quarta-feira, 3 de novembro de 2021

RUTE PARDINI - UM PASSEIO PELO BARROCO (Ária ICH WILL DIR MEIN HERZE SCHENKEN da PAIXÃO SEGUNDO SÃO MATEUS de Bach)


Por Francisco José dos Santos Braga


É minha intenção, com este trabalho e com base no vídeo da ária Ich will dir mein Herze schenken da Paixão segundo São Mateus de Bach, interpretada pela soprano coloratura Rute Pardini e acompanhada ao piano (uma redução do grupo de câmara, para o qual foi originalmente composta) por Vânia Marise, examinar o gênero musical dramático conhecido por Paixão, a ária acima mencionada e  a nomenclatura usualmente empregada pelos amantes e críticos musicais.
Quero entregar-Te meu coração...

 

I. PAIXÕES 

[GEIRINGER, 1985, 196-7] escreveu que 

de acordo com o obituário, Bach escreveu cinco Paixões, pois informa ter ele contribuído com cinco coleções de cantatas de igreja. Duas delas foram integralmente preservadas, a Paixão segundo São Mateus e a Paixão segundo São João. Da Paixão segundo São Marcos perdeu-se a maior parte da música. A Paixão segundo São Lucas, preservada num manuscrito de Leipzig e parcialmente escrita pelo próprio punho de Bach, é tão fraca em composição que estamos justificados em considerá-la obra de um seu contemporâneo secundário, que Bach teria copiado com o intuito de a apresentar numa audição. Sobre a quinta Paixão nada se sabe. Sugere Spitta que Bach pode ter musicado um texto que Picander publicou em 1725; Smend, por outro lado, conjetura que a obra se baseou no Evangelho de S. Mateus e foi composta para um único coro, ao invés da Paixão segundo São Mateus que conhecemos.
[Ibidem, idem, 200] continua: 
“A Paixão segundo São Mateus representa o clímax da música de Bach para a igreja protestante. Sua própria concepção da importância da obra é claramente revelada na primorosa partitura que dela fez para uma audição subsequente, uma partitura que é única mesmo entre os seus muitos e belos manuscritos. (...) A legenda que Beethoven colocou no frontispício da sua Missa Solemnis Vem do coração (...) que possa chegar ao coração também é perfeitamente aplicável a essa obra.”
A Paixão segundo São Mateus consta de duas grandes partes constituídas de 68 seções, em que se alternam coros, corais, recitativos, ariosos e árias. 
 
A historiadora de música erudita, Betsy Schwarm, num artigo para a Enciclopédia Britânica intitulado "Paixão segundo São Mateus, BWV 244", explica, em minha tradução do inglês, que esta obra 
é uma das centenas de peças sacras que Bach escreveu durante sua longa gestão como diretor de música da igreja e chantre do colégio na igreja de São Tomás em Leipzig. O material da obra foi tirado principalmente do Evangelho segundo São Mateus, mas os versos reais que Bach musicou foram fornecidos por vários poetas seus contemporâneos. Seu principal colaborador foi Christian Friedrich Henrici, um poeta que escreveu sob o pseudônimo de Picander ¹ e também forneceu o texto para a profana Cantata do Camponês de Bach (BWV 212), de 1742. 
A Paixão segundo São Mateus é dividida em duas partes e sua apresentação leva menos de três horas. A primeira parte diz respeito à traição a Jesus Cristo, à Última Ceia e suas orações e prisão no Getsêmani. A segunda parte apresenta o resto da história bíblica, incluindo a crucificação, morte e sepultamento de Cristo. Ao longo da obra, há mais música para os quatro solistas soprano, alto, tenor e baixo do que para o coro. Frequentemente, o coro é convocado para apresentar novos arranjos de Bach para corais já existentes. O mais proeminente deles é o coro “O Haupt voll Blut und Wunden” (“Ó Cabeça cheia de sangue e feridas”), que se destaca como 54ª das 68 seções.” ²
Tendo em vista essa predileção de Bach de utilizar na Paixão melodias corais já conhecidas das assembleias luteranas no seu culto dominical, não seria surpreendente que muitos contemporâneos já conhecessem muitos trechos da famosa obra. Aqui também se inclui o hábito de Bach de retrabalhar música já composta, agora adaptando-a para a nova situação. Conforme a Wikipedia
“As melodias corais e seus textos seriam elementos já conhecidos daqueles que frequentavam os cultos na igreja de São Tomás. O coral mais antigo que Bach usou na Paixão de São Mateus data de 1525. Três corais foram escritos por Paul Gerhardt e Bach incluiu cinco estrofes de seu O Haupt voll Blut und Wunden. Bach usou os hinos de maneiras diferentes: a maioria é harmonizada a 4 vozes (...)³

A historiadora Betsy Schwarm conclui o seu supracitado artigo nos seguintes termos: 

“A Paixão segundo São Mateus foi realizada várias vezes durante a vida do compositor, e uma cópia de seu manuscrito original existe com a própria caligrafia de Bach. No entanto, com sua morte em 1750, a Paixão segundo São Mateus, junto com a maioria das composições de Bach, foi esquecida. Quase oito décadas depois, Felix Mendelssohn, com 20 anos de idade, reintroduziu a obra quando regeu um coro de 400 membros e uma orquestra completa em uma estreia do século XIX na Berlin Sing-Akadamie em 11 de março de 1829.

Acho que é importante mencionar um aspecto na vida e obra de Bach que não pode passar despercebido a nenhum estudioso da obra dele. Segundo [GROUT & PALISCA, 1994, 439]:

“Bach compôs praticamente em todas as formas em voga no seu tempo, com exceção da ópera. Uma vez que escreveu fundamentalmente para satisfazer as exigências dos diversos cargos que foi ocupando, as suas obras podem ser agrupadas de acordo com a sequência desses cargos. (...)

[Ibidem, idem, 454] expõe da seguinte forma, ao tratar do gênero Paixões

“Bach atinge o ponto culminante da sua obra de música sacra com as composições das Paixões segundo S. João e S. Mateus. Estas duas obras, de estrutura essencialmente semelhante, são os exemplos máximos da tradição norte-alemã das Paixões segundo os Evangelhos em estilo de oratória. (...) A Paixão segundo S. Mateus (BWV, 244), para coro duplo, solistas, orquestra dupla e dois órgãos, estreada, na sua primeira versão, na Sexta-feira Santa de 1727, é um drama de grandeza épica, a mais nobre e inspirada abordagem deste tema em toda a história da música. O texto é do Evangelho segundo S. Mateus, capítulos 26 e 27, narrado pelo tenor solista em recitativo e pelos coros, sendo a narração entremeada de corais, um dueto e numerosas árias, a maior parte das quais precedidas de recitativos em arioso. O 'Coral da Paixão' surge cinco vezes, em várias tonalidades e em quatro harmonizações diferentes a quatro vozes. (...) O coro participa por vezes na ação; outras vezes desempenha, como o coro do teatro grego, o papel de um espectador falante que apresenta ou reflete sobre os acontecimentos da narrativa. (...)” (grifo nosso)

E, finalmente, segundo [Ibidem, idem, 455]:

“a Paixão segundo S. Mateus é a apoteose da música sacra luterana: nela, o coral, o estilo concertato, o recitativo, o arioso e a aria da capo conjugam-se sob a majestosa égide de um tema religioso central. Todos esses elementos, exceto o coral, são igualmente característicos da ópera da mesma época. As qualidades dramáticas, teatrais, das duas Paixões são bem evidentes. Se Bach nunca escreveu uma ópera, a linguagem, as formas e o espírito da ópera estão plenamente presente nelas.” (grifo nosso)

 

II. Ária para soprano com acompanhamento de oboé d'amore, órgão e contínuo: Ich will mein Herze schenken (BWV 244, 1ª Parte, nº 13 [19])

 
Ich will dir mein Herze schenken, 
Senke dich, mein Heil, hinein! 
Ich will mich in dir versenken; 
Ist dir gleich die Welt zu klein, 
Ei, so sollst du mir allein 
Mehr als Welt und Himmel sein.  
 
 

 
Minha tradução livre para "Ich will dir mein Herze schenken": 
Quero entregar-Te meu coração, 
Mergulha nele, Salvador meu. 
Quero em Ti submergir. 
O mundo é pequeno para Ti, 
Sê somente para mim 
Mais que o mundo e o céu. 
 
A historiadora de música erudita, Betsy Schwarm, continua: 
As partes do solista são menos solos do que duetos não um cantor com o outro, mas com intérpretes retirados da orquestra. A ária "Ich will dir mein Herze schenken"; seção 13 [19] ("Quero entregar-Te meu coração") é distinta não só porque combina o soprano com dois oboés, ao invés de apenas um, mas também porque é a única seção genuinamente alegre em toda a obra.
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS



¹  A Wikipedia informa que 
Picander escreveu textos para os recitativos e árias e para os extensos movimentos corais que abrem e fecham a Paixão. Outras partes do libreto vieram de publicações de Salomão Frank e Barthold Heinrich Brockes.
²  [GEIRINGER, 1985, 203-4] explica que: 
Melodias corais são frequentemente repetidas nessa obra. A favorita de Bach, Ó Cabeça cheia de sangue e feridas, aparece nada menos de cinco vezes em diferentes lugares com letra e harmonização soberbamente ajustadas ao estado de espírito do momento. Na seleção de Melodias e textos santificados, e na escolha de sua posição apropriada na partitura, Bach mostrou uma força poética e uma intuição outorgada somente a alguém que era o descendente de gerações de músicos religiosos protestantes. (...)
³  [GROUT & PALISCA, 1994, 279] registram a respeito do "Coral da Paixão": 
O coral O Haupt voll Blut und Wunden, cujo texto é de Paul Gerhardt, e cuja melodia originalmente é de uma peça de Hans Leo Hassler, denominada Mein G'müt ist mir verwirret, a qual foi usada por Bach, na Paixão segundo S. Mateus. (...)
  Na verdade, deve-se a descoberta da quase esquecida partitura da Paixão segundo São Mateus a Carl Friedrich Zelter (1758-1832), compositor e regente, professor de composição do jovem Felix Mendelssohn, quando este tinha menos de 9 anos de idade, e foi através da descoberta de seu mestre, que, aos 20 anos, Mendelssohn dirigiu uma execução daquela obra, que promoveu um renascimento do interesse na música de Bach. Zelter fez arranjo para alguns poemas de seu amigo Goethe, colaborando para torná-los Lieder. Compôs, além desses, várias obras vocais sacras e profanas.  
[GROUT & PALISCA, 1994, 456] justificam da seguinte forma o esquecimento da obra de Bach desde sua morte (1750) até começo do século XIX:
a obra de Bach foi rapidamente esquecida após a sua morte, em virtude de uma viragem radical do gosto musical que se operou em meados do século XVIII. Nas décadas em que Bach compôs as obras mais importantes, as de 1720 e 1730, um novo estilo, oriundo das salas de ópera italianas, começava a invadir a Alemanha e o resto da Europa, fazendo com que muitos achassem ultrapassada a música de Bach, embora considerando Bach insuperável organista e compositor para instrumentos de tecla (...)

 
 
  
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



GEIRINGER, Karl com colaboração de Irene Geiringer: Johann Sebastian BACH: o Apogeu de uma Era, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, 366 p.
 
GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V.: HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL, Lisboa: Gradiva Publicações Ltda, 1994, 1ª edição, 759 p.
 
SCHWARM, Betsy: St. Matthew Passion, BWV 244 
 
WIKIPEDIA: Paixão segundo São Mateus, BWV 244 

4 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

A edição do vídeo que a soprano coloratura RUTE PARDINI intitulou "Um Passeio pelo Barroco" possibilitou que eu fizesse uma análise mais detida e compreensiva sobre a ária "Ich will dir mein Herze schenken" da Parte I da Paixão segundo São Mateus de Bach e me incentivou a fazer alguns comentários que acho indispensáveis para a compreensão do barroco musical.
Embora com 13 anos de atraso, a presença de cena e musical de Rute Pardini pode ser apreciada no novo vídeo, que vem se juntar aos outros já lançados para deleite de seus admiradores e seguidores.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/11/rute-pardini-um-passeio-pelo-barroco.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente são-joanense) disse...

Obrigada. Belíssima ária e belíssima interpretação. Parabéns, Rute!

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

MARAVILHA!
ABS

Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro (escritor, advogado, professor universitário e presidente da Academia Itaunense de Letras) disse...

Prezado Dr. Francisco e Rute,
Boa tarde.
Para mim é motivo de prazer e honra, tê-los entre os meus amigos. E, particularmente, reconheço, além de suas virtudes como pessoas, admiro também os dotes artísticos que lhes foram concedidos por Deus e que vocês, com esforços e trabalhos, souberam aprimorar e que fazem tanto bem àqueles que tem o privilégio de ouvi-los.
Fraternal abraço.
Arnaldo