quarta-feira, 20 de março de 2013

Implicações da Reforma Ortográfica da Língua Grega em 1976


Por Francisco José dos Santos Braga


I. INTRODUÇÃO


O presente artigo visa alertar os responsáveis por reformas ortográficas em nosso País e em outros de língua portuguesa para pesarem com bastante critério e seriedade as suas propostas, especialmente de supressão e substituição de letras, para que não se incorra inadvertidamente em uma situação perigosa e irreversível, como já ocorreu aqui, em Portugal e em outras nações, especialmente na Grécia, onde mais se fez por aproximar a forma escrita ao som da palavra falada pelos cidadãos (mormente iletrados), sem levar em consideração os efeitos sobre a mente dos falantes. ¹

No artigo de Eléni Kaíri, em minha tradução, que se lerá abaixo, é apresentada determinada visão, "arcaizante" de certa forma, no qual alega perdas enormes com o desvirtuamento de sua língua grega, que, segundo ela, trouxe a Reforma Ortográfica de 1976, feita por gramáticos que não atentaram para as consequências sobre a mente dos falantes nativos. Fala também de uma pesquisa conduzida por cientistas alemães em 1996, segundo a qual a supressão da letra "ν" no final de substantivos e adjetivos do gênero neutro danifica (ou pelo menos não aguça) o cérebro das crianças das novas gerações gregas.

Visando enriquecer a temática aqui tratada, vou trazer ao debate com a autora grega, através das Notas Explicativas, outros atores, nacionais e estrangeiros, defendendo seus pontos de vista e fazendo suas colocações em relação a acordos e reformas ortográficas em outros contextos.

Embora tenha feito a tradução desse artigo em 2006, tendo-o distribuído então a colegas aprendizes da língua grega e à Comunidade Grega de Brasília, somente agora, com o Blog do Braga, consigo dar ampla divulgação àquele meu trabalho, agora remodelado e ampliado com notas explicativas e referências bibliográficas.



II. A LÍNGUA GREGA  E A 13ª LETRA DO ALFABETO GREGO "N" AGUÇAM O CÉREBRO                                            
Por Eléni  Kaíri ², da Revista grega "ΦΕΝΓΚ ΣΟΥΙ - Η ΤΕΧΝΗ ΤΟΥ ΕΥ ΖΗΝ" 


A riqueza da antiga língua grega - ou mais corretamente, da língua grega – aguça a mente e o “ν” final abastece com oxigênio o cérebro e torna as pessoas mais geniais, como atestaram os cientistas alemães em 1996. A conhecida revista alemã Der Spiegel publicou um artigo com as conclusões dos cientistas alemães, as quais vêm premiar a criação de uma tal língua pelos nossos antigos antepassados.

Os antigos Gregos eram pan-cientistas e cientes da eficácia da língua reta e do discurso artístico. A língua reta constituía uma seção importantíssima da sua cultura mais geral e desempenhou enorme papel para os seus feitos conhecidos e universalmente aceitos.

A letra “ν” envia oxigênio ao cérebro por meio de vibrações, as quais são criadas no palato quando a pronunciamos. Muitas palavras gregas, que têm relação com o espírito (πνεύμα) — como essa própria palavra — contêm a letra “ν” ³, por exemplo: mente (νους), intelecto (διάνοια), conceito (έννοια),  significado (νόημα) e todos os seus derivados.

A letra “ν” final e o também revogado “ς” (sigma final) são dois preciosos caracteres da língua grega, a qual se caracteriza pela polimorfia e variedade dos conceitos. Essa 18ª letra do alfabeto grego (σ, ς) possui elevada freqüência e corresponde à nota musical “si” que os antigos Gregos usavam para o hino à Lua.

Eis o que escreveu o grande Odysseus Elytis sobre o “ν” final:

                                                 Por uma Ótica do Som

"Há anos, um dia pior que o domingo, conscientizei-me disso. A capital em toda a sua extensão estava cheia de buracos. Não daqueles que abrem os trabalhadores do Município nos esgotos. Falo  dos outros buracos, nas fachadas dos altos edifícios, onde são armadas com cuidado as tabuletas das firmas, institutos e lojas: farmácia (φαρμακείΟ), café (καφενείΟ), centro de sangue (αιματολογικΌ κέντρΟ), instituto pedagógico (παιδαγωγικΌ ινστιτούτΟ), todas perderam o “ν” final depois da última reforma lingüística  de 1976. Tomara que Deus ajude.

Na estação telegráfica dos gestos predomina grande excitação em toda a vizinhança. Por acaso há algum dedo estrangeiro do tipo “Nova Makedonía” , ou será que a última letra (ν final) escapou ao pintor ou ficou incompleto por negligência ou talvez por economia? Mas é possível? Suponha que o alfaiate lhe faça um bonito casaco sem uma manga, e que você circule assim vestido, com orgulho, como o castrato que por direito entrava nos haréns, mesmo que “algo” lhe faltasse.

Parece que esta vida não foi feita para se atingir algo difícil ou algo elevado. De jeito nenhum. Foi feita para nossa facilidade. “Dói o dente, arranca o dente”, diziam os antigos. “Dói o acento circunflexo, arranca o acento circunflexo; dói o espírito áspero, arranca o espírito áspero”. E tudo fica perfeitamente bem.

Desculpe, mas você não deixa nunca a sua cueca parecer sua. Mas você a usa. Não é o lado prático das coisas que tem a primazia em nossa vida. Três quartos da humanidade passam a vida por engano. Riscam o supérfluo, mesmo que seja belo, ganhando umas 24 horas de tédio. Em outro lugar, longe desses, pinga a seiva, até mesmo como som nos lábios de uma filha de Homero.

Em dez de nossas palavras, cinco são estrangeiras.

A toda a velocidade caminhamos para um esperanto. E já em cima da hora. Nenhum Herodes ousaria ordenar tal genocídio, como este do “ν” final, a menos que lhe faltasse a ótica do som.

Bill Gates escolheu, para o futuro da Microsoft, a língua grega antiga, com o politônico (vários acentos) e a remodela há anos com uma equipe de filólogos, porque é uma língua matemática, conceitual e excepcionalmente rica em vocabulário e sentidos, a mais rica do mundo, que o computador entende completamente. A nossa língua dispõe de 6 milhões de palavras contra apenas 480 mil da língua inglesa, e 70 milhões de verbetes, isto é, derivados de outras palavras.

Os acentos na língua grega são os sinais da prosódia, isto é, da melodia, o que significa que indicam a quantidade longa e breve das sílabas. A diferenciação das sílabas cria a musicalidade da língua grega. Os antigos Gregos falavam com prosódia, e a influência das freqüências das várias letras, bem como a mina de palavras e de conceitos desenvolveram ao máximo as capacidades do cérebro.

Neste momento, no exterior, especialmente nos Estados Unidos da América e na Grã-Bretanha, há programas especiais de aprendizagem do grego antigo para os mais altos executivos das grandes empresas. A razão é que o grego antigo aguça o cérebro e os ajuda a tomarem melhores decisões e a despacharem seus assuntos mais eficientemente. Nas escolas da Grã-Bretanha são ensinados tanto  o grego antigo quanto o grego moderno. Na Rússia e na China é ensinada a língua grega antiga nas universidades com a coletiva participação dos estudantes.

Nos Estados Unidos da América, pesquisas feitas com recém-nascidos mostraram o efeito benéfico da língua grega sobre o seu cérebro. Os bebês, aos quais foram lidos Hinos Órficos, desenvolveram uma inteligência superior à dos que ficaram no ambiente habitual dos recém-nascidos.

O aprendizado ou, pelo menos, a familiarização com o grego antigo é uma exigência de nossa época e modernização, especialmente para quantos estudam ou querem estudar informática, porque chegará o dia em que outros povos o conhecerão perfeitamente e serão mais inteligentes do que nós e perfeitos operadores dos computadores, e zombarão de nós pela ignorância de nossa própria língua e de nossa herança cultural.

O espírito move o corpo, “mens sana in corpore sano”. Quanto mais inteligentes formos e quanto mais aguçarmos o nosso cérebro, tanto mais nutriremos o nosso espírito e nos compreenderemos a nós mesmos. O alimento espiritual correto é um imprescindível pressuposto para termos um real BEM VIVER.

Nota da Autora ao seu Texto

O texto de Odysseus (ou Odysseas) Elytis está escrito no politônico no original, conforme ele próprio dizia: “Quero a língua com os seus adornos”, querendo dizer os acentos. Por razões técnicas, a Revista "Feng Shui-A Arte do Bem Viver" o imprimiu no monotônico.



        
III. NOTAS DO AUTOR


¹ Reproduzirei aqui trecho de uma das correspondências de Euclides da Cunha, do dia 15 de agosto de 1907, enviada do Rio de Janeiro a Domício da Gama, abordando questão envolvendo a supressão das letras K e Y do alfabeto, em que se opunha aquele escritor à referida decisão da ABL-Academia Brasileira de Letras, quando no início do século XX resolveu tomar algumas medidas visando simplificar a escrita do nosso idioma, nos seguintes termos: 

"Não sei si já aí chegaram noticias da Reforma Orthographica... (Aí deixo, nestes maiusculos e nestes h h, o meu espanto e a minha intranzijencia etimolojica!) Realmente, depois de tantos anos de alarmante silencio, a Academia fez uma coisa assombrosa: trabalhou! Trabalhou de véras durante umas tres duzias de quintas-feiras ajitadas — e ao cabo expeliu a sua obra extranhamente mutilada, e penso que aborticia. Ha ali coisas inviaveis: a excluzão sistematica do y, tão expressivo na sua forma de ancora a ligar-nos com a civilização antiga e a eliminação completa do k, do hierático k (kapa como dizemos cabalisticamente na Algebra)...
Como poderei eu, rude enjenheiro, entender o quilometro, sem o k, o empertigado k com as suas duas pernas de infatigavel caminhante, a dominar distancias? Quilometro, recorda-me kilometro singularmente esmagado ou reduzido; alguma coisa como um relissimo decimetro, ou grosseira polegada. Mas decretou a enormidade; e terei, d'ora avante, de submeter-me aos ditames dos mestres.
Mas a discussão foi vantajosa. A importancia da Academia cresceu. As suas resoluções estenderam-se ao paiz inteiro — da rua do Ouvidor à Amazonia, da porta do Garnier ao ultimo seringal do Acre.
A próxima eleição, a que concorrem Jaceguay, João do Rio, Virgilio Varzea, anuncia-se renhida... e o achatado palacete do cais da Lapa fez-se definitivamente a kaaba (caba, deveria escrever-se pela nova ortografia!!) de todos os neophitos, ou neofitos, literarios." (No texto é mantida a ortografia de época e os grifos do próprio Euclides) (Cf.  VENANCIO Fº, F.: "Euclydes da Cunha a seus Amigos", 1938, pp. 187-9)

Também em Portugal, levantaram-se vários intelectuais contra a primeira Reforma Ortográfica de 1911, que tinha por objetivo normalizar e simplificar a escrita da língua portuguesa. Apesar das vozes discordantes, teve força de lei, infelizmente modificando por completo o aspecto da língua escrita e inspirando todos os acordos e reformas subsequentes. Por exemplo, Teixeira de Pascoaes assim se expressou a respeito da proposta de exclusão da letra y:
"Na palavra lagryma, (...) a forma do y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal." (PASCOAES, T.: "A Águia". Apud GOMES, F.A.: "O Acordo Ortográfico", p. 10)


² Eléni Kaíri (Ελένη Καΐρη) é escritora, professora catedrática e consultora especializada de Feng Shui. Descende do filósofo e professor Teófilo Kaíri, que é chamado de "Sócrates moderno". Cursou Administração de Empresas na Grécia e na Inglaterra, Línguas Estrangeiras, Psicologia, Aprendizado Dinâmico e Psicologia Ambiental. Estudou na escola Feng Shui Network International em Londres.
Ela é a criadora do Feng Shui Helênico, o ΕΥ ΖΗΝ (Bem Viver), baseado na Grécia antiga e adaptado à moderna realidade grega, representando a Feng Shui London Society na Grécia e em Chipre.
Ela escreveu os livros: "Feng Shui-A Arte do Bem Viver" e "O Feng Shui Helênico". Este último circulou em novembro de 2006. Também edita a revista "Feng Shui-A Arte do Bem Viver", de onde este artigo foi extraído.
Especializou-se em história grega antiga e arqueologia. Seus conhecimentos a guiaram para a ressurreição do Feng Shui Helênico, o Bem Viver, o qual foi o antigo ideal grego. Criou-o para a sua divulgação e difusão no exterior, e, segundo o seu site na Internet, é a única consultora dessa técnica no mundo, que une a sabedoria do Extremo Oriente à dos antigos Gregos. O Feng Shui Helênico é apropriado ao Ocidente, uma vez que a civilização ocidental se baseia na antiga civilização grega.
A Associação de Notáveis lhe conferiu o Prêmio da Academia de Atenas por sua notável posição internacional. (Cf. http://www.hellenicfengshui.com/fengshui/elenikairi.html)

No Prefácio ao nº 3 da Revista grega "Feng Shui - A Arte do Bem Viver", em minha tradução, Kaíri esclarece que "(...) seu objetivo é informar o público leitor sobre muitos e variados assuntos, que dizem respeito ao Bem Viver, que tem um espectro ilimitado, abraçando todos os setores da vida e todos os seus parâmetros, já que não se entende Bem Viver sem harmonia e equilíbrio em todas as manifestações da existência humana.
Para conseguir isso, é preciso dar importância à correta alimentação, ao excelente sono, à tranquilidade, calma e reanimação pessoais, ao auto-aperfeiçoamento para o equilíbrio corporal e psíquico e o desenvolvimento espiritual. 
Os estímulos, que recebemos diariamente do ambiente pessoal, profissional e social mais amplo, e a educação que os regem, definem também o nosso modo de vida.
A educação e a cultura têm diversas formas e manifestações, que forjam nossa índole e modelam nossa personalidade.
Uma delas, e fundamento em que se baseiam todas as outras, é a língua que falamos e as expressões que usamos e que enviam os estímulos e mensagens análogas ao nosso cérebro.
Em uma época, em que a velocidade define tudo e quase se diviniza, na angústia e na tensão, as pessoas quase esqueceram a comunicação correta através da língua reta, a qual enobrece a mente e o espírito. A enobrecimento da pessoa e o discurso reto constituem pressupostos básicos do Bem Viver e do desenvolvimento da nossa inteligência.
Meu artigo, no que se refere à língua grega, visa familiarizar os leitores com a riqueza ilimitada e a beleza da língua grega, a qual, como é geralmente aceito, torna as pessoas mais inteligentes. (...)"

Quando meu professor Alexandre Orfanidis e eu escrevemos à autora desse prefácio e do artigo sobre o Bem Viver, solicitando-lhe permissão para darmos publicidade a seu texto que tinha sido traduzido por mim, Kaíri nos respondeu nos seguintes termos, em 21/11/2006:

"Dear Mr. Orfanidis and dear Mr. Braga,
I should like to thank both of you for your interest concerning my article and for your praise and apologize for the delay in answering which was due to an unexpected break down of the computer, as you already know.
I am writing in English since I do not want to write Greek with Latin characters. If one day we meet, I shall explain to you many things concerning the Greek language and civilization.
As I told you, there must be a printing error in the article, which I had not yet read when you called, as the magazine had just come out and I was a few days outside Athens. I am sending you the missing part in English:

In the United States, a research carried out with newborn babies, showed the beneficial effect of the Greek language on the brain. Babies to whom the Orphic Hymns were read, developed a higher intelligence than those who remained in the usual environment of the newborn.

I give you my authorization to translate the entire article on the condition that you will name your sources, i.d. "article by Eléni Kaíri, from the Greek magazine FENG SHUI - THE ART OF EF ZIN." The article has the copyright of the magazine and the title of the magazine is also the title of my first book, which is my own exclusive copyright.
I am very glad that you wish to make the article known to the Greek community in Brazil, but don't the Greeks there speak Greek? If the people to whom you wish to present the article do not speak Greek at all, then you should need to explain what ΕΥ ΖΗΝ means. A mere translation, i.d. well being, does not convey the say meaning. ΕΥ ΖΗΝ includes an entire philosophy in itself, as I am sure you know.
Should you need any further information or help, please do not hesitate to contact me.
I should like to have the article when you have translated it into Portuguese. I can understand some Portuguese due to the fact that I speak French and many words are similar, and I also have a Brazilian friend who can translate it to me. This can also be of help to you, we could compare my article and your translation, especiallly concerning the text of Odyssefs Elytis as it is difficult to translate. The better it is the more successful it will be. Are you going to publish it or distribute it?
I should also inform you that my new book has just come out, it is the first practical guide of the Greek Feng Shui, or ΕΥ ΖΗΝ, sponsored by the well known crystal producing company SWAROWSKI. It is a pity that the Greeks in Brazil speak, apparently, only Portuguese, otherwise we could distribute the book which is already a big success. It will be in my webside.
Kind regards,
Eleni Kairi"
Obs. A autora reproduziu no seu texto as expressões em grego da forma como são pronunciadas na Grécia.

 
³  N (maiúsculo) e ν (minúsculo) são os sinais gráficos utilizados pelos Gregos para a escrita da 13ª letra do seu alfabeto, denominada "ni", equivalente ao nosso "n", não sendo fortuito o fato de localizar-se na metade do total de letras (24), a saber: α, β, γ, δ, ε, ζ, η, θ, ι, κ, λ, μ, ν, ξ, ο, π, ρ, σ (ς final), τ, υ, φ, χ, ψ, ω.  Observe que, não por mera casualidade, o formato de ν é de uma cunha. Sua classificação é: consoante dental (segundo o órgão com que a pronunciamos) e nasal (segundo a qualidade do som).


Sobre Elytis cabe mencionar que nasceu em Heraklion, na ilha de Creta, em 1911 e faleceu em Atenas em 1996. Em 1935, publicou o seu primeiro poema no jornal Novas Letras. Seu début com uma forma distintivamente natural e original ajudou a inaugurar uma nova era na poesia grega e na sua subsequente reforma após a II Grande Guerra. Estabeleceu-se em Paris em dois períodos: de 1948 a 1952, de onde partiu e subsequentemente visitou a Suíça, Inglaterra, Itália e Espanha; e de 1969 a 1972. Em Paris, ministrou seminários de filologia e literatura na Universidade de Sorbonne e foi bem recebido pelos pioneiros da vanguarda do mundo. Pelo menos, em três ocasiões, foi representante de seu país em vários encontros internacionais. É considerado o principal expoente do modernismo romântico na Grécia e no mundo. Foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1979. (Cf. Wikipedia)


Aqui Elytis se refere a uma das mais importantes reformas ortográficas do século XX: a reforma ortográfica da língua grega moderna. Na verdade, foram várias reformas que levaram da ortografia tradicional, totalmente clássica, à ortografia demótica atual. 

Depois que a Grécia se libertou do domínio turco em 1821, realizou-se uma completa re-helenização do país, adotando-se a gramática, o vocabulário e a ortografia do grego clássico, bem como a remoção de palavras turcas, num grande esforço arcaizante da língua nacional, a ponto de surgir uma forte diglossia: era uma a língua padrão, escrita e não utilizada na conversação (port. katharévusa gr. καθαρεύουσα, significando "purificada" ou "limpa", utilizada para fins formais e oficiais), e era outra a língua falada pelo povo (port. demótica gr. δημοτική, palavra procedente de demos ou δῆμος=povo). Nessa época, assistiu-se a uma controvérsia virulenta entre os "purificadores" ou arcaístas (cujo principal representante era Adamántios Koraís, que defendia a promoção de uma forma "purista" da língua grega e o combate contra a degradação linguística) e os "demoticistas" ou vernacularistas.

Em 1976, a katharévusa foi legalmente substituída pela demótica como língua nacional padrão, falada e escrita, e finalmente, em 1982, chegou-se à atual ortografia, sem os sinais diacríticos — os chamados "espíritos" ásperos e brandos —, sem o "ν" final nos substantivos e adjetivos do gênero neutro e com a adoção de um único acento.

Outras mudanças introduzidas, além das ortográficas, incluíram ainda as na gramática (em comparação com o grego clássico): a perda do caso dativo, do modo optativo, do infinitivo, do dual e dos particípios (exceto o particípio passado), da 3ª pessoa do imperativo; a adoção do gerúndio; a redução do número de declinações nos substantivos, bem como do número de formas distintas em cada declinação; a adoção da partícula modal θα para denotar os tempos futuro e condicional; a introdução do verbo auxiliar em formas de certos tempos; e a simplificação do sistema de prefixos gramaticais, tais como aumentação e reduplicação.  

HORTA (1980, pp. 19-20) é uma das vozes no Brasil a favor da Reforma Ortográfica de 1976 e, por consequência, da demotikí. Aqui ela faz um relato do intenso debate que ocorreu no seio da sociedade grega. 
"Naquele momento de profunda emoção nacional (1821), a obsessão de um passado de glórias chegou a tais extremos, que houve até quem repudiasse o falar vulgar (o demótico), e as escolas exigiam a aquisição da língua clássica (a katharévusa), dificultando a instrução das camadas populares, abafando qualquer manifestação de vida literária renovada, comprometendo, assim, paradoxalmente, de certo modo, o próprio futuro cultural do país.
Entretanto, grandes vozes ergueram-se, contra esse exclusivismo erudito, que ameaçava esclerosar o espírito criador da Nova Hélade, pois nem podia coibir uma nova floração de helenismo, o qual já despontava com um Dionísio Solomós — o autor do Hino Nacional Helênico.
Muitos outros intelectuais lhe seguiram as pegadas, até surgir, quase um século mais tarde, o ilustre poeta Costís Palamás, que viria a pugnar pela língua popular contemporânea, a "demotikí". Mas, apesar da reação das forças vivas do povo, a luta entre os partidários das duas facções — puristas e classicistas de um lado, demoticistas e populistas de outro — ainda hoje sobrevive, embora muito mais atenuada.
Contudo, em dado momento, como refere George Theotokás, essa luta chegou ao nível de verdadeira batalha: ao se fazer representar, em Atenas, pela primeira vez, em 1903, a Oréstia de Ésquilo, traduzida para o grego moderno (a demotikí, ou forma vulgar), deu-se uma revolução, em que parte da população ateniense rebelou-se contra a outra, com um saldo de mortos e feridos, após a intervenção policial, até culminar com a queda do governo!
'A Grécia terá sido, talvez', diz George Theotokás, 'o único país do mundo, em que o povo morreu nas ruas, em pleno século XX, por questões de literatura!'"


Jornal que circula diariamente, o mais antigo na República da Macedônia. Possui o estilo e longas estórias investigativas nos moldes do londrino The Guardian. A sua primeira edição apareceu em 29/10/1944 e constitui o primeiro documento escrito depois da codificação do macedônio padrão.



IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS




GOMES, F.A.: "O Acordo Ortográfico". Porto: Edições Flumen e Porto Editora, 2008, 256 p.

HORTA, G.N.B.P. : "A Luz da Hélade" (Ensaios Literários nº 1). Rio de Janeiro: Editora J. di Giogio & Cia. Ltda., 1980, 248 p.

KAÍRI, E. : "A língua grega e a letra Ν aguçam o cérebro". Revista Feng Shui - A Arte do Bem Viver, Atenas, nº 3, pp. 4-5, outono/2006.

VENANCIO Fº, F.: "Euclydes da Cunha a seus Amigos". São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre: Companhia Editora Nacional (edição ilustrada), Serie 5ª, Brasiliana, Bibliotheca Pedagogica Brasileira, Vol. 142, 1938, pp. 187-9
 

quarta-feira, 13 de março de 2013

Humanidades, Língua Latina, Bento XVI e temas correlatos


Por Francisco José dos Santos Braga


I. INTRODUÇÃO

Há algum tempo vinha procrastinando escrever sobre Humanidades, quando me caiu nas mãos, ou mais exatamente, chegou-me, através da Internet, um texto do peruano Mario Vargas Llosa (Prêmio Nobel de Literatura em 2010), publicado na coluna Opinión de El País, na quarta página, no dia 23/02/2013, com o título "O homem que estorvava", com o subtítulo "Bento XVI respondeu a desafios descomunais com valentia e decisão, embora sem êxito. A cultura e a inteligência não bastam para enfrentar o maquiavelismo dos interesses criados",¹ em tradução de Anna Capovilla. O que surpreendeu nesse texto foi o fato de um soi-disant agnóstico ou "não crente" ser uma voz isolada a defender a posição do papa emérito, tendo renunciado à "cadeira de São Pedro que lhe foi imposta pelo conclave, há oito anos, e à qual, como ficamos sabendo agora, nunca aspirou. Só abandonam o poder absoluto com a facilidade com que ele acaba de fazê-lo aqueles raros indivíduos que, em vez de cobiçá-lo, depreciam-no."

Segundo o texto de Llosa, "numa época em que as ideias e as razões importam muito menos que as imagens e os gestos, Joseph Ratzinger já era um anacronismo, pois pertencia ao grupo mais seleto de uma espécie em extinção: o dos intelectuais." Para mostrar a desenvoltura de Bento XVI, respaldada por uma enorme informação teológica, filosófica, histórica e literária, adquirida na dezena de línguas clássicas e modernas que dominava, Llosa citou seus livros e encíclicas que "ultrapassavam com frequência o estritamente dogmático e continham reflexões inovadoras e ousadas sobre os problemas morais, culturais e existenciais do nosso tempo que leitores ateus podiam ler com proveito e muitas vezes com profunda perturbação."

Então, por que Bento XVI fracassou em todas as suas tentativas? Segundo Llosa, a razão está em que "a cultura e a inteligência não bastam para se orientar no labirinto da política terrena e para enfrentar o maquiavelismo dos interesses criados e os poderes fáticos no seio da Igreja (...)." Bento XVI, por ter sido um adversário decidido da Teologia da Libertação e de toda forma de concessão em temas como a ordenação de mulheres, o aborto, o casamento homossexual e o uso de preservativos, carregou a pecha de anacrônico dentro do anacronismo que a Igreja se tornou. "Estava convencido de que, se a Igreja começasse a se abrir para as reformas da modernidade, sua desintegração seria irrversível e, em vez de abraçar a sua época, entraria em um processo de anarquia e deslocamentos internos." Na visão de Bento XVI, "a única maneira de impedir que o rico patrimônio intelectual, teológico e artístico fecundado pelo Cristianismo se dilapidasse em uma barafunda revisionista e em uma feira de disputas ideológicas seria preservando o denominador comum da tradição e do dogma, embora significasse que a família católica foi se reduzindo e marginalizando cada vez mais em um mundo devastado pelo materialismo, pela cobiça e pelo relativismo moral."

Por tudo isso, concluía Llosa, os não crentes, entre os quais se incluía, não deveriam festejar como uma vitória do progresso e da liberdade o fracasso de Joseph Ratzinger como papa. Este "não só representou a tradição conservadora da Igreja mas também sua melhor herança: a da ilustre e revolucionária cultura clássica e renascentista que a Igreja preservou e difundiu, por meio de seus conventos, bibliotecas e seminários, a cultura que impregnou o mundo com ideias, formas e costumes que acabaram com a escravidão e, distanciando-se de Roma, tornaram possíveis as noções de igualdade, solidariedade, direitos humanos, liberdade e democracia, impulsionando decisivamente o desenvolvimento do pensamento, da arte, das letras e contribuindo para acabar com a barbárie e para promover a civilização."

Finalmente, identificou na solidão de Bento XVI e na sensação de impotência que aparentemente o cercaram nos últimos anos, sem dúvida, "fatores primordiais de sua renúncia e um vislumbre inquietante de quão incompatível nossa época seja com tudo o que representa vida espiritual, preocupação pelos valores éticos e vocação pela cultura e pelas ideias."



II. CONCEITO DE "HUMANITAS"


Aproveitei o texto de Vargas Llosa para revisitar o conceito de Humanidades, que é o que proponho debater. O conhecimento humanístico é simplesmente geral, não especializado. No léxico latino, a distinção se faz entre humanitas, ou conhecimento geral, e scientia, que é o conhecimento do cientista, técnico ou expert, seguindo a tradição grega que fazia a distinção correspondente entre paideia e episteme. "Paideia" é essencialmente educação enquanto realidade cultural e moral, pelo que engloba o genuíno e específico do ser humano, sendo, por esta razão, HUMANI os que se dedicam a esta tarefa. Operam como corolários à eruditio e à institutio in bonas artes, de que fala Aulo Gélio no seu texto (transcrito abaixo). Os sofistas aprofundaram o conceito de "paideia" vinculando-o ao homem, considerado como realidade ao redor do qual tudo gira. Assim, Protágoras afirmava que o homem é a medida de todas as coisas. A partir daqui, a função da PAIDEIA é a formação integral do homem, a busca da excelência (aristos), do ideal humano, estando assim ligada  diretamente, desta perspectiva, ao conceito de HUMANITAS.  "Paideia" ou "humanitas", na acepção tradicional, inclui a matemática, todas as ciências - naturais e sociais do mesmo modo que a história, a filosofia e as belas-artes. Tudo o que pertence ao conhecimento humano geral é humanidades. "Paideia" também constitui o radical da palavra encycloPAEDIA (port. enciclopédia), significando o grande círculo de conhecimento geral.

Por oportuno, cabe aqui fazer uma distinção entre os estudos de "humanidades" — que se compartilham nas faculdades de Letras, Historiografia, Filosofia, Teologia ou de Belas-Artes — e a atitude pessoal definida pelo posicionamento frente ao humano como preocupação central, e não pela dedicação profissional. Quando alguém se diz humanista, não o faz com respeito a seus conhecimentos de "humanidades", nem pode se considerar "humanista" um estudante dessas disciplinas. Esse comentário é aqui retomado apenas porque não faltaram os que ligaram o "humanismo" a um determinado tipo de conhecimento ou nível cultural.

A carta apostólica em forma de Motu Proprio, da lavra do Sumo Pontífice Bento XVI, intitulada LATINA LINGUA ², é um bom exemplo de como, de fato, esse papa tentou enfatizar o conceito e os princípios do humanismo cristão, mesmo numa "época incompatível com tudo o que representa vida espiritual, preocupação pelos valores éticos e vocação pela cultura e pelas ideias", conforme a feliz expressão de Vargas Llosa.

Abaixo transcrevo a Introdução a esta carta apostólica, ipsis litteris, comprovando as acertadas palavras de Llosa sobre o estorvo que representava o Sumo Pontífice para a época que vivemos.

1. A língua latina foi sempre tida em grandíssima consideração pela Igreja Católica e pelos Romanos Pontífices, que promoveram assiduamente o seu conhecimento e difusão, tendo feito dela a própria língua, capaz de transmitir universalmente a mensagem do Evangelho, como já respeitavelmente afirmado pela Constituição Apostólica Veterum sapientiae do meu Predecessor, o Beato João XXIII.

Na realidade, desde Pentecostes a Igreja falou e rezou em todas as línguas dos homens. Contudo, as Comunidades cristãs dos primeiros séculos usaram amplamente o grego e o latim, línguas de comunicação universal do mundo no qual viviam, graças às quais a novidade da Palavra de Cristo encontrava a herança da cultura helênico-romana.

Depois do desaparecimento do Império romano do Ocidente, a Igreja de Roma não só continuou a servir-se da língua latina, mas dela se fez de certa forma patrocinadora e promotora, quer em âmbito teológico e litúrgico, quer no da formação e da transmissão do saber.

2. Também em nossa época, o conhecimento da língua e da cultura latinas resulta necessário como nunca para o estudo das fontes nas quais se baseiam, entre outras, numerosas disciplinas eclesiásticas tais como, por exemplo, a Teologia, a Liturgia, a Patrística e o Direito Canônico, como ensina o Concílio Ecumênico Vaticano II (cf. Decr. Optatam totius, n. 13).

Além disso, nesta língua são redigidos na sua forma típica, precisamente para evidenciar a índole universal da Igreja, os livros litúrgicos do Rito romano, os Documentos mais importantes do Magistério e as Atas oficiais mais solenes dos Romanos Pontífices.

3. Na cultura contemporânea observa-se contudo, no contexto de uma debilitação generalizada dos estudos humanísticos, o perigo de um conhecimento cada vez mais superficial da língua latina, verificável também no âmbito dos estudos filosóficos e teológicos dos futuros sacerdotes. Por outro lado, precisamente no nosso mundo, no qual grande parte é ocupada pela ciência e língua latinas, não só naqueles continentes que têm as próprias raízes culturais na herança greco-romana. Esta atenção torna-se muito significativa porque não abrange só ambientes acadêmicos e institucionais, mas diz respeito também a jovens e estudiosos provenientes de Nações e tradições bastante diversas.

4. Torna-se portanto urgente apoiar o compromisso por um maior conhecimento e um uso da língua latina mais competente, quer no âmbito eclesial, quer no mais vasto mundo da cultura. Para dar realce e ressonância a este esforço, são oportunas como nunca a adoção de métodos didáticos adequados às novas condições e a promoção de uma rede de relações entre Instituições acadêmicas e entre estudiosos, a fim de valorizar o rico e multiforme patrimônio da civilização latina.

A fim de contribuir para a realização de tais finalidades, seguindo as pegadas dos meus venerados Predecessores, com o presente Motu Proprio, instituo hoje a Pontifícia Academia de Latinidade, dependente do Pontifício Conselho para a Cultura. Ela é regida por um Presidente, coadjuvado por um Secretário, por mim nomeados, e por um Conselho Acadêmico.

A Fundação Latinitas, constituída pelo Papa Paulo VI, com o Quirógrafo Romani Sermonis, de 30 de junho de 1976, fica extinguida.

A presente Carta Apostólica, em forma de Motu Proprio, com a qual aprovo ad experimentum, por um quinquênio, o Estatuto em anexo, ordeno que seja publicada em L' Osservatore Romano.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 10 de novembro de 2012, memória de São Leão Magno, oitavo ano de Pontificado.

                                                                                                                           Bento PP. XVI




Em Barbárie do "Especialismo" ³, o décimo segundo de muitos artigos que compõem o livro A Rebelião das Massas (1930), Ortega y Gasset defende a tese de que a civilização do século XIX produziu automaticamente o homem-massa, para depois se explicar: "O homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a técnica mesma — raiz da civilização — o converte automaticamente em homem-massa, quero dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno." O curioso é que, segundo ele, o século XIX inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem enciclopedicamente e chama o homem civilizado ao homem "enciclopédico", mas em 1890 uma terceira geração assume o comando intelectual da Europa, surgindo um tipo científico sem exemplo na história. "É um homem que, de tudo quanto há que saber para ser um personagem discreto, conhece apenas uma ciência determinada, e ainda dessa ciência só conhece bem a pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber."

E conclui de forma inexorável que hoje, quando há maior número de "homens de ciência" do que nunca, haja muito menos homens "cultos" do que em 1750, tendo "a ciência experimental progredido em boa parte mercê ao trabalho de homens fabulosamente medíocres, e menos que medíocres. Quer dizer, que a ciência moderna, raiz e símbolo da civilização atual, deu guarida dentro de si ao homem intelectualmente médio e lhe permite operar com bom êxito."

NÓBREGA (1978, 14-16)  alerta para o perigo de se confundir humanismo com a Idade Média, pela importância que se imprimiu à cultura do espírito nessa fase da história, mas isto seria limitar o humanismo no tempo e no espaço. Segundo ele, "humanismo é uma força propulsora do espírito, que existiu no passado e deve ser utilizada como elemento indispensável para aproveitarmos e vivermos o presente; ele foi cultivado por Cícero e Terêncio, como por Montaigne, Dante e Goethe; foi fonte inspiradora das grandes obras do espírito, como será o alicerce mais seguro sobre o qual o cientista de hoje e o de amanhã poderão anunciar as suas novas descobertas." Esse autor tem uma visão mitigada ou conciliadora entre o humanismo e a técnica, considerando ser um erro julgar que o humanismo deixe de existir quando começa a técnica. "Há humanismo em toda profissão, desde que se proceda tornando o homem como fim, e o próprio ofício como sendo um meio. Podemos reproduzir, aqui, o verso milenar de Terêncio, sem haver necessidade de adaptá-lo às contingências atuais, porque o sentido das palavras de quem procede como humanista, está muito acima da precariedade de certos conceitos científicos: Homo sum: humani nihil a me alienum puto ."

E Nóbrega continua, com sua brilhante exposição: "Tudo o que se refere ao destino do homem não nos deve ser indiferente. Certos modernistas, principalmente os de tendências marxistas, como é o caso de Irénée Arnaud, procuram contrapor humanismo às humanidades, que qualificam de modernas.
A expressão 'humanidades modernas' soa mal ao ouvido dos que compreendemos o verdadeiro sentido do humanismo, que é um só, no tempo e no espaço. Não aceitamos a forma hiperbólica de humanismo clássico, porque humanismo sem classicismo é tanto humanismo quanto Sganarelle é médico na comédia de Molière 'Le Médecin malgré-lui'... Também não aceitamos as denominações de humanismo-marxista, existencialista ou materialista, que, apesar de frequentemente usadas, nos parecem verdadeiras heresias científicas, porque o humanismo está indissoluvelmente ligado à ideia de espírito. Seria o mesmo se admitíssemos um materialismo cristão.
Humanismo, em todas as épocas, tem sido considerado como traço saliente de esplendor da cultura ocidental. Seus primeiros vestígios aparecem na atuação de clérigos ocidentais, que se incumbiam de fazer florescer a cultura greco-latina através de cópias dos autores da antiguidade clássica. Desde o século XII encontramos na França e na Inglaterra com Abelardo, Alanus ab Insulis, Gautier de Châtillon, Johannes V. Salesbury, traços marcantes de reflorescimento do humanismo.
É, porém, de suma importância, assinalar que os grandes e legítimos representantes da cultura greco-latina tinham pleno conhecimento daquilo que podemos qualificar de ideal do humanismo. É isto o que podemos perceber pelo depoimento de Aulo Gélio, quando escreveu:
Qui verba Latina fecerunt quique his probe usi sunt, HUMANITATEM non id esse voluerunt, quod volgus existimat quodque a Graecis φιλαvθρωπία dicitur et significat dexteritatem quandam benivolentiamque erga omnes homines promiscam, sed HUMANITATEM appellaverunt id propemodum, quod Graeci  παιδείαν   vocant, nos eruditionem institutionemque in bonas artes dicimus. Quas qui sinceriter percupiunt adpetuntque, hi sunt vel maxime humanissimi. Huius enim scientiæ cura et disciplina ex universis animantibus uni homini data est idcircoque HUMANITAS appellata est. (Noctes Atticæ XIII, 16)" (grifo do autor)

SIEDL (1991, 1-2) escreveu também sobre o precioso patrimônio que representa a língua latina, verbis: "Em primeiro lugar, como Católicos nós admiramos e aceitamos com agradecimento "a sabedoria dos Antigos", contida nos escritos e poemas dos mundos Grego e Romano que são, em certo sentido, como o papa João XXIII explicou em sua encíclica Veterum Sapientia, uma preparação para a Revelação de Deus em Cristo. Depois que Cristo veio e escolheu Pedro como a Cabeça de Sua Igreja e a cidade de Roma como a residência de Pedro e seus sucessores, a língua Latina desde então tornou-se algo como a língua-mãe da Igreja Católica Romana. Desde a época dos primeiros Padres da Igreja, passando pela Idade Média e chegando aos novos dias, temos um tesouro constantemente crescente de documentos e escritos eclesiásticos concernentes a uma grande variedade de temas teológicos e práticos, dogma e moral; exegese bíblica e história da Igreja; direito canônico e hagiografia; encíclicas e documentos de Concílio; e finalmente, mas não menos importante, o ensino de tantos Santos que escreveram suas obras em Latim. "Thesaurus incomparandæ præstantiæ", realmente um tesouro de incomparável valor (Pio XII). E não se diga: "Bem, nós temos traduções e podemos lê-las." Não é verdade. "Apenas uma ínfima quantidade delas está traduzida em línguas modernas; e essas traduções só raramente de fato dão o completo significado do original." (João Paulo II) Pode-se citar ainda muito mais declarações dos últimos Papas que têm insistido na grande importância do Latim Eclesiástico, mesmo depois do Concílio Vaticano e em nossa época. Eis apenas duas delas.
"Todos os que apreciam e adotam a língua latina fazem um grande favor e são de grande ajuda à Igreja Católica Romana que preserva a dignidade dessa língua e considera-a sempre um elo de unidade, um sinal visível de sua consistência, um instrumento de compreensão mútua. E mesmo quando, por razões pastorais depois do Concílio, as línguas das diferentes nações foram introduzidas na liturgia... a Igreja nunca cessou de exortar que o uso da língua Latina na liturgia do rito latino seja preservado." (Paulo VI)
E João Paulo II disse: "Dirigimo-nos especialmente aos jovens: numa época em que em algumas áreas, como sabemos, a língua latina e os valores humanos são menos apreciados, vocês devem aceitar com alegria o patrimônio dessa língua que a Igreja tem em alta estima e devem, com energia, torná-la frutífera. As bem conhecidas palavras de Cícero, "Non tam præclarum est scire Latine, quam turpe nescire", em certo sentido, são dirigidas a vocês. Exortamo-los todos a erguer alto a tocha do Latim que é mesmo hoje um elo de unidade entre os povos de todas as nações." As últimas palavras nesta citação lembra-nos uma fala na qual Pio XII solenemente declarou o valor do Latim Eclesiástico e denominou-o "o mais precioso elo de unidade para a Igreja Católica Romana". ¹⁰
Então podemos dizer, de acordo com o ensinamento dos últimos Papas, que o Latim é para nós Católicos Romanos um patrimônio precioso que não devemos perder. Ele nos chega como uma herança do antigo como "preparação do Evangelho", e desde então tem sido a língua viva da Igreja: na sua liturgia, nos seus documentos e na sua literatura; e, finalmente, sempre foi um elo de unidade entre todos os Católicos Romanos ao redor do mundo — e não há razão por que não deva ser assim agora." (Minha tradução)



III. NOTAS DO AUTOR

 


² RATZINGER, J.: "Documentos Pontifícios - 13 - Carta Apostólica em forma de Motu Proprio: Latina Lingua, p. 9-11.

NÓBREGA, Vandick L.: "Latinus Sermo-I", texto intitulado "Humanismo & Ensino Profissionalizante" (à guisa de prefácio), p. 11-28.

"Sou um ser humano; e nada do que seja humano eu considero que seja alheio à minha natureza."

"Os que criaram a língua latina, e os que a falaram bem, não deram à palavra humanitas a acepção vulgar que é sinônimo da palavra grega filantropia, o que significa uma amabilidade ativa, uma terna benevolência para com todos os homens. Mas aqueles ligaram a essa palavra o sentido daquilo que os Gregos chamam de paideia, daquilo que nós chamamos educação e conhecimento das belas-artes. Os que  para esse estudo mostravam o maior gosto e disposições são também os mais dignos de serem chamados humanissimi. Pois, único entre os animais, o homem pode se engajar à cultura deste estudo que para isso foi chamado humanitas." (Minha tradução para Aulus Gellius: Atticae Noctes, liber XIII, 17, 1: Qui verba Latina fecerunt quique his probe usi sunt 'humanitatem' non id esse voluerunt quod vulgus existimat quodque a Graecis φιλανθρωπία dicitur et significat dexteritatem quandam benivolentiamque erga omnis homines promiscam; sed 'humanitatem' appellaverunt id propemodum quod Graeci παιδείαν vocant, nos 'eruditionem institutionemque in bonas artes' dicimus. Quas qui sinceriter percupiunt adpetuntque, hi sunt vel maxime humanissimi. Huius enim scientiae cura et disciplina ex universis animantibus uni homini data est idcircoque 'humanitas' appellata est.) Esse trecho vem sob o título "Humanitas não possui o sentido que o vulgo lhe dá. Os que falaram com correção dão a esta palavra a acepção que lhe é própria, ou em latim: "'Humanitatem' non significare id quod vulgus putat, sed eo vocabulo qui sinceriter locuti sunt magis proprie esse usos." Neste célebre trecho, Aulo Gélio (125-180 DC) menciona os significados primário e secundário desta palavra, e da sua definição é fácil acompanhar a semântica do termo "Humanidades", aplicado numa época muito posterior a um curso especial de estudos nas Universidades.

18 de abril de 1969; AAS 61 (1969) 312; cf. Sacrosanctum Concilium n. 36

Não é nada especial saber Latim: é uma vergonha não sabê-lo.

27 de novembro de 1978; AAS 71 (1979) 46

¹⁰ 23 de setembro de 1951; AAS 43 (1951) 737



IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


LHOSA, M.V. : "El hombre que estorbaba", publicado na coluna Opinión do jornal espanhol El País, na quarta página, no dia 23/02/2013.

NÓBREGA, Vandick L.: "Latinus Sermo - I", Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1978, 297 p.

ORTEGA Y GASSET, J. : "A Rebelião das Massas", 1930.

RATZINGER, J.: "Documentos Pontifícios - 13 - Cartas Apostólicas em forma de Motu Proprio: Latina Lingua e Intima Ecclesiæ Natura", Brasília, DF: Edições CNBB, 1ª edição, 2013, 30 p.

SIEDL, Suitbertus H. : "Cursus Linguæ Latinæ Vivæ", Clearwater, Fla.: Editiones Familiæ Sancti Hieronymi, 1991, 173 p.