quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O VIRTUOSE VIOLINISTA JERZY MILEWSKI


Por Francisco José dos Santos Braga


 
Violinista Jerzy Milewski morre aos 70 anos (1946-2017)



Faleceu na tarde de sexta-feira, 23 de junho, em Curitiba, o violinista Jerzy Milewski, aos 70 anos, vitimado por um câncer no sistema digestivo. Polonês de Varsóvia, Jerzy conheceu, em 1968, a pianista brasileira Aleida Schweitzer, com quem se casou vindo a morar no Brasil. Naturalizou-se brasileiro em 1972, fixando residência no Rio de Janeiro.



Durante quatro anos, de 1973 a 1977, foi spalla da Orquestra Sinfônica Brasileira. Com grande interesse pela música brasileira e popular, Jerzy tocou e gravou com importantes instrumentistas e compositores do País, como Luiz Eça, Paulo Moura, Paulinho da Viola, Sivuca, Altamiro Carrilho, Rafael Rabello, Francis Hime, Milton Nascimento e Djavan, entre outros. Dedicou grande parte de sua vida à pesquisa das obras dos compositores do Brasil.



Criador de Concertos Didáticos, Jerzy ensinava música em escolas, universidades e principalmente às crianças das comunidades do Rio de Janeiro. O violinista e sua mulher Aleida Schweitzer também formaram o Duo Milewski, para a apresentação de um vasto repertório que ia de autores da música clássica, como Mozart e Brahms, até o chorinho.



Jerzy Milewski deixa, além da viúva, duas filhas e quatro netos.


Fonte: revista Concerto, nº 241, agosto 2017, p. 8, seção Contraponto (Notícias do mundo musical), in http://www.concerto.com.br/contraponto.asp?id=3767 


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Milewski deu uma entrevista a Maciej Stasiński, publicada pela Gazeta Wyborcza em sua edição de 12/08/2011, intitulada "Só sei tocar violino", onde narrou o seguinte episódio (na minha tradução do polonês para a língua portuguesa): 

Um monte de gente. Comiam, bebiam e tocavam.
Jobim sentou-se ao piano e de tempos em tempos se virava para mim e gritava: Craque! Tocamos até a noite do dia seguinte.
Jobim é um pianista e compositor autodidata, não teve estudos superiores, sozinho aprendeu as notas. Soube que na Polônia o tocavam Wanda Warska e Andrzej Kurylewicz. Queria muito ir à Polônia. Jobim no Brasil é como Duke Ellington e Miles Davis num só. Tocar com ele é como agarrar as pernas de Deus.
No ano de 1974 (Jobim) me levou à sua orquestra de 20 membros, onde ele próprio tocava piano e flauta. Eu era spalla, ou primeiro violino. A famosa Elis Regina cantava com eles. Deram 15 concertos em São Paulo, Rio, Curitiba e Porto Alegre. Depois, gravei com Jobim mais uns discos.

Na mesma entrevista, ficamos sabendo, na seção "De Pai para Filho", que seus avós chegaram à Polônia vindos de Odessa. Seu avô foi violoncelista na Ópera de Varsóvia. Morreu em 1928. Só recentemente foi descoberto o túmulo dele no cemitério judaico em Varsóvia.



Seu pai (1904, Varsóvia-1963, Varsóvia) concluiu o curso de piano no conservatório antes da Guerra. Além disso, era acompanhador e compositor. Tocava em concertos clássicos, no cinema mudo, em navios. Na primeira viagem do “Bateau” em 1936, tinha conjunto jazzístico, tocou na orquestra de Stefan Rachon. Chamava-se Victor Miszułowicz. Era judeu. Só mais tarde mudou o sobrenome. Após a guerra,  Victor Milewski voltou para o rádio, para a orquestra de Stefan Rachon. Mandou os filhos para uma escola de música na rua Miodowa. Eles começaram pelo piano. Mas em casa acompanhava os exercícios com cantor e violinista.



Por fim, Jerzy decidiu-se pelo violino. “Eu me apaixonei por este lindo som e disse: Eu só quero tocar violino!¹



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No encarte do CD intitulado "FLAUSINO VALE: Prelúdios característicos e concertantes para violino só", cujo solista é Jerzy Milewski, achamos mais informações sobre o notável violinista polonês: 

“Nasceu em Varsóvia, de família de músicos. Iniciou seus estudos de música aos 4 anos de idade, estudando piano. Aos 6, começou a estudar violino com o Prof. Garbarski. Seu primeiro concerto público aconteceu após um ano de estudo, como solista da Orquestra da RTV de Varsóvia. Formou-se com distinção, obtendo o título de 'Master of Arts' na Academia de Música de Varsóvia, em 1970. Atuou como solista e camerista com duas Orquestas polonesas famosas: Con Moto ma Cantabile (dir. Tadeusz Ochlewski) e Orquestra de Câmara de Varsóvia (dir. de Karol Teutsch), realizando tournées por toda a Europa, Ásia, América e Oriente Médio. Foi premiado em vários concursos de violino na Europa; participou de Festivais Internacionais de Música importantes, tais como: Outono de Varsóvia, Baalbeck, Tour, México, Bogotá, etc. Reside no Brasil desde 1971, onde exerce intensa atividade artística, atuando como solista em todo o território nacional e no exterior. De alma brasileira, vem descobrindo na música brasileira a fonte maior para o desenvolvimento total de sua versatilidade musical, formando com Luis Eça, Paulo Moura e outros expoentes máximos, grupos atuantes em concertos e gravações de LPs, TVs, rádios, etc. Responsável, como idealizador e executor, pela implantação dos 'Concertos Didáticos', com o objetivo de divulgar a música erudita, em programas oficiais e extra-oficiais, atingindo todas as faixas etárias, de escolas primárias, passando por secundárias, universidades e comunidades. Entre as mais importantes gravações de Jerzy Milewski, vale destacar:
- Música Polonesa e Brasileira (com a pianista Aleida Schweitzer);
- Sonata a 4 (música barroca para 2 violinos, violoncelo, piano e órgão);
- Música Nova do Brasil (obras inéditas contemporâneas brasileiras para violino e piano - 1ª execução mundial);
- Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só, de Flausino Vale (obras inéditas para violino só, do compositor mineiro - 1ª edição mundial;
CD "Flausino Vale": Prelúdios característicos e concertantes para violino só, por Jerzy Milewski - Edição comemorativa do Centenário de Flausino Vale (1894-1994) - Promoção: Prefeitura Municipal de Barbacena - Apoio Cultural: FUNDAC - Arte Gráfica: Edson Brandão e Martha-Poppe - Crédito pela imagem: Rafael dos Santos Braga
- Música para 2 Violinos (participação de Erich Lehninger e Aleida Schweitzer);
- "As Quatro Estações": Vivaldi, com a Orquestra da RTV Polonesa, sob regência de Agnieszka Duczmal;
- Villa-Lobos às crianças - obra-prima da literatura infantil, considerado "O Pequeno Príncipe" brasileiro, estória de Maria Clara Machado, adaptada por Hélio Bloch, participação de Lucinha Lins e Cláudio Cavalcanti, além de inúmeros músicos da mais alta estirpe. Peças das mais lindas do repertório de Villa-Lobos;
- Luis Eça &  Jerzy Milewski Ensemble, bossa nova e jazz, com participação de Robertinho Silva na bateria e Luis Alves no baixo acústico;
- Bach : 3 Concertos para violino e Orquestra de Câmara, com a Orquestra da RTV Polonesa, sob regência de Agnieszka Duczmal;
- "Ecos e Reflexos", sua última criação, uma coletânea de temas populares dos maiores compositores brasileiros (Tom Jobim, Milton Nascimento, Dorival Caymi, Luiz Gonzaga, etc.), em versão orquestral sinfônica, com participação de notáveis solistas nacionais, como Léo Gandelman, Sivuca, Altamiro Carrilho e outros. Foi membro do júri do Concurso Internacional de Violino Wieniawski em Poznań, na Polônia em 1986 - um dos mais importantes concursos de violino do mundo.

Sobre o CD dos "Prelúdios Característicos e Concertantes para Violino Só",  de Flausino Vale (⭐︎Barbacena, 06/01/1894-✞Belo Horizonte, 04/04/1954), por Jerzy Milewski, produzido no Rio de Janeiro (1994/1995), sob os auspícios da Prefeitura de Barbacena para homenagear o filho ilustre, cabe lembrar que o feito de Flausino permanecia pouco conhecido até recentemente, em razão de não ter conseguido editar nem gravar suas composições em vida. É também verdade que Jascha Heifetz havia gravado e divulgado nos seus concertos algumas das composições do barbacenense, tal como o prelúdio chamado "Ao pé da fogueira". Também se sabe que teve o incentivo do compositor Villa-Lobos, para quem Flausino era o "novo Paganini", e  do crítico Celso Brant, que chegou a encorajar Flausino a se candidatar à vaga de compositor na Academia Brasileira de Música, conforme registrou em artigo publicado em dezembro de 1953 em O Estado de Minas. Também são muito pouco conhecidos os estudos de Flausino Rodrigues Vale no âmbito do folclore brasileiro, que culminaram com a publicação do livro intitulado "Elementos de folclore musical brasileiro" (Companhia Editora Nacional em convênio com o Instituto Nacional do Livro/MEC, volume 57 da Coleção Brasiliana,  São Paulo, 1936). Finalmente é pouco conhecida, entre seus ínumeros ensaios dispersos em várias revistas técnicas especializadas, sua conferência "Músicos mineiros", proferida nas comemorações do cinquentenário de Belo Horizonte, e publicada em 1948.

Da discografia de Milewski consta ainda "Música brasileira para violino, violoncelo e piano", produzido pela Rioartedigital em 1996, com o seguinte repertório: 
Cláudio Santoro: Trio para violino, violoncelo e piano (1973)
Ronaldo Miranda: Recitativo, variações e fuga para violino e piano (1980)
Ricardo Tacuchian: Estruturas verdes, para violino, violoncelo e piano (1976)
Ernani Aguiar: Duo para violino e violoncelo (1976)
Dawid Korenchendler: Miniaturas para violino e piano (1981)
Marisa Rezende: Trio para violino, violoncelo e piano (1976)
Edino Krieger: 25 Sonâncias II para violino e piano (1981)
Jerzy Milewski, violino
Marcio Malard, violoncelo
Aleida Schweitzer, piano




Por todas essas realizações artísticas de alto nível que engrandecem o Brasil e a sua música, considero importante reconhecer a elevada dignidade deste cidadão polonês que tantos louros acumulou em sua breve existência.

Consternado com o desaparecimento do talentoso violinista, aproveito a oportunidade para transmitir à família enlutada, especialmente à sua viúva, pianista Aleida Schweitzer, meus sinceros pêsames pela perda irreparável de seu parceiro de jornadas artísticas, do tão simpático musicista que encantava plateias por onde quer que passasse. Tive a oportunidade de ouvi-lo acompanhado por sua esposa no Centro Cultural Yves Alves, de Tiradentes-MG, em uma apresentação antológica, em 0l/10/2011, com apoio cultural do Instituto Estrada Real/SESI/FIEMG. Naquela noite inesquecível, o Duo Milewski já prenunciava o que faria daí em diante: um concerto para um violino iídiche, com árias de Pablo Sarasate, czardas, cirandas e choros, como Naquele Tempo, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, arranjado à moda klezmer (música não-litúrgica judaica). Na despedida Milewski presenteou meu irmão Rafael e esposa Lourdes com seu CD "Nostalgic Evenings".

CD "Nostalgic Nights" pelo Duo Milewski
Encarte do CD "Nostalgic Nights"


Encarte do CD "Nostalgic Nights"
Crédito pelas imagens: Rafael dos Santos Braga

Do encarte dedicado a Milewski, extraio dois parágrafos (traduzidos por mim do inglês) para mostrar a sua enorme generosidade: 
"(...) Milewski promoveu o violinista brasileiro e compositor Flausino Vale, que Villa-Lobos considerava o "Paganini brasileiro", produzindo um livro e gravando um CD. O Papa João Paulo II foi presenteado por um representante do governo brasileiro com um exemplar, com uma dedicatória escrita em polonês.
Milewski foi nomeado diretor e produtor para a implementação de Concertos Didáticos. O objetivo desses concertos era encorajar a apreciação musical por pessoas de todas as idades, nas escolas primárias, secundárias, universidades e comunidades. (...)
"
 
Para finalizar esta homenagem a Milewski, reitero que a sua vida dedicada à arte musical foi um verdadeiro presente para nossos ouvidos e sensibilidade, - mimo que nos foi oferecido por suas mãos generosas e talentosas. Vindo da distante Polônia, Milewski deixou-se contagiar pelo amor ao Brasil, tornando-se brasileiro. 

Quando indagado: "Por que Brasil?", Milewski costumava responder a seu interlocutor: "Porque no Brasil se aprende a viver. Se você nunca viveu no Brasil, não sabe o que a vida é." 



NOTAS  EXPLICATIVAS



¹  http://wyborcza.pl/1,76842,10107125,Umiem_tylko_na_skrzypkach.html?disableRedirects=true 
Clicando neste link, terá acesso ao vídeo com o Duo Milewski interpretando Tico-tico no Fubá e Brasileirinho. 

domingo, 6 de agosto de 2017

HOMENAGEM A NÍKOS KSYLOÚRIS


Por Francisco José dos Santos Braga

Níkos Ksyloúris (⭐︎Réthymno, Creta, 07/07/1936-✞Piréus, 08/02/1980)



I.  INTRODUÇÃO



"Desde o início desta década, a Grécia se tornou tristemente famosa em razão da intervenção da troika ¹ na autonomia do país, um feito que provocou um cenário de instabilidade social que não se via no território grego desde a ditadura dos coronéis (1967-1974). 

Uma das canções mais populares daquela época e que se converteu em hino da resistência contra o regime fascista grego ficou conhecida como "Ksastéria" (ou Ksasteriá), uma canção do gênero "rizítiko" ² popularizada por dois cretenses: o cantor Níkos Ksyloúris e o compositor Giórgos Markópoulos, e que atualmente volta a se ouvir na maioria das manifestações contra as chamadas medidas de austeridade.

As canções do gênero "rizítiko" são características da ilha de Creta, mais exatamente da província da parte ocidental. Os "rizítika" são cantos monofônicos de tradição oral e de origem pastoril, que se destacam pelo uso da escala pentatônica e por seus versos pentadecassilábicos. Um dos temas mais recorrentes dos "rizítika" são os relacionados com as atividades vinculadas à justiça vingativa, podendo a "vendetta" ser por causa de ovelhas furtadas e honra de mulheres. A canção "Ksastéria", que se pode traduzir como "céu estrelado, sem nuvens", é uma das mais conhecidas.

O fato é que, hoje em dia,  se ensina a dita canção nas escolas gregas como parte da história musical do país, como um dos cantos que melhor expressam o movimento de resistência ao governo (anterior) dirigido por Giórgos Papadópoulos (e, atualmente, por Tsipras), e o significado da letra simples se converteu em canto revolucionário à resistência e à liberdade, e quase ninguém recorda o seu conteúdo semântico original: uma vingança total. O seu uso fez com que a canção sofresse mudança no seu caráter ideológico inicial, ainda que a letra continue tornando evidente aos olhos estrangeiros que neste caso fale de uma "vendetta".

Quiçá os senhores da troika se deem conta daquilo que o povo canta na rua! Teriam maior cuidado na hora de aplicar certas políticas.
" ³

Localizei na Internet, mais exatamente no site http://kriaras.com/wp/, um esclarecimento hermenêutico para essa canção cuja letra e música são tradicionais, que me pareceu verossímil.  Um membro da família cretense Kriarás é o autor do texto em questão, intitulado "Πότε Θα Κάμει Ξαστεριά - επεξήγηση τραγουδιού" (Quando as nuvens desaparecerem - esclarecimento da canção), cujos principais trechos traduzo abaixo. Também não pude deixar de apreciar o comentário do Sr. Evángelos logo após o texto do Sr. Kriarás, em forma de réplica, que o próprio comentarista referenciou como extraído da revista Toque de Clarim Grego, Boletim nº 66 (janeiro de 2007), página 3. Por fim e em modo de tréplica ao comentário do Sr. Evángelos, faz nova aparição o Sr. Kriarás trazendo novos fundamentos para sustentar a sua tese. Inicialmente vejamos o "Esclarecimento da canção", por Sr. Kriarás:


II.  ESCLARECIMENTO  DA  CANÇÃO  TRADICIONAL CRETENSE "Quando as nuvens desaparecerem"
"A canção tem-me ocupado desde criança, em todos os seus pontos e comecei assim a buscar por um sentido lógico para cada fragmento. Preliminarmente, ela mostra de maneira impressionante a fúria e o ódio da guerra. Como a pessoa deixa a sua natureza humana e se aproxima da natureza do animal selvagem. Esta canção, apesar de talvez ninguém ter compreendido até hoje, tornou-se famosa, não só na Grécia mas também no exterior, uma vez que famosos historiadores gregos e estrangeiros se ocuparam dela e com a infrutífera tentativa de sua explicação lógica.
Eis os versos da canção (letra tradicional e música tradicional; conforme interpretação: Níkos Ksyloúris - 1971):
QUANDO AS NUVENS DESAPARECEREM

Quando fizer céu estrelado,
(e) quando chegar fevereiro,

quero pegar minha espingarda, (bis)
(e) a bonita cartucheira,

quero descer até Omalós, (bis)
(e) na estrada a Mousoúri,

quero deixar mães sem filhos, (bis)
(e) mulheres sem maridos,

quero fazer dos bebês crianças, (bis)
(e) a chorarem sem mamães,

Quando as nuvens desaparecerem!!!
 
Eis o vídeo da interpretação do cantor Níkos Ksyloúris para a canção tradicional "Πότε Θα Κάμει Ξαστεριά": 
https://youtu.be/nzSjGLAVQpY ou
https://www.youtube.com/watch?v=nzSjGLAVQpY&feature=youtu.be

Letra conforme seu maior intérprete grego, Níkos Ksyloúris (⭐︎Réthymno, Creta, 07/07/1936 - ✞Piréus, 08/02/1980):
Πότε Θα Κάμει Ξαστεριά

Πότε θα κάμει, πότε θα κάμει ξαστεριά,
(ε) πότε θα φλεβαρίσει, πότε θα φλεβαρίσει,

να πάρω το, να πάρω το ντουφέκι μου, (bis)
(ε) την όμορφη πατρόνα, την όμορφη πατρόνα,

να κατεβώ, να κατεβώ στον Ομαλό, (bis)
(ε) στη στράτα τω Μουσούρω, στη στράτα τω Μουσούρω,

να κάμω μά-, να κάμω μάνες δίχως γιους, (bis)
(ε) γυναίκες δίχως άντρες, γυναίκες δίχως άντρες,
 
να κάμω και, να κάμω και μωρά παιδιά, (bis)
(ε) να κλαιν' δίχως μανάδες, να κλαιν' δίχως μανάδες,

Πότε θα κά-, πότε θα κάμει ξαστεριά!!!

Assustador assim? Esta é bem a fúria da guerra... horrenda. Esclarecimento: να πάρω το ντουφέκι μου, ε την όμορφη πατρόνα (trad. eu quero pegar a minha espingarda, e a bonita cartucheira); frequentemente, aqui na canção, se ouve um  ε antes da "την όμορφη πατρόνα", onde o και (conjunção aditiva e, em português) vira  ε. ατρόνα" é a cartucheira. (O que eu não sei, porém, é quão antigo é o nome 'cartucheira', porque importa, na explicação abaixo que dou à época de Daskalogiánnis, dava-se o nome de πατρόνα ao bornal com a pólvora e as balas, já que em 1770 havia armas com tais munições.)
Na minha opinião - e sempre escrevo e penso com a possibilidade de que posso errar: Lendo recentemente a história de Daskalogiánnis (vergonha para mim ter demorado, mas me consola que muitos que provavelmente tenham também opinião, não a tenham lido, ou pelo menos não a tenham estudado) e a evolução das batalhas, de forma instintiva me veio à mente a canção que absolutamente combinava com as descrições assustadoras que contemplava diante de mim e coloco a canção em fins do verão de 1770. Nesta ocasião o desenvolvimento da luta tinha recrudescido, uma vez que os Turcos já tinham se voltado contra as aldeias dos rebeldes, tendo-as destruído e oprimido, bem como trucidado mulheres e crianças. Os rebeldes se retiraram para as Montanhas Brancas e um seu grupo de elite foi destacado para incursões noturnas. O grupo de elite de Giorgakomárkos, ficou conhecido como Demônios. Eles agiam à noite, utilizavam a luz das estrelas para mover-se pelos montes intransitáveis. Por isso não só a canção diz "quando as nuvens desaparecerem", porque já se encaminhava para o fim do verão - quando as coisas ficaram mais furiosas - mas também as nuvens que apareciam no céu dificultavam a ação daquele grupo, o qual evidentemente nas horas da impaciência pela ação, cantava e planejava a próxima incursão deles. A canção é muito desumana - se alguém a examinar cuidadosamente - dizendo que os guerreiros descem às planícies e atacam quem encontram pela frente.
Agora: por que (a canção) fala de terreno plano? Na minha opinião e fazendo a leitura das descrições analíticas do livro - que eu tentarei postar inteiro no site kriaras.com - os Turcos se estabeleceram em muitos dos locais planos, como turcocretenses - principalmente pastores. Desconheço se no tal terreno plano havia Turcocretenses, mas obviamente alguém não cantaria uma canção escolhendo cada planície que planejasse atacar. A regra geral é que encontravam Turcocretenses em muitas planícies e regiões agrestes fora da província de Sfakiá e o próprio Omalós que está também muito próximo de Chaniá se adequa por ter sido alvo de um dos ataques. Mas esclareço que é muito provável que o cantassem para qualquer localidade plana que atacariam. Mesmo porque isso acontecia repetidamente. Queriam os revoltosos ir de serra em serra e atacar nas planícies, locais planos onde os Turcocretenses possuíam suas moradias e rebanhos. Esta canção claramente guerreira incentivou todos os grupos e logicamente se ampliou a ponto de ser cantada por todos enfim e consequentemente chegar a nossos dias - apesar de toda a sua assustadora selvageria - e ser cantada até mesmo em manifestações pacatas e festivas. Então, os rebeldes pelos intransitáveis e inacessíveis montes planejavam o ataque à planície, assim que o tempo permitisse a incursão noturna. Por isso, precisavam do céu estrelado. ISSO ELUCIDA E É O PONTO-CHAVE PARA TODA A CANÇÃO.
É muito relevante compreender-se a importância da posição de cada sentença na canção. Por exemplo, a qual de nós que compusemos nossas próprias mantinádas - e creio que serão muitos dos que leem este texto e me alegro - sabemos que muito frequentemente temos no início a nossa base e depois procuramos palavras para descrevermos o assunto. Se, de vez em quando, não encontramos a palavra certa, colocamos uma aproximada, mas isso nunca fiz no início. Ou seja, se houver ocasião de ter determinada palavra aproximada no meio dos versos, não acredito que ela esteja no começo. Portanto, considero um dado: a expectativa do tempo oportuno nunca cooperará para o movimento da batalha à noite. Por toda a trama da canção, esta também parece ser um produto coletivo. Isto é, não se dirige contra alguém, mas contra muitos desconhecidos. Esses considero os pontos-chave da canção, que penso tenham pelo menos uma base, se não estiver certa a sua real interpretação. Provavelmente porque eram tão eficientes esses ataques noturnos para os rebeldes avançarem cada vez mais longe, é que esta canção se expandiu por meio das guerras sucessivas e nos grupos de ação posteriores contra o jugo turco. Hoje conhecem esta canção - se não toda a Creta - pelo menos todas as localidades que tenho visitado. Todos os outros esclarecimentos que li não têm robusta base lógica - sempre na minha opinião - porque apenas nas rebeliões contra o jugo turco, atacavam os rebeldes em larga escala nas planícies à noite a fim de desenraizarem os Turcocretenses que tinham ali estabelecido o regime turco. Os Turcocretenses revelavam aos soldados turcos (genítsaros) as movimentações dos rebeldes, bem como ajudavam o avanço dos soldados turcos com víveres e instruções. A razão é porque era muito difícil o ataque pelos rebeldes às regiões planas, habitadas, uma vez que de dia podiam ser vistos de longe e, até chegarem embaixo, podiam acontecer muitas coisas. Esta canção dá força e concentração ao objetivo e de fato este grupo de elite dos "demônios" - como leio - fez muitas coisas naquela guerra, já que em cada página do livro há também uma referência ao grupo dos "demônios" de Giorgakomárkos.
Admin. - 14/03/2010" 
Vamos agora à réplica do Sr. Evángelos, publicada como comentário ao texto do Sr. Kriarás: 
"Muito frequentemente cantam o poema "Quando as nuvens desaparecerem..." e os que o fazem pensam que entoam uma canção guerreira ou revolucionária. Em Creta pouquíssimos consideram-na hino de combate pela liberdade. A verdade sobre a canção oculta-se pela ignorância ou por razão intencional. Vejamos resumidamente de que se trata. No início do século XVII, na província de Sfakiá de Creta vivia uma grande família, rica e poderosa, a família Skordylis. Na mesma época, no planalto de Omalós havia outra família igualmente poderosa e numerosa, a família Mousoúri, que com certeza dispôs como seu um caminho que denominou "estrada dos Mousoúris". Na aldeia de Karános está preservada até hoje uma igreja que traz uma inscrição de que a construíram as famílias Mousoúri e Veryváki. Entre aquelas famílias desenvolveu-se um antagonismo que acabou em inimizade e finalmente levou a vinganças recíprocas (vendette), coisa habitual em Creta. Houve vítimas também dos dois lados. No Arquivo Histórico de Creta acha-se uma carta do então governador da região Kyrnéïro, para o chefe da família Skordylis, em que aconselha conciliar-se com a família dos Mousoúris e parar com a dilaceração recíproca, e no entanto inutilmente. Naquela época da Venetocracia circularam em Creta as primeiras armas de fogo pessoais, as quais eram consideradas importante aquisição e o seu proprietário as batizava com nomes. Na canção a arma se chama "patróna" e o seu dono obviamente um Skordylis, compôs o poema e canta que espera fevereiro chegar, isto é, o tempo abrir, para descer a Omalós, deslocar-se à estrada dos Mousoúris a fim de continuar a vendetta, as "familiares", como dizem os Cretenses. A canção não tem nada a ver com lutas patrióticas, nem com a liberdade, mas é uma canção de vingança pessoal cheia de ódio e brutalidade, visto que "quer fazer dos bebês crianças a chorarem sem mamães" e "a chorarem à noite pela água - e de manhã cedo por leite". De um lado ético a canção está possuída por furor homicida, sem poupar "mães" e "maridos". Em nenhuma parte mesmo relata algo combativo, bravo, patriótico. Simplesmente goteja ódio. E este poema abominável tomaram os diversos ignorantes e o cantam como hino patriótico da liberdade, enquanto se tratava de uma canção que exige homicídio, não de tiranos, mas de Mousoúris e sobretudo louva o criminoso a assassinar mães! e os bebês sem elas. Todos os que foram indagados sobre a canção, disseram que é da... revolução cretense. Foi-lhes explicada a verdade e foram advertidos para pararem, a fim de isso não constituir pretexto para algum Mousoúri renovar a vendetta à custa deles.
Evángelos - 15/10/2010"
Fonte: revista Toque de Clarim Grego, Boletim nº 66 (janeiro de 2007), página 3.

O próximo comentário, conforme visto, é uma tréplica do Sr. Kriará em resposta à provocação do Sr. Evángelos: 
"O comentário sobre a canção não guerreira postado acima é desmoronado apenas pela multidão que a utiliza. O ódio com que as vendette são executadas pode esperar até mesmo anos, mas raramente estas eram cantadas publicamente, de modo a tomar dimensões. Também aquele que executa uma vendetta está, entre outras coisas, envergonhado e rebaixado, porque a outra família já assassinou alguém da sua, quando também por essa razão nunca ouvi dizer  terem anunciado publicamente a respeito de quando e como aconteceu a vendetta.
A preparação da vingança nunca foi conhecida. Todos conheciam que tal família tem dívida para vingar-se, mas não sabíamos quem e de que forma assumiria esse difícil encargo. Por todos os que conhecem bem o assunto da vendetta, é sabido muito bem que em tal caso - que precede a vingança, a comunicação, - aquele que vinga corre perigo de aniquilar-se muito antes de praticar a sua vingança, visto que o propósito unicamente da vingança levaria a perigo quem assumisse esse difícil encargo. Nas vendette - como todos nós sabemos muito bem - nunca houve carnificina em massa dos adversários e principalmente que a vingança inclua abertamente qualquer um sem exceção. Como a população que não combate. Isso acontecia apenas em guerras. Se vocês lerem a história de Daskalogiánnis, os fatos são horrendos pela fúria da guerra. Antes de escrever o artigo aqui, o articulista levou em consideração todas as versões que circulam na Internet, porque lhe causou impressão, desde os seus anos de criança, que a cantassem em Creta em toda sua manifestação, principalmente as originadas do Sudoeste cretense. Também me causou impressão o ponto de vista sobre a canção não guerreira que eu via tomar cada vez mais difusão e decidi escrever o meu pensamento espontâneo e conhecimento. Lendo a história de Daskalogiánnis e conhecendo, até mesmo de longe, os montes do Sudoeste cretense, vê-se claramente a impossibilidade das operações militares durante o dia, levando muitos deles a basearem-se em ações noturnas para abrir a estrada para Chaniá desde a província de Sfakiá. Ainda mais horrível é que o que relata a canção não aconteceu uma vez, mas repetidamente. Também é relevante que se leve em conta os ataques turcos durante o dia contra a população não-combatente das famílias dos rebeldes, para compreender os ataques noturnos dos rebeldes com tanta fúria.
Admin. - 05/12/2010" 

Cf. in http://kriaras.com/wp/kriaras-12.php

 

III. NOTAS  EXPLICATIVAS



¹  "Troika" é um termo russo que designa um comitê de três membros. Em política, designa uma aliança de três personagens do mesmo nível e poder que se reúnem em um esforço único para a gestão de uma entidade ou Estado ou para completar uma missão. É usado como uma referência de uma cooperação do Banco Central Europeu, do FMI e da Comissão Europeia. Esta troika e seus representantes negociam com os países membros dos programas de crédito na Eurozona. 

²  Chanson des rizes, em francês. Em português, diríamos canção de raiz.

³  Minha tradução, do catalão para o português, do texto intitulado "Quan faci cel estrellat" (Quando se faz céu estrelado). Cf. in http://www.enderrock.cat/noticia/6678/quan/faci/cel/estrellat  Acessado em 02/08/2017.

  Diríamos em português que se trata de uma partícula expletiva ou partícula de realce. Neste caso, o "ε" é um termo da oração considerado desnecessário, podendo ser retirado sem qualquer prejuízo para ela. 

   A alguns quilômetros a leste de Chóra Sfakíon encontra-se Frangokástelo (castelo dos Francos), uma fortaleza construída pelos Venezianos em 1371 para deter os piratas e conquistar Sfakiá, um objetivo que não teve sucesso. O castelo está muito arruinado, mas é uma das vistas mais pitorescas e célebres  de Creta, pela sua localização numa praia de areia, com as imponentes Montanhas Brancas (pron. Lefká Óri em grego) no fundo. Foi ali que em 1771 foi capturado o Daskalogiannis, líder de uma rebelião contra o domínio otomano de Creta. Esse herói, um dos mais célebres revolucionários cretenses, era natural de Anópolis, uma aldeia próxima a Chóra Sfakíon. 

  Sfakiá é uma região geográfica e histórica, