sexta-feira, 19 de junho de 2009

Rossini e seu Stabat Mater

Por Francisco José dos Santos Braga

1. Notas biográficas do autor da letra do poema

O poema Stabat Mater, um dos mais bonitos e encantadores poemas latinos medievais, é normalmente atribuído a Jacopone da Todi (c. 1220 — † 1306), embora haja muita controvérsia a respeito de sua autoria.

Jacopone estudou Direito em Bolonha e tornou-se um bem sucedido notário - combinando as habilidades de um contador com as de um advogado. Aos quarenta anos, foi surpreendido pela morte trágica de sua esposa Vanna que desposara um ano antes, tendo descoberto que ela usava, sob as vestes, uma espécie de cilício - sinal de grande devoção religiosa e penitência. Chocado, converteu-se, abandonou todos os seus haveres, passando a viver durante dez anos como asceta ambulante franciscano.

Em 1278, fez votos de irmão leigo junto aos Freis Menores. Entre os franciscanos, descobriu seu pendor pela poesia. Nessa ocasião, tinham surgido duas facções dentro da ordem franciscana: uma, com sua atitude mais leniente; outra, mística e mais severa, pregando absoluta pobreza e penitência e conhecida como Os Espirituais. O irmão Jacopone tornou-se líder desta facção.

Enquanto viveu o Papa Celestino V, Jacopone e seu grupo conseguiram permissão para viver em separado dos outros freis e observar a regra franciscana em sua integridade. Em 1297, quando morreu Celestino V, o novo papa, Bonifácio VIII, apoiou a outra facção (dos regulares franciscanos). Jacopone aliou-se aos poderosos Colonnas, uma das mais influentes famílias em Roma, para exigir a deposição de Bonifácio. Seguiu-se uma batalha entre as duas facções, resultando no sítio de Palestrina, aonde os colonnenses se tinham retirado e no qual Jacopone foi preso e excomungado em 1298. Ficou na prisão durante cinco anos. Ao longo desses anos, escreveu seus poemas plenos de êxtase que tocam o encontro pessoal mais profundo com o Amor divino. Só deixou a prisão após a morte de Bonifácio, com o beneplácito de seu sucessor Benedito XI, em 1303. Retirou-se para Collazzone, uma cidadezinha situada numa colina entre Perugia e Todi, vindo ali a morrer em plena noite de Natal do ano de 1306. Seus restos mortais se encontram numa cripta na igreja de San Fortunato, em Todi. Jacopone é venerado como santo da Igreja Católica.

2. Outras obras poéticas de Jacopone da Todi

Suas obras mais conhecidas são os laudi, satíricos e denunciatórios, em que se testemunham os tempos turbulentos das cidades-estados guerreiras do norte da Itália e da crise material e espiritual que os acompanharam. Os laudi são escritos no dialeto nativo úmbrio e representa a poesia popular da região, já que o poeta é alguém condizente com o desprezo franciscano pela erudição, substituindo o latim pelo italiano. Neles se refletiu sua forte personalidade com intemperança sentimental, com expressões tão exacerbadas que chegava a desejar a dor, a fim de ver sanados os seus males. [cfr. Gambeiro, (2004)] A sua lírica com um toque pessimista e místico é, de fato, contaminada pelo vício mencionado, isto é, de que suas manifestações de excepcional temperamento de poeta - representada por excessiva humildade, fúria e "divina pazzla" - enfraquecem às vezes o poder das palavras, frequentemente repetidas e, portanto, esvaziadas de sua carga semântica. A sua linguagem inflamada culminou na agressividade expressiva de algumas dessas composições. Observam-se ainda sugestões trágicas em parte da lírica religiosa do rebelde franciscano, na qual o Eu lírico de Jacopone se expressa no ódio pela vida, pela vaidade, pela miséria dos homens aviltados na corrupção da carne. Com esse tipo de linguagem, Gambeiro acha que "o Eu poético corta, destrói qualquer tentativa de delicadeza referente às coisas humanas, à vida terrena, que, a seus olhos, revelam o pecado irreparável, mas possível de ser alcançado pelo arrependimento e simplicidade de alma."

Méritos inquestionáveis de Jacopone, entretanto, são: ter composto seus poemas especialmente em língua vulgar, eternizando-se como a mais importante personalidade poética das origens da língua italiana e ter influenciado, com sua humana experiência do trágico presente na sua lírica, o próprio Dante Alighieri na redação da Divina Comédia.

3. Stabat Mater Dolorosa

Em latim, Jacopone escreveu esse poema em linguagem muito simples e na forma mais comum e predileta de todas: a sequência estrófica (ou sequência de stanzas).
A estrofe (ou stanza) constitui uma unidade dentro do poema. No caso do Stabat Mater, a estrofe consiste de três versos (terceto), observando o seguinte esquema: AAB/CCB ... . O poema todo é formado por vinte tercetos.
Embora o texto esteja em latim, a estrutura rítmica é aquela do latim medieval e que, depois, também será do italiano: não há as sílabas longas e breves, comuns na métrica da poética clássica latina, mas tônicas e átonas, em uma série de tercetos heptassilábicos (também conhecidos como setenários) rimados, com algumas rimas internas.

Vejamos o poema na íntegra (versão utilizada de Gioacchino Rossini):

VERSÃO ANALECTA
(Minha tradução)

Nº 1 - INTRODUÇÃO (coro e quarteto)

Stabat mater dolorosa
(Estava de pé a mãe dolorosa)
Juxta crucem lacrimosa,
(Chorando junto à cruz)
Dum pendebat Filius;
(Enquanto pendia o Filho;)

Nº 2 - ÁRIA (tenor)

Cujus animam gementem
(Cuja alma soluçante)
Contristatam et dolentem,
(Inconsolável e angustiada,)
Pertransivit gladius.
(Transpassou uma espada.)

O quam tristis et aflicta
(Ó quão triste e aflita)
Fuit illa benedicta
(Foi ela bendita)
Mater Unigeniti!
(A mãe do Unigênito!)

Quae maerebat et dolebat,
(Que se afligia e sofria,)
Quae tremebat, cum videbat,
(Que estremecia, quando via)
Nati poenas incliti.
(As dores do Nato ínclito.)

Nº 3 - DUETO (soprano e mezzo-soprano)

Quis est homo, qui non fleret,
(Qual homem não choraria,)
Christi matrem si videret,
(Se visse a mãe de Cristo,)
In tanto supplicio?
(Em tão grande suplício?)

Quis non posset contristari
(Quem não poderia contristar-se)
Piam matrem contemplari
(Em contemplar a mãe pia)
Dolentem cum Filio?
(Sofrendo com o Filho?)

Nº 4 - ÁRIA (baixo)

Pro pecatis suae gentis
(Por causa dos pecados do seu povo)
Vidit Jesum in tormentis
(Ela viu Jesus aos tormentos)
Et flagellis subditum.
(E aos flagelos submetido.)

Vidit suum dulcem Natum
(Viu seu doce Nato)
Moriendo desolatum,
(Morrendo desolado,)
Dum emisit spiritum.
(Ao entregar seu espírito.)

Nº 5 - RECITATIVO (baixo) e CORO

Eia, mater, fons amoris
(Ó mãe, fonte de amor,)
Me sentire vim doloris
(Faze-me sentir a força da dor,)
Fac, ut tecum lugeam.
(Para que contigo eu chore.)

Fac, ut ardeat cor meum
(Faze com que meu coração arda)
In amando Christum Deum,
(No amor a Cristo Deus,)
Ut sibi complaceam.
(Para que eu lhe agrade.)

Nº 6 - QUARTETO

Sancta Mater, istud agas,
(Mãe santa, que advogues isto:)
Crucifixi fige plagas,
(Crava as chagas do Crucificado)
Cordi meo valide.
(Fortemente no meu coração.)

Tui Nati vulnerati,
(Do teu Nato ferido,)
Tam dignati pro me pati,
(Que tanto se dignou sofrer por mim,)
Poenas mecum divide.
(Os tormentos divide comigo.)

