quinta-feira, 30 de setembro de 2010

HINO NACIONAL BRASILEIRO EM LATIM


Por Francisco José dos Santos Braga


I. Introdução

O Blog do Braga tem o prazer de disponibilizar aos seus leitores a versão latina do Hino Nacional Brasileiro, da lavra de Mendes de Aguiar e com comentários do autor deste blog. Outrossim, considera muito oportuna esta iniciativa, uma vez que em 7 de setembro de 2010 foi comemorado o 188º aniversário do grito do Príncipe Regente às margens do riacho Ipiranga, o que acabou configurando a libertação das amarras que prendiam a Colônia brasileira à Metrópole portuguesa. Publicar essa versão latina do Hino Nacional Brasileiro no mês em que se comemora a Independência do Brasil (de Portugal) constitui, a seu ver, uma contribuição deste Blog para o maior brilhantismo dessas comemorações oficiais.


II. Análise do Hino

Duas características do referido texto latino precisam ser mencionadas:
  •  a tradução proposta por Mendes de Aguiar não é literal, fazendo largo uso de liberdades ditas poéticas
  •  essa tradução é homeométrica, podendo tal versão latina do Hino ser cantada com a música da letra em português. Por tradução homeométrica entende-seaquela que é feita com “metro semelhante”, ou seja, observando-se a forma rítmica da obra poética original.

Seria, portanto, interessante verificar-se quais as principais características da letra do Hino Nacional Brasileiro para o perfeito entendimento da versão latina.

Inicialmente, deve-se frisar que tal letra se compõe de 50 versos distribuídos em duas partes rigorosamente simétricas tanto na métrica quanto no ritmo, cada uma com vinte e cinco versos, assim dispostos: doze decassílabos, sete tetrassílabos, dois heptassílabos, dois hendecassílabos e dois trissílabos.

O primeiro a aparecer é o decassílabo heróico, cuja característica é apresentar sílabas tônicas nas posições 6 e 10, obrigatoriamente, tendo mais uma ou duas sílabas tônicas complementares. Só a título de exemplo de verso decassílabo e de forma prática, observemos as sílabas tônicas indicadas em negrito, em ambas as línguas:
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
Audierunt Ypirangæ ripæ placidæ
Observe-se igualmente que as sílabas tônicas estão nas posições 2, 6 e 10, em ambas as versões (tanto em português quanto em latim).

De forma resumida, os 25 versos tanto da parte I quanto da parte II do Hino podem ser assim classificados na ordem em que aparecem:
1ª "stanza" ou estrofe: 4 versos decassílabos (heróicos)
2ª estrofe (1 verso heptassílabo, 1 hendecassílabo, 1 heptassílabo e 1 hendecassílabo)
1º refrão (3 versos tetrassílabos)
3ª estrofe (4 versos decassílabos heróicos)
4ª estrofe (3 versos decassílabos heróicos)
2º refrão (4 versos tetrassílabos, seguidos de 1 verso decassílabo heróico e 2 versos trissílabos).
Tanto a constituição das estrofes quanto a métrica utilizada servem para ambas as versões (em língua portuguesa e em língua latina).

A pronúncia que há de ser adotada é a tradicional (e não a restaurada).

Abaixo é apresentada a versão latina de Mendes de Aguiar para o Hino Nacional com todas as sílabas tônicas indicadas em negrito para melhor compreensão do que foi exposto.

Hymnus Brasiliensis*
Versão latina de Mendes de Aguiar**

I

Audierunt Ypirangæ ripæ placidæ
Heroicæ gentis validum clamorem,
Solīsque libertatis flammæ fulgidæ
Sparre Patriæ in los tum fulgorem.

Pignus vero æqualitatis
Possire si potuĭmus brachio forti,
Almo gremio en libertatis,
Audens sese offert ipsi pectus morti!

O cara Patria,
Amoris atria,
Salve! Salve!

Brasilia, somnium tensum, flamma vivida,
Amorem ferens spem ad orbis claustrum,
Si pulchri cœli alacritate limpida,
Splendescit almum, fulgens, Crucis plaustrum.

Ex propria gigas positus natura,
Impavida, fortīsque, ingēnsque moles,
Te magnam prævidebunt jam futura.

Tellus dilecta,
Inter similia
Arva, Brasilia,
Es Patria electa!

Natorum parens alma es inter lilia,
Patria cara,
Brasilia!

II

In cunis semper strata mire splendidis,
Sonante mari, li albo profundi,
Effulges, o Brasilia, flos Americæ,
A sole irradiata Novi Mundi!

Ceterīsque in orbe plagis
Tui rident agri florum ditiores;
“Tenent silvæ en vitam magis,”
“Magis tenet” tuo sinu “vita amores.”

O cara Patria,
Amoris atria,
Salve! Salve!

Brasilia, æterni amoris fiat symbolum,
Quod affers tecum, labarum stellatum,
En dicat aurea viridīsque flammula,
—Ventura pax decūsque superatum.

Si vero tollis Themis clavam fortem,
Non filios tu videbis vacillantes.
Aut, in amando te, timentes mortem.

Tellus dilecta,
Inter similia
Arva, Brasilia,
Es Patria electa!

Natorum parens alma es inter lilia,
Patria cara,
Brasilia!


* "Hyno Nacional Brasileiro/ Versão Latina/ Por/ Mendes de Aguiar/ Dedicada/ À Congregação Salesiana". In: Revista de Língua Portuguesa, p. 13-5. Archivo de Estudos relativos ao Idioma e Literatura Nacionais. Publicação Bimestral dirigida por Laudelino Freire, nº 38 - Novembro - 1925, Ano VII, p. 14 (texto português); p. 15 (versão latina). Disponível na Seção de Obras Raras da Biblioteca Central da UnB.
Observe-se que, em novembro de 2010, a publicação da versão latina do Hino comemora o seu 85º aniversário, embora a sua composição tenha ocorrido um ano antes, mais exatamente em 13/11/1924.

**O tradutor do Hino, Joaquim Luís Mendes (ou Mendez) de Aguiar, nasceu em 1875 na Bahia e morreu em 1927 no Rio de Janeiro. Poeta e humanista, escreveu pelo menos três livros de poesias: "Sanctitatis Nova Signa" (1916), “Monásticas” (1919) e "Ausonia Carmina" (s.d.), conforme informam, em verbete específico, Coutinho e Sousa (1990 (2001), vol. 1, p. 168). Esclarecem ainda esses dois autores que Mendes de Aguiar "colaborou no Alm. Bras. Garnier, 1909, Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, 1906, e noutros periódicos cariocas. REF.: Bandeira, Manuel. Literatura Nacional, Rev. Brasil, Rio de Janeiro, 30 nov. 1926, p. 43; Meneses. Dic., 10; Reis. Poetas I, 34-5; Ribeiro, João. O latim. O Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 5 nov. 1926. ICON.: Alm. Bras. Garnier, 1910, p. 442." Seu pseudônimo era Agesandro Termidêo na Arcádia Romana. É patrono da cadeira 37 da Academia Brasileira de Filologia. Escreveu inúmeras obras pedagógicas, especialmente sobre a didática do Latim. Dele conheço “Gramática Latina”, 3ª edição, Editor Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro, 1925, feita em colaboração com Roberto Gomes Ribeiro, escritor de peças e crítico de teatro, tendo nascido em 1882 e suicidado em 1923, por ser portador de mal incurável. Gomes Ribeiro foi professor no Colégio Pedro II.
A referida gramática de ambos os autores está disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.ime.usp.br/~ueda/br.ispell/latim.html

Rodrigues e Pontara (1975, p. 122-3) enriquecem com os seguintes apontamentos a biografia de Mendes de Aguiar:
" (...) 1.5. Não há, que saibamos, tradução alguma do "Hino Nacional Brasileiro", em língua moderna. A primeira tentativa de uma tradução foi a de Joaquim Luís Mendes de Aguiar, saída a lume na Revista de Língua Portuguesa, em novembro de 1925. A versão latina, porém, já estava pronta um ano antes, como é fácil deduzir-se da data em latim, aposta entre a última linha do Hino e a assinatura:
"Flumini Januarii, idibus novembribus, MCMXXIV / Mendes de Aguiar / ("Agesander Thermidæus apud Arcades Romanos").

Minha Tradução: Rio de Janeiro, (aos) 13 de novembro de 1924 / Mendes de Aguiar / ("Agesandro Termidêo entre os Árcades Romanos", isto é, na Arcádia Romana). Observe-se que ele não usa "Flumen Januarii" nem "Flumen Januarium" para a localidade do Rio de Janeiro, mas sim Sanctus Sebastianus Flumini (dativo!) Januarii (ou literalmente: São Sebastião para o Rio de Janeiro), ou a sua forma contracta: Flumini Januarii. Também já encontrei "Sebastianopolis ad Flumen Januarium," para a "cidade de São Sebastião para o Rio de Janeiro" (tradução literal).

1.6. Joaquim Luís Mendes de Aguiar nasceu na Bahia, em 1873 (sic). Foi aluno do Seminário da Bahia, mas não seguiu a carreira eclesiástica, trocando-a pelos estudos de Direito, graças aos quais tornara-se Promotor Público, numa das Comarcas do Estado de Sergipe.

Veio para o Rio de Janeiro, casando-se, em 1913, aos 40 anos de idade, com Fátima Hyarup, da qual teve seis filhos (Bento, Alda Escolástica, Luís, Beda, Viliboldo e Flávio). No Rio, trabalhou nos Colégios "Alfredo Gomes", "Paula Ferreira" e "Ginásio de São Bento". Tendo prestado concurso e logrado classificação, entrou como Livre-Docente no "Ginásio Pedro II", merecendo, mais tarde, a nomeação para Lente Catedrático.

Pertencia à "Arcádia Romana", com o nome de Agesander Thermidæus, quando morreu, no Rio de Janeiro, a 26 de fevereiro de 1927. Deixou publicados uma Gramática Latina e mais dois opúsculos de poesias: Monásticas (Niterói, 1919) e Ausonia Carmina.

Floriano Brito, prefaciando Ausonia Carmina, escrevia:
"Felizmente, há ainda entre nós exímios cultores da sintética e pulquérrima latinidade."

As poesias do opúsculo Ausonia Carmina dividem-se do seguinte modo:
Carmina classico more (p. 1-45; 16 composições);
Carmina moderno more (p. 51-71; 10 composições);
Vatum celebrium carmina quædam ad Romanum idioma, metro moderno translata (p. 73-105; 37 composições de vários poetas e do próprio Autor).

Minha Tradução: 1º Poemas em estilo clássico... 2º Poemas em estilo moderno... 3º Alguns poemas de poetas célebres traduzidos para a língua latina em metro moderno...

Lendo-lhe uma das odes, tem-se a impressão de um dilatado recuo no tempo e no espaço. Não é um moderno a compor em versos latinos da sua lavra; é um vate contemporâneo de Horácio. Quer nos dísticos e nas sáficas, quer nos versos rimados que formam a segunda parte de Ausonia Carmina, Mendes de Aguiar é sempre impecavelmente correto. Os seus hexâmetros não discrepam jamais no meticuloso rigor das cesuras; e no pentâmetro, a mesma correção sintática. E sempre a realçar-lhe o mérito dos versos, o mais escrupuloso propósito de evitar as licenças poéticas seguindo os modelos da métrica horaciana."

Talvez seja esta a oportunidade de citar, além de Joaquim Luís Mendes de Aguiar, alguns dos importantes poetas brasileiros que escreveram em língua latina nos séculos XIX e XX: Dom Francisco de Aquino Corrêa, José Florentino Marques Leite, Antônio de Castro Lopes, Pe. Caetano Oricchio e Pe. Pedro Sarneel, dentre outros.


NOTAS DE MINHA AUTORIA:

Parte I

Audierunt ... clamorem: Ripæ placidæ Ypirangæ audierunt validum clamorem heroicæ gentis (=As margens plácidas do Ipiranga ouviram o grito vigoroso de um povo heróico).
Audĭo, -is, -īvi, -ītum, -īre (quarta declinação): ouvir.
No perfeito do indicativo em –īvi e nos seus derivados, sempre se pode omitir o v, e se, omitindo o v, houver encontro de dois i, os dois i podem contrair-se num só: audīsti em vez de audivīsti, audiērunt ao invés de audivērunt.
Ripæ placidæ: nom. pl., sujeito de audiērunt.
Ypirangæ/heroicæ gentis: gen. sing.
Validum clamorem: ac. sing., objeto direto de audiērunt.

Solīsque ... fulgorem: Tum flammæ fulgidæ solis et libertatis sparsēre fulgorem in cælos Patriæ (=Neste instante chamas luminosas do sol e da liberdade espalharam um clarão nos céus da Pátria).
Flammæ fulgĭdæ: chamas luminosas, nom. pl., sujeito de sparsēre .
Spargo, -is, sparsi, sparsum, spargěre (terceira declinação): espalhar, dispersar.
Na terceira pessoa do plural do perfeito do indicativo pode-se usar a terminação –ere em vez de –erunt. Por isso: sparsēre substituindo sparsērunt.
Solis/libertatis: gen. sing.
Cælos: ac. pl. de cælum, que no sing. é neutro e no pl. masculino.

Almo... morti!: en, (in) almo gremio libertatis, (nostrum) pectus audens offert sese ipsi morti (=Eis que, no seio benéfico da liberdade, nosso peito audaz se oferece à própria morte).

O cara Patria, / Amoris atria / Salve! Salve! (=Ó Pátria amada, / Morada de amor / Salve! Salve!).
Patria/atria: vocativos.
Atria (pl.) por atrium (sing.): morada.

Brasilia, ... vivida (=Brasil, (és) um sonho intenso, uma chama vívida).
Brasilia: voc. sing.
Amorem... claustrum: ferens (et) amorem (et) spem ad claustrum orbis (=trazendo (que traz) amor e esperança ao limite do mundo). Importante latinista, Pe. Júlio Comba S.D.B. traz "spemque" no lugar de "spem", fazendo coincidir com maior fidelidade a tradução do verso que ofereci ao texto latino (cfr. Gymnasium (3º e 4º ano de Latim), 2ª edição, Escola Industrial Dom Bosco, Niterói, 1953, p. 171-2).

Si pulchri ... Crucis plaustrum: Si almum plaustrum Crucis splendescit fulgens (in) alacritate limpida pulchri caeli (=Visto que a doce constelação do Cruzeiro resplandece fulgente na alegria clara do belo céu).
Plaustrum (n. s.): constelação.

Ex propria ... natura: (Es) gigas positus ex propria natura (=És gigante estabelecido pela própria natureza).
Ex: preposição que pede o ablativo.
Gigas, -āntis.

Impavida et fortis et ingens moles: nom. sing., aposto de gigas (obs.: na tradução latina).
Mōles, -is (s. f.): grande estatura

Te ... futura: e o futuro (as coisas futuras) já há de te ver grande.
Prævidebunt, pois o sujeito é neutro plural (futura).

Tellus dilecta/Brasilĭa: voc. sing.
Tellus, -ūris (s. f.): terra
Brasilĭa, -æ (s.f.): Brasil
Inter similia arva: entre regiões semelhantes.
Arvum, -i (s. n.): litoral, costa.

Natorum... lilia: Es alma parens natorum inter lilia. Entre os lírios és mãe propícia dos (teus) filhos.
Alma parens: mãe benéfica.
Natus, -i: filho.
Lilĭum, -i (s. n.): lírio.

Patria cara/Brasilia: voc. sing.

Parte II

Sterno, is, strāvi, strātum, sternĕre (terceira declinação): deitar por terra, prostrar; estender; cobrir. — se somno. Virg. 6 sterni. Deitar-se, por-se a dormir.
In cunis... splendidis: strata semper mire in cunis splendidis.
(In) cunis splendidis: em berço esplêndido.
Cūnæ, ārum (s. f. pl.): berço, ninho. Um plurale tantum (no plural: pluralia tantum) é um substantivo registrado apenas na forma plural e que não possui uma variante singular para se referir a um único objeto. Mais abaixo aparecerá outro plurale tantum: divitĭæ, -ārum: riqueza.
Mire ou mīrĭfĭce. adv. Cic. maravilhosamente, de uma maneira admirável.

Sonante mari (abl. abs.): soando o mar (ao som do mar).
Albo cæli profundi: à alvura (à luz) do céu profundo.
Album, -i: cor branca.

Brasilĭa: voc. sing.
flos: aposto de Brasilĭa
A sole ... Mundi: irradiata a sole Novi Mundi (=iluminada pelo sol do Novo Mundo).
A (ab): preposição que exige o ablativo.

Ceterisque... ditiores: tui agri rident ditiōres florum in orbe et cetĕris plagis, ou mais simplesmente:
tui agri (sunt) ditiores florum quam ceteræ plagæ orbis, ou ainda com a omissão do quam: tui agri (sunt) ditiores florum ceteris plagis orbis (=teus risonhos campos são mais ricos de flores do que outras regiões do orbe).
Observe-se que, na formação do comparativo de superioridade, a conjunção “quam” em latim é traduzida pelo “que” em português, o qual une os dois termos da comparação. O segundo termo da comparação (plagæ) deve estar no mesmo caso do primeiro termo (agri), logo, nominativo.
Observe-se ainda que, quando estiver no nominativo ou no acusativo, o segundo termo pode aparecer no ablativo sem o “quam”. Nesse caso, ficaria da seguinte forma: tui agri (sunt) ditiores florum ceteris plagis orbis. Foi o que ocorreu na tradução do Hino, quando Mendes de Aguiar colocou o primeiro termo da comparação no nominativo (tui agri) e o segundo termo no ablativo (ceteris plagis).
Ager, -gri: campo.
Divitĭæ, -ārum (s. f. pl.): riqueza. Observe que é outro plurale tantum presente no Hino. Também encontrado sob a forma sincopada ditĭæ, -ārum (Plaut. Rud. 542).
Dīves (rico, opulento, abundante), ditĭor, ditissĭmus: graus positivo, comp. e superl.

Tenent... amores: (en) (nostræ) silvæ habent maiorem vitam; vita (nostra) (in) tuo sino habet plures amores.

Brasilĭa: voc. sing.
Æterni ... symbolum: fiat symbolum æterni amoris (=seja símbolo de eterno amor).

Quod ... stellatum: labarum stellatum, quod affers tecum (=lábaro que trazes contigo).
Labărum, -i: lábaro, estandarte (suj. de fiat)
Affĕro, affers, attŭli, allātum, affērre (verbo irregular): levar ou trazer.

En dicat ... flammula: En aurĕa et virĭdis flammula dicat (=Eis que a chamazinha áurea e verde diga).
Flammŭla: dim. de flamma (suj. de dicat). Logo: chamazinha.

Ventura ... superatum: ventura pax et superatum decus.
Venturus, a, um: futuro.
Supĕro, as, avi, atum, āre (primeira declinação): passar além, ultrapassar.
Decus, -ŏris (s.n.): glória, honra.

Si vero tollis Themis clavam fortem (=Mas se ergues o bastão forte de Têmis).
Vērō: mas.
Tollo, -is, sustŭli, sublātum, -ĕre (terceira declinação): erguer, levantar.
Clava, -ae: clava, bastão.
Themis por Themĭdis: de Têmis, divindade grega, personificação da justiça, filha de Uranos e da Terra (Gaia). Esposou Zeus e foi mãe das Horas e das Moiras (Catul. 68, 155).

Non filios tu videbis vacillantes: tu non videbis filios vacillantes (=não verás (teus) filhos vacilarem).
O Pe. Júlio Comba S.D.B. (op. cit.) usa “tuos” ao invés de “tu”. É difícil afirmar se se trata de erro tipográfico. Considerando a prosódia musical, “tu” cabe melhor, no referido verso, do que “tuos”, como bem firmou Mendes de Aguiar.
Vacīllo, -as, -āvi, -ātum, -āre (primeira declinação): vacilar, hesitar, tremer.

Aut ... mortem (=Nem, adorando-te, os que temem a morte).


III. História do Hino Nacional Brasileiro

Por um lado, a atual letra do Hino Nacional completa no próximo mês de outubro 101 anos, pois foi em outubro de 1909 que apareceu o poema de Joaquim Osório Duque Estrada (29/04/1870-05/02/1927), o autor da letra do Hino. Embora esse texto não tenha por objetivo uma discussão aprofundada sobre a música de nosso Hino, o que requereria tratamento em separado devido à sua complexidade, extensão e implicações, cabe aqui fazer leves incursões nesse assunto devido à ingerência da partitura na letra de Joaquim Osório Duque Estrada.

