Por ANATOLE FRANCE (1844-1924)
Tradução do francês, bibliografia e três comentários por Francisco José dos Santos Braga
O apóstolo Paulo escreveu em Filipenses, 1:21: "Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro"; frei Geraldo de Reuver o.f.m. (✰ Wassenaar- Holanda, 26/09/1920 - ✞ Santos Dumont-MG, 31/01/2000) pautou sua vida por esse preceito paulino, na sua forma mais modesta e franciscana possível. Dedico esta tradução à sua memória, abnegado e dedicadíssimo educador e mestre de extraordinária cultura, que lecionava as disciplinas de Matemática e Francês, durante todas as minhas 4 séries ginasiais (1961-1964), no Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, utilizando material didático que ele próprio produzia para tal fim. Por falta de espaço, deixarei de mencionar outras qualificações de frei Geraldo, que eram múltiplas e variadas. O texto em francês que traduzi consta de FRANCÊS (Leituras e Exercícios para o terceiro ano), 2ª edição, Santos Dumont, 1986, pp. 60-62 de sua autoria, e corresponde ao capítulo IX de Le Livre de Mon Ami, por Anatole France, e continua inédito até o presente
. Por fim, vejo muita semelhança das qualidades do sr. Chotard em frei Geraldo, fruto da minha convivência com ele durante vários anos.
A morte de Decius Mus (óleo sobre tela, 289x518 cm) por Peter Paul Rubens - Crédito pela foto: Link: https://www.liechtensteincollections.at/en/collections-online/the-death-of-decius-mus 👈 |
Esta manhã, frequentando lojas de livros usados (sebos) no cais, encontrei na caixa de promoções um volume desparelhado de Tito Lívio. Ao folheá-lo ao acaso, deparei-me com esta frase: “Os restos do exército romano conquistaram Canusium ¹ na calada da noite”, e esta frase lembrou-me o sr. Chotard. Ora, quando penso no sr. Chotard, é por um bom tempo. Ainda pensava nele ao voltar para casa, na hora do almoço. E, como eu estava com um sorriso nos lábios, me perguntaram o motivo.
— O motivo, meus filhos, é o sr. Chotard.
— Quem é esse Chotard que faz você sorrir?
— Vou contar-lhes. Se aborrecê-los, finjam que estão ouvindo e deixem-me acreditar que não é a si mesmo que o teimoso contador de histórias narra suas histórias...
“Eu tinha quatorze anos e estava na terceira série. Meu professor, cujo nome era Chotard, tinha a tez rosada de um velho monge, e era um.
“O Irmão Chotard, depois de ter sido um dos grupos mais gentis do rebanho de São Francisco, em 1830 renunciou à vida monástica e tomou o hábito secular sem, no entanto, conseguir usá-lo com elegância. Que razão o irmão Chotard teve para agir assim? Uns dizem que foi o amor; outros dizem que foi medo, e que, depois dos Três Dias Gloriosos ², tendo o povo soberano atirado alguns talos de couve aos capuchinhos de ***, o Irmão Chotard saltou sobre os muros do convento, para evitar que os seus perseguidores cometessem um pecado tão grande como maltratar um capuchinho.
“Este bom irmão era um homem culto. Ele se formou, deu aulas e viveu tanto e tão bem que seus cabelos estavam ficando grisalhos, suas bochechas rosadas e seu nariz corado quando fui levado com meus camaradas aos pés de sua tribuna.
“Que professor belicoso da terceira série tínhamos lá! Era preciso vê-lo quando, com o texto em mãos, conduzia a Filipos os soldados de Bruto. Que coragem! que grandeza de alma! que heroísmo! Mas ele escolhia seu tempo para ser um herói, e esse tempo não era o presente. Sr. Chotard se mostrava inquieto e receoso ao longo da vida. Ele se assustava facilmente.
“Ele tinha medo de ladrões, de cachorros raivosos, do trovão, dos carros e de tudo que pudesse, de alguma forma, danificar a pele de um homem honrado.
