sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

DEZ DIAS "POLONÊS" (DIX JOURS "POLONAIS"), por Henri Raczymow


Por Francisco José dos Santos Braga


Este ensaio literário é dedicado aos saudosos Ruwin e Schulamit Ancelevicz, imigrantes judeus poloneses, naturais de Vilno, que, depois de um périplo por Israel e Inglaterra, vieram estabelecer-se no Brasil, na década de 1960, mais exatamente na Av. Angélica, 696, cidade de São Paulo. Eram pais de meu melhor amigo, Prof. Dr. Jacob Ancelevicz (⭐︎ 10/07/1948 03/12/2015) da EAESP-FGV.




I.  INTRODUÇÃO



Henri Raczymow é neto de emigrantes judeus poloneses que chegaram a Paris nos anos 1920. Nessa época começou a grande emigração de judeus poloneses. A maioria falava o iídiche (yiddish), a língua dos judeus askenazitas do Leste Europeu. Foram, de fato, muito objetivos esses emigrantes: "viraram a página", quando deixaram para trás sua terra natal, a Polônia. Foram mil anos de história dos Judeus na Polônia, mas agora era preciso, no local onde escolhiam para morar o resto de suas vidas, estabelecerem "as suas próprias áreas residenciais, partidos políticos, jornais, teatros, sindicatos trabalhistas e organizações profissionais, frequentemente operando no seu próprio idioma: o iídiche", conforme Bernard Wasserstein. Eu acrescentaria ainda, entre as já lembradas iniciativas das comunidades judaicas, as instituições comunitárias: sinagogas, escolas, cooperativas e associações de ajuda mútua, clubes e cemitérios.

[WASSERSTEIN, 2014], estudando o caso particular dos Judeus da Polônia, além do trecho acima citado, escreveu no 1º capítulo (A Geleira derretendo, subseção "Substância e Vitalidade") de seu livro "Na iminência do extermínio: a história dos judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial": 
"Com 3,2 milhões em 1939, os Judeus da Polônia formavam a maior comunidade judaica do continente. Embora profundamente apegados ao país, o qual a maioria deles considerava inquestionavelmente como o seu lar, os Judeus poloneses estavam, em um grau considerável, isolados do restante da população do ponto de vista religioso, socioeconômico e político. (...) Juntos, eles formavam a estrutura de um mundo em grande medida autossuficiente dentro do qual era possível, se a pessoa assim o desejasse, viver quase sem se aventurar na sociedade mais ampla.
Os Judeus poloneses formavam, em um sentido jurídico, uma comunidade, e eram encarados assim pelo resto da sociedade. No entanto, eles estavam profundamente divididos entre si mesmos. Ben-Zion Gold, que foi criado em uma família rigidamente ortodoxa na Polônia na década de 1930, relembra que "os Judeus religiosos olhavam para os assimilacionistas com uma mistura de pena e desprezo". Theodore Hamerow, filho de atores profissionais no palco iídiche, recorda como, quando era criança na pequena cidade de Otwock, perto de Varsóvia, na década de 1920, ele espiava através de uma fenda na cerca nas noites de sexta-feira e assistia à celebração do Shabat do vizinho hassídico: "Eles pareciam para mim quase tão estranhos, quase tão exóticos quanto os dervixes rodopiantes da Turquia sobre os quais eu lera ou com os frenéticos adoradores de Jagannath na Índia. Eu sentia uma barreira invisível porém intransponível separando-me deles. Eles e eu parecíamos pertencer a dois mundos sociais e culturais completamente diferentes".
As diferenças  envolviam questões tanto de classe quanto de ideologia. O advogado, parlamentar e líder sionista Apolinary Hartglas confessou nas suas memórias do pós-guerra o desprezo com que olhava para muitos dos seus camaradas judeus poloneses: "Eu ficava ofendido pela sua falta de cultura europeia, falta de traquejo social...  Uma lâmina de vidro me separava deles".
A Polônia era a principal arena na qual as forças ideológicas e culturais conflitantes do povo judeu-europeu lutavam pela supremacia. Varsóvia, com os seus 381 mil Judeus em 1939, o maior número de qualquer cidade do continente, chegava mais perto do status de capital da diáspora europeia. Ali estavam as sedes dos principais partidos políticos, instituições beneficentes, sistemas escolares, jornais e órgãos culturais dos Judeus. 'O povo judeu-polonês', de acordo com um dos seus observadores contemporâneos mais bem informados, 'fornecia substância e vitalidade  para todos os nossos movimentos nacionais, políticos e culturais. Sendo a menos afetada pela assimilação, ela permaneceu nacionalmente a mais consciente, politicamente a mais militante e individualmente a mais orgulhosa das comunidades judaicas'." ¹  (grifo meu)
Fonte https://books.google.com.br/books?id=I_VtCQAAQBAJ&pg=PT3&lpg=PT3&dq=Na+imin%C3%AAncia+do+exterm%C3%ADnio:+a+hist%C3%B3ria+dos+judeus+da+Europa+antes+da+Segunda+Guerra+Mundial&source=bl&ots=W1ZYI6w5hh&sig=4edh73VY60-089uA47CAyb4jfok&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiD1I7-i7DSAhVKf5AKHYqUCUMQ6AEITTAJ#v=onepage&q=Na%20imin%C3%AAncia%20do%20exterm%C3%ADnio%3A%20a%20hist%C3%B3ria%20dos%20judeus%20da%20Europa%20antes%20da%20Segunda%20Guerra%20Mundial&f=false 
 
Henri Raczymow nasceu em 1948 em Paris, onde se tornou professor de letras. No seu livro Dix jours "polonais" (Dez dias “polonês”), incorporou o papel duplo de narrador e autor. Se pudermos dizer em uma palavra:  "narr-autor". No livro ele relata suas experiências numa viagem rápida de dez dias à Polônia, onde busca suas raízes judaicas. É um livro breve (de uma centena de páginas), tão curto talvez porque o peregrino não encontrou a Polônia que ele esperava, isto é, a Polônia judaica. Das duas uma: ou a judeidade foi apagada definitivamente ou foi criado um “estilo judeu”, mas, de fato, criação de goyim (não judeus ou gentios). Dos restaurantes kasher ² de fachada apenas, até à música klezmer ³ produzida e aos Auschwitz Tours (pacotes de agências de viagem que levam turistas a Auschwitz), tudo lhe soou sem autenticidade. É forçoso reconhecer que a decepção do autor traz à tona que o vazio polonês reflete o seu próprio vazio interior, que, aliás, ele teve a coragem de confessar através de dois fatos, antes mesmo de encetar a narração de sua viagem:  
1. seu sobrenome Raczymow não é polonês, ou seja, sua família passou pela Polônia, mas não tem origem polonesa;  
2. quando de seu retorno da Polônia a Paris, parece que não mais vai reencontrar Pauline, a companheira com quem vivia até então. 

Henri sente que é chegado o fim de um ciclo para a imagem que ele fazia da Polônia e para sua vida amorosa com Pauline. A conjunção Pauline-Polônia constitui, para ele, os elos dessa rede que representam sua busca de identidade. Polônia-Pauline o persegue durante dez dias de viagem. Ao final, convence-se de que se equivocou quando elegeu seu casting, isto é, quando fez a escolha dos protagonistas que participariam do seu romance. Constata então que a conjunção Pauline-Polônia não ocorreu. Dela (Pauline), nada soube ver senão o sorriso. Bem como da Polônia real não viu nada, provavelmente, a não ser brechas.

Acha que sua situação lhe permite comparar-se a Fryderyk Franciszek Szopin, cidadão e compositor polonês (em francês: Frédéric François Chopin), ícone do romantismo musical, que emigrou para Paris aos 21 anos. Vários são os trechos em que Raczymow se refere a Chopin de forma muito favorável, como se houvesse perfeita identificação entre os dois: tal como ele, Chopin — cujo pai, Nicolas Chopin, nasceu na aldeia de Marainville, na província de Lorraine, França e lhe deu sobrenome francês —, decidiu-se por uma viagem à França de seus antepassados, sem saber que esse país iria tornar-se sua segunda pátria; esta sim, permanente e definitiva para o resto de sua vida. Há entre o escritor francês e o compositor polonês como que uma busca de identidade às avessas, com algum exagero por parte do autor.

O livro Dix jours "polonais" (Dez dias "polonês") se apresenta como um monólogo ininterrupto, sem pausas e sem divisão em capítulos. Essa forma de monólogo interior é muito moderna e possibilita transportar o leitor para um ambiente concreto e realista.

Sou o responsável pelas traduções dos trechos de Dix jours "polonais" que aparecem neste artigo.




II.  ANÁLISE DE DEZ DIAS "POLONÊS", por Henri Raczymow 
Henri Raczymow publicou sua narrativa Dix jours "polonais" (Éditions Gallimard, 2007, 103 pp.), com fortes tons autobiográficos, na qual, sob a ótica de um judeu francês (o próprio autor), usando sempre a primeira pessoa à guisa de monólogo, descreve certa viagem à Polônia com a duração de dez dias. Misturando sonho e realidade, esperança e decepções, Henri (tanto protagonista como narrador) reconstrói, por meio do desapontamento e da introspecção, os dez dias em que viveu em busca de sua identidade polonesa perdida. 

O romance pode ser considerado um diário sobre esse périplo que Henri fez aos 58 anos de idade, uma das poucas referências à localização temporal: "pensei que sem dúvida, hoje, já era um tempo maduro, aos cinquenta e oito anos, de ir lá ver realmente. De encontrar este 'ante-passado', o que chamo às vezes de minha 'pré-história'." (p. 40) — o que faz imaginar que sua viagem de 10 dias à Polônia foi feita em 2006, já que nasceu em 1948, — no qual o mundo da Polônia é retratado sob a ótica particular dele, que é claramente caricatural. Assim, a Polônia encarna a morte, a impessoalidade, a exploração comercial dos símbolos judaicos e até portadora de uma dose de anti-semitismo. 

Já na abertura, demonstra essa ambiguidade: “Só tenho de polonês meu nome, que é uma impostura. No princípio um nome judeu (iídiche) que foi depois misteriosamente polonizado, não sei quando, nem por quem, nem por quê.” Por que? Responde logo a seguir: “Quando era criança, ao enunciarem meu nome e me perguntarem se era russo, eu dizia “Não: polonês.” Mas eu bem sabia que nós NÃO éramos poloneses, embora, como o sabia com toda a certeza, viéssemos da “Polônia”.” (p. 11)

De plano, somos informados pelo autor que ele, nessa narrativa, pretende transitar, no mínimo, por quatro universos linguísticos. Sua língua nativa é o francês. Mas possui outras raízes, quiçá mais profundas, passando pelo polonês, o qual se interpõe entre outras mais antigas: o hebraico e o iídiche. Essa última é uma língua germânica, adotada pelos judeus, particularmente na Europa Central e Oriental, no segundo milênio d.C. É escrita com caracteres hebraicos. O iídiche era a principal língua falada pelos Judeus dentro da cultura askenazi, especialmente a partir do século X d.C. Os Judeus askenazi eram originários dos países da Europa central, oriental e setentrional, por distinção com os sefaradi, que habitavam a Península Ibérica. Antes do Holocausto (ou Shoah em iídiche), os primeiros representavam cerca de 90% do número total de Judeus e falavam, concorrentemente com a língua do seu país de residência, o iídiche.

Quanto ao polonês, reconhece que sua família nunca o falou. “Meus antepassados falavam sua língua entre si, o iídiche. (...) O x do problema, para mim, é que na Polônia, ninguém mais fala essa língua judaica, com razão. E aliás, eu mesmo não a falo, embora a tenha compreendido e me tenham falado na minha primeira infância. Só sei três palavras de iídiche, palavras infantis. (...) A sheyne pounem, a grobè toukhès, a sakh tsourès. Um belo rosto, um bumbum grande, muita preocupação.” (p. 11-2) Claro que o autor exagera ao dizer que só sabe três palavras em iídiche, porque o livro demonstrará que ele sabe muito mais do que reconhece. E deixa clara sua preferência por essa língua: “Se um dia sereias pré-históricas me fizerem sinal, me sussurrarem ao ouvido para vir reunir-me a elas, em que língua se dirigirão a mim? Sem dúvida: em iídiche. É a língua pela qual poderia juntar-me aos meus, a língua-pó de seus ossos. Minhas sereias do Vístula, esse rio que carregou tantas cinzas.” (p. 12)

"Na véspera de minha partida para a Polônia, tinha folheado distraidamente Le Monde virtual. Caiu-me na Internet um artigo sobre a Polônia. Era o líder da LPR (Liga das Famílias Polacas, da extrema-direita) que assim se exprimia: 'Não há nem haverá lugar para o anti-semitismo na Polônia. A história de nossos dois povos foi difícil. Ela requer uma reconciliação na verdade e no amor. Estou aqui hoje com uma mão estendida.' É engraçado como, na Polônia, para falar dos Poloneses e de seu destino, os Poloneses falem dos Judeus. Eles têm um problema com isso, alguém dirá. Ele, lá, este líder nacionalista, com o quê se importa? A mão estendida? Mas quem lhe pede o que quer que seja?" (p. 98)

Isso, antes de narrar a chegada ao aeroporto Charles-de-Gaulle, onde Henri tomaria o avião com destino à Polônia, com um pensamento em mente: estava indo à Polônia para depor um ramalhete:

E quando eu chegar, colocarei sobre teu túmulo
Um buquê de azevinho  verde e de urze em flor.
 (Victor Hugo)

É exatamente isso: ir lá colocar esse buquê. Nesse pormenor, aproximadamente: lá não há nenhum túmulo onde se recolher. A não ser o solo inteiro da 'Polônia'. É bem vasto. Um cemitério na escala de um país. Não é delicado para a 'Polônia' dizer isso. Eu sei. E depois, este não é costume, na minha tribo — colocar flores. A gente põe uma pedra. É mais sóbrio. 'Porque as flores são perecíveis.' ” (p. 13)

Por que o autor coloca Polônia entre aspas? A resposta parece estar na epígrafe ao livro, à guisa de prefácio da narrativa propriamente dita: “Diz-se que, fugindo dos cruzados sanguinários da Europa Ocidental, eles atingiram um dia a Polônia, e que as vanguardas dos imigrantes acreditaram ler, sobre o tronco de uma árvore, Po-lin,  o que significaria, em hebraico: Aqui tu te repousas. Conta-se, além disso, que eles viram um bom sinal no próprio nome dessa terra. Po Lan Ia significaria, sempre em hebraico: Aqui Deus se repousa.” (p. 9) Aqui ele fala certamente da chegada dos primeiros Judeus ainda durante a Idade Média à terra que os hospedaria tão bem. Os principais motivos que levaram os Judeus a imigrarem para a Polônia foram: as Cruzadas, a perseguição aos Judeus na Boêmia e o tratamento relativamente bom do país que acolhia os habitantes de fé judaica. Data de 1264 a permissão de os Judeus terem terras, negócios e liberdade de culto na Polônia. Foram mil anos de vida judaica nesse país, caracterizada por relativamente boa convivência.

Só neste instante tomamos conhecimento de Pauline, a mulher que Henri ama e com quem mora. Ficamos sabendo que o relacionamento amoroso vai mal: “Eu lhe disse: “Até a volta”. Ela me disse: “Eu não estarei mais aqui”. Por minha vez, meneei a cabeça. Isso existe. É inútil lutar, enfurecer-se, às vezes é trabalho perdido. Sobretudo se a gente não compreende nada na disputa. Não se é suficientemente inteligente, acredite! Ou então nossa experiência, que por suposição devia crescer com a idade, na realidade é ínfima demais.” (p. 14)

Só mais tarde vem ao nosso conhecimento a extensão do desentendimento do casal. No que se refere ao porquê dessa viagem à Polônia, eles se desentendiam abertamente, conforme o diálogo passado antes da viagem obviamente:

Tenho um projeto de escrever um livro sobre a Polônia e sobre você, Pauline.  
Ela bem sabia que o livro trataria também dela. Ela mo censurava antecipadamente.

Não lhe recomendo isso. É na vida mesma que você deve viver. Não em um outro mundo. Eu não quero um outro mundo. Então, você escolhe. Ou você escreve ou vive. Não quero um homem que vive sobre muletas, mesmo sobre nobres muletas como a literatura. Quero um homem inteiro. Eis porque você precisa de uma mãe, uma mulher que fosse sua mãe. Porque você não presta atenção à vida. Porque você não está presente, você não está nem aí. A gente precisa que alguém esteja aí, presente, atento, em seu lugar, sirva-lhe de olhos e ouvidos (...) Você virou um bebezão que espera o seio que se lhe dará, e você se tornou agora um bebê velho. Você precisa sempre duma mamãe. Então, sim, no começo, é tocante um bebê grande, um bebê velho. Mas isso cansa, fica depressa insuportável. Pois é de um homem que uma mulher tem necessidade. Um homem que saiba se envolver, decidir, agir, resolver, dizer as palavras e ter os gestos que sejam necessários no momento preciso. Um homem, compreende? (p. 78-9)

Henri tem um projeto: escrever um livro sobre a Polônia durante a sua curta viagem. Mas esse projeto acontece durante um período também de ausências: primeiro, de sua amada Pauline; também, de seus antepassados; depois, do povo judeu que chegou a ser 60% da população polonesa; e finalmente, do próprio país que visita. Pauline-Polin constitui, para ele, os elos dessa rede que representam sua busca de identidade. Assim que pisa o solo polonês e visita a sua capital, logo percebe o equívoco de levar esse projeto adiante. Sua decepção em Varsóvia é chocante, ao dizer ao fim da viagem: “Em Varsóvia, minha solidão se justificava: exceto o pequeno quarteirão turístico de Stare Miasto, onde se estaria melhor com sua amante para tomá-la pelo tronco como fazem os outros, a Cidade Velha, cujo tour a gente faz em meia hora. Varsóvia era a evidência do nada, os traços do extermínio, assinalados por memoriais de granito, grandes ou pequenos, plantados sobre o vazio.” (p. 61) Sua amada Pauline ele está a ponto de perdê-la. E a Polônia de sua busca não passa de “lugar nenhum”  (p. 16) ou “um vasto cemitério sem túmulos.” (p. 24) Convence-se de que se equivocou quando elegeu seu casting, isto é, quando fez a escolha dos protagonistas que participariam do seu romance. Afinal de contas, Henri vai constatar que “a conjunção Pauline-Polin não terá lugar. Teremos nos enganado com o casting. Dela (Pauline), apenas soube ver o sorriso. Bem como da Polônia real nada verei senão brechas, provavelmente.” (p. 99)

O que Henri tinha feito antes de ir para a desconhecida mas idealizada Polônia? Não li nada antes de pisar o solo polonês, não escutei nada, não fiz nenhuma busca na Internet, não assisti a cassettes documentárias ou pedagógicas, não revi os filmes de Andrzej Wajda, cujo lirismo, romantismo tinha amado tanto, cujo anti-semitismo me tinha tocado tanto. No máximo eu escutava mais e mais Chopin. Não obstante, se eu tivesse tido a oportunidade, não teria deixado, por nada deste mundo, de rever uma peça de Tadeusz Kantor. Mas pelos livros, eu abrirei o da “Polônia” sozinha, como uma obra para mim nova. Quero ler com meus olhos. É pena, eu compreenderei o pouco que puder. Essa será minha “Polônia”. A mistura de uma “Polônia” que eu tenho em mim e da que terei sob os olhos e nos ouvidos, na minha língua, nas minhas papilas. A mistura ou a não-mistura. Pois isso será talvez como a água e o óleo, radicalmente heterogêneos.” (pp. 27-8)

Do que foi dito no parágrafo anterior, vou destacar o trecho que fala de sua escuta cuidadosa de Chopin nos dias que antecederam a sua viagem. Vários são os trechos em que Henri se refere a Chopin de forma muito favorável, como se houvesse perfeita identificação entre os dois: Henri, cidadão francês, com seu sobrenome polonês, decide-se por uma peregrinação à Polônia de seus antepassados que para lá imigraram não se sabe quando e porquê, da mesma forma que Fryderyk Franciszek Szopin, cidadão polonês, — cujo pai, Nicolas Chopin, nasceu na aldeia de Marainville, na província de Lorraine, França e lhe deu sobrenome francês —, decidiu-se por uma viagem à França de seus antepassados, sem saber que esse país iria tornar-se sua segunda pátria, esta sim permanente e definitiva para o resto de sua vida. Há entre o escritor francês e o compositor polonês como que uma busca de identidade às avessas.

A impressão de Chopin sobre a imaginação de Henri é tão grande a ponto de fazer referência  ao mestre polonês no parágrafo que encerra o livro, a saber: “No avião de volta, estava tão triste como se abandonasse um ser querido. É verdade que tinha partido com o mesmo sentimento. Na cabina, Chopin, como uma música de elevador, destinava-se a tranquilizar os passageiros e a sinalizar a polonitude desse vôo (nós estávamos num avião da Lot Polish Airlines). Chopin contribuía para minha tristeza. Eu receava que ela ia ser duradoura. As coisas eslavas me tinham comovido para sempre.(p. 103)

No começo da narrativa, antes de embarcar no aeroporto Charles-de-Gaulle, o autor nos deixa entrever o seu íntimo. Dá-nos a conhecer que tem uma amante, certa mulher casada chamada Juliette. “Na sala de embarque onde esperava para embarcar, havia um outro voo para os Estados Unidos. Encarei os viajantes. Esperava ver surgir o rosto de Juliette. Ela estaria com seu marido. Nós nos olharíamos como quem não quer nada. Ela teria sorrido. Queria que ela sorrisse, o olhar baixo. Eu a queria. Mas eu tinha um pouco de vergonha, como se traísse Pauline. Aliás, eu a traía, mesmo se, ao voltar, não estivéssemos mais juntos.” (p. 14)

Quando o avião pairou sobre as nuvens, pôs-se a meditar: “Nós vamos na direção leste. Meus avós se dirigiram para oeste. Não eram idiotas. Tenho o sentimento de ir contra a corrente, como se devesse abrir caminho no meio de uma multidão compacta que vinha ao meu encontro, uma coorte da qual queria me desfazer pois sentia que os fantasmas que a formavam me eram nocivos. A contra-corrente da História e mesmo de todo bom senso. De que me castigava? Qual era exatamente meu erro?” (p. 15)

A voz do comandante se faz ouvir: “Uma voz chia no alto-falante: szchwoszch. A voz da Polônia. Eu não dominava mais grande coisa. Só fazia seguir uma decisão que tinha tomado, Deus sabe porquê e porquê não. O impulso fôra dado: só tinha que se deixar deslizar sobre as nuvens.(p. 15) Curiosa e divertida a expressão onomatopaica de que o autor se serve para descrever a língua polonesa e como ela soa nos seus ouvidos.

Antes de começar uma descrição do que encontra na Polônia e que se estende da página 17 até o fim do livro, Henri faz uma constatação sobre si mesmo e uma profissão de fé. “Eu sou do tempo, não do espaço. (...) Aliás, eu não gosto muito de mudar de lugar. Pisar o solo polonês me faria religar com o tempo antes do meu tempo, meu tempo pré-histórico, minha genealogia íntima, minha arqueologia vergonhosa, de velhas camadas sedimentares. Religar com antigos fios. Reencontrar o fio. O fio de Ariadne. Reencontrar-me aí.

Um pano, um texto antigo, tais como meus antepassados puderam antigamente acariciá-los. Retomar a leitura/escrita, a tecelagem no ponto onde eles a haviam deixado, trabalho inacabado, livro abandonado num tempo de pânico, de novo, livro aberto em qual página, livro jamais re-fechado. Reencontrar esse livro. Uma caça ao tesouro, em suma.

Mas receio que isso mesmo tenha sido uma ilusão. Tratava-se de uma homonímia, de um mal-entendido. Pois há “Polônia” e “Polônia”. Quando se diz “nós vimos da Polônia” e “eu vou à Polônia”, o mesmo topônimo,  visivelmente idêntico, é ambíguo. Seria preciso usar duas palavras para dizer duas coisas diferentes. Apesar disso, as duas “coisas” se tocam, se sobrepõem em certos pontos. Tal era minha esperança. (...) Tratava-se de um “retorno ao país?”  Não, era outra coisa. Algo que não tinha nome. Pois, a gente não saberia, ao cabo de noventa anos, “retornar” à Polônia. Uma vez que se vai visitar uma “Polônia” que não existia antes. E que se espera reencontrar uma “Polônia” que hoje é propriamente “lugar nenhum”. No entanto, eu aposto que essa coincidência existe. As aspas, em todo o caso, se impunham: um avião me colocaria sobre o solo da “Polônia”."  (p. 15-6)
E seguindo o fluxo de seus pensamentos, conclui numa nova referência à sua localização temporal: “Noventa anos de ausência. Será que sou um senhor tão velho assim? Duas horas de voo, uma viagem de volta de noventa anos. Estou retornando à Polônia para morrer. Como os velhos elefantes que retornam ao seu “cemitério”  — dizem — para aí deixarem apodrecer sua velha carcaça. E a Polônia é diferente de um cemitério?” (p. 16)

A partir deste ponto até o fim do romance, o autor fará muitas referências à localização geográfica e espacial. Seu itinerário na Polônia começa por Varsóvia. Hospeda-se no Hotel Metropol na rua Marszalkowska, localizado no centro, em frente ao Palácio da Cultura e Ciência, considerado um “presente” que Stalin deu ao povo polonês. Mas Henri tinha outras referências topográficas em mente para o hotel: “está situado na intersecção com as Alamedas de Jerusalém (Aleje Jerozolimskie, em polonês), mil quartos que dão para um cruzamento ruidoso, por onde passam bondes um pouco antigos que me devolvem a um tempo antigo, donde queria fazer-me sair...” (p. 17) Fala sucintamente do clima (calor sufocante), bem como do seu antídoto (ducha fria e nudez).

Estava inquieto, porque queria sair em “visita”. Mas o que visitar? “Formulei as palavras em alta voz: ir para o gueto. Depois me disseram que as pessoas, em geral, tinham antes o desejo de abandoná-lo. Eu fazia tudo do jeito errado. Isso era habitual comigo. Mas desta vez, francamente, eu estava me excedendo. Estava alcançando picos de aversão a mim.” (p. 18)

Caminhando ao longo da interminável rua Marszalkowska, “esta rua desmesurada e desprovida de todo charme”, Henri tem o sentimento bizarro do “déjà-vu”. Mas logo sua razão se interpõe como desmancha-prazeres: “Há noventa anos atrás, essa artéria não existia. Seu nome, no máximo. Pois, nesse ínterim, Varsóvia, como Cartago antes dela, tinha sido destruída, quase inteiramente.” Bifurcando à esquerda, “achei-me diante do teatro iídiche, que estava em recesso neste fim de julho.” (p. 18) Pela primeira vez, tomamos conhecimento da dimensão temporal. Henri chegou à Polônia no verão, em fins de julho (p. 18 e 22), quando as temperaturas são as mais altas. “Bem ao lado, a sinagoga Nozyk, a única sobrevivente da Catástrofe”, na rua Twarda, 6. (p. 18) “Ao lado, uma espécie de clube judeu que dava um programa de música klezmer. Sonho ruim. “Música klezmer” não me dizia nada que valha. A visita das sinagogas na Polônia custava cinco złotys. Cobra-se a visita às igrejas? Essas sinagogas eram só museus, eis o porquê, testemunhas de um tempo diferente do nosso tempo comum. Uma época não vulgar, um dia.” (p. 19)

Continuando a sua caminhada, observa que “a cidade era sulcada por bondes de cor amarela e vermelha. Andei ao longo da avenida João Paulo II, que parecia com a rua Marszalkowska, mas sem as butiques, e atravessei a avenida Solidariedade. Todos esses bulevares estavam muito limpos, nem um papel fora do lugar, nem uma sujeira de cachorro, nem uma guimba. Pessoas disciplinadas. Só  atravessavam a calçada, quando o semáforo permitia, mesmo se não houvesse trânsito. Eu preferia a humanidade latina da desordem.” (p. 19)

Por toda a parte, “eu não reconheço ninguém. Ninguém me reconhece. Eu não vim jamais aqui, acredite!, mesmo numa vida anterior, mesmo num sonho ruim. Entretanto, eu tinha sempre pensado o contrário: que essas ruas e essas casas já haviam visto, há muito tempo, meu fantasma passear. Mas OK, hoje não são mais as mesmas ruas nem as mesmas casas. Deram os mesmos nomes a outras. (...) Por olhar para trás, não se avança, não se pode viver, e nossos olhos cerrados não deixam um horizonte mortal.” (p. 20)

Foi assim que chegou à rua Nowolipie, onde morava sua família, antes. O autor cita em seguida dois sobrenomes: Racimore ou Rapoport, que certamente figuravam em alguma placa de bronze como antigos residentes na rua Nowolipie, homenageados "in memoriam".