Fac me vere tecum flere,
(Faze-me verdadeiramente chorar contigo,)
Crucifixo condolere,
(Condoer-me do Crucificado,)
Donec ego vixero;
(Enquanto eu viver;)

Juxta crucem tecum stare,
(Junto à cruz estar de pé contigo)
Te libenter sociare
(De bom grado compartilhar contigo)
In planctu desidero.
(Em pranto eu desejo.)

Virgo virginum praeclara,
(Admirável virgem das virgens,)
Mihi jam non sis amara
(Não sejas rigorosa comigo)
Fac me tecum plangere.
(Faze-me chorar contigo.)

Nº 7 - CAVATINA (mezzo-soprano)

Fac ut portem Christi mortem
(Faze com que eu carregue a morte de Cristo)
Passionis fac consortem
(Que eu participe de Sua paixão)
Et plagas recolere.
(E que rememore Suas chagas.)

Fac me plagis vulnerari,
(Faze com que eu seja ferido com Suas chagas,)
Cruce hac inebriari
(Com esta cruz me inebrie)
Ob amorem Filii.
(Por causa do amor do teu Filho.)

Nº 8 - ÁRIA (soprano) e CORO

Inflammatus et accensus,
(Inflamado e abrasado,)
Per te, Virgo, sim defensus
(Que eu seja defendido por ti, virgem,)
In die judicii.
(No dia do juízo.)

Fac me cruce custodiri,
(Faze com que eu seja guardado pela cruz,)
Morte Christi praemuniri,
(Seja fortificado com a morte de Cristo,)
Confoveri gratia.
(Seja favorecido pela graça.)

Nº 9 - QUARTETO

Quando corpus morietur,
(Quando meu corpo morrer,)
Fac, ut animae donetur
(Faze com que à minha alma seja dada)
Paradisi gloria.
(A glória do paraíso.)

Nº 10 - FINALE

Amen. In sempiterna saecula.
(Pelos séculos dos séculos. Amém.)

Destacamos em negrito aquelas sílabas nos terceiros versos das estrofes na língua latina, que devem ser acentuadas (3a. e 7a. sílaba) para a perfeita métrica e ritmo na leitura.

Ao lado de uma melodia primitiva estabelecida do Stabat Mater cantada nas ilhas de Córsega e Sardenha na Itália, havia também a melodia gregoriana cantada pelos monges na liturgia católica, em que para cada duas estrofes havia uma diferente melodia (melodia em sequência). Se no século XII a sequência se estabeleceu como uma peça independente na qual música e texto estavam intimamente relacionados (e como tal se tornou uma das mais influentes formas literárias e musicais da Idade Média), durante o século XVI o número de sequências (mais de 4.500!) tinha crescido tanto que a prática litúrgica normal ficou sob pressão.

Outro desenvolvimento foi que os compositores na Renascença começaram a fazer uso crescente de polifonia extremamente complicada, com prejuízo da audição do texto.

O que foi visto anteriormente, além de que os textos não eram extraídos da Bíblia, levou o Concílio de Trento (1545-1563) a banir todas as sequências, inclusive o Stabat Mater, com exceção de quatro (Victimae paschali laudes, Veni sancte spiritus, Lauda Sion e Dies Irae) que permaneceram. Não mais seria admitido o uso litúrgico do Stabat Mater, mas apenas em outras manifestações religiosas. Contudo, em 1727, o Papa Benedito XIII autorizou o retorno do hino para a festa das Sete Dores de Nossa Senhora no dia 15 de setembro, assim concebido para ser cantado nas seguintes horas litúrgicas, de acordo com Liturgia Horarum (1987):

1. no Ofício de Leitura (pp. 1212-1213): são cantadas as oito primeiras estrofes (De Stabat mater... até ... dum emisit spiritum). Deve-se mencionar que essa versão do hino acrescenta uma estrofe adicional, verbis: Christe, cum sit hinc exire,/Da per matrem me venire/Ad palmam victoriae. (Cristo, quando for a hora de sair daqui,/Concede-me chegar por intermédio de tua mãe/À palma da vitória.)
2. nos Laudes (p. 1215), são cantadas mais 6 estrofes (De Eia, mater ... até ... planctu desidero, sendo acrescida a última estrofe Quando corpus morietur ...)
3. nas Vésperas (pp.1216-1217) são cantadas as restantes 6 estrofes (De Virgo virginum ... até ... paradisi gloria.)

Ressalve-se ainda que a versão Analecta, usada por Rossini com pequenas alterações * (diferentemente da versão vaticana) e apresentada integralmente acima, é considerada a provável versão do poema original pelas correspondências entre esse texto e o do poema Stabat Mater Speciosa (a contraparte do Stabat Mater Dolorosa). Esse poema foi encontrado em um manuscrito medieval e está claramente baseado na versão Analecta. Independente das variações apresentadas nessas duas importantes versões — a Analecta e a vaticana —, deve-se mencionar ainda que é possível encontrar textos latinos nos quais algumas palavras ou versos tenham sido substituídos por outros. Todas essas leves diferenças provavelmente datem da época medieval e apareçam mesmo nos diferentes livros litúrgicos. Através do Gradual Vaticano em 1908 um texto uniforme e uma melodia gregoriana (por Dom Fonteinne, Solesmes) foram prescritos para fins litúrgicos.

Rev. P. Okke Postma (apud Hans van der Velden) percebe uma perspectiva feminina presente no Novo Testamento, especialmente em dois textos religiosos: o Magnificat e o Stabat Mater. O Magnificat (Lc. 2, 46-55), um texto bíblico portanto, descreve a alegria de Maria com a anunciação do nascimento de Cristo. Já a descrição da presença da mãe de Cristo, de pé junto à cruz e da qual pende seu filho, encontra no evangelho de João sua narrativa mais expressiva (Jo 19, 25-27)

Quanto ao Stabat Mater, objeto de nossa análise, a segunda estrofe faz menção à profecia de Simeão que disse à Maria: " ... E uma espada transpassará a tua alma ... ". (Lc. 2, 35)

A partir da nona estrofe, o poeta pede fervorosamente à Maria deixá-lo compartilhar de sua dor, deixá-lo sofrer com Jesus e suplica por sua intercessão para que possa sobreviver ao dia do juízo. Na última estrofe, dirige-se ao próprio Cristo, pedindo um lugar para si no paraíso.

4. Autor da música: Gioacchino Rossini

Gioacchino Rossini (1792-1868) nasceu em Pesaro, Itália. Em vista de seu background composicional (34 óperas, principalmente cômicas, inúmeras peças vocais isoladas, hinos e cantatas de circunstância, algumas peças sinfônicas, cinco quartetos de cordas, numerosas peças humorísticas para piano), causa estranheza ter composto apenas duas obras religiosas, a saber: Stabat Mater (1832-1842) e Petite Messe Solenelle (1863-1869), ambas criticadas como menos sérias. Outra coisa impressionante é que, na idade de 37 anos, universalmente famoso, de repente anunciou que se aposentaria (isto é, deixaria de compor óperas), por assim dizer, após Guilherme Tell (1829). Diz o historiador Combarieu [1950 (1919)] que Rossini, "no período que se estende de 1829 a 13 de novembro de 1868 (data de sua morte), só produziu uma obra digna de seu passado: o Stabat Mater. Rossini pertence a uma categoria de compositores menos raros do que se pensa: ele amava pouco a música. A hostilidade foi aliás muito viva ao seu redor; ele quis sem dúvida não comprometer a glória adquirida." Em sua opinião, essa é uma curiosidade das mais originais na história da arte.

Embora suas peças religiosas mostrem fortes tendências operáticas, especialmente o Stabat Mater, não se pode afirmar que esta tenha sido a intenção de Rossini. Ao contrário, tomamos conhecimento de uma anotação sua no manuscrito da Petite Messe, que ele compôs essas obras movido por um real sentimento religioso, verbis: "Bon Dieu: la voilà terminée, cette pauvre petite messe. Est-ce bien de la musique sacrée que je viens de faire, ou bien de la sacrée musique? J' étais né pour l' opera buffa, tu le sais bien! Peu de silence, un peu de coeur, tout est là. Sois donc béni e accorde-moi le Paradis." (Bom Deus: ei-la terminada, esta pobre pequena missa. Será música sacra o que eu acabo de fazer, ou será sacra música? Eu tinha nascido para a opera buffa, tu o sabes! Pouco de silêncio, um pouco de coração, tudo está aí. Seja bendito e conceda-me o Paraíso". Obs.: minha tradução)

Aclamada por Filippo Filippi, crítico musical de "La Perseveranza", sobre essa Petite Messe escreveu em 29 de março de 1864: "Cette fois, Rossini s' est surpassé lui-même, car personne ne saurait dire ce qui l' emporte, de la science et de l' inspiration. La fugue est digne de Bach pour l' érudition." (Desta vez, Rossini se superou, pois ninguém saberia dizer o que o conduz, ciência e inspiração. A fuga é digna de Bach pela erudição. Obs.: Minha tradução)

Por outro lado, Verdi faz parte dum entusiasmo menos pronunciado numa carta ao conde Arrivabene de 3 de abril de 1864: "Rossini, ces derniers temps, a fait des progrès et a étudié! Étudié quoi? Pour ma part, je lui conseillerais de désapprendre la musique e d' écrire un autre Barbier." (Rossini, nestes últimos tempos, fez progresso e estudou! Estudou o quê? Da minha parte, eu iria aconselhá-lo a desaprender a música e a escrever um outro Barbeiro." ( Obs.: Minha tradução) (Cfr. Petite Messe Solenelle, consultar divertimento.w.free.fr/album/oeuvres/messerossini.html)

Conta-se que em 1824, Rossini visitou Beethoven em Viena e este recomendou-lhe que esquecesse o repertório mais sóbrio e escrevesse outras óperas parecidas com o então já célebre Barbeiro de Sevilha. Teria, na ocasião, opinado que "para a ópera séria, seu talento não presta".

Abraham [1985 (1979)] também está entre os que aclamam a Petite Messe: "A Missa contemporânea mais surpreendente foi a Petite Messe solenelle (1863) do septuagenário Rossini, originalmente acompanhada apenas por dois pianos e harmônio e executada privadamente na presença de Meyerbeer, Auber e Ambroise Thomas, mais tarde orquestrada, e executada publicamente em 1869. O Gloria é muito bonito e a missa como um todo é menos operática do que o Stabat Mater, muito mais conhecido."

A respeito do Stabat Mater, Abraham informa em nota de rodapé, menos entusiasmado: "Datam de 1832 os primeiros seis números, redimidos apenas por algumas passagens tais como a esquisita escrita para trompa no começo do dueto "Quis est homo"; em 1841 foram acrescentados os últimos quatro, inclusive as angustiadas harmonias do "Quando corpus" e a vigorosa fuga dupla "In sempiterna saecula"."

Velden, concordando com Abraham, também informa que Rossini já tinha completado 6 seções em 1832, ocasião em que o Stabat Mater foi estreado em Madri, tendo sido compostas as outras 4 seções faltantes pelo bolonhês Giovanni Tadolini. Devido a um ataque de lumbago, real ou estratégico (a verdade é que Rossini não estava muito motivado no começo), Giovanni Tadolini então compôs as seções faltantes. Nesta forma foi tocado o Stabat Mater em Madri em 1832. Contudo, antes que a obra pudesse ser publicada, Rossini conseguiu retomar o manuscrito e re-compôs as seções de Tadolini.

5. Stabat Mater de Rossini

O Stabat Mater de Rossini não foi usado na liturgia por conta de sua beleza quase sensual, de acordo com os críticos da época.

A peça, como a conhecemos, foi estreada na sua forma definitiva em Paris em 7 de janeiro de 1842. O poeta Heinrich Heine, que estava presente à première do Stabat Mater, escreveu que o Théatre Italien foi transformado em "um vestíbulo do céu". Acrescentou ainda que outros lamentaram que aquela obra era leve demais e operática, e apenas "divertida demais" para seu tema solene. Mas nem todos tiveram impressão tão favorável. Richard Wagner escreveu um relato zombeteiro de todo o caso, satirizando Rossini e Dionísio Aguado e todo o público musical parisiense por sua repentina "piedade". A estréia italiana foi três meses depois em Bolonha, sob a regência de Gaetano Donizetti, o qual relatou que "é impossível descrever o entusiasmo. Mesmo no ensaio final, a que Rossini assistiu, no meio do dia, ele foi acompanhado a sua casa ovacionado por mais de 500 pessoas" . Apesar da forma um tanto irregular como nasceu o Stabat Mater, Rossini tinha produzido uma de suas maiores obras-primas.

Hoffmann (2008) faz a seguinte análise da obra, que reproduzo aqui por sua excelente capacidade de apreensão das características da obra:

"O movimento de abertura, a seção mais extensa do Stabat Mater, começa com uma solene introdução orquestral — a abertura para um drama trágico. O coro entra com severo contraponto, e alterna com o quarteto solista, avançando através de um par de clímaces mudos para as palavras "Dum pendebat Filius" (Enquanto pendia o Filho).
Cujus animam, depois de sua melancólica introdução, é ópera pura, uma ária de bravura para tenor com uma seção média contrastante mais escura e uma breve cadência próxima do fim.
Quis est homo tem um fundo mais fluido, à medida que as duas mulheres solam, quando então todo o texto se envolve num dueto estreitamente tecido.
A ária para o baixo, Pro peccatis, tem música estridente apropriada ao momento mais violento no poema. Este é seguido por uma das seções não acompanhadas da orquestração de Rossini, Eia mater, fons amoris — um diálogo entre o baixo solista e o coro que é o grande e dramático momento crítico de todo o Stabat Mater. Deste ponto em diante, o poema se desvia das imagens da angústia de Maria para a direção de uma oração mais pessoal.
No quarteto longo, dramaticamente complexo (Sancta mater, istud agas), o poeta pede para compartilhar do sofrimento de Maria, culminando no profundamente sentido Fac me tecum plangere (Faze-me chorar contigo). A mezzo-soprano ataca uma melodia semelhante em sua "cavatina" Fac ut portem.
Rossini então explora tudo do imaginário dramático de fim-do-mundo do Inflammatus et accensus, uma ária para soprano e coro que é constantemente interrompida pelas iradas fanfarras do Juízo Final. O movimento assume um matiz triunfante ao final.
Rossini de novo se volta para vozes desacompanhadas na prece para o devoto Quando corpus morietur.
O Amen final é grandioso como convém, uma furiosa fuga coral, que faz uma parada repentina para então fazer uma breve reminiscência da introdução.
Só então Rossini conduz o Stabat Mater a um termo com uma coda feroz."

6. Curiosidades sobre outros Stabat' s

Sabiam os leitores que ainda hoje muitos compositores transformam esse poema de Jacopone em lindas cantatas, oratórios, peças corais para muitas vozes ou solo, peças corais estróficas do tipo hino ou concerto litúrgico?

Alguns exemplos, com certeza, darão uma melhor idéia da importância desse poema para o imaginário ocidental. Citemos apenas alguns, mesmo correndo o risco de omitir certos países ou nomes de importantes compositores nos respectivos países constantes da amostra abaixo:

1) na Polônia: Henryk Mikolaj Górecki (1971), Krzysztof Penderecki (1962), Marcin Mateusz Wiersbicki (1996), Piotr Zychowicz (2000), Marek Jasinski (1999), Marek Sewen (1998), Anna Ignatowicz (1995), Pawel Lukaszewski (1994)
2) na Hungria: György Orbán (1995)
3) na Itália: Ennio Morricone (1975), Marco Frisina (2000), Giorgio Lanzani (1999)
4) na Dinamarca: Poul Ruders (1974), Jan Erik Hansen (1994)
5) no Brasil: Amaral Vieira (1989)
6) no Canadá: Ramona Luengen (1995), Philippe Leduc (1996)
7) na República Tcheca: Antonín Tucapsky (1989)
8) na Bélgica: Jean-Marie Plum (1943), Piet Swerts (1988)
9) na Belorússia: Alexander Litvinovsky (1998)
10) na Estônia: Arvo Pärt (1985), Urmas Sisask (1988)
11) na França: Francis Poulenc (1950), Pierre Thilloy (2001), Bruno Coulais (2005)
12) na Alemanha: Wolfgang Rihm (2000)
13) em Israel: Michael Wolpe (1994)
14) na Holanda: Daan Manneke (2007), Huub de Lange (2004), Arjan van Dijk (2000)
15) na Noruega: Olav Anton Thommessen (1977), Knut Nystedt (1986), Trond H. F. Kverno (1991)
16) na Rússia: Georgi Dmitriev (1988), Yuri Kasparov (1991)
17) nos Estados Unidos: Brian Schober (1994), Frank Ferko (1998), Aaron Garber (2000), William Copper (2001), Thomas Oboe Lee (2002)
18) na Espanha: Javier Busto (1998), Salvador Brotons (1997)
Há também o caso curioso da união de cinco compositores nórdicos para a composição de um Stabat Mater nórdico (2000). São eles: o dinamarquês Svend Nielsen (parte I, 5 min 48 seg), o sueco Arne Mellnäs (parte II, 5 min 16 seg), o dinamarquês Bent Lorentzen (parte III, 8 min 45 seg), o sueco Sven-David Sandström (parte IV, 7 min 18 seg) e o dinamarquês Ib Norholm (parte V, 7 min 8 seg).

Não poderíamos também desconhecer os nomes célebres de compositores de Stabat Mater do passado, com as ressalvas já feitas acima quanto aos países e aos nomes dos compositores constantes da amostra abaixo:

1) na Polônia: Józef Zeidler (1790), Karol Szymanowski (1926)
2) no Brasil: João de Deus Castro Lobo (1820), Antônio Francisco Braga (sem data)
3) na Áustria: Joahnn Joseph Fux (1735?), Joseph Haydn (1767, e ampliado por Sigismund Neukomm em 1803), Franz Schubert (2 Stabat' s em 1815 e 1816)
4) na Bélgica: Josquin Desprez (1500), Orlando di Lasso (1585)
5) na Inglaterra: John Browne (1490), Richard Davy (1490), William Cornysh (1500), Samuel Webbe (1782)
6) na França: Marc Antoine Charpentier (2 Stabat' s de 1670 e 1680), Dom Fonteinne (1850)
7) na Alemanha: Johann Sebastian Bach (1748), Johann Zach (1750)
8) na Hungria: Franz Liszt (1866), Zoltán Kodály (1898)
9) na Itália: Franchino Gaffori (1500), Giovanni Pierluigi Palestrina (1590), Emanuele d' Astorga (1707), Alessandro Scarlatti (1710), Domenico Scarlatti (1715), Giovanni Batista Pergolesi (1736), Giusepe Tartini (1769), Luigi Boccherini (2 Stabat' s de 1781 e 1800), Giovanni Paisiello (1810), Gioacchino Rossini (1842), Saverio Mercadante (1865), Giuseppe Verdi (1898)
10) na Holanda: Jacobus Regnart (1588), Alphons Johannes Maria Diepenbrock (1896), Bertha Frensel Wegener-Koopman (1909)
11) em Portugal: Pedro de Escobar (1500), António Carreira (1570), João Rodrigues Esteves (1740), José Joaquim dos Santos (1792), Joaquim Casimiro Júnior (1851)
12) na Espanha: Alonso de Alba (1500), Sebastian de Vivanco (1600), Juan Gutiérrez de Padilla (1640), Antonio Soler (1775)
13) na República Tcheca: Antonín Dvorak (1877)
Os nomes de Haydn, Palestrina, d' Astorga, Pergolesi, Boccherini, Rossini e Dvorak foram destacados em negrito no texto, porque há uma disputa entre os críticos sobre qual deles é o mais belo.

7) Sugestão para audição no You Tube

Estão disponíveis na Internet tanto grandes momentos de consagrados cantores acompanhados
de excelentes orquestras quanto apresentações não tão felizes. Abaixo vou citar alguns dos bons momentos que ficaram na história do Stabat Mater de Rossini, quer por terem agradado aos conhecedores, quer pelo elevado número de consulta dos aficcionados do bel canto.
Através das indicações abaixo, os leitores poderão observar como a voz humana é explorada por Rossini em seus diversos registros, desde o mais grave ao mais agudo, do baixo profundo ao soprano ligeiro.

Stabat mater dolorosa (1a. estrofe) executada pela London Symphony Orchestra e Coro sob a direção de Istvan Kertesz
Cujus animam com o tenor Stephen Costello, ou Pavarotti, ou Salvatore Fisichella, ou ainda Juan Diego Florez (observem o ré bemol a plenos pulmões)
Quis est homo com a mezzo-soprano Valentini Terrani e soprano Katia Ricciarelli ou com a
soprano Luba Orgonasova e mezzo-soprano Cecilia Bartoli
Pro peccatis com o baixo Carlo Colombara, ou Riccardo Zanellato, ou ainda Ben Wager
Eia mater com o regente Carlo Maria Giulini e o baixo Ruggero Raimondi
Quando corpus morietur com New Mexico State University Cathedral Singers
Inflammatus com a soprano Eleanor Steber, ou Angela Gheorghiu, ou Daniela Dessi, ou Montserrat Caballe, ou Renata Tebaldi, ou Luba Orgonasova, ou ainda Eva Mei
Amen. In Sempiterna com o Vox Humana Choir of Vác (HUN) conducted by Gergely Ménesi


* Na estrofe 16, linha 2, Rossini usa "Passionis fac consortem"em vez de "Passionis ejus sortem" e, depois do Amen, Rossini acrescenta a linha "In sempiterna saecula".

B I B L I O G R A F I A

Inicialmente gostaria de mencionar que me nutri, para a elaboração do presente ensaio, de muitos elementos contidos na monumental pesquisa feita por Hans van der Velden, apresentada no site "In memoriam Hans van der Velden" ou ainda em http://www.stabatmater.info/index.html


ABRAHAM, Gerald. The concise Oxford History of Music, Oxford University Press, 1985, p.754, Londres.
COMBARIEU, Jules. Histoire de la Musique, tomo 2, capítulo LV, pp. 483-507, Librairie Armand Colin, 1950, 7a. edição, Paris.
GAMBEIRO, Délia. Uma visão trágica na poesia religiosa medieval do século XIII. In: I Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos/VIII Congresso Nacional de Lingüística eFilologia, 2004, Rio de Janeiro. Anais do I Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos. Rio de Janeiro : UERJ/Cifefil, 2004. v. VII. p. 117-127. (ou consultar www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno04-19.html)
HOFFMANN, Joel. Consultar facstaff.uww.edu/allsenj/MSO/NOTES/0708/7.Mar08.html
LITURGIA HORARUM, Proprium de Sanctis, Die 15 septembris: Beatae Mariae Virginis perdolentis, vol. IV, p. 1212-1217, Libreria Editrice Vaticana, 1987, Vaticano.

sábado, 6 de junho de 2009

Contribuição de Adorno para a música contemporânea >>> Parte 3

Por Francisco José dos Santos Braga

III. 4 Stravinski e a Restauração

Antes de analisar o capítulo dedicado à música de Stravinski, convém lembrar que a Música exerce um papel predominante na construção teórica do filósofo Adorno, sendo que inúmeros de seus textos musicais embasam a sua crítica estética que mais tarde evolui para uma crítica social, elementos esses que influenciaram Adorno e Horkheimer na redação da Dialética do Esclarecimento de 1947 (Dialektik der Aufklärung). Por isso mesmo, no Prefácio de "Filosofia da Nova Música", Adorno considera que esse livro "está concebido como uma digressão à Dialektik der Aufklärung. Tudo o que nele atesta uma perseverança, uma fé na força dispositiva da negação resoluta, deve-se à solidariedade intelectual e humana de Horkheimer." (p. 11)

Por outro lado, contextualizando um pouco melhor o livro Filosofia da Nova Música, é possível verificar que o texto do ensaio sobre Schoenberg (Schoenberg e o Progresso) é de 1940-1941, com exceção de alguns adendos referentes às últimas obras desse músico. Já o ensaio sobre Stravinski (Stravinski e a Restauração) foi redigido mais tarde como complemento especial ao texto sobre Schoenberg para a edição do livro (1949), considerando que, se o livro tinha algo a dizer sobre a música contemporânea, era preciso considerá-la em seu conjunto e seu método não ser aplicado apenas a uma escola particular, com a seguinte justificação adicional do próprio Adorno:

"O procedimento diametralmente oposto de Stravinski se impõe ao exame e à interpretação, não somente por sua validez pública e oficial e seu nível de composição – já que o próprio conceito de nível não pode ser postulado de maneira dogmática e, assim como o do “gosto”, está sujeito à discussão – mas, sobretudo, porque destrói a cômoda escapatória, segundo a qual, se o progresso coerente da música conduz a antinomias, deve-se esperar alguma coisa da restauração do passado, da revocação autoconsciente da ratio musical." (p. 10)

Tendo em vista a própria afirmação de Adorno, de que é na "Dialética do Esclarecimento" que se deve buscar a ferramenta referencial do texto que estamos analisando, vamos repassar alguns pontos abordados nesse livro específico, em especial os do capítulo "A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas" (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), apud Aguiar, p. 7-9).