“Vale dizer que só o seu corpo permanecia entre nós; sua alma estava na antiguidade. Vivia este homem excelente nas Termópilas com Leônidas; no Mar de Salamina, na nau de Temístocles; nos campos de Cannas, junto do cônsul Emílio Paulo; caía todo ensanguentado no lago Trasímeno, onde, mais tarde, um pescador encontraria o seu anel de cavaleiro romano. Em Farsália ele desafiava César e os deuses; ele brandia sua espada quebrada sobre o cadáver de Varus, na Floresta Hercínia ³. Ele era um famoso guerreiro.
“Tendo resolvido a vender caro a sua vida nas margens do Egos-Pótamos e orgulhoso de esvaziar a taça libertadora na sitiada Numância, Sr. Chotard não desdenhava de forma alguma recorrer, com os astutos capitães, aos mais pérfidos estratagemas.
“Um dos estratagemas que devemos recomendar”, disse-nos um dia Sr. Chotard, comentando um texto de Eliano, “é atrair o exército inimigo para um desfiladeiro e esmagá-lo sob blocos de pedra.» “Ele não nos disse se o exército inimigo tinha frequentemente a gentileza de se prestar a esta manobra. Mas mal posso esperar chegar ao ponto em que Chotard se notabilizou
nas mentes de todos os seus alunos.
“Ele nos dava como tema de composições, tanto latinas quanto francesas, batalhas, cercos, cerimônias expiatórias e propiciatórias, e foi ditando a correção dessas narrações que exibia toda a sua eloquência. Seu estilo e sua cadência expressavam em ambas as línguas o mesmo ardor marcial. Às vezes ele tinha o costume de interromper o curso de sua ideia para nos dispensar castigos merecidos, mas o tom de sua voz permanecia heróico mesmo nesses incidentes; de modo que, falando alternadamente com o mesmo sotaque, como um cônsul que exorta suas tropas e como um professor da terceira série que distribui tarefas como castigo, ele deixava os estudantes em uma confusão ainda maior porque era impossível saber se era o cônsul ou o professor que falava. Um dia chegou a se superou nesse gênero, com um discurso incomparável. Esse discurso, todos nós o ficamos sabendo de cor; tive o cuidado de anotá-lo em meu caderno sem omitir nada.
“Aqui está como eu ouvi, como ainda ouço, pois me parece que a voz gutural do Sr. Chotard ressoa ainda em meus ouvidos e os enche com sua solenidade monótona.
ÚLTIMAS PALAVRAS DE DECIUS MUS
Décio Mus discursando para as legiões por Peter Paul Rubens, na Galeria Nacional de Arte em Washington D.C., nos EUA. Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%BAblio_D%C3%A9cio_Mus_(c%C3%B4nsul_em_340_a.C.) 👈 |
Prestes a se devotar ⁴ aos deuses manes e já pressionando com as esporas os flancos do seu impetuoso corcel, Décio Mus voltou-se uma última vez para os seus companheiros de armas e disse-lhes:
“(Se vocês não observarem melhor o silêncio, imporei uma detenção geral a vocês.) Estou entrando, pela pátria, na imortalidade. O abismo me espera. Vou morrer pela salvação comum. (Sr. Fontanet, copie para mim dez páginas de rudimento ⁵.) Assim o decidiu, em sua sabedoria, Júpiter Capitolino, o eterno guardião da Cidade Eterna. (Sr. Nozière, se, como me parece, você ainda passar seu dever de casa ao sr. Fontanet para que ele o copie, como sempre, vou escrever ao seu pai.) É justo e necessário que um cidadão se dedique à salvação comum. Invejem-me e não chorem por mim. (É inepto rir sem motivo, sr. Nozière, você será impedido de sair na quinta-feira.) Meu exemplo viverá entre vocês.
(Senhores, seus escárnios são de uma impropriedade que não posso tolerar. Informarei o diretor sobre sua conduta.) E verei, do seio do Elísio, aberto às almas dos heróis, as virgens da República pendurando guirlandas de flores aos pés das minhas imagens.
“Naquela época, eu tinha uma prodigiosa faculdade de rir. Pratiquei-a inteiramente com base nas últimas palavras de Decius Mus, e quando, depois de nos ter dado o motivo mais poderoso para rir, o sr. Chotard acrescentou que é tolice rir sem motivo, escondi minha cabeça num dicionário e perdi o sentido. Aqueles que aos quinze anos não foram abalados por um ataque de riso sob uma chuva de punições, ignoram o que seja um prazer.