Refere-se imediatamente em seguida às HLM. Mas o que diz Henri sobre as HLM? “HLM’s a não mais acabar, ornadas às vezes com um pequeno jardim. “Ornadas”... O jardim mesmo me parecia recoberto de pó. De cinzas. De repente, um edifício decorado à moda do século XVIII que parece deserto. Nada.” (p. 20)

Em seguida, mostra como a condição “sui generis” dos Judeus ao abandonarem a Polônia: diferente de, por exemplo, “um marroquino que deixa Marrocos ou de um português que deixa Portugal para virem trabalhar na França, deixando para trás uma parte de si mesmos, uma casa, uma família, um campo. As coisas continuam lá quando retornarem um dia a seu país. Nós fugimos da “Polônia” nada deixando ali, nem pesares nem saudade. Nós sabíamos obviamente naquele dia que nenhum mal do país logo nos oprimiria. Nós tínhamos retirado a escada. (...) Só haverá algum dia os netos daquelas pessoas, daqueles emigrantes,  para dar de comer, mentira de conto de fadas, a lembrança indevida, tão nebulosa quanto usurpada, duma “Polônia” que eles não conheceram, justamente porque eles não a conheceram, onde as pessoas que falavam o iídiche viviam juntas, nas mesmas cidades ou nos mesmos bairros das grandes cidades. Um terço da população de Varsóvia era judeu. (...) E mais tarde, este “nada” que eles deixaram para trás tornou-se menos que nada. Depois sobreveio o deletar do próprio nada, com a guerra.” (pp. 23-4)

E continua com maior amargura do que antes: “A “Polônia”, assim, para mim, neto daqueles emigrantes, tornou-se esse menos que nada: um vasto cemitério sem túmulos. Uma terra suja. Uma terra impura, empanzinada de sangue, saturada de cinzas. Aí cresceram depois HLM’s. Aí cresceram filhos, os netos, hoje quinquagenários, contemporâneos de meus avós. Era bem preciso que um dia eu refizesse a viagem às avessas. Que eu pisasse este solo, apesar de minhas reticências, malgrado minha imaginação torcida. Esta terra é a mesma que eles deixaram. Traz o mesmo nome. Chama-se “Polônia”. Mesmo que se trate de uma homonímia.” (p. 24)

Sua próxima parada é o cemitério judeu de Varsóvia “cercado de um muro de tijolos vermelhos. O mesmo que antes. Eu sabia que ficava próximo ao gueto. Os cadáveres do gueto que juncavam as calçadas, primeiramente recobertos de jornais, eram em seguida transportados aqui, amontoados em charretes de mão. Perpendicular, a rua Mordechai Anielewicz, o comandante da Insurreição, cujo nome figura num kibbutz em Israel.” (p. 25) Na saída do cemitério, há o encontro do narrador com um grupo de israelenses. Um deles lhe pergunta se era judeu. "Que outro iria perder-se ali?" é o seu comentário mordaz. 

Dali segue para o Instituto Histórico Judaico, onde exibem uma exposição sobre o gueto: "imagens insustentáveis, muitas vezes tiradas pelos soldados da Wehrmacht. (...) Começa a ficar cansado dos Judeus de Varsóvia. E, aliás, já estão todos mortos. Por que insistir?" (p. 26) Para relaxar vai a um café-restaurante. Pede uma sopa chamada "kodnik" ou "kolnik". Tanto faz. Seu comentário: "Devo ter entendido mal. Essa língua jamais foi a minha" (p. 27), referindo-se à língua polonesa.

Ei-lo de volta ao Hotel Metropol, quarto 411 acima dos rumores da cidade mas sob os da TV5. De volta ao hotel, refugia-se no canal da TV-5. Agora sim, sente-se em casa. "Relembra o cemitério judeu visitado de manhã, com aqueles milhares de túmulos em meio a uma selva de vegetação anárquica. Um pesadelo, sim. Os cemitérios de Montmartre, de Mont-Parnasse, do Père-Lachaise me dão paz, me ensinam, me encantam. , eu não penso absolutamente na morte. Lá, é outra coisa", ou seja, lá, pensa-se no que foram os homens enquanto vivos. (p. 32) 

"Sente a necessidade de telefornar a Pauline. Receava que ela já tivesse partido. Mas, não, ela ainda estava em casa. Sua voz é doce, pacificadora. Preciso dela. (...) Eu lhe confio meu pensamento. Ela me diz palavras de sabedoria: meus mortos estão mortos, eu devo voltar-me para a vida. A vida continua! (...) É à minha mãe que eu gostaria de poder contar minha viagem. Apenas à minha mãe. Não há mais tempo, tampouco. Em vida, já não lhe posso falar." (pp. 33-4) 
  
Lembra-se de Juliette, a sua amante casada, que preferiu passar dez dias no Japão a passá-los em companhia dele, durante o tempo em que "estavam se conhecendo". Ela é que dava as cartas no seu relacionamento.

"Tenho diante dos olhos uma foto do gueto de Varsóvia destruído em 1943. Depois de o terem incendiado com método, casa por casa, os Alemães apelaram aos deportados Judeus de Auschwitz para nivelar-lhe as ruínas. Precisavam de espaço para implantar populações arianas." (pp. 29-30)
Após o levante, Hitler ordenou a destruição do gueto. 
Foto de suas ruínas em 1945.
Não há como evitar uma ida de taxi à "Umschlagplatz" (estação de transferência), local onde se aglomeravam os Judeus antes de serem deportados para Treblinka. "Atrás do monumento de mármore branco, um pequeno terreno acidentado, com vegetação queimada pelo frio. O monumento traz primeiros nomes gravados, não sei quantos, mais de uma centena, sem dúvida. (...) Não, eles não me esqueceram. Eu não estava lá, eis tudo, não estava em Varsóvia nem era nascido. Eu me dirijo atrás do monumento para verificar que não há nada a ver no pequeno terreno vago. Eu vi bem: não há nada a ver." (pp. 40-1)

"Na esquina da rua Dubois e Niska, um pequeno monumento de granito (1940-1943), com inscrições em polonês e hebraico. Não consegui compreender de que se tratava. De nomes talvez. Em cima, seixos. Alguém tinha passado ali, em recolhimento." (p. 41) Depois a rua Zammenhof, o criador do esperanto: "vi que toda a rua, além do monumento de Rapoport, estava salpicada desses blocos de granito,  e a rua Mila, sede do comando da Insurreição, um memorial, uma pedra colocada vertical àquela que se acessava por degraus. Seixos em cima do monumento. Olhei em volta de mim para procurar uma pedra. Não havia mais nenhuma." (p. 41)

De noite, sonha com Juliette, seu amor proibido, sob as feições de uma outra. No sonho, ela apreciava seu trabalho intelectual. Os dois tagarelavam. Indagada sobre suas intenções, ela lhe diz que estava cada vez mais desligada de seu marido. Ela não falaria mais disso. "Ela era parcimoniosa de palavras para manter a rédea do jogo. Mas por que seu rosto era o de uma outra?" (p. 49)  
De manhã, levanta-se bem cedo e dirige-se à estação central, não muito distante do Palácio da Cultura e Ciência e "se refugia no bar Bósforo que difundia música grega e que servia falafels libaneses. Eu me acho muito melhor comigo mesmo num lugar estrangeiro. É para aí que meus passos, espontaneamente, me conduzem." (p. 50)
 
O caminho para Cracóvia, por trem de bitolas estreitas, é o mesmo para Auschwitz. "Eis-me enfim num compartimento rústico e confortável, em primeira classe. Trem arcaico, parecido com os nossos de antes da guerra, o que me põe incomodado." (p. 51) Ou ainda: "O trem segue devagar, geme, guincha, soluça, para e arranca de novo. Eles aqui não devem estar presos a horários. Parte-se na hora, mas não se sabe quando se chega. Nos tempos de Eichmann era mais bem organizado. E mais rápido." (p. 58)

Ei-lo no coração do bairro cracoviano de Kazimierz, ouvindo música klezmer. "É uma espécie de bairro judeu, sinagogas em todas as esquinas de rua, restaurantes, cafés, livrarias judaicas. Ou, antes, é o antigo bairro judeu. Os Judeus 'se evaporaram', não longe daqui. Durante a guerra, os Alemães os encurralaram num gueto (como por toda a parte aliás na Polônia), que não era em Kazimierz, mas ao sul da cidade, do outro lado do rio Vístula. Por que não em Kazimierz mesmo, onde os Judeus residiam? Porque parece que os Alemães sentiam atração por ele. (...) Assim, contrariamente a Varsóvia, a cidade não foi destruída." (p. 60) Aqui morava a comunidade, transferida pelos alemães para uma região mais ao sul da cidade. Por isso, a estrutura do bairro se conservou. E completa: "Em Varsóvia, minha solidão se justificava: exceto o pequeno bairro turístico de Stare Miasto onde a gente estaria melhor com sua amada para pegá-la pela cintura como fazem os outros, a Cidade Velha, cujo tour se faz em meia hora. Varsóvia era a evidência do nada, os traços do extermínio, assinalados pelos memoriais de granito, grandes ou pequenos, plantados no vazio. Aqui, é outra coisa. É  encantador. São os traços também, se quiserem, mas traços de quê precisamente? Não do extermínio como é, mas traços de que havia Judeus há muito tempo, na verdade não tanto tempo, um pouco mais que minha idade. Passou a última 'vida' deles num local que os turistas, suponho, não vão visitar, um bairro de HLM perto do qual se encontra a usina, hoje desativada, de Oskar Schindler. Sua ação, como se sabe, foi celebrada pelo diretor Steven Spielberg que rodou aqui seu filme Lista de Schindler... " (p. 61)

Dia de sabbath. Ei-lo sentado nos degraus da entrada do hotel, rua Kupa, fumando um cigarro enquanto observa a sinagoga Izaaka. Nos sábados a sinagoga está fechada aos turistas. Mas estes usam kippah para adentrar a sinagoga, mesmo assim. Lembra-se de uma foto de Roman Vishniac, com o foco na rua Izaaka. Nenhum turista aqui, àquela época, mesmo com kippah. "A cena de Vishniac situa-se na esquina das ruas Izaaka com Jozefa. Claro, na foto, impossível reconhecer essas ruas. Mas para Izaaka, está escrito numa placa, daí eu deduzo que a outra, perpendicular, é Jozefa." (63)

Fotografia da rua Izaaka, Cracóvia, Polônia
(1938). Crédito: Roman Vishniac.



"Rua Szeroka. Cherokee. Um hotel-restaurante à minha esquerda. O letreiro está em iídiche: Klezmer Hoys. A Casa do klezmer, onde se servem pratos judaicos tradicionais, onde se ouve quase constantemente música judaica: Hava naguila, uma ária israelense cantada antigamente, em hebraico, por Dalida e Rika Zaraï... Ou Dona, Dona, uma canção iídiche, o que ignorava sem dúvida Claude François que a cantou em francês, acreditando talvez que a tomava emprestado de Joan Baez." (p. 65) Ou ainda: "Essa Casa do klezmer foi construída sobre um antigo mikveh, um banho ritual de purificação, onde as mulheres eram mergulhadas à saída das regras menstruais. Os proprietários devem ser bons Poloneses católicos. Não há mais Judeus em Cracóvia. Nem na Polônia. Os únicos Judeus são turistas. Esta coisa tornada folclore, não existe mais. Eu vim verificar. Verificar que minha mãe está morta. E que alguns amores se desfizeram." (p. 66)

"É um museu a Alta Sinagoga da rua Jozefa, como todas as outras aqui. Os Judeus estão aqui no museu. Esta data do século XVI. Vestígios de hebraico na parede e o Aron ha-kodesh onde eram conservados os rolos da Torá. Uma exposição de fotos um pouco heteróclitas: Judeus de Cracóvia antes da guerra, notáveis ou notórios." (pp. 66-7)

Parece haver a seguinte conclamação: "Judeus do mundo inteiro cujos antepassados foram antigamente Judeus da Polônia, Judeus da Polônia babelizados (Babelstein!), nós sabemos as piedosas razões filiais que nos fizeram vir a esta terra um dia compartilhada durante séculos. Vamos satisfazer seu obscuro desejo, ajudá-los a desenrolar o novelo do passado. Temos arquivos e ainda um pouco de memória. Sim, nós temos isso em reserva, nós temos isso em loja. A gente vai dá-lo a vocês... Ou antes não, a gente vai vendê-lo a vocês. Nós aprendemos seus métodos, retivemos bem suas lições. Séculos de vizinhança não podiam não deixar traços, na paisagem e em nós. Eis cafés 'judeus', restaurante 'judeus', hotéis 'judeus', centros culturais 'judeus', músicos 'judeus', dignos sucessores de seus klezmorim genocidados. Vocês vieram buscar sinais, justamente nós os temos, a gente colocou em evidência tudo o que os Alemães não queimaram, daquilo que eles quiseram nos deixar." (pp. 76-7)

Relembra o que já foi dito acima: que Pauline não via com bons olhos seu projeto de livro sobre a Polônia, cujas primeiras frases ele tentava traçar. Sobre a Polônia, e sobre ela! Ela bem sabia que o livro trataria também dela. Ela lho censurava antecipadamente. E foi nesse estado de espírito de um bebezão, de um velho bebê triste que espera um seio, não importa qual seio, o primeiro que passasse, que ele adentrou a sinagoga Izaaka. "Dois hassidim com chapéu de pele, à entrada, me surpreendem, me trazem uma dura contradita. Malgrado os cinco złotys que é preciso quitar e que deixam ouvir que ali se trata de um museu, que há "verdadeiros" Judeus naquele lugar e que é um lugar vivo. Mas não. Isso é apenas uma pura ilusão de ótica, de simples silhuetas de hassidim em papelão machê, mais verdadeiro que a natureza... No fundo da sala, sobre uma tela de televisão, um filme sobre o gueto de Cracóvia rodado pelos Alemães, para um uso obscuro. Aí se vêem os Judeus, crianças, conjuntos de cama e bagagens sobre carroças de mão, passando a ponte do rio Vístula para atingirem o gueto, o lado "für Juden", como se diz na língua de Goethe. Imagens também de 1936 sobre os Judeus de Kazimierz. Eu sou o único visitante. Sentimento de irrealidade. Reconheço a praça do mercado, hoje Nowy Plac. Reconheço os lugares fotografados na mesma época por Roman Vishniac. Um canto sinagogal, com o órgão, enche o vazio." (pp. 80-1)

"Da sinagoga Popper (1620, fundada por um mercador, um certo Wolf Popper), não resta senão um portal com uma inscrição hebraica. O interior, vazio, é um jardim-café ao ar livre, dependência do hotel Alef. No hall do hotel, pode-se ler uma carta, emoldurada, de Steven Spielberg, parabenizando os proprietários pela qualidade da sua hospitalidade. (...) À entrada deste restaurante Alef, cuja dependência é o terraço onde estou, possui uma mezuzah. É a primeira e a única, que vejo. Um signo judeu, indubitavelmente." (p. 82-3) 