Inicialmente, Adorno e Horkheimer constatam que a cultura de massas se caracteriza por uma falsa identidade entre o universal e o particular. Para exemplificarem, tomam o assunto da substituição dos "detalhes" no todo da composição musical. Na música mais radical existe uma relação dialética entre o todo e o particular, permitindo que elementos que exerçam uma função "crítica" possam denunciar uma falsa relação social entre o diferente e a totalidade da organização social. Na música de massas isso não vai ocorrer, pois seu alvo nada mais é que o consumo e por isso não poderia funcionar tal função crítica.

Outro conceito da "Dialética do Esclarecimento" se relaciona ao plugging, ou seja, uma necessidade social dos produtos oferecidos pela indústria cultural. Haveria uma espécie de vínculo entre os indivíduos e uma esfera espiritual que os coloca em uma posição acima das meras necessidades fisiológicas.

Além disso, o conceito do esquematismo kantiano atribui ao sujeito a capacidade de reportar de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais. Com a apropriação do fenômeno do ouvinte treinado, a indústria cultural de massas usurpa essa capacidade, criando simultaneamente uma previsibilidade quase absoluta de seus produtos ou como disseram Adorno e Horkheimer:

"Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto." (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), p. 118)

Finalmente, os autores buscam no conceito kantiano de estética de "finalidade sem fim" a definição do que seria o verdadeiro valor específico da obra de arte. Para eles, a indústria cultural inverteu-o para uma finalidade de consumo, de valor de troca, destruindo qualquer possibilidade dialética entre a utilidade e a inutilidade, verbis:

"Para concluir, na exigência de entretenimento e relaxamento, o fim absorveu o reino da falta de finalidade. (...) O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor. (...) O valor de uso da arte, seu ser, é considerado um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam." (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), p. 148)

Voltando agora ao nosso livro "Filosofia da Nova Música", vê-se que as preocupações do autor giram em torno da situação da arte no "mundo administrado". Conforme Aguiar (op. cit., p. 9-10), "o objetivo principal da obra não é colocar Schoenberg e Stravinski em uma disputa maniqueísta, mas sim mostrar que tanto um como o outro são "vítimas" de seu tempo, mesmo que Adorno ainda veja Schoenberg com bons olhos e Stravinski como um regresso em relação ao progresso musical. (...) o primeiro representa uma recusa em pactuar com o sistema de industrialização e comercialização da música erudita, custando o próprio isolamento do compositor e de consequências na própria qualidade de suas composições, e o segundo como um brilhante criador que se entrega ao sistema que Schoenberg recusara, ao preço de um enfraquecimento progressivo de suas composições e na decadência de escrever trilhas sonoras para filmes de Hollywood, com qualidade inferior ao melhor de sua produção." A certa altura, Adorno põe-se a imaginar que um dia os acordes tonais e habilmente montados por Stravinski e a sucessão dos sons seriais elaborada por Schoenberg não pareçam tão diferentes como hoje se crê. "Antes caracterizem diversos graus de coerência numa idêntica condição."(p. 62)

Um barco sobre o oceano é a metáfora a que Adorno recorre para descrever a situação do artista em face da sociedade manipulada pelos meios de comunicação de massas e pela indústria cultural. "Nenhum artista está em condições de eliminar a contradição que há entre arte não-acorrentada e sociedade acorrentada: tudo o que pode fazer é contradizer esta sociedade acorrentada com a arte não-acorrentada, e até disso deve quase desesperar." (p. 87)

Sobre o fato de ambos (Stravinski e Schoenberg) serem vítimas de seu tempo, o próprio Adorno (p. 60) reconhece o seguinte fato: "Beethoven reproduziu o sentido da tonalidade partindo da liberdade subjetiva. A nova ordem da técnica dodecafônica extingue virtualmente o sujeito. Os grandes momentos de Schoenberg, em sua última fase, são aquisições feitas tanto contra a técnica dodecafônica, como em virtude dela." (p. 60-61)

Adorno também reconhece a existência de outro fato: "A violência que a música de massas exerce sobre os homens continua subsistindo, no pólo social oposto, na música que se subtrai aos homens." (p. 60) O que acontece com uma música séria, complexa como a de Schoenberg é que também ela sofre um efeito nivelador provocado pela indústria cultural com sua "dança do momento". Aguiar entende que "ambas coincidem no fato de não poderem ser apreciadas por motivos opostos: a música séria porque é complexa e sua capacidade de apreciação é decrescente em relação às massas; o sucesso do momento é por não haver nada a ser apreciado, é uma música que se consome em si mesma." (Aguiar, p. 36)

Adorno se refere com muita elegância aos dotes de Stravinski que ele reconhece, por exemplo ao condenar pretensões niveladoras formuladas por Hindemith, exaltando no primeiro a força de persuasão, a sua acuidade artística e a sua refinada mestria. Reconhece ainda que empreendeu seu intento de restauração sem pretensões niveladoras. E continua irônico: "Em Stravinski, perdura tenazmente o desejo, típico do indivíduo imaturo, de converter-se num clássico... em lugar de ser somente um moderno cuja substância se consome na controvérsia das tendências e que logo será esquecido. Neste modo de agir é mister reconhecer o respeito não-iluminado e a impotência das esperanças a ele anexas — pois nenhum artista pode estabelecer o que haverá de sobreviver; mas assim mesmo é indiscutível que na base de tudo isto há uma experiência que ninguém que conheça a impossibilidade da restauração poderá negar." (p. 110)

Analisando a sua técnica compositiva, Adorno não deixa de tributar homenagens a Stravinski, reconhecendo-lhe o saber como manejar destramente os meios, como realizar a sonoridade mais de acordo com a natureza dos instrumentos, como realizar o efeito mais pertinente, merecendo a fama de técnico hábil e conhecedor do material. Mas para Adorno, tudo isso é necessário em música, mas não é suficiente. Até aqui os elogios, com ressalvas como se viu.

Adorno acusa Stravinski por seu realismo de fachada, priorizando os meios prescindindo do fim; ou seja, o instrumento, que é objeto de hipóstase, tem prioridade sobre a música. (cfr. p. 134) Em Stravinski, os efeitos, já preponderantes em Meyerbeer, Wagner e Richard Strauss, são exacerbados, "acabam por tornar-se autônomos. Já não visam ao estímulo, mas sim ao 'fazer' em si, quase in abstracto, que é realizado e fruído sem finalidade estética, como um salto mortale. Ao emancipar-se do significado de um todo, os efeitos assumem certa condição física material, tangível, desportiva."

Adorno acusa ainda a obra de Stravinski de estar contaminada com a animosidade contra a anima, bem como a sua música de manter a relação dessexualizada com o corpo. "A dureza (do Sacre), o exorcismo ritual da alma, contribui para fazer acreditar que o produto não é uma criação subjetiva, um ente que reflete o homem, mas um ente em si. (...) A música pondo todo seu peso sobre o simples fato de existir e ocultando a participação do sujeito sob seu enfático mutismo, promete ao sujeito o apoio ontológico que ele perdeu em virtude dessa mesma alienação que a música elege como princípio estilístico. (...) Justamente o que há de obsessivo no procedimento stravinskiano, a contradição crassa com a obra de arte que se organiza a si mesma, seduziu sem dúvida alguma inumeráveis homens." (p. 135)

Adorno finalmente critica os elementos propriamente esquizofrênicos da música de Stravinski, especialmente presentes na História do Soldado.

Igualmente Adorno constata "o rechaçamento da expressão, que em Stravinski constitui o aspecto mais evidente da despersonalização." (p.136) Tacha-o de indivíduo hebefrênico por causa da impassibilité do programa estético do mestre russo: "A música de Stravinski faz disto sua virtude: a expressão que procede sempre da dor do sujeito frente ao objeto está proibida, pois já não se chega a um contato." A frieza dos sentimentos e o "achatamento" emocional atingem a expressão. "Não somente na música que ficou até agora, como medium, por trás da civilização, os tabus desta estendem-se à expressão, mas socialmente o substrato da expressão – o indivíduo – está condenado, porque ele mesmo forneceu o princípio destrutor dessa sociedade que hoje se vai demolindo por sua própria natureza antagônica." (p.136-137)

Adorno ainda ataca Stravinski por ter desdenhado o caminho acadêmico e rebelado contra o atelier como somente um fauve havia podido rebelar-se em pintura. Stravinski deseja ser um clássico, em lugar de ser somente um moderno. Como o seu material composicional se limita às vezes, como no Impressionismo, a rudimentares sucessões de sons, às vezes à politonalidade, outras vezes à escala pentatônica, etc., Stravinski é um moderno, pela sua aversão a toda a sintaxe da música. Mas a opinião de Stravinski sobre si mesmo é: "Não sou mais acadêmico do que moderno, nem mais moderno do que conservador. Pulcinella bastaria para provar isso."(Stravinski, 1996 (1942), p. 81)

Adorno continua sua análise da obra de Stravinski da seguinte forma: "Para Stravinski, com seu sentido de necessidade obrigatória, as exigências impostas por aquelas regras tornavam-se insuportáveis... A autenticidade já consumida deve ser eliminada para conservar a eficácia de seu próprio princípio. E isto se obtém pela demolição de toda intenção. Disso, como se constituísse um contato direto com a matéria-prima da música, Stravinski espera a obrigatoriedade necessária. (...) A renúncia a todo psicologismo, a redução de tudo ao puro fenômeno, tal como este se apresenta... Stravinski empreendeu esta rebelião não somente no jogo familiarmente estético com a selvageria, mas também suspendendo asperamente o que se chamava cultura em música, isto é, a obra de arte humanamente eloquente. (...) O ideal estético de Stravinski é o da realização indiscutível." (grifos meus) (p. 111-112)

Adorno recorre ao princípio da necessidade de uma "exigência compreensiva" nas composições, desde Beethoven, e presente em Schoenberg, mas que Stravinski não observa:
"Desde Petruschka (Stravinski) delineia passos e gestos que cada vez mais se afastam da compenetração com o personagem dramático. São passos e gestos que se limitam e se especializam e estão em agudo contraste com aquela exigência compreensiva que a escola de Schoenberg, em suas criações mais significativas, comparte ainda com o Beethoven da Heróica. Stravinski paga seu tributo à divisão do trabalho, que é em troca denunciada pela ideologia da Die glückliche Hand de Schoenberg... Como tratamento contra a divisão do trabalho, Stravinski propõe levá-la ao extremo, para ludibriar a cultura baseada nessa divisão. Da especialização ele (Stravinski) faz a especialidade do music hall, da variété e do circo, tal como se glorifica na Parade de Cocteau e Satie, mas já premeditada em Petruschka."(p. 112-113)

Seu ataque a Petruschka não se limita a esse afastamento da boa técnica musical, reconhecendo nela também uma cooptação pela decadência burguesa: "A falta de intenções vale como promessa de realizar todas as intenções. Petruschka, estilisticamente "neo-impressionista", compõe-se de inumeráveis peças de arte, desde a desordenada confusão de vozes da praça do mercado até a imitação exagerada de toda a música que repele a cultura oficial. Isso deriva da atmosfera do cabaret literário e ao mesmo tempo de artesão. (...) Essa tendência conduz ao artesanato industrial, que considera a alma como mercadoria..." (p. 113)

Pensando na intrincada psique do boneco, que morre e depois é chamado a uma vida enganosa, Adorno denuncia que "em Stravinski, a subjetividade assume o aspecto de vítima, mas — e aqui ele zomba da tradição da arte humanista — a música não se identifica com ela, mas com a instância destrutora. Em virtude da liquidação da vítima, a música se priva de intenções e portanto de sua própria subjetividade. Sob a envoltura neo-romântica, este giro contra o sujeito já se cumpre em Petruschka." Nesse balé, segundo Adorno, a desintegração do sujeito estaria demonstrada pelo grotesco (representado pelos solos dos instrumentos de sopro e pelo uso do realejo numa mímica de um órgão de Bach).

A Sagraçao da Primavera, ou simplesmente o Sacre, "a obra mais famosa e mais avançada de Stravinski em relação ao material", foi concebida durante o trabalho de Petruschka. Para Adorno, "ambos (os balés) têm em comum o núcleo, o sacrifício anti-humano ao coletivo: sacrifício sem tragédia, praticado não à imagem nascente do homem, mas à cega confirmação de uma condição que a própria vítima reconhece, ora com o escárnio de si mesma, ora com a própria extinção." (p. 116) Adorno acha a seguinte explicação para a atitude de Stravinski: "A pressão da cultura burguesa reificada impele o espírito a refugiar-se nos fantasmas da natureza, que terminam por revelar-se como mensageiros da pressão absoluta. Os nervos estéticos vibram com o desejo de voltar à idade da pedra." (p. 117)

De acordo com Adorno, Stravinki toma de Schoenberg a prática de não resolver as dissonâncias, constituindo-a aspecto cultural bolchevista dos "Quadros da Rússia pagã" (= Sagração da Primavera). "Quando a vanguarda se declarou pelo plasticismo negro, a finalidade reacionária do movimento estava totalmente oculta: voltar à pré-história parecia melhor para emancipar a arte acorrentada até então, do que regulamentá-la." (p. 116)

Por sua vez, parece que Stravinski já tinha conhecimento de algumas críticas da Escola de Frankfurt à sua pessoa, tanto que parece dispor de um arsenal de respostas prontas em sua defesa, expostas em sua "Poética Musical em 6 Lições", que ele chama de "uma série de confissões musicais", o que lhe permitiria fazer "uma apologia de suas próprias idéias musicais". (Stravinski, 1996 (1942), p. 16) Eis alguns exemplos:

"É estranho que céticos sempre exigindo novas provas para tudo, e que costumam extrair delícias na denúncia de tudo o que é puramente convencional nas formas estabelecidas, nunca solicitem qualquer prova da necessidade ou apenas da conveniência de qualquer frase musical que pretenda identificar-se a uma idéia, um objeto, um caráter. (...) Basicamente, o que mais irrita nesses artistas rebeldes, dos quais Wagner nos oferece o tipo mais consumado, é o espírito de sistematização que, sob o pretexto de abolir as convenções, estabelece um novo repertório, tão arbitrário e muito mais incômodo que o antigo."(idem, p. 76)

Continuando seu ataque a Wagner, Stravinski menciona quão nefastamente "o século a que devemos o que se chama 'progresso através do esclarecimento' inventou ainda o monumental absurdo que consiste em mimosear cada acessório, bem como cada sentimento e cada personagem do drama lírico, com uma espécie de número de identificação chamado Leitmotiv — sistema que levou Debussy a dizer que o Anel lhe parecia um vasto guia musical da cidade." (ib., p. 75)

