependente.
Resistir e preservar é preciso!
Abraços fraternos.
Paulo Sousa Lima

Prof. Mário Celso Rios (presidente da Academia Barbacenense de Letras) disse...

Caro FRANCISCO,
Bom dia!
Obrigado pela importante notícia sobre o Anuário.
Preservar monumentos é ligar épocas e pessoas! Esse tipo de periódico tão comum nos séculos XIX e XX tem um valor extraordinário como fonte de estudo e para pesquisadores.
A colaboração da brasileira Maria Beatriz Borba Florenzano é esclarecedora!
Obrigado!
Abraço,
Mário Celso

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Parabéns por estes dois textos de tanta atualidade, quando hoje se vê esculturas e estátuas sendo pichadas e destruídas a título de anti-violência em favor da raça negra.

Agradecemos pelo envio e parabenizamos – mais uma vez – ao Confrade Braga por sua constante preocupação em promover e divulgar assuntos culturais.

Abraços, de Mario e Beth.

José Carlos Hernández Prieto disse...

A história se repete. Vemos hoje outro surto iconoclasta, motivado por uma visão deformada (e, porque não dizer, ignorante) da história. Quando vemos até uma estátua de Cervantes sendo pixada nos Estados Unidos (ele, que até escravo foi durante alguns anos!!!), chegamos à conclusão de que a Educação está falida. E, com ela, a Civilização. Muito obrigado, caro confrade e amigo, pela oportunidade da matéria. Grande abraço fraterno.

Unknown disse...

Preservar os monumentos é uma forma de facilitar a leitura do q ue nos conduz ao passado histórico dos povos e suas formas de expressão.Obrigada, Francisco, por nos presentear com informações tão valiosas.Abraço cordial. Maria Auxiliadora Muffato