"Tomei o caminho do gueto, liquidado em 1943, mas primeiro quis visitar a usina de Oskar Schindler, que se chamava Emalia, como 'e-mail'. Percorri a rua Lipowa. No nº 4, a antiga DEF-Deutsche EmailwarenFabrik. Usina abandonada, que permaneceu no estado que se encontrava, onde se projeta criar um centro de arte contemporânea. Sobre uma placa do gueto, em cima à esquerda: Estrada de Deportação ao Gueto. Embaixo, à direita: Estrada de Evacuação do Gueto. Imenso intestino a fabricar morte industrial, com sua boca e seu ânus. O local é absolutamente deserto. A cinquenta metros da fábrica, uma linha de estrada de ferro. Um trem passa por ali neste exato momento, com sirene e fumaça negra à moda antiga. Retorno pela rua Kacik. Praça Bahaterow, antigamente praça Zgody, deserta neste domingo, tarde de canícula. Era daqui que os Judeus eram enviados a Auschwitz ou Bełzec. (...) O gueto era dividido em duas partes. A e B. Na parte A, os homens válidos, que trabalhavam nas oficinas alemãs até seu extermínio. Alguns eram enviados ao próximo campo de trabalho de Płaszów, a dois quilômetros. Na parte B: as mulheres, as crianças, os idosos, exterminados logo, após seu ajuntamento na praça Zgody. Pouco a pouco o gueto encolhia, como em Varsóvia, como em toda parte. Eu me pergunto porque eu vim aqui prejudicar-me. Para expiar qual erro? De ter nascido? Eu faço essa viagem para explorar algo, mas não sei o quê, exatamente, que presidiu o meu nascimento, e mesmo minha concepção. (...) Retorno pela ponte Pilsudski, a "boca" do gueto, através da qual os Judeus entravam. Minha viagem é ao avesso. Caminho contra-corrente. Escapo do ajuntamento forçado na praça. (...) Penso em Jiri Langer, não sei bem porquê, este amigo praguense de Kafka e de Max Brod, que deixou Praga em 1942, eu creio, com uma pesada valise de livros como única provisão para a viagem. Antigamente li suas Nove Portas dos Mistérios hassídicos. Eis alguém sonhador. Um homem que coloca a Ideia acima de toda contingência prática. Tal como Walter Benjamin, e tantos outros. A Ideia até à morte. Você escolherá a vida... Este 'até à morte' para eles, era exatamente a vida. Não tinham nem teriam outra. Aliás, não há outra! Langer queria juntar-se à Palestina para escapar dos Alemães. Morreu lá de esgotamento. Pauline, um dia, pronunciou seu nome, a propósito da kabbalah. Fiquei admirado que ela o conhecesse. 'Por quem me tomas? Por uma ignorante?', perguntou-me. Respondi: 'Claro que não: é que muito pouca gente conhece esse nome, eis tudo.' (...) Ele, Langer, não era em razão de um sonho mau que ele se metamorfoseou, mas por causa duma viagem ao Leste que ele havia realizado, ao fim profundo da Galícia oriental, a Belz, onde encontrou os hassidim, os únicos Judeus verdadeiros, o que não eram a seus olhos os Judeus praguenses. Sua viagem, contrariamente ao que pensavam seus pais que o tomavam por um homem demente, era uma viagem de vida. Mesmo se ela fosse regressiva e voltada para o passado. Pois o passado não equivale necessariamente à morte. Quanto a mim, eu estava fazendo uma viagem semelhante, em direção ao passado e ao Leste. Mas só devia encontrar a desolação e a ausência. Penso em Jiri Langer por causa de Pauline. E depois, por causa da morte. Talvez eu estivesse viajando à Polônia para exorcizá-la. A minha, bem entendido. Pisotear as cinzas. Tocar, ousar tocar as cinzas. Atravessar o espelho e renascer. Restabelecer contato. Voltar ao umbigo. Desatar." (pp. 83-7)

Fez ainda o tour de Auschwitz e, em Birkenau, tomou a via férrea que atravessa o campo até aos crematórios. Esteve no cemitério judeu de Kazimierz. Visitou a sinagoga dita Velha (Stara), século XV. "Belos objetos de culto, mas sobretudo fotos de Kazimierz do início do século XIX. Mesmos locais, mesmas ruas, mesmos imóveis, mesmos cursos d'água. A única diferença: há Judeus nessas fotos. Judeus que vivem lá. Barbudos e imberbes. Antigos e modernos que deviam debater entre si, ou que decididamente não se falavam. (...) Eram Judeus que administravam açougues. Mercado de peixes. E as barcas eram também dos Judeus. (...) Como em Varsóvia, os topônimos estão intactos. Mas Cracóvia não foi destruída: era uma cidade do Terceiro Reich. Então, tudo está lá. Exceto as pessoas. Um detalhe da II Guerra Mundial. Eu gostaria de ver tudo, visitar todos os lugares, já que só resta isso, os lugares, esqueletos sem pele, casas sem alma que vive." (pp. 92-3) 

Ainda no distrito de Kazimierz, na Cracóvia, visitou a pequena sinagoga Remuh e seu antigo cemitério judeu, contíguo; o Museu Judaico da Galícia na rua Dajwor, 18 e, depois, a Cricoteka, o centro de arquivos do teatro de Tadeusz Kantor, onde pôde ver os manequins e objetos sem idade de A Classe Morta (1975) e Wielopole-Wielope (1981).

No sopé da colina Wawel, visitou o complexo arquitetônico com seu castelo de mesmo nome, tendo subido até "uma grande cruz que comemora Katyn, lugar em que, no início da guerra, os Russos assassinaram milhares de oficiais poloneses. Aos pés dessa cruz, escoteiros, meninos e meninas em uniformes militares, alinhados face a face, um punhal ao lado, escutam o discurso de uma capitã que se mantém diante deles, e seus chefes atrás, mais idosos. Estão congelados em posição de sentido, como personagens poeirentos de Kantor. Para que lhes servirá o punhal que associo à nazi ;  para matar?" (p. 94)

Agora constata que viajou à Polônia dos antepassados para renovar sentimentos, rever túmulos e reencontrar as raízes de sua existência. "Desci de novo a rua Jozefa, em toda a sua extensão. A rua judaica. Olhei cada porta, caixilho à direita. Nada. Nenhum traço de mezuzot. Nenhum entalhe, nenhum nicho. Sou obstinado? Não estou louco? Quis combater o mal com o mal: com a melancolia desmesurada desta viagem à Po-lin, o castigo que Pauline me deu (por ser uma pessoa singular e não uma pura projeção amorosa de mim, e do que eu não soube ver, ver a tempo, e que foi para ela a justo título um casus belli)." (p. 94-5)

"E se esta viagem tiver sido um equívoco em todos os aspectos? Como essas terapias experimentais cujos efeitos secundários deletérios que deviam levar à cura e que acabam por matar o paciente. No entanto, é preciso passar por isso, dirá alguém, para fazer avançar o conhecimento. De qual conhecimento extraordinário estarei mais forte quando de meu retorno?" (p. 95)

Último dia. "E em minha casa? Pauline terá esvaziado o local, levado seus pertences e seus móveis. Me espera o vazio. Nada me espera. Somente o lugar." (p. 96-7)

"Então a conjunção Pauline-Polin não terá lugar. Nós nos enganamos com o casting. Dela (Pauline), apenas soube ver seu sorriso. Bem como da Polônia real nada verei senão brechas, provavelmente." (p. 99)

"Eu vi o que devia ver, andei por onde devia andar. Varsóvia: traços do nada, do desaparecido, do apagado. Cracóvia: ostentação de signos judeus onipresentes à finalidade comercial. O deficit e o excesso duas modalidades convergentes da ausência. Cruzei túmulos e fantasmas. Como se diz fantasma em iídiche? Em hebraico? Em polonês? Talvez me restasse degustar uma sopa Yankele ¹." E, a seguir, cita outros cem tipos de sopa no idioma iídiche, cada uma dedicada a um ente querido. (pp. 101-3)

[GUINSBURG & CUNHA, 2010, 82] aponta que Raczymow se convence de que "sua vida é escrever para ser reconhecido e preencher o 'deficit do real'. Uma atitude que lembra a estética surrealista, sempre incomodada com as vicissitudes e as contradições do vivido, sem que essa ideia tenha sido mencionada." Mais ainda: "Tendo se separado de Pauline, vê-se também separado da Polônia. Em seu retorno a Paris, esse duplo exílio parece dar-lhe a confiança de ser, com mais consistência, um judeu profundamente francês."
 