“Mas não se deve pensar que eu só era capaz de me divertir nas aulas. À minha maneira, eu era um pequeno bom humanista. Sentia muito fortemente o que há de amável e nobre naquilo que tão bem chamamos de belas-letras.
“A partir de então tive um gosto pelo belo latim e pelo belo francês que ainda não perdi, apesar dos conselhos e exemplos dos meus contemporâneos mais felizes. O que aconteceu comigo a esse respeito é o que comumente acontece com pessoas cujas crenças são desprezadas. Para mim fiz um orgulho do que talvez só fosse um ridículo. Fui teimoso em minha literatura e permaneci um clássico. Podem me chamar de aristocrata e mandarim; mas creio que seis ou sete anos de cultura literária dão à mente bem preparada para recebê-la uma nobreza, uma força elegante, uma beleza que não se consegue por outros meios.
“Quanto a mim, provei com prazer Sófocles e Virgílio. Sr. Chotard, admito-o, Sr. Chotard, ajudado por Tito Lívio, me inspirava sonhos sublimes. A imaginação das crianças é maravilhosa. E algumas imagens magníficas passam pela cabeça dos pequenos brincalhões! Quando não me dava um ataque de riso, sr. Chotard me enchia de entusiasmo.
“Cada vez, com sua voz pastosa de velho pregador, ele pronunciava lentamente esta frase: “Os restos do exército romano conquistaram Canusium na calada da noite”, eu os via passar em silêncio, à luz da lua, no campo nu, em uma estrada ladeada de tumbas, rostos lívidos, manchados de sangue e poeira, capacetes amassados, couraças desbotadas e postiças, espadas quebradas. E esta visão, meio obscura, que desaparecia lentamente, era tão séria, tão sombria e tão orgulhosa, que no meu peito o coração saltava de dor e admiração dela.”
II. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Canusium, atual Canosa, é uma das mais importantes cidades da Apúlia, situada próximo à margem direita do rio Aufidus, atual Ofanto, cerca de 15 milhas de sua foz. Como houve uma forte infusão de civilização helênica na região, supõe-se que seu fundador tenha sido de origem pelasga. A primeira menção histórica de Canusium aparece durante as guerras dos Romanos contra os Samnitas, na qual os habitantes de Canusium se aliaram a estes, até que as repetidas devastações do seu território pelos Romanos os levaram a submeterem-se aos vencedores, entregando-lhes o seu oppidum (cidadela ou cidade fortificada), que foi totalmente devastado.
² Nos dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, conhecidos como os Três Dias Gloriosos, o povo de Paris e as sociedades secretas republicanas, liderados pela burguesia liberal, fizeram uma série de levantes contra Carlos X.
Levantaram-se barricadas na capital francesa e generalizou-se a luta civil. As revoltas populares sucediam-se a tal ponto que a própria Guarda Nacional acabou por apoiar, aderindo à sedição.
A revolução de julho de 1830 criou uma monarquia constitucional.
³ Notas históricas de frei Geraldo:
Filipos: Bruto que conspirara contra César, foi derrotado na batalha de Filipos (na Macedônia) em 42 a.C.
Termópilas: Leônidas lutou com seus espartanos no desfiladeiro das Termópilas contra as tropas persas, derrotando-as em 481 a.C.
Salamina: Temístocles destruiu a esquadra persa perto da ilha de Salamina em 480 a.C. (guerras greco-persas)
Cannas (Cannae): Aníbal derrotou as legiões romanas no lago de Trasímeno em 217 a.C. e na planície de Cannas, na Apúlia, sudoeste da Itália, em 216 a.C.
Farsália: Júlio César venceu seu rival Pompeu na batalha de Farsália (na Grécia) em 48 a.C.
Floresta Hercínia: O chefe germano Armínio destruiu, na floresta de Teutoburgo (outro nome para Floresta Hercínia), as legiões de Varo, no ano 9 d.C.
Egos-Pótamos: Em 404 a.C. os espartanos destruíram a esquadra de Atenas perto do rio Egos-Pótamos (guerra do Peloponeso)
Numância: antigo assentamento celta em região da atual Espanha que resistiu várias vezes aos invasores romanos. Foi tomado por Cipião Emiliano, após um cerco de quinze meses, em 133 a.C.
⁴ Devotio (sacrifício sagrado ou suicídio sagrado) é o ato pelo qual um cônsul, ditador ou pretor, ou ainda um cidadão por um deles designado, vendo as suas legiões em perigo, lança-se para combater as fileiras inimigas, levando o exército adverso à morte, por uma espécie de contágio mágico: ele se "devota" solenemente aos deuses Mânes e à Terra; seu sacrifício, se agradar aos deuses, "devota" igualmente as tropas inimigas à morte. Esta façanha foi atestada três vezes na história de Roma, cada vez por um membro da gente plebeia dos Décios, que se "devotaram" respectivamente em 340 a.C. (durante a guerra latina que opõe Romanos e Samnitas), em 295 a.C. (durante a terceira guerra samnita, em Sentinum) e em 279 a.C. (durante o conflito que opôs Roma ao rei do Épiro, Pirros (Pyrrhus em latim)).
O texto em questão parece referir-se ao discurso proferido por Décio (Públio Décio Mus) às suas legiões em 295 a.C. Pelo menos é o que defende [GUITTARD, 1984, 582], para quem "a
devotio de Décio em 340 é unanimemente considerada a réplica antecipada
daquela de seu filho em 295... Muitas dúvidas cercam o suicídio sagrado
do terceiro Décio em Ausculum... Somente a devotio de Sentinum resiste à
crítica histórica e pode ser considerado autêntico."
Outra ocorrência de "devotio" ainda, a de Catão, está narrada no Livro II do poema épico Farsália de Lucano. Cf. meu texto intitulado "O patriotismo de Catão na Farsália de Lucano", em especial a nota explicativa nº 5.
⁵ Nota de frei Geraldo: Livro que contém os elementos da língua latina.
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAGA, Francisco José dos Santos: O patriotismo de Catão na Farsália de Lucano, publicado no Blog do Braga em 23/01/2023
FRANCE, Anatole: capítulo IX, Les dernières paroles de Décius Mus, extraído do Livre de Mon Ami
GUITTARD, Charles: Tite-Live, Accius et le rituel de la devotio, 1984, Relatório da sessão de 16 de novembro da Academia das Inscrições e Belas-Letras, nº 4, pp. 581-600
Link: https://www.persee.fr/doc/crai_0065-0536_1984_num_128_4_14205 👈
HANSLEY, Keith: The death of Decius Mus in a battle against the Latins, by Peter Paul Rubens (c. 1577-1640)
HANSLEY, Keith: The death of Decius Mus in a battle against the Latins, by Peter Paul Rubens (c. 1577-1640)
6 comentários:
Prezad@,
Neste dia de 31 de janeiro de 2024, oferece-me a oportunidade poder escrever algo em memória de meu professor de Francês e Matemática, FREI GERALDO DE REUVER o.f.m., e louvar-lhe as qualidades, que eram muitas, como se verá.
O texto escolhido para minha tradução faz referência a ele por antonomásia, já que vi muita semelhança dele com seu principal personagem, Professor sr. Chotard, conforme tive a felicidade de vivenciar na companhia daquele meu dileto Mestre.
Coincidentemente, frei Geraldo deixou uma profunda lacuna nesta Terra, partindo para o Elísio ("morada dos heróis e das pessoas virtuosas depois de sua morte", como ele costumava dizer), exatamente há 24 anos atrás.
O texto, a que me refiro, é de autoria do escritor ANATOLE FRANCE, e foi extraído do capítulo IX (intitulado Últimas palavras de Decius Mus) de seu Livre de Mon Ami. Frei Geraldo foi grande admirador dessa obra prima e a incluía em suas preleções e no seu material didático ainda inédito.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/01/ultimas-palavras-de-decius-mus.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gratidão ao amigo e confrade Francisco Braga. Tenho recebido e lido os artigos e reportagens. Parabéns!
Saúde e prosperidade.
Tudo de bom.
Obrigado!
Heitor
Que beleza!
Rogério
Parabéns, mestre Braga!
Caro professor Braga
Um privilégio ter tido um "professor Chotard" na trajetória de sua formação juvenil de estudante.
Excelente texto traduzido. Parabéns!
Saudações
Cupertino
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