A bem da verdade, também não escapou a Adorno a existência dessa segunda natureza, regida por um sistema de regras, apontada por Stravinski, que se sobrepõe à matéria sonora em si, verbis: "Das operações que determinaram o cego despotismo da matéria sonora resultou, por um sistema de regras, uma segunda natureza cega. (...) O preceito wagneriano de impor-se regras e logo segui-las descobre seu aspecto nefasto. Nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que impusemos a nós mesmos. Precisamente sua origem na subjetividade determina a causalidade e a vontade de composição, logo que se põe positivamente frente ao sujeito como ordem reguladora." (p. 60)

Stravinski não esconde que prefere Verdi a Wagner: "Lamento ter de dizer isso; mas sustento que há mais substância e verdadeira invenção numa ária como La donna è mobile, por exemplo, em que essa elite nada via senão deplorável facilidade, do que na retórica e nas vociferações do Anel." (ib., p. 62)

Incomodaria sobremodo a Stravinski ouvir de Adorno a seguinte crítica: "Se a crítica wagneriana de outra época, encabeçada por Nietzsche, censurava Wagner por pretender inculcar com sua técnica temática pensamentos na gente ignorante da música – ou seja, em caracteres humanos destinados à cultura de massas industrial – esta inculcação se converte em Stravinski, mestre da arte da percussão, em princípio técnico reconhecido, no princípio do efeito; a autenticidade converte-se assim em propaganda de si mesma."(p. 146)

Para validar o seu sentido de necessidade obrigatória e ser considerado ele próprio um clássico, Stravinski recorre a exemplos típicos na História da Música que venham confirmar a legitimidade do acidental (sic) em contraposição ao princípio da necessidade de uma exigência compreensiva, enunciado por Adorno. É assim que se refere a Hector Berlioz (ib., p. 71), Verdi (ib., p. 76), Tchaikovsky e Carl Maria von Weber (ib., p. 77), não escondendo a sua predileção por esses autores: "De fato, a intervalos bem alternados, vemos um bloco errático surgir em silhueta no horizonte da arte, um bloco cuja origem é desconhecida e cuja existência é incompreensível. Esses monolitos parecem enviados pelo céu para afirmar a existência e, em certo sentido, a legitimidade do acidental. Esses elementos de descontinuidade, esses esportes da natureza, recebem vários nomes em nossa arte." (ib., p. 71)

Na verdade, Adorno pede da Música algo muito maior do que a legitimidade do acidental. "A racionalidade total da música consiste em sua organização total. Por obra da organização, a música, emancipada, queria reconstruir a integridade perdida, a força e a necessidade também perdidas, de um Beethoven, por exemplo. Mas a música só pode conseguir isso ao preço de sua liberdade, e é assim que fracassa." (p.60)

Stravinski é suficientemente hábil, sabendo bater de um lado e soprar de outro, quando trata, uma única vez, da música de Schoenberg em todo o seu livro: "Seja qual for a opinião que se possa ter da música de Arnold Schoenberg (para tomar como exemplo um compositor que trabalha em linhas essencialmente diversas das minhas, tanto estética como tecnicamente), cujas obras deram vazão frequentemente a reações violentas ou sorrisos irônicos, é impossível a alguém que se leve a sério, e dotado de verdadeira cultura musical, não sentir que o compositor do Pierrot lunaire tem plena consciência do que está fazendo, e que não está tentando enganar ninguém. Ele adotou o sistema musical que atendia às suas necessidades, e dentro desse sistema é perfeitamente consistente consigo mesmo, perfeitamente coerente. Você não pode simplesmente denegrir uma música de que não gosta dizendo que se trata de cacofonia."(ib., p. 22-23)

Por outro lado, Stravinski mostra que não se sente confortável com a crítica. "Que limite estabeleceremos para seu domínio? Na verdade, queremos que ela (a crítica) seja inteiramente livre em seu terreno próprio, que consiste em julgar obras existentes, e não em divagar sobre a legitimidade de suas origens ou intenções. (...) Qual a utilidade, em suma, de atormentar um compositor com o porquê em vez de procurar por si mesmo o como, e assim estabelecer as razões do seu sucesso ou de seu fracasso? Obviamente, é muito mais fácil colocar perguntas do que dar respostas. É mais fácil questionar do que explicar. Minha convicção é que o público sempre se mostra mais honesto em sua espontaneidade do que aqueles que se estabelecem oficialmente como juízes das obras de arte." (p.82- 83)

Nessas suas confissões, Stravinski refere-se com muita aspereza ao esnobe que o irrita muito mais que o burguês. Mais do que o esnobe irrita-o, contudo, o pompier, termo que literalmente significa "bombeiro", mas aqui aparece aplicado a pessoas que representam o pedantismo pomposo e certo convencionalismo.

"Como toda espécie de mal, o esnobismo tende a suscitar um outro mal que é o seu oposto: o pompierisme. Afinal de contas, o esnobe não é senão uma espécie de pompier — um pompier de vanguarda. Os pompiers de vanguarda ficam tagarelando sobre música, assim como o fazem a respeito do freudismo ou do marxismo. (...) Os pompiers de vanguarda, além disso, cometem o erro de ser sarcásticos, além de toda medida, com seus colegas do ano anterior. Todos eles permanecerão pompiers por toda a vida, e os de molde revolucionário sairão de moda mais cedo que os outros: o tempo é uma ameaça maior para eles." (ib., p. 84)

Retornemos agora ao nosso livro "Filosofia da Nova Música". Para Adorno, o material que Stravinski utiliza contém em si as condições do restabelecimento da tonalidade entendida como um sistema de relações cuja estrutura está mais de acordo com a melodia. Também não escapa à argúcia de Adorno a maneira como Stravinski trabalhou o material musical de seus grandes balés, a saber: "... em Petruschka, a montagem com fragmentos deve-se a um procedimento humorista organizador e realiza-se mediante truques técnicos, de maneira que toda regressão da obra de Stravinski é manejada precisamente como uma cópia que não esquece nunca, nem sequer por um instante, o autodomínio técnico. No Sacre, um princípio artístico de seleção e estilização, empregado com grande liberdade, produz o efeito do pré-histórico. (...) O material se limita, como no Impressionismo, a rudimentares sucessões de sons." (p. 118)

Retomando o tema da regressão da obra de Stravinski, Adorno pensa que "... a regressão assim obtida leva logo à regressão do próprio ato de compor, empobrece os procedimentos e arruína a técnica. "Os discípulos de Stravinski costumam sair do mal-estar a que os conduz semelhante comprovação definindo seu mestre como o músico do ritmo e afirmando que Stravinski voltou a salientar a dimensão rítmica sufocada pelo pensamento melódico- harmônico e com ele desenterrou as origens da música; e na realidade o Sacre evocaria os ritmos complexos e ao mesmo tempo severamente disciplinados dos ritos primitivos." (p. 121- 122) Mas Adorno não se convence dos argumentos usados pelos seguidores de Stravinski, lembrando que "a música não somente é capaz de desenvolvimento, mas é capaz também de solidez e de coagulação; a regressão stravinskiana, pretendendo recriar um estado anterior, substitui justamente o progresso pela repetição." (p. 128)

Adorno, de fato, requer que a nova música não dissocie a própria continuidade temporal da música. Quando adverte o dodecafonismo para o cuidado que se deva tratar o ritmo, faz as seguintes recomendações enquanto fala da coerência temporal: "Com efeito, esta coerência só se produz mediante elementos diferenciadores e não mediante a simples identidade. Mas assim a coerência melódica fica relegada a um meio extramelódico: o do ritmo tornado independente. (...) Determinadas figuras rítmicas retornam incessantemente e assumem a função de temas. (...) O melos cai, em última instância, vítima do ritmo temático. E os ritmos temáticos se repetem sem que se cuide do conteúdo serial. (...) Deste modo, o elemento especificamente melódico fica desvalorizado pelo ritmo." (p. 65) Tais recomendações servem de vindicta para os excessos de variações rítmicas empregados por Stravinski que acabam por submeter a organização integral da composição a apenas um de seus aspectos formantes.

Por isso mesmo, Adorno se refere a um equívoco de Stravinski, quando "se move sempre em torno de um germe temático latente e implícito – daí derivam as irregularidades métricas – sem chegar nunca a uma formulação definitiva. Em Beethoven os motivos, embora em si mesmos fórmulas insignificantes de relações tonais fundamentais, são sempre determinados e têm uma identidade. Evitar essa identidade é uma das tarefas primárias da técnica stravinskiana das imagens musicais arcaicas. Mas precisamente porque o próprio motivo temático não está ainda 'aí', os complexos postergados continuam se repetindo e não têm, como se diria na terminologia de Schoenberg, 'consequências' " (p. 128)

É assim, segundo o filósofo frankfurtiano, que "a música de Stravinski mostra incansável atividade. Seu procedimento rítmico aproxima-se em tudo bastante do esquema das condições catatônicas. Em certos esquizofrênicos, o fato de que o aparato motor se torne autônomo conduz, após a dissolução do eu, a uma repetição sem limites de gestos ou palavras; algo parecido já se conhece em pessoas que sofrem um shock. E assim está a música de shock de Stravinski submetida à coação de repetir. (...) Deu-se à escola de Stravinski o nome de 'motorismo'." (p. 137-138)

Adorno acha que, após essas ações catatônicas, "o ideal neoclássico opera como 'fenômeno de restituição', como ponte para voltar 'ao normal'. (...) A partir da Histoire du Soldat, isto se modifica. O humilhado e ofendido, a trivialidade, que em Petruschka figura como humorismo em meio ao fragor geral, converte-se agora em renascimento da tonalidade. Os núcleos melódicos ... soam em consonância com a música vulgar de nível inferior, com a marcha, com a idiota música barata, com a valsa antiquada e até com as danças mais correntes, como o tango e o ragtime." (p. 138-139)

A crítica mais contundente de Adorno recai sobre a Dança final da moça eleita no Sacre, que representa o sacrifício humano, na qual as menores subdivisões de tempo têm como única finalidade "inculcar na bailarina e no ouvinte uma inalterável rigidez mediante shocks e movimentos convulsivos que nenhuma disposição angustiosa pode antecipar. (...) Pelos shocks, o indivíduo percebe diretamente sua própria nulidade frente à gigantesca máquina de todo o sistema. (...) A eleita dança até morrer (...) seu solo de dança é, como em todas as outras danças, coletivo em sua específica organização interna, uma dança em círculo, desprovida de toda dialética do universal e do particular. (...) Com a escolha do ponto de vista coletivo, que tem muito de golpe de mão, produz-se a agradável conformidade com a sociedade individualista, uma conformidade diferente e por certo em alto grau sinistra: a conformidade com uma sociedade integral e cega, quase uma sociedade de castrados ou de homens sem cabeça. " (p. 123-125) A conclusão de Adorno é que "o rasgo sado-masoquista acompanha a música de Stravinski em todas as suas fases."

Adorno considera que podem ser caracterizados como infantis os trabalhos realizados por Stravinski na época da História do Soldado, podendo retroceder até Petruschka. Para reforço dessa sua posição, invoca um ensaio sobre Renard de Stravinski publicado em 1926 por Else Kolliner, no qual ela identifica que Stravinski "move-se num novo espaço fantástico... em que cada indivíduo entrou uma vez quando era criança, com os olhos fechados." Em outro lugar, a autora observa que "a contínua mudança de tempos, a obstinada repetição de motivos particulares, assim como a separação e nova concatenação de seus elementos, seu caráter de pantomima, que se manifesta vibrantemente nas passagens de sétimas, que se estendem até converter-se em nonas, e de nonas que se contraem em sétimas, no tumulto dos tambores entendido como a forma mais concisa para expressar a cólera do galo, etc., todos estes elementos são transposições instrumentais de movimentos lúdicos infantis para a música." Adorno se sente à vontade para então fazer uma crítica mais contundente: "O proto- romantismo sentia-se ligado à Idade Média e Wagner ao politeísmo germânico; Stravinski está ligado ao clã totêmico." (p. 127-130)

Por acaso são explicáveis as debilidades da produção de Stravinski após a sua fase russa? Adorno acha que a resposta está em que a Música ali se faz parasita da Pintura. "Esta debilidade, ou seja, o inapropriado e o ineficaz da organização musical de Stravinski, em seu conjunto, é o preço que ele deve pagar se quer limitar-se à dança, que antes lhe parecia garantia de ordem e objetividade. A dança impunha à composição, desde o princípio, certa subordinação, e a renúncia à autonomia. A verdadeira dança, ao contrário da música mais madura, é uma arte temporalmente estática, um girar em círculo, um movimento privado de progresso." (p. 150)

Adorno pensa que Stravinski é o mensageiro da Idade do Ferro (sic) e a música stravinskiana "não pode ser explicada por certo num sentido especificamente musical, mas só antropologicamente. Stravinski traça esquemas de reações humanas logo tornadas universais sob a inevitável pressão da sociedade industrial tardia. (...) O sacrifício do eu, que a nova forma de organização exige de todo homem, seduz na forma de um passado primitivo... " (p. 132)
E conclui: "Stravinski é o que diz sim em música."

Por todas as coisas vistas e analisadas, Adorno posiciona-se a favor da "incomparável superioridade de Schoenberg sobre o objetivismo que no ínterim se corrompeu em gíria cosmopolita. A escola de Schoenberg obedece sem subterfúgios à situação dada de um nominalismo completo do ato de compor. Schoenberg extrai as consequências da dissolução de todos os tipos obrigatórios na música, consequências já implícitas na lei da própria evolução musical: a libertação de estratos de material cada vez mais amplos e o predomínio da natureza musical, que progride para o o absoluto. (...) Schoenberg atém-se sem reservas ao principium individuationis estético e não oculta o fato de encontrar-se envolvido na situação da real decadência da sociedade tradicional. (...) Justamente de maneira objetiva, Schoenberg confirma uma verdade filosófica superior ao intento de reconstruir uma necessidade obrigatória. Seu obscuro impulso vive da segurança de que na arte nada é obrigatoriamente necessário, senão aquilo que pode ser totalmente acumulado pelo estado histórico da consciência, que constitui a própria substância, ou seja, por sua "experiência" em sentido enfático. É guiado pela esperança desesperada de que tal movimento espiritual, privado de certo modo de janelas, supere com a força de sua própria lógica esse elemento privado de que deriva, e que lhe censuram precisamente aqueles que não estão maduros para esta lógica objetiva da coisa." (p. 162-163)

Para concluir, acho que o que importa no presente estudo de Adorno é a pergunta que ele muito bem coloca e que o compositor de música erudita do século XXI deve igualmente se colocar e buscar responder: Qual deve ser a minha posição em relação à cultura de massas face ao processo de banalização dos valores culturais? Devo ser progressista, engajado com a própria arte, ou ser reacionário, deixando-me seduzir pela cultura de massas, buscando o sucesso através de fórmulas conhecidas a fim de agradar ao público?

∗ Klangfarbenmelodie: melodia de timbres, termo utilizado, pela primeira vez, por Schoenberg no último capítulo de seu tratado de harmonia intitulado Harmonielehre. Klangfarbe é, literalmente, a cor do som (timbre) e, até o início do século XX, tinha sido a qualidade do som menos investigada, o que levou Schoenberg a dizer: "A valorização da sonoridade tímbrica, da segunda dimensão do som (timbre), encontra-se, portanto, em um estágio ainda muito mais ermo e desordenado do que a valoração estética destas harmonias nomeadas por último. (...) Talvez conseguíssemos perceber diferenças com maior exatidão ainda se tentativas de realizar medidas nesta segunda dimensão (timbre) já houvessem alcançado um resultado palpável. Ou talvez não. Contudo, seja como for, está cada vez mais alerta a nossa atenção aos timbres, e aproxima-se a possibilidade de ordená-los e descrevê-los." Com a eletroacústica especialmente, essa possibilidade tornou-se uma realidade.

BIBLIOGRAFIA

Inicialmente gostaria de mencionar que me nutri, na Parte 1 do presente ensaio, de muitos elementos contidos nos textos de Voltaire Schilling e Bruno Pucci, respectivamente para a elaboração do histórico do pensamento alemão no século XIX e das notas biográficas sobre Adorno.

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(Fim da série em 3 partes)


* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...