A tarefa de ajustar a partitura musical (existente desde 1831 e da autoria de Francisco Manuel da Silva) aos versos de Duque Estrada coube a Alberto Nepomuceno (06/07/1864 -16/10/1920), o que foi feito magistralmente pelo exímio maestro cearense. Heitor (1950, p.146-9) assim se expressa quanto ao trabalho complexo a cargo de Nepomuceno: "Quando no segundo lustro dêste século," (refere-se ao XIX), "pois, Alberto Nepomuceno começou a preocupar-se com o problema da adoção de nova letra para o Hino de Francisco Manuel, que durante os primórdios do regímen republicano deixara de ser cantado, para tornar-se uma simples marcha instrumental, como talvez já fôra outrora, ao tempo de sua composição, teve de aplainar todas essas dificuldades. E mais uma por êle formulada: era o caso da ligação instrumental existente entre as duas estrófes do canto. Quando o Hino fôsse cantado sem acompanhamento, como deveriam proceder os cantores? Suprimir essa espera reduzindo-a a 2 tempos? Ou deveria o novo texto poético do Hino Nacional considerar essa ligação instrumental como melodia vocal e a ela adaptar palavras?
Veremos como foram resolvidos êsse e os casos precedentes.
1º) Métrica — A poesia de Osório Duque Estrada, composta estritamente sôbre o modêlo fornecido por Alberto Nepomuceno, adotou os versos decassílabos para o período inicial do Hino, fazendo-os seguir de outros, de diferentes medidas, conforme as necessidades das frases musicais;
2º) Estrófes — As duas quadras, de 7 e 4 sílabas, respectivamente, existentes no primeiro Hino, foram substituídas pelos 25 versos, sem refrão (sic), que constituem a primeira parte da nova poesia;
3º) Tonalidade — Alberto Nepomuceno, para o canto, transportou a uma 4ª inferior a melodia de Francisco Manuel, evitando que ela ultrapassasse o ré da 4ª linha da clave de sol;
4º) Simplificação da melodia — Quanto às transformações necessárias, na primitiva linha melódica, para torná-la de caráter mais vocal, Alberto Nepomuceno, com o seu agudíssimo senso de artista, adotou a versão hoje em uso e consagrada pelo citado Decreto-Lei nº 4.545. Damos abaixo essa versão, em confronto com o autógrafo de Francisco Manuel da Silva, existente na Biblioteca da Escola Nacional de Música, assinalando com chaves numeradas todas as passagens que, na versão de Alberto Nepomuceno, divergem do original do autor. Algumas dessas divergências têm origem, apenas, na diferente métrica das estrófes primitivas e das atuais; e várias delas já haviam sido consagradas pelo uso, antes, mesmo, da intervenção do compositor de Abul. (Obs.: Neste ponto, sugiro que o leitor se reporte ao livro, pois aqui Heitor ilustra as duas versões das partituras: a original, de Francisco Manuel, em si bemol maior, e a proposta por Nepomuceno, em fá maior, simplificada, ao mesmo tempo que assinala em ambas as 21 chaves supracitadas.)
5º) Ligação instrumental — Quanto a este problema, comportando duas soluções (manter essa passagem como ligação instrumental, sem canto; ou adaptar a ela palavras para serem cantadas), nem todos os músicos brasileiros daquêle tempo, e de nossos dias, tinham as mesmas preferências. O problema comporta discussão, pois de um lado e de outro há conveniências e prejuízos. Vingou a segunda solução, adotada por Nepomuceno. Mesmo dentro dessa solução, entretanto, um novo problema se apresentava, pois seria impossível fazer cantar, textualmente, aquêles compassos de ligação, em sua forma instrumental. Nepomuceno teve de forjar, sôbre a harmonia dêsses compassos, a linha vocal constante da chave nº 10. (Obs.: Idem, correspondendo ao momento em que se canta "Ó pátria amada, / Idolatrada, / Salve! Salve!")
Os textos definitivos do Hino Nacional publicados pelo Diário Oficial revalidaram essas soluções, por fôrça expressa da Lei, que diz: "é mantida a adaptação vocal de Alberto Nepomuceno, em fá maior" (Parágrafo Único do Art. 7º do Decreto-Lei nº 4.545). Apenas no caso da chave nº 9 (Obs.: a sílaba "mor" no verso: Desafia o nosso peito a própria morte!) foi dada preferência ao original de Francisco Manuel, conservando-se a apogiatura existente no 1º tempo do compasso."

A Academia Brasileira de Letras possui um manuscrito da letra do Hino Nacional com autógrafo de Duque Estrada, datado de 3 de agosto de 1922, o qual lhe fora ofertado pelo próprio autor, em sessão de 21 de setembro de 1922. Com efeito, desde 1915 Duque Estrada era membro da Academia, para a qual foi eleito, na vaga de Sílvio Romero, tendo sido o segundo ocupante da cadeira nº 17, que tem como patrono Hipólito da Costa.

Às vésperas do centenário da Independência, no dia 6 de setembro de 1922, o Decreto nº 15.671 declara oficial a letra do Hino Nacional Brasileiro, escrita por Joaquim Osório Duque Estrada. Tal poema, agora oficial, apresenta algumas variantes, conforme visto acima, mas, grosso modo, segue o original de 1909.

Outra intervenção legal foi a promulgação do Decreto nº 259, de 1º de outubro de 1936, pelo Presidente Getúlio Dornelles Vargas, que além de tornar o canto do Hino Nacional obrigatório "nos estabelecimentos de ensino mantidos ou não pelos poderes públicos, e nas associações de fins educativos e outros" (caput do art. 1º), consagrou, no art. 2º, "para a execução do Hino, de Francisco Manoel da Silva, a orquestração de Leopoldo Miguez e a instrumentação, para bandas, do 2º tenente Antonio Pinto Junior, do Corpo de Bombeiros do (então) Distrito Federal, no tom original: de si bemol; e, para canto, em fá, trabalho de Alberto Nepomuceno."

Mariz (2000 (1921), p. 68-9) assim descreve a situação do Hino alguns anos mais tarde: "Por influência de Villa-Lobos, o governo Getúlio Vargas tentou disciplinar a interpretação do hino, que se vinha abastardando sobremaneira. O Decreto-lei nº 4.545, de 31 de julho de 1942, provocou vivo debate, em que os inimigos de Villa-Lobos chegaram até a dizer que pretendia substituir a obra-prima de Francisco Manuel por uma composição dele... É curioso frisar que um estudo prévio detectara 59 erros na execução costumeira do Hino nacional: 27 de ritmo e 32 de entoação." O que, de fato, ocorreu é que, de acordo com Heitor (1950, p.142-4, em capítulo intitulado "A Pretendida 'Revisão' do Hino Nacional"), "transitava, em 1937, pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei, elaborado por uma Comissão de técnicos designada pelo Ministro da Educação e Saúde, para regular o canto do Hino Nacional Brasileiro. (...) Os 59 erros assinalados por Villa-Lobos à Comissão referem-se à execução, isto é, são vícios adquiridos pelo povo ao cantar desleixadamente o Hino, e não faltas do próprio texto. Isso estava bem claro no Relatório que a Comissão apresentou ao Ministro e foi divulgado, oportunamente, pela imprensa."

Finalmente, o Hino Nacional do Brasil foi oficializado pela Lei dos Símbolos Nacionais nº 5.700, de 1º de setembro de 1971.

Vale ainda acrescentar que a música composta por Francisco Manuel da Silva serviu para acompanhar outros textos poéticos conhecidos, cujo primeiro é da autoria de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. Heitor (1956, 48-50) se refere ao fato de que "numerosas produções em verso, intituladas hinos, eram oferecidas ao povo, para estimular as paixões cívicas. (...) A de que estamos tratando, e que é conservada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, tinha o seguinte título: Ao grande e heróico dia sete de Abril de 1831. Hino oferecido aos brasileiros por um seu patrício nato. Não há a menor dúvida de que era cantado com a música de Francisco Manuel que constitui o atual Hino Nacional Brasileiro, pois a Biblioteca da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil possui um autógrafo do compositor no qual essa letra se acha sob as pautas da música. O que ainda não pôde ser esclarecido é se o compositor escreveu a música para a circunstância ou se ela preexistia e teve essa letra adaptada para as jornadas de Abril. A impropriedade da música para o metro e o tipo de estrofes usados pelo poeta parece decidir a favor da segunda hipótese. Basta lembrar que os decassílabos da letra atual, arranjada por Osório Duque Estrada, estritamente de acôrdo com a frase musical e suas acentuações, eram, naquele tempo, supridos por versos de sete sílabas; e que a forma de estrofe e refrão da poesia repelia o monotematismo da música, no qual o refrão de quatro sílabas vinha entoado sôbre a repetição da frase inicial. Jamais o compositor teria adotado essa forma musical para aqueles versos, se por êles se tivesse guiado para criar a melodia." Baseando-se num relato dos acontecimentos do dia 7 de Abril de 1831 (dia da Abdicação do Imperador D. Pedro I a favor de seu filho), Heitor conclui que "a 7 de Abril a música fôra apenas executada pelas bandas; a 14 podia ser cantada com a nova letra." Em outra parte, Heitor (1950, p. 138-9) diz que "no texto primitivo do hino ('oferecido aos brasileiros por um seu patrício nato', muito provavelmente o desembargador Ovidio Saravia de Carvalho e Silva) há estrofes ultrajantes para os de alem-mar como:

Arranquem-se aos nossos filhos
Nomes e idéias dos Lusos...
Monstros que sempre em traições
Nos envolveram confusos; (...)"

e cujo refrão "que permaneceu incorporado à música mesmo depois de haver sido abandonada a letra alusiva à revolução de Abril", diz o seguinte:

Da Pátria o grito
Eis se desata;
Desde o Amazonas
Até o Prata.

Noutro texto, o próprio Heitor (1950, p. 140) flexibiliza a sua afirmação acima citada através do seguinte comentário: "É preciso notar, entretanto, que a mais velha cópia conhecida do Hino Nacional é um arranjo para orquestra, datado de 1834 ou que, pelo menos, traz a inscrição: 'Hino para o dia 6 de Abril de 1834' (entenda-se: para comemorar, em 1834, o 3º aniversário da Abdicação)", concluindo que a música do atual Hino Nacional Brasileiro foi feita "para comemorar a Abdicação, o mais tardar em 1834".


Pelo interesse que provoca em todo cidadão brasileiro a história do seu Hino Nacional e em virtude da análise aprofundada dessa questão num estudo de Marcelo Duarte, intitulado “História do Hino” e publicado pela revista Almanaque Brasil, da TAM, sem referências adicionais, abaixo transcrevo esse interessante artigo, na esperança de lançar algumas luzes sobre as curiosas vicissitudes por que passou o nosso Hino Nacional até atingir a sua forma definitiva como o conhecemos hoje.



História do Hino
Por Marcelo Duarte
Em 1831, Dom Pedro anunciou que estava deixando o trono de imperador do Brasil para seu filho e voltaria a Portugal. Foi a oportunidade que o músico Francisco Manuel da Silva estava esperando para apresentar a sua composição. Ele colocou a letra de um verso do desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva e o hino foi cantado pela primeira vez no dia 13 de abril de 1831, na festa de despedida de Dom Pedro I. Durante algum tempo, porém, a música teve o nome de "Hino 7 de Abril", data do anúncio da abdicação.
A letra de Ovídio Saraiva foi considerada ofensiva pelos portugueses. Eles foram chamados até de "monstros". Por isso, ela foi esquecida em pouco tempo, mas a partitura de Francisco Manuel da Silva começou a ser executada em todas as solenidades públicas a partir de 1837. Para comemorar a coroação de Dom Pedro II, em 1841, o hino recebeu novos versos, de um autor desconhecido. Por determinação de Dom Pedro II, a música passou a ser considerada o Hino do Império e deveria ser tocada todas vezes em que ele se apresentasse em público, em solenidades civis e militares, mas sem letra. Era também tocada no exterior sempre que o imperador estivesse presente. Francisco Manuel ficou bastante famoso. Recebeu vários convites para dirigir, fundar e organizar instituições musicais. Mas o Brasil continuava com um hino sem letra.
Quando a República foi proclamada, em 1889, o governo provisório resolveu fazer um concurso para escolher um novo hino. Procurava-se algo que se enquadrasse no espírito republicano. Primeiro escolheram um poema de Medeiros e Albuquerque, que tinha sido publicado no jornal Diário do Comércio do Rio de Janeiro em 26 de novembro de 1889. É aquele que começa com o verso "Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós". A letra se encontrava à disposição dos maestros que quisessem musicá-la. No primeiro julgamento, dia 4 de janeiro de 1890, 29 músicos apresentaram seus hinos. A Comissão Julgadora selecionou quatro para a finalíssima. No dia 15 de janeiro, numa sessão em homenagem ao Marechal Deodoro no Teatro Santana, perguntaram ao novo presidente se ele estava ansioso pela escolha do novo hino. Ele disse: "Prefiro o velho". Cinco dias depois, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, uma banda marcial composta de 70 figurantes, fanfarra e coro de 30 vozes regida pelo maestro Carlos de Mesquita executou as músicas finalistas. Na ordem, os hinos de Antonio Francisco Braga, Jerônimo de Queirós, Alberto Nepomuceno e Leopoldo Miguez. Nessa primeira audição, segundo o regulamento, estavam proibidos os aplausos. Após um curto intervalo, a banda executou de novo os quatro hinos. Aí, sim, o público pôde se manifestar. O mais aplaudido foi o do maestro Miguez, que também foi escolhido pela Comissão Julgadora. O presidente Deodoro e quatro ministros deixaram o camarote oficial e voltaram em seguida. O ministro do Interior, Aristides Lobo, leu o decreto que conservava a música de Francisco Manuel da Silva como hino nacional. Mesmo sem a partitura, a orquestra tocou a música e a platéia delirou. Como prêmio de consolação, a obra de Medeiros e Albuquerque e de Leopoldo Miguez ficou conhecida como o Hino da Proclamação da República. Só que o problema persistia: o Brasil tinha um hino sem letra. Mas, se a música já era tão bonita, por que precisava de uma letra? Por mais que alguém se habitue a uma música, se ela não tiver letra, fica mais difícil de ser memorizada.
Só em 1909 é que apareceu o poema de Joaquim Osório Duque Estrada. Não era ainda oficial. Tanto que, sete anos depois, ele ainda foi obrigado a fazer 11 modificações na letra. Duque Estrada ganhou 5 contos de réis, dinheiro suficiente para comprar metade de um carro. O Centenário da Independência já estava chegando. Aí o presidente Epitácio Pessoa declarou a letra oficial no dia 6 de setembro de 1922. Como Francisco Manoel já tinha morrido em 1865, o maestro cearense Alberto Nepomuceno foi chamado para fazer as adaptações na música. Finalmente, depois de 91 anos, nosso hino estava pronto!

Até aqui o texto do artigo de Marcelo Duarte.

Cabe agora uma observação sobre o seu interessante texto. É sobre o compositor Leopoldo Miguez (1850-1902), o primeiro Diretor do Instituto Nacional de Música , este instituído pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890, ato do governo provisório da República para criar o Instituto Nacional de Música em substituição ao Conservatório de Música inaugurado em 13 de agosto de 1848, portanto, durante o Império, e cujo primeiro Diretor tinha sido Francisco Manuel da Silva (21/02/1795-18/12/1865), o compositor do Hino Nacional.

Fundamental mesmo para a oficialização do Hino Nacional foi o Decreto nº 171, de 21 de janeiro de 1890, que dispõe sobre dois hinos: o art. 1º estabelece que "é conservada como Hino Nacional a composição de Francisco Manoel da Silva" (ainda sem letra oficial na ocasião), enquanto o art. 2º reza que "é adaptada sob o título de Hino da Proclamação da República a composição musical do maestro Leopoldo Miguez, baseada na poesia do cidadão José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque."

Pois bem: após obter esses trunfos do governo provisório da República, Leopoldo Miguez empreendeu uma viagem à Europa para visitar conservatórios e recolher sugestões para serem aplicadas ao ensino, adquirindo, na mesma ocasião, instrumentos, aparelhos de acústica e livros para o Instituto. Miguez também foi o responsável pela compra de um grande órgão de tubos da marca Wilhelm Sauer, que ofereceu ao Instituto, com o prêmio que ganhou pelo primeiro lugar no concurso que escolheu, senão o novo Hino Nacional, pelo menos o Hino da Proclamação da República.

Em 1937, o Instituto Nacional de Música torna-se Escola Nacional de Música.

Em 1954, Joanídia Sodré, que foi sua Diretora por mais de 20 anos, adquiriu o grande órgão Tamburini para o Salão Leopoldo Miguez, em substituição ao antigo Sauer, doado por Leopoldo Miguez.

Bibliografia

Aguiar, J.L.M.: "Hyno Nacional Brasileiro/ Versão Latina/ Por/ Mendes de Aguiar/ Dedicada/ À Congregação Salesiana", in: Revista de Língua Portuguesa, p. 13-5. Archivo de Estudos relativos ao Idioma e Literatura Nacionais. Publicação Bimestral dirigida por Laudelino Freire, nº 38 - Novembro - 1925, Ano VII.

Aguiar, J. L. M. e Ribeiro, R. G.: Gramática Latina. 3ª edição, Editor Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro, 1925 (disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.ime.usp.br/~ueda/br.ispell/latim.html

Comba, J.: Gymnasium (3º e 4º ano de Latim). 2ª edição, Escola Industrial Dom Bosco, Niterói, 1953.

Coutinho, A. e Sousa, J. G.: Enciclopédia de Literatura Brasileira. 2ª edição ampliada, revista, atualizada e ilustrada sob a coordenação de Graça Coutinho e Rita Moutinho. São Paulo: Global Editora, 2001.

Duarte, M.: "História do Hino", revista Almanaque Brasil, da TAM.

Heitor, L.: 1. Música e Músicos do Brasil : História - Crítica - Comentários (ilustrado com 46 exemplos musicais, Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1950 (disponível no Espaço Cassiano Nunes da Biblioteca Central da UnB);
2. 150 Anos de Música no Brasil (1800-1950), Livraria José Olympio Editôra, Rio de Janeiro, 1956.

Mariz, V.: História da Música no Brasil. 5ª edição revisada e ampliada, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2000.

Rodrigues, M. R. e Pontara, C.: "As versões latinas do Hino Nacional Brasileiro e do Hino à Bandeira Nacional", in: Revista de Letras, UNESP, vol. 17 (1975), p. 117-130.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

ALGUMAS LUZES SOBRE A GENEALOGIA


Por Francisco José dos Santos Braga



O Blog do Braga tem o prazer de trazer aos seus leitores matéria que saiu no Caderno 2 do Jornal de Brasília, no dia 25 de novembro de 1990, domingo. Trata-se de uma entrevista que o jornalista Rubens Araújo fez comigo e que, a meu ver, representa ainda hoje um documento digno de registro por ter suscitado enorme interesse entre os leitores do Jornal de Brasília de então. Além disso, essa matéria, por sua enorme repercussão, influenciou muitas pessoas a iniciarem o estudo de sua genealogia familiar, o que por si só já constitui enorme gáudio a qualquer estudioso da genealogia. Pela sua atualidade, pela abordagem descontraída e fantástica, pela cobertura abrangente e compreensiva, essa matéria merece constar desse espaço interativo entre lusófonos, embora se ressinta da falta de certos refinamentos e detalhes que só interessam a genealogistas profissionais. Por isso sai sem retoques e notas que, se por um lado enriqueceriam ou corrigiriam o texto da entrevista, por outro lado fazem sucumbir a sua leveza original.




Carteira de Identidade dos nobres da Idade Média, a genealogia é hoje uma ciência que revela importantes aspectos sobre grupos sociais. O genealogista Francisco Braga joga luzes em cima dessa curiosa arte.





TUDO EM FAMÍLIA

Rubens Araújo

Um problema matemático, suponhamos algo absurdo, mas teoricamente exato. Se alguém quisesse conhecer todos os seus ancestrais até a quadragésima geração, quantos nomes ele conseguiria? A resposta é espantosa. Nada mais nada menos que 4.398.046.511.100 nomes. A questão é colocada por Francisco José dos Santos Braga, um dos raros pesquisadores em Brasília que mexe com uma curiosa ciência que encorpava o currículo das velhas realezas e hoje serve como elemento para a identificação de grupos sociais: a genealogia. Para ela, somos apenas a folha de uma grande árvore, com um tronco plantado pelo ancestral — o homem e a mulher — que impôs o sobrenome para as futuras gerações.

Quase todos, no fundo, têm o interesse, pequeno que seja, de conhecer um ascendente. De preferência famoso, que garanta "status" para o presente herdeiro do nome. Não há quem deixe de sentir uma ponta de orgulho de ser tataratataraneto de um barão ou um conde. É a fogueira das vaidades que arde. Francisco Braga, recentemente, fez crescer mais folhas na árvore genealógica de uma funcionária do Senado que descende de Joaquim José da Silva Xavier, o sacrificado Tiradentes. Nesse caso, a interessada quer comhecer os antepassados mais próximos. Uma arqueologia de nomes provocada pelo desejo de se conhecer a si mesmo.

E é exatamente o “conhecer a si mesmo”, sem o caráter psicológico ou mesmo existencialista, a causa interna que leva as pessoas a buscarem a árvore genealógica. É o conhecimento da linhagem (expressão muito usada pelos velhos genealogistas e que hoje ganhou contornos pejorativos) da gênese que redundou no que somos no presente. É a opinião de Francisco Braga que não deixa de aludir ao fato de que a procura de um antepassado célebre acende sempre a chama nas pessoas. “Elas ficam totalmente satisfeitas quando encontram alguém ilustre no passado”, conta.

ILHOAS

O próprio Francisco Braga tem muito orgulho de sua ascendência. Ele simplesmente descende das “três ilhoas”, três irmãs que chegaram a Minas quando a província mal acabara de nascer. A história das ilhoas, aliás, serve como exemplo e parâmetro para a pesquisa genealógica no Brasil. Francisco Braga tem um interesse especial por essa história, afinal, nela está sua gênese. Sua Bíblia é exatamente “As Três Ilhoas”, três volumes (um calhamaço de 1.750 páginas) escrito pelo conceituado pesquisador José Guimarães, que fez uma impressionante e trabalhosíssima captura dos nomes de uma boa parte dos descendentes das três ilhoas.

Francisco Braga é descendente dos três troncos. Segundo ele, um caso raríssimo. Em suas veias corre o sangue de Antônia da Graça, Júlia Maria da Caridade e Helena Maria de Jesus. “Normalmente, as pessoas são descendentes de apenas uma delas. Eu sou das três, como consequência de entrelaçamentos e casamentos entre parentes que as instruções da Igreja no exame dos oradores não conseguiram impedir”, diz o genealogista. Ou seja, Braga descende dos três troncos porque seus avós burlavam a Igreja Católica que sempre anulava os casamentos entre parentes.

Segundo o genealogista, as três ilhoas originaram três importantes e férteis famílias, que hoje ocupam um espaço razoável em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás: os Junqueiras, os Rezendes e os Carvalhos. As três ilhoas são filhas do mareante Manuel Gonçalves Correa, chamado “o Burgão”, e Maria Nunes, naturais da ilha do Faial (nos Açores). Em 1723, o casal e as três filhas, uma delas já casada (a mais velha, Antônia da Graça, com Manuel Gonçalves da Fonseca), desembarcaram no Rio de Janeiro e subiram a serra rumo às Minas Gerais. Vieram em busca da felicidade e da fortuna.

CASAMENTO

Não demorou muito e as duas ilhoas solteiras casaram-se. Júlia Maria da Caridade, com Diogo Garcia, um conterrâneo que anfitrionou a família que chegava ao Brasil, e Helena Maria de Jesus com João Rezende da Costa. Daí vieram os filhos, os filhos dos filhos e assim por diante, entrelaçando-se e se espalhando por Minas Gerais e os estados vizinhos, e “acabaram constituindo-se no tronco das maiores famílias brasileiras”, segundo colocação de Francisco Braga. O que veio depois delas, de acordo com o genealogista, é uma descendência “distinta e numerosa”. Herdeiros que viraram governadores, ministros, politicos e empresários de peso.

A força ancestral dessas três mulheres de nomes católicos impressiona profundamente Francisco Braga, que tem como projeto na área a ampliação da árvore das três ilhoas. “Estou completando o trabalho de José Guimarães. Quero ampliar a tabela dos descendentes de Antônia da Graça, Júlia Maria da Caridade e Helena Maria de Jesus.” E afirma que está fazendo grandes progressos. Mas, o projeto mais apaixonante do genealogista está ainda por começar: ele quer viajar para os Açores para fazer a árvore dos ascendentes das três ilhoas. Um plano que vai tomar seus pensamentos em 1991.

A possibilidade de se trabalhar em cima de um tronco que já foi bastante estudado, por ser uma das mais importantes (talvez a mais) geneses de Minas Gerais revela uma das características mais fortes da genealogia: a infinitude. “A genealogia é a própria vida. O trabalho do genealogista não termina. Você vai gastar uma vida inteira para fazer a árvore de uma família. O estudo é infinito. No fundo, somos todos parentes, somos todos irmãos, descendemos do primeiro homem que nasceu na terra. Em termos genealógicos”, diz ele, “todos somos parentes. O difícil é determinar o grau de parentesco.”

A fissura de Francisco Braga pela genealogia tem origem no relacionamento que mantinha com a avó. “Ela tinha uma preocupação particular com os nossos antepassados. Decorava o nome dos avós e bisavós. Ela tinha 70 anos de idade e gostava de me falar sobre os antepassados.” A memória recorrente somada à tradição familiar que tatua as casas e impregna o ar de São João del-Rei, onde nasceu, o fizeram genealogista. Uma atividade que para ele é "hobby" e não profissão. Um "hobby" que dura apenas dois anos e é praticado nas poucas horas vagas que tem. Braga é funcionário do Senado e bem que gostaria de dedicar o resto de sua vida para a genealogia.

“No Brasil de Collor, porém, quem se preocupa com a cultura e a memória tem sérias dores de cabeça.” E a sobrevivência de Francisco Braga depende do emprego que tem. A falta de tempo para a genealogia (empecilho minimizado pelo uso do computador que ajuda no arquivo do nome dos antepassados de inúmeras famílias) é grave, porque essa ciência auxiliar da história necessita o dispêndio de boas horas e muita paciência, porque a formação de uma árvore genealógica requer o mergulho do estudioso em museus, cartórios e bibliotecas.

ÁRVORE

Francisco Braga ensina que para a genealogia é fundamental obter os nomes, as datas de nascimento, casamento, óbito e os locais. O estudo da genealogia pode ser: ascendente, quando a partir de uma pessoa se procura conhecer os antepassados, ou descendente, quando se tenta descobrir as gerações seguintes àquele que está sendo estudado. Passo a passo, o estudioso vai montando a árvore genealógica. Árvore, porque ela dá o sentido exato do trabalho, ou seja, a partir de um tronco (o indivíduo) você chega ao coletivo familiar, às ramificações, que são todos os parentes que vieram antes ou depois dele.

O genealogista monta caprichosamente seu trabalho, que pode ganhar dois desenhos, ou a representação de uma árvore com o nome no tronco, do casal ou pessoa que deu início a tudo e dos descendentes nos galhos e folhas, ou então o mero enfileiramento dos nomes interligados por traços. O desenho da árvore é mais impactante e era o que fazia sucesso na Idade Média, quando a genealogia era como uma espécie de carteira de identidade dos nobres. Os nobiliários eram os documentos que garantiam as mordomias e até mesmo a aceitação de uma pessoa nos altos escalões, por exemplo, da Igreja Católica.

A falta de memória e o desinteresse do brasileiro em levantar o seu passado transtorna a vida do genealogista. Francisco Braga conta que a recuperação dos nomes dos familiares antes de 1889 é um grande problema: “Isso porque os primeiros cartórios só foram oficializados com a proclamação da República. E, antes disso, qualquer resgate torna-se bem trabalhoso.” Dessa forma é que os nomes das gerações de antes daquela data só podem ser resgatados através de um trabalho de pesquisa laborioso em museus, bibliotecas e, principalmente, na Igreja. E aqui, o genealogista vira um detetive, um especialíssimo espanador de pó. Um arqueólogo da família.

E esse trabalho de pesquisa traz muitas supresas e algumas delícias para o estudioso. Francisco Braga afirma que se diverte quando encontra os testamentos, que mais do que revelar nomes de parentes de interesse do pesquisador, trazem casos curiosíssimos. Ele mesmo lembra o caso de um homem que deixou para o seu sobrinho uma ação do Banco do Brasil no início do século, com a exigência de que todo o rendimento anual da ação fosse investido, durante 15 anos, no casamento de órfãos pobres. O dinheiro era suficiente para esse projeto beneficente. “Hoje em dia, acho que o rendimento de uma ação do Banco do Brasil não dá nem para comprar um prato de comida”, ironiza Francisco Braga.

O bom ainda desse tipo de investigação é que o genealogista pode mergulhar no seu próprio passado. Francisco Braga fez sua árvore de costado (a árvore genealógica feita apenas com os pais e avós, deixando de lado outros níveis de parentesco) até a 10ª geração. Assim, fica tudo em família.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

2010 - ANO CHOPIN < < < Parte 11 > > > "CHOPIN FOI UM HOMEM RELIGIOSO", entrevista com o musicólogo Mieczysław Tomaszewski


Por Francisco José dos Santos Braga

 


Nesta Parte 11 da série de ensaios dedicados a 2010 - ANO CHOPIN, trago uma célebre entrevista que Krzysztof Tomasik fez com um dos maiores musicólogos poloneses atuais, Mieczysław Tomaszewski, como parte das homenagens que o Blog do Braga presta ao 200º aniversário do nascimento do grande pianista e compositor polonês Fryderyk Chopin.

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Tomaszewski é musicólogo e editor polonês. Professor na Academia de Música em Cracóvia, chefe do Departamento da Teoria e Interpretação da Obra Musical. Ele representa a corrente humanista dentro da musicologia. Estudou com Stefania Łobaczewska na Universidade Jaguelônica no período de 1954-1959, tendo obtido o título de PhD na Universidade Adam Mickiewicz em Poznań por sua tese intitulada A produção de F. Chopin e sua recepção (1984).

A pesquisa de Tomaszewski incide sobre a música do Romantismo e a corrente romântica na música polonesa contemporânea, sobre a teoria da canção européia e sobre a afinidade entre as artes. No centro de seus interesses está a música de Fryderyk Chopin. Além de sua pesquisa acadêmica sobre Chopin – que culminou na sua síntese que constituiu um marco: Chopin. Homem, Obra, Ressonância (Poznań 1998), – ele é também o autor de livros populares e de programas de rádio sobre Chopin.

Foi o editor científico de várias séries editoriais, incluindo 5 volumes de Documenta Chopiniana, 14 volumes de Chopin Library (1970-1990), Library of Miniature Scores, Musica Viva. Também publicou escritos sobre ontologia, análise e interpretação da obra musical, a relação entre texto e música, teoria e história da canção, e Chopin.

Entre suas outras realizações estão um filme biográfico sobre Chopin (TVP2/Arte, 1997), um ciclo de 44 programas de rádio Fryderyk Chopin. Obras Completas (Radio Polonesa 2, 1999-2000) e a primeira enciclopédia multimídia dedicada a um único compositor: Fryderyk Chopin. Vida de um Artista (1ª versão 1990, 2ª versão 2000).

Tomaszewski foi conferencista sobre Chopin e a música polonesa em Paris, Dijon, La Châtre (Nohant), Valldemossa, Mariánské Lázně, Viena, Graz, Gamming, Dresden, Leipzig, Hamburgo, Essen, Düsseldorf, Chemnitz, Aarhus, Vilnius, Bratislava, Londres e Nova Iorque.

Em 1999, Tomaszewski recebeu o Prêmio da Fundação da Ciência Polonesa, bem como o Prêmio de Jan Długosz Publishers pela sua tese sobre Chopin denominada Chopin. Homem, Obra, Ressonância. Em 2000, ele foi também homenageado pela Fundação Internacional Fryderyk Chopin pelo seu trabalho de toda uma vida sobre a produção e o caráter de Chopin, com especial destaque para o seu livro Chopin. Homem, Obra, Ressonância.
Hoje atua na Academia Polonesa Chopin e é membro do Conselho de Programa do Instituto Fryderyk Chopin.


Abaixo tenho o prazer de apresentar, na íntegra, a entrevista concedida pelo musicólogo Tomaszewski. Antes, porém, quero expressar aqui minha gratidão ao Conselho Editorial da Revista Polonicus, na pessoa do Pe. Dr. Zdzisław Malczewski SChr, por ter-me permitido a reprodução, no Blog do Braga, da célebre entrevista que figurou na edição do Ano I - 1/2010, p. 135-148 da referida revista.


CHOPIN FOI UM HOMEM RELIGIOSO

Krzysztof TOMASIK *

Chopin foi um homem religioso! Está convencido disso o prof. Mieczysław Tomaszewski, um eminente musicólogo polonês e um dos melhores conhecedores da vida e da obra de Frederico Chopin. O mundo está comemorando agora os duzentos anos de nascimento do genial compositor.

Na opinião do prof. Tomaszewski, um dos argumentos principais em favor da profunda religiosidade do compositor é o parecer da sua companheira de vida por longos anos George Sand, a qual reconheceu que Chopin estava “refugiado no catolicismo”. Além disso, o musicólogo cita a opinião de pessoas próximas a Chopin – entre as quais Franz Liszt, que escreveu a respeito dele definindo-o como uma pessoa “profundamente religiosa e sinceramente apegada ao catolicismo”.

Na entrevista que se segue, o prof. Tomaszewski traça o perfil espiritual de Chopin, fala das inspirações e do significado da sua obra e tenta ainda responder à pergunta por que ele não compôs uma obra sacra.

Segue-se o texto da entrevista.

O que é a música?
A música é um milagre, um milagre, um milagre... Um fenômeno difícil de explicar, mas com todas as marcas de um fenômeno miraculoso, que encanta, proporciona alegria, emoção... É simplesmente um milagre!

Que lugar ocupa então nesse “milagroso universo musical” a música de Chopin?
Eu lhe dediquei apenas sete livros. Ocupa um lugar preeminente. A introdução da valorização, desse ponto de vista, é algo muito difícil e perigoso. Muitas vezes me perguntam que disco eu levaria comigo, para a proverbial ilha deserta, com a música de Bach, Mozart, Chopin ou Beethoven. A resposta a esse tipo de pergunta é perigosa, porque se pode então, na própria espontaneidade, ser indecente, como por exemplo Frederico Nietzsche, que escreveu em seu Ecce Homo que por Chopin estava pronto a entregar todo o restante da música. Isso é incrível... Por ele estava pronto a entregar Bach, Mozart, Beethoven, Brahms! Ou vejamos Julian Tuwim, o qual disse que, se tivesse de escolher, entregaria Mickiewicz com desespero, Słowacki com pesar, e dez Krasinskis – por um único Chopin. Por isso é difícil falar do seu lugar no universo musical. No meu sentimento de beleza, na música haverá lugar para Chopin, Mozart, Beethoven, Bach e Schubert, Schumann, Brahms ou Mahler. Esse é o meu Olimpo musical.

Como o senhor imagina a figura exterior de Chopin?
Eu não preciso imaginar a figura exterior de Chopin. Vejo-o em dezenas de imagens que a sua época deixou, desde a idade juvenil, em 1826, até 1829, quando foi retratado por Eliza Radziwill. Depois, ainda em 1929 ele foi maravilhosamente retratado por Ambrósio Miroszewski. Há também alguns retratos a respeito dos quais não sabemos se eles retratam Chopin ou não. Mas certamente o melhor é o retrato de Eugène Delacroix, que nos mostra um Chopin maduro, como alguém que na rua não podia deixar de chamar a atenção de ninguém. O retrato de Delacroix reflete perfeitamente a profundeza dos sentimentos e dos pensamentos do compositor. Ele foi ali retratado num momento especial – de enlevo sentimental em relação a George Sand. Depois temos alguns retratos de salão, como os de Ary Scheffer, Antônio Kolberg, até chegarmos aos daguerreótipos e à única fotografia, de Louis-Auguste Bisson.

Ele era um homem apresentável?
Era um homem de estatura mediana, com cerca de 170 centímetros de altura, sempre magro e de cabelos loiros. Quanto à cor dos olhos, temos pronunciamentos diversos. Fala-se que seus olhos eram de um cinza azulado.

Qual dos testemunhos das pessoas contemporâneas de Chopin pode ser reconhecido como o melhor?
Um dos melhores retratos de Chopin é fornecido por Franz Liszt em sua monografia, uma das primeiras, publicada em Paris em 1852, na qual ele descreve o compositor com entusiasmo. De todas as descrições preservadas resulta que ele irradiava benevolência diante das pessoas. E realmente ele foi assim. Se alguém diz que ele era sobretudo uma pessoa dos salões, isso é falso na medida em que ele frequentava os salões em razão da sua profissão. Ele tocava nesse ambiente e pelos concertos apresentados nos salões ganhava dinheiro, da mesma forma que ganhava dinheiro dos seus alunos. Mas, permanecendo nos salões, ele não assumiu nada do ouropel desses salões. Existe um testemunho engraçado do compositor suíço Stefan Heller, que, ao fazer a Robert Schumann um relato da vida parisiense da época, escreveu: “Chopin se afunda na lama dos salões, mas nada disso adere a ele, que escreve com beleza e profundidade”. Trata-se de um excelente testemunho. Chopin introduzia nos salões um tom elevado, a sublimidade e os ideais. Uma prova disso são as palavras de Solange, filha de George Sand, que chama a atenção para o fato de que nos anos 30 do século XIX, quando florescia o salão de sua mãe, em 1836 surgiu nele pela primeira vez Chopin. Lembra ela que, a partir do momento em que nele entrou Chopin, tudo ali mudou. A sua presença eliminou pessoas casuais e vulgares. A partir de então o salão tornou-se um lugar santo, um lugar de conversas sérias, no qual era praticada a arte elevada. Ali Sand lia à noite o que havia escrito pela manhã, e Chopin apresentava as suas novas composições.

Parece que Chopin não gostava muito de se apresentar em grandes salas de concertos...
É difícil dizer se isso realmente acontecia. Chopin iniciou a sua carreira a partir de concertos públicos. Em 1830, em Varsóvia, antes de viajar apresentou na primavera dois, e no outono um concerto. Naquela ocasião, para a apresentação do jovem pianista na Ópera de Varsóvia vieram 700 a 800 pessoas, que o aplaudiram com entusiasmo. Na mesma oportunidade escrevia resenhas entusiásticas a respeito da sua música Maurycy Mochnacki. Essas resenhas precederam as opiniões de Schumann, que disse: “Senhores, tirai os chapéus, aqui está um gênio”. Foi Mochnacki quem anteriormente o havia chamado de gênio, mas, mais importante que essa definição era a sua constatação de que aquilo que tocava Chopin era a “verdade”, visto que nela não existe ênfase nem páthos.

Chopin iniciou a sua carreira como um pianista que compunha. Fez concertos em Viena e Paris. Na capital da França apresentou o primeiro concerto em fevereiro de 1832, e imediatamente se tornou um grande sucesso. François-Joseph Fétis, que na época era o “papa” dos críticos musicais, escreveu que havia chegado um jovem pianista de Varsóvia, que em tudo que apresentava, na melodia, na harmonia, no ritmo, na composição pianística era original.
Durante os primeiros cinco anos em Paris, Chopin foi um pianista concertante. Em 1836 realizou-se um concerto que não teve sucesso e que ele mesmo havia organizado na Ópera de Paris em prol dos emigrantes poloneses pobres. Ele realizou o seu concerto de piano. No entanto, para as condições do salão da Ópera, tocou baixo demais, e a apresentação não causou uma grande impressão. Já naquela época estava amadurecendo nele alguém que, de um pianista concertante, que compõe música, surge um compositor, que de vez em quando faz concertos. Ele se tornou um pianista de câmara e apenas de vez em quando, a pedido de amigos, dava concertos no Salão de Pleyel nos anos 1841, 1842 e 1848. Numa resenha de um desses concertos Liszt escreveu que esteve presente nele a elite francesa do talento – os artistas, da beleza – as mulheres, do dinheiro – os banqueiros e os políticos. Foi um sucesso incrível. O poeta alemão Heinrich Heine, na sua correspondência de Paris a jornais alemães, e outros escreviam que havia excelentes pianistas, como Liszt ou Thalberg, mas que havia um que sobrepujava a todos eles, e este era Chopin. Nos rankings dos pianistas ele era sempre o primeiro, ou melhor que os outros. Balzac disse certa vez que quem não ouviu Chopin não pode falar de Liszt. “Chopin é o anjo, e Liszt é o demônio” – disse o escritor francês. Também durante a turnê pianística de Liszt e Thalberg discutia-se quem era melhor, e escrevia-se que a resposta só podia ser uma – Chopin. Nos anos 40 do século XIX ele já não queria apresentar-se em grandes salas de concertos. Ele sentia-se bem diante do público de câmara.