III.  NOTAS  EXPLICATIVAS




¹   WASSERSTEIN, Bernard: Na iminência do extermínio: a história dos judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial, Cap. 1, A Geleira Derretendo, subseção "Substância e Vitalidade", disponível na Internet in
https://books.google.com.br/books?id=I_VtCQAAQBAJ&pg=PT19&lpg=PT19&dq=&source=bl&ots=W1ZWPZC7oi&sig=ENTXApZ_EFht2CerW_i1mpINw0s&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwj5n7mY6YfSAhUMk5AKHa4YDv8Q6AEIUzAL#v=onepage&q&f=false 

²  Kasher ou kosher significa correto, justo, bom. Aplicado à comida, tem o significado de apropriada ao consumo, isto é, que preenche todos os requisitos da lei judaica (halachá ou halakhah).

³ Klezmer é um gênero de música não-litúrgica judaica, desenvolvido a partir do século XV pelos asquenazitas. A princípio a palavra klezmer (plural klezmorim) designava apenas os instrumentos musicais, sendo posteriormente estendida aos próprios músicos. Somente na segunda metade do século XX, klezmer passou a identificar um gênero, antes referido simplesmente como música iídiche. 
Apesar de viverem em shtetls (cidades pequenas ou guetos judaicos) na Polônia, Romênia, Bulgária, Hungria, etc., os klezmorim, quase sempre músicos amadores, absorveram a cultura local, com forte influência cigana, e constituíram a base da cultura musical iídiche.
A maior parte do repertório é constituída de danças para casamentos e outras celebrações judaicas, como o Bar Mitzvah. Originalmente, klezmer era música ao vivo destinada à dança. Por isso, o andamento era alterado em função do cansaço do público participante. Alternavam-se andamentos lentos e rápidos, por vezes frenéticos.
Há canções para dançar (as mais numerosas) e outras somente para se ouvir.

⁴  A LPR é acusada com frequência de anti-semitismo, haja vista a seguinte reportagem de O Globo, por exemplo: 
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL151464-5602,00-JUDEUS+PROTESTAM+CONTRA+EXTREMADIREITA+EM+
ELEICOES+NA+POLONIA.html

  Tadeusz Kantor (1915, Wielopole Skrzyńskie, Galícia, então na Áustria-Hungria, hoje território polonês-1990, Cracóvia), ao longo de sua vida, teve uma relação interessante e única com a cultura judaica, apesar de professar ser católico embora não praticante. Kantor incorporou muitos elementos do que era conhecido como "teatro judeu" no seu trabalho.
Desencantado com a crescente institucionalização da vanguarda, em 1955 ele e um grupo de artistas visuais formaram um novo grupo de teatro denominado Cricot 2. Na década de 1960, Cricot 2 realizou performances em muitos teatros na Polônia e no exterior, ganhando reconhecimento por seus happenings no palco.
Classe Morta foi a mais famosa de suas peças teatrais da década de 1970. Um filme para TV da produção foi feito em 1977, dirigido por Andrzej Wajda.

A vida artística floresce no gueto. Na rua Nowolipie, um pequeno teatro artístico iídiche chamado Azazel funciona sob a direção da atriz Diana Blumenfeld, mulher de Jonas Turkow. Na rua Nowolipki, que é paralela à Nowolipie, o Teatro de Câmara tem espetáculos em polonês. Nas últimas quatro semanas, foi apresentada a comédia popular “As horas de trabalho do dr. Berghof são das duas às quatro”, do dramaturgo checo Palaczdk. Os atores principais desse teatro são Michal Znicz, Aleksander Borowicz e Władysław Gliczynski. 
Fonte: SUSAN LEE, MARY BERG & S.L. SHNEIDERMAN: "O Diário de Mary Berg: Memórias do Gueto de Varsóvia", pp. 55-6, disponível na Internet em português in https://books.google.com.br/books?id=eKe3kfLohWEC&printsec=frontcover&dq=isbn:8520429289&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjApqzty4bSAhXCUJAKHTNMBEcQ6wEIHTAA#v=onepage&q&f=false

  Com o último sobrenome, é muito conhecido o escultor judeu Nathan J. Rapoport (1911-1987), nascido em Varsóvia. Entre suas obras, menciono as mais notáveis: A Última Marcha e O Levante do Gueto de Varsóvia, em bronze (no Museu Yad Vashem, Jerusalém); Memorial dos Heróis do Gueto (Varsóvia); Monumento no kibbutz Negba, Israel e Monumento a Mordechai Anielewicz no kibbutz Yad Mordechai, Israel, etc.

  HLM (Habitations à Loyer Moderé), que é como passou a ser conhecido o sistema de conjuntos de habitação coletiva de preço módico, construídos pelo Estado, os quais, por sua vez, remontam ao século XIX com as chamadas HBM (Habitations à Bon Marché), conjuntos habitacionais de bom preço. 
Pierre Bourdieu publicou uma compilação de depoimentos e reflexões a respeito dessas habitações e de seus moradores em seu livro “La misère du monde” (Ed. Seuil, 1993). 

  Aqui certamente está se referindo às vítimas do Levante do Gueto de Varsóvia que estourou em 18 de janeiro de 1943. No ano anterior, já tinha sido feito o transporte da maioria dos habitantes do gueto. Cerca de 300 mil das 380 mil pessoas no gueto tinham sido levadas para o campo de extermínio de Treblinka, para morrerem, logo após sua chegada, numa câmara de gás. Um dos maiores idealizadores da Insurreição contra a ocupação nazi alemã, Mordechai Anielewicz  (Wyszków, 1920-Varsóvia, 16/05/1943) permaneceu o quanto pôde no quartel-general da resistência, uma casa da Rua Mila, 18, ao final ocupada pelos soldados nazistas depois de oito dias de cerco. Quando o herói percebeu que chegara o seu fim, suicidou-se juntamente com sua namorada Mira Fuchrer. Seus restos mortais foram incinerados pelos nazistas. Em memória de Mordechai Anielewicz foi erguido um monumento na sua cidade natal e em Israel o kibbutz Yad Mordechai. 
Em 8 de maio de 1943, os rebeldes foram cercados. Alguns deles preferiram o suicídio do que serem levados a campos de extermínio. O dia 16 de maio (às 20h 15min) é considerado o fim do levante com a destruição da sinagoga do gueto, então em ruínas.
Após as revoltas, o gueto tornou-se o local onde os prisioneiros e reféns polacos eram executados pelos alemães. Mais tarde, foi criado um campo de concentração na área do gueto. Chamava-se KL Warschau.

¹ Yankel (ou Yankele) é uma forma familiar iídiche do nome Yakov (Jacob), no grau diminutivo.



IV.  BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA




GUINSBURG, Jacó & CUNHA, Newton: Lembranças do nunca visto, revista Hebraica, nº 579, maio 2010, pp. 80-3 

RACZYMOW, Henri: DIX JOURS "POLONAIS", Éditions Gallimard, 2007, 103 pp.  

WASSERSTEIN, Bernard: Na iminência do extermínio: a história dos judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial, São Paulo: Cultrix, 2014, 517 pp.