Folheando o livro "Euclides da Cunha: Poesia Reunida", localizei dois sonetos de Euclides que me chamaram a atenção. O primeiro deles, publicado dentro do capítulo "Dispersos", aparece na página nº 266 acompanhado de seu manuscrito original na página nº 267. O segundo figura no livro, dentro do capítulo "Principais Variantes & Cotejos (1883-1905)", e aparece na página 368. Tratam ambos de Dom Quixote, o "cavaleiro da triste figura", criação de Miguel de Cervantes, que se transformou, através da sua imaginação, numa espécie de arquétipo ocidental de um certo cavaleiro medieval, ensandecido pela leitura de vários romances de cavalaria. "D. Quixote" parodiou esses romances de cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período anterior e que no começo do século XVII já se encontravam em declínio.
Miguel de Cervantes Saavedra |
A obra-prima foi publicada na Espanha em dois livros: O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha em 1605 e O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha em 1615.
A criação do autor espanhol, levada ao público no início do século XVII, foi tão bem acolhida que se converteu no romance que parece ter gerado a literatura secundária mais volumosa do mundo — metaliteratura, portanto —, nos séculos que se seguiram até o presente.
Numa conferência sobre Cervantes na ABL, o Acadêmico Ivan Junqueira analisa e resume magnificamente a profunda e duradoura influência que o Dom Quixote exerceu sobre a literatura ocidental:
“(...) Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse, como o fez o escritor norte-americano Lionel Trilling, que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade. Vamos encontrar semelhante opinião no crítico norte-americano Harry Levin, segundo quem o Dom Quixote é o “protótipo de todos os romances realistas” porque trata da “técnica literária da desilusão sistemática”. E para o ensaísta francês Michel Foucault o Dom Quixote seria o sintoma de um divórcio moderno entre as palavras e as coisas, uma vez que Cervantes procura desesperadamente por uma nova identidade, uma nova semelhança num mundo em que aparentemente nada se parece com o que antes parecia. (...)”
Os heróis do grande romance de Cervantes foram Dom Quixote, sua fugaz amada Dulcinea del Toboso, seu fiel escudeiro Sancho Pança e o pangaré Rocinante. Os quatro participam de um enredo do livro que granjeou a glória de ter ficado em primeiro lugar no ranking dos melhores livros de todos os tempos, eleito por 100 escritores de 54 países, reunidos em Oslo em princípio de maio de 2002. A Reuters, em Oslo, informou que, entre os escritores que votaram, figuravam Salman Rushdie, Milan Kundera, John Le Carré, John Irving, Nadine Gordimer, Carlos Fuentes e Norman Mailer. “Eles deram a Dom Quixote 50% a mais de votos que o segundo lugar — "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust — na pesquisa de 100 livros, histórias e peças de teatro.” Foi um resultado consagrador, sem dúvida.
Euclides da Cunha |
Vamos então aos dois poemas, o original e sua variante. Quanto ao soneto original, [org. BERNUCCI & HARDMAN, 2009, 378] descobriram que o manuscrito de "D. Quixote" da BN-Biblioteca Nacional, cujas versões impressas lhe atribuíram a data equivocada de 1890, revela tratar-se de variante posterior à versão de 1893, pois mais bem elaborado em sua feitura, inclusive pela caligrafia límpida e ordenada, autêntica, é certo, mas diferente da escrita usual e espontânea de Euclides. Supostamente, terá sido "passado a limpo" na década seguinte, assim como "As Catas", pois esses dois poemas manuscritos da BN são as versões que leu em voz alta e ofereceu ao amigo Coelho Neto, numa certa noite entre 1906 e 1908, depois de seu regresso de Purus, quando este o visitou em sua casa da rua Humaitá. (Cf. Coelho Neto, Livro de prata, 1928, p. 236-44)
D. Quixote
8 comentários:
Tenho o prazer de enviar-lhe minha reflexão sobre dois sonetos de EUCLIDES DA CUNHA, — suscitada pela leitura do livro "Euclides da Cunha: Poesia Reunida" (2009) —, que tratam da impressão que marcou o poeta brasileiro, quando de sua leitura do romance D. QUIXOTE, de Miguel de Cervantes Saavedra. Os organizadores do livro esclarecem a gênese do labor poético do poeta brasileiro.
https://bragamusician.blogspot.com/2021/06/d-quixote-na-poetica-de-euclides-da.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro amigo Braga,
Parabéns por seu texto de apresentação sobre a poética de Euclides da Cunha, este escritor pré-modernista "polivalente", que além de Poeta consagrado foi também professor, filósofo, historiador, sociólogo, jornalista, engenheiro e geógrafo.
Apreciamos, sobremodo, o destaque que o Ilustre amigo Braga
deu a duas poesias de autoria de Euclides, sobre Dom Quixote.
Agradeço pelo envio.
Receba o meu fraternal abraço, e o de Beth.
O amigo Mario.
Caro professor Braga
Excelente essa publicação sobre a influência da obra prima de Cervantes, com o destaque para a inspiração euclidiana a partir dela. E segue a nossa civilização, desdenhando da loucura dos ideais, preferindo os dividendos da lucidez pragmática.
Cumprimentos,
Cupertino
Meu caro maestro Francisco Braga,
Obrigado por esta visão sobre Euclides e D. Quixote, que acabo de ler. No meu livro Camões e a literatura brasileira (5ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2001), mostro na p. 299 a relação entre D. Sebastião e D. Quixote, expressando aí a minha leitura de Cervantes. Mas o que me chama mais a atenção é o artigo de Ivan Junqueira não ter visto os versos alexandrinos de Euclides (tanto na primeira como na segunda versão publicadas), muito mal feitos, segundo os cânones dos dez primeiros anos da poesia brasileira. Abraço do Gilberto Mendonça Teles
Obrigado , Francisco.
Graças a Deus, a poesia no Brasil é muito valorizada! Grande abraço, também para Rute e vivam os poetas do Brasil!!! "Paz e Bem", são os votos do irmão fr. Joel!
gostei, obrigado por compartilhar.
Muito bom!
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