Os concertos lhe garantiam a independência financeira?
Os concertos lhe proporcionavam também grandes sucessos financeiros. Numa carta a um primo seu, Sand escrevia que num único concerto, com os golpes das duas mãos, por duas horas Chopin havia recebido 6 mil francos e que poderia nadar em ouro durante anos inteiros.

Como era seu caráter? Era sanguíneo ou colérico?
Era sem dúvida um sanguíneo. Reagia à realidade de forma extremamente viva, espontânea e transparente. Possuía também um excelente talento de ator e parodista, para o que contribuía a sua elevada cultura pessoal, a qual fazia com que fosse considerado um conde ou príncipe. Chopin tinha um comportamento diferente no ambiente oficial, onde se apresentava como um príncipe, e entre os seus amigos, sobretudo poloneses, quando era inteiramente ele mesmo. Famosos eram os seus encontros no Hotel Lambert, em Paris, com a família Czartoryski, quando passava horas inteiras tocando para as pessoas que se divertiam. Também durante as suas estadas em Nohant ele montava um burrinho, ao lado de Sand, que montava um cavalo, o que devia ser um espetáculo interessante. Gostava de jogar bilhar com os convidados e xadrez com a Solange, com a qual sempre jogava de maneira a perder. Ali também, em companhia de Pauline Viardot, participava de festas e diversões populares. E não havia nisso nenhuma bipartição de personalidade. Nos salões ele cumpria a profissão de pianista, e com os seus companheiros era inteiramente ele mesmo.

Como as mulheres se comportavam diante de Chopin?
No relacionamento com as mulheres Chopin era tão sensível que não sou capaz de comparar com ele qualquer outro compositor. Como falam a respeito dezenas de testemunhos, ele reagia à beleza das mulheres vivamente e com elevada cultura. Pode-se dizer que as suas reações eram platônicas. Alguém até o acusou de conquistador, do que ele ria numa carta escrita a um amigo. Reagia vivamente à beleza e aos fluidos procedentes das mulheres. Por outro lado, contava com a adoração do lado do belo sexo. Lembremos que três quartos dos seus alunos eram constituídos por mulheres, entre as quais estavam as mais belas damas da Europa. Sand certa vez escreveu com bastante malícia que durante uma noite ele se havia apaixonado por três mulheres. Mas ele não se ofendia com isso e dizia que esse tipo de opinião era permitido a uma autora de romances.

Ele se realizou no amor?
O seu amor por George Sand certamente foi completo. Da mesma forma, pode-se falar de um amor completo, no início dos anos 30 do século XIX, em relação a Delfina Potocki. Ela sempre se encontrava junto a Chopin nos momentos mais importantes da sua vida, sobretudo na hora da morte. Durante a sua agonia ela lhe cantava as suas canções prediletas. Demonstrou-lhe um sentimento que perdurou até o fim da vida. Chopin escreveu a última das suas canções para as palavras de Zygmunt Krasinski, que havia recebido de Delfina – “Das montanhas de onde traziam”. Ele transcreveu essa canção no álbum de poesias dela e assinou “Nella miseria”. Eram palavras da Divina Comédia, de Dante: “Não existe dor mais pungente do que lembrar os dias felizes na desdita”. Essas palavras de Chopin comprovam que a bela amizade de Chopin com Delfina permaneceu até o fim.

Mas com George Sand...
O outro amor realizado foi George Sand. Foi uma espécie de resposta ao sentimento não realizado em relação a Maria Wodzinski, da qual foi noivo confidencial, mas infelizmente isso não resultou em nada. Sand principalmente se apaixonou pela sua música e pela sua personalidade. Lutou por ele encarniçadamente. Por causa dele ela usava roupas de cores branca e vermelha e travava amizades com poloneses, entre os quais Mickiewicz, para estar perto dele. No final conquistou o seu coração. Ela escreveu a esse respeito a um amigo de Chopin, Adalberto Grzymała, na qual argumenta que ele não estaria feliz numa união com a Wodzinski. Explodiu mutuamente não apenas um ardente sentimento, mas a paixão. Mas isso acabou durante uma estada na Maiorca, quando Chopin teve de regressar a Paris após uma violenta crise de tuberculose. O relacionamento deles durou alguns anos. Mais tarde, da parte de Chopin era o amor, e da parte de Sand – a amizade. Ela cuidou dele como uma enfermeira, nisso esforçou-se ao máximo e sob a influência de Chopin tornou-se uma outra pessoa. Mas, apesar de ter acabado o relacionamento sentimental, na minha opinião Chopin nele se realizou. Vejamos que durante os anos desse relacionamento, no período 1839-1847, ele compôs quase todas as suas obras mais geniais. Essas obras eram compostas na hospitaleira residência de Nohant. E, seja qualquer coisa que se diga a respeito de George Sand, não nos podemos esquecer de que foi ela que lhe possibilitou isso. Certamente ela o motivava com a fascinação que demonstrava diante da sua arte. Numa das suas cartas ela escreve que Chopin compôs três novas mazurcas, que valiam mais que todos os romances do século XIX. Era uma afirmação exagerada, mas sincera. Em suas memórias – História da minha vida – Sand escreveu a respeito de Chopin as mais belas palavras que era possível escrever, dizendo que ele era o mais maravilhoso artista que havia encontrado em sua vida. Mas foi também nessa carta que ela escreveu uma frase espantosa: “Uma coisa não lhe posso perdoar – o seu apego ao catolicismo”.

Justamente... Ele foi uma pessoa religiosa? Há várias opiniões a esse respeito, inclusive a de que era indiferente quanto à religião...
Não apenas se falava do seu indiferentismo religioso, mas até se escrevia que era um ateu. Opiniões desse tipo surgiram já no final do século XIX. Escreveu a esse respeito Fernando Hoesick na monografia Chopin – vida e obras. Na opinião desse autor, já o próprio relacionamento com George Sand comprovava que ele não era religioso. Eles simplesmente viviam juntos sem serem casados. Naturalmente, em razão disso Chopin tinha remorsos de consciência, pois de outra forma Sand não teria escrito a respeito daquele “apego ao catolicismo”. Depois eram apresentados outros argumentos. O filósofo religioso André Nowicki, em seu texto A religião de Frederico Chopin, conta que nas cartas de Chopin a palavra “Deus” aparece setenta vezes e que ele a utilizava apenas no sentido convencional, por exemplo: “Queira Deus que faça bom tempo”. Então eu pesquisei como isso se apresentava na realidade e posso afirmar que todos que acusam Chopin de irreligiosidade – não sei por que razões – fecham os olhos aos fatos. Hoesick devia conhecer a opinião de Sand a respeito do seu “apego ao catolicismo” e não sei porque ele não quer reconhecer que afinal essa afirmação é o argumento principal e suficiente a favor da religiosidade de Chopin. Um outro argumento é também a utilização da palavra “Deus” em setenta ocasiões. Chopin se utiliza dela diversas vezes justamente de forma não convencional, por exemplo na carta a um amigo: “Que Deus te conduza, que eu aqui vou rezar”, ou nas palavras dirigidas a um jovem pianista: “Que Deus abençoe o teu trabalho”. Vamos adiante. Será que uma pessoa religiosamente indiferente escreveria “Hoje é Quarta-Feira de Cinzas”? Expressões desse tipo e outras semelhantes podem ser encontradas nas cartas de Chopin de Viena, Paris e outras localidades. Será que um ateu escreveria que num determinado dia se comemora uma festa da Igreja? Para assim escrever, é preciso ser uma pessoa verdadeiramente crente.

Além disso, temos ainda numerosos testemunhos da religiosidade de Chopin procedentes das pessoas dele mais próximas...
Sem dúvida. Vejamos a monografia de Liszt, Chopin, de 1852, na qual ele o descreve como uma pessoa “profundamente religiosa e sinceramente apegada ao catolicismo”. Outros testemunhos provêm de um outro católico praticante, que era Eugène Delacroix. Anteriormente, numa das suas cartas ao amigo Tito Woyciechowski, de 1828, Chopin havia escrito: “Há uma semana nada tenho composto, nem para os homens nem para Deus”. Como então devem ser entendidas essas palavras num compositor que não compôs nenhuma obra religiosa?

Justamente. Por que ele não compôs nada desse tipo? Será que era uma questão do estilo, da moda daquela época?
Ao contrário! Naquele tempo existia a moda de escrever obras religiosas. Para o fato de Chopin não ter composto obras sacras contribuíram duas questões: ele tinha um profundo sentimento do próprio valor, conhecia os seus limites criativos e era marcado pela modéstia. Não entrava em áreas em que sentia que não era competente. Escolheu como seu instrumento o piano e ele se sentia melhor compondo justamente para esse instrumento. Era uma escolha da sua vida. Chopin não apenas não escreveu uma composição religiosa, mas, por exemplo, não compôs uma ópera, apesar das pressões, por exemplo, do seu mestre José Elsner. Além disso, é uma característica maravilhosa dele não ter composto profissionalmente. Ele compunha para expressar a si mesmo, e por isso encontrou o instrumento que a ele melhor se adaptava. Numa das suas cartas ao amigo Woyciechowski escreveu que “eu digo ao piano o que muitas vezes gostaria de dizer a mim mesmo”. Também Sand escreveu que Chopin era fechado para o exterior, não admitia ninguém em seu santuário e entregava todo o seu interior à música. O característico é que tanto Sand como Liszt escrevem da inacessibilidade ao interior de Chopin. No entanto ambas essas pessoas não sabiam que Chopin se abria sobremaneira, o que acontecia nas suas cartas aos familiares e aos amigos poloneses. Basta lembrarmos a sua correspondência com o amigo Woyciechowski, com João Matuszynski ou com o Diário de Stuttgart. Neste último aparecem palavras semelhantes ao famoso trecho da Grande Improvisação de Mickiewicz: “Ó Deus, Tu existes e não te vingas? Não Te são suficientes ainda os crimes moscovitas – ou Tu mesmo és um moscovita?”

Como compositor, Chopin foi mais intuicionista ou racionalista?
Janusz Ekiert disse certa vez: “Chopin tinha a cabeça nas nuvens, mas andava firmemente pela terra”. “Pela terra” é a sua educação iluminista e clássica alcançada sob a supervisão do pai, Nicolau Chopin, no Liceu Varsoviano de Bogumil Linde e José Elsner. Ele obteve uma educação racional, iluminista. Mas, por influência da mãe e de amigos da casa como Witwicki e Casimiro Brodzinski, moldou-se nele um sentimento romântico e religioso. Graças a isso, ele se tornou o mais eminente representante do Romantismo na música. Paradoxalmente, ele era um romântico que negava a maioria das teses fundamentais daquela época. Não se ligava com a Idade Média. Para Chopin, o fantástico não dominado pela forma é inadmissível. Não existe nele também a ligação entre a palavra e a música – as canções são marginais em sua criatividade. A seguir, percebamos em Chopin a falta de obras programáticas, como ocorre com Heitor Berlioz ou Liszt. Mas, apesar da falta desses traços, Liszt escreveu em sua monografia que Chopin foi o líder da escola romântica.

Há em Chopin muitos outros paradoxos desse tipo...
Igualmente paradoxal é o seu relacionamento com o heroísmo, o patriotismo e a Pátria.

Junto a seus contemporâneos ele tinha a fama de um “pianista e compositor político”...
O patriotismo despertou em Chopin muito vivamente em razão da amizade com Mochnacki já em 1829. Em 1830 ele compõe Festa, um ano depois O guerreiro e a Polonaise em lá bemol maior. Na véspera do Levante de Novembro [de 1830] ele viaja a Viena. Esse fato se transformou para ele num grande trauma, visto que a maioria dos seus amigos de diversas formas participou desse levante. Portanto, além do trauma na esfera amorosa, percebe-se em Chopin o trauma na esfera patriótica. Jarosław Iwaszkiewicz chamou a atenção para o fato de que em razão desse trauma houve em Chopin uma “ruptura”, que nos deu a sua grande arte. Isso justamente é um paradoxo. Ele escreve músicas sem nenhuma dedicatória, p. ex. A Batalha de Ostrołęka ou Sobieski às portas de Viena. Embora tivesse permanecido na companhia de Czartoryski, Niemcewicz ou Mickiewicz, não compôs nenhuma obra com título patriótico, mas, apesar disso, todos sentem em sua música o polonismo e o patriotismo. E não apenas nas polonaises e nas mazurcas. Já Liszt escreveu que o polonismo da música de Chopin não consiste no ritmo das mazurcas ou das polonaises. Na minha opinião, isso acontece porque Chopin baseou-se não apenas no folclore, mas também em canções polonesas populares. A essência da música de Chopin não é apenas expressa muito bem pelas palavras de Cyprian Kamil Norwid: “E havia nisso a Polônia – desde o zênite da Oniperfeição da história”. Escreveu da mesma forma o discípulo de Liszt e Chopin, Wilhelm Von Lenz, que em 1872 publicou o livro Grandes virtuoses do piano do nosso tempo conhecidos pessoalmente: “Ele é o único pianista político do nosso tempo”. Uma prova do patriotismo de Chopin é também a recusa da prorrogação do passaporte russo, apesar das súplicas do pai e dos numerosos concertos em prol dos compatriotas. Numa nota de falecimento Berlioz escreveu que apenas os poloneses sabem onde foi parar a fortuna de Chopin. Recordemos que ele era um dos mais bem pagos pianistas e professores de piano, uma pessoa rica, após cuja morte verificou-se que não havia ficado dinheiro algum. Em toda resenha escrevia-se a respeito de Chopin como um polonês, a respeito da sua música polonesa ou mesmo – como o definiu Balzac – que ele era “mais polonês que a Polônia”.

E “elevou o popular à humanidade”, para novamente citar Norwid...
Chopin mostrou que não é preciso compor música religiosa, assinar as suas composições – como fazia Haydn – “Ad maiorem Dei gloriam” – “Para a maior glória divina”, a fim de compor verdadeiramente para a glória de Deus, para repetir mais uma vez as suas palavras: “Não compus nada para os homens nem para Deus”. Para ter a marca divina, a música não precisa possuir em seu nome a denominação de “religiosa”. Chopin compunha por estímulos humanos para as pessoas, nunca levado pelo espírito romântico do egotismo. Após compor uma das suas obras-primas, a Fantasia Op. 49 – escreveu: “Hoje concluí a Fantasia – o céu está lindo, mas o meu coração está triste – mas não faz mal. Se fosse de outra forma, talvez a minha existência não fosse útil a ninguém. Escondamo-nos para depois da morte”. Essas palavras são uma prova de que o ideal do serviço era o objetivo e o sentido da sua existência.

Parafraseando as palavras de Gombrowicz: “Chopin foi um grande polonês” – será que os poloneses hoje ouvem e compreendem Chopin?
Não se pode dizer que sejam todos, visto que nunca aconteceu que a grande arte, a música atingisse a todos. O Ano de Chopin traz consigo o perigo de matar o sentimento da proximidade de Chopin junto aos seus fãs mais sensíveis. Eles o terão demais para o dia a dia. Chopin não pode deixar de ser amado, não pode estar distante. Estamos diante de uma onda de fascinação pela sua pessoa e pela sua música no mundo inteiro. Indagadas a respeito da música, as pessoas do Extremo Oriente respondem: Chopin. E depois, um longo e longo tempo em silêncio, e somente então surgem: Bach, Beethoven ou Mozart. Para as pessoas daquele espaço cultural, ele parece ser mais acessível.

Como se pode explicar essa fascinação simplesmente fantástica por Chopin dos japoneses, coreanos ou chineses?
Eu explico isso dizendo que a sua música é um testemunho daquilo que disse Norwid a respeito da arte no contexto de Chopin e da música no seu poema Promethidion: “O que sabes a respeito da beleza?...” “É a forma do Amor”. A música de Chopin é a “forma do amor”, e o amor desperta o amor. Se trocarmos a palavra “amor” por “sentimento”, a música de Chopin é a expressão dos sentimentos amistosos, que provocam a necessidade do contato com o nosso semelhante. O marquês Astolphe de Custine, autor das Cartas da Rússia, escreveu a Chopin: “Unicamente uma arte como o Senhor a entende será capaz de unir as pessoas divididas pelas fronteiras da vida real. As pessoas se amam e mutuamente se compreendem através de Chopin”. Por sua vez, Stefan Kisielewski escreveu que a atuação da música de Chopin não apela à sala de concertos, mas a cada ouvinte, de forma singular, profunda e íntima. Isso é com certeza um fenômeno da sua música e até o mistério da sua obra.

Que composições de Chopin o senhor mais gosta de ouvir?
Os noturnos, as baladas, os scherzos, os estudos e as sonatas. No entanto eu vejo a sua música como um todo. Quando quero ficar mais animado em espírito, ouço algumas valsas, que irradiam alegria, gracejo. Mas também me fascina a transitoriedade do Improviso, que tanto admirava o escritor francês André Gide. Escrito com a pena leve, como que sem querer. Como deixar de ouvir sem emoção a Sonata em si bemol, a respeito da qual Witold Lutosławski dizia que os seus primeiros acordes são como que um “bloco na rocha”? Neste momento já temos dezenas de bons chopinistas, e é maravilhoso poder ouvir um Chopin sempre diferente. Todo pianista que possui a sua individualidade tem o seu Chopin. Ele é verdadeiro quando é ao mesmo tempo dele. Inclusive Ivo Pogorelich, que é acusado de não executar Chopin de acordo com certos cânones. No entanto para mim a sua interpretação da Sonata em si bemol é genial.

E quais são os intérpretes de Chopin que o senhor mais aprecia?
Também é difícil de responder. Diversos pianistas executam de diversas formas as composições de Chopin. Tenho disso uma lista. Os estudos são otimamente executados por Maurizio Pollini. As baladas e os concertos de piano, gosto de escutá-los na execução de Christian Zimmermann, os noturnos tocados por Maria João Pires, os scherzos por Pogorelich, os prelúdios por Martha Argerich, a composição em si bemol para piano e violoncelo na fenomenal execução de Argerich e Mstislav Rostropovitch e as valsas na execução de Dina Joffe. Lembro que as minhas avaliações também são variáveis. Pode surgir algum pianista que pela execução de alguma composição me encante. Tocam bem Chopin aqueles pianistas que, tendo atingido certa classe, na execução dão o máximo de si e não se esquecem do compositor. Eles têm de interiorizar a música dele e depois reuni-la com a sua personalidade e executá-la como sua. Então surge uma execução singular, da mesma forma que é singular todo ser humano.

O senhor deve concordar com as palavras de Norwid, do já citado poema Promethidion, que possivelmente traduzem da melhor forma a essência da obra de Chopin: “Na Polônia, a partir do túmulo de Chopin se desenvolverá a arte, como uma grinalda de bons-dias, através de conceitos algo mais conscienciosos a respeito da forma da vida, isto é, a respeito da direção do bem, e a respeito do conteúdo da vida, isto é, a respeito da direção do bem e da verdade. Então o talento se comporá no conjunto da arte nacional”?
Não conheço uma síntese mais acertada de Chopin do que a reflexão poética de Norwid e aquela de 1849, ou seja, o necrológio que o poeta publicou no Diário Polonês: “Chopin, de nascimento — varsoviano, de coração — polonês e pelo talento — cidadão do mundo, afastou-se deste mundo”, e depois o poema O piano de Chopin e Promethidion, bem como as Flores negras e as Flores brancas. E digo isso como conhecedor da literatura principal da recepção de Chopin. Não existe uma síntese melhor da sua obra, ainda que alguns se aproximem de uma avaliação apropriada da essência da sua arte. Witold Lutosławski, que dizia que voltava a Chopin quando se sentia mal e graças a ele alcançava novas forças, e ainda que a sua música se lhe associava com o sentimento de alguém que caminhando pela rua se elevasse ao alto. Tendo consciência de que, quando estava numa idade em que marginalizou a beleza e a emoção, Lutosławski, ao lembrar o seu primeiro encontro com Chopin, teve a coragem de confessar que na infância, ao ouvir o Scherzo em si menor, escondia-se debaixo da mesa para esconder as lágrimas. Para ele, a emoção é a reação ao valor que traz a música de Chopin, que não é absolutamente uma brincadeira com as teclas. No século XX houve uma tentativa de nos convencer através da musicologia – que se praticava em algumas escolas de piano – que a música de Chopin é uma exibição de virtuosidade. Nele, a virtuosidade rapidamente deixou de ser um objetivo para se tornar unicamente um meio na sua oficina de compositor.

* Krzysztof Tomasik entrevistou o prof. Mieczysław Tomaszewski. Apresentamos aqui o texto da entrevista, que foi publicada no portal da KAI (Agência Católica de Informação). Agradecemos à KAI pela autorização para a publicação desse texto nas páginas da nossa revista polônica Polonicus. Fonte: http://ekai.pl em 01.03.2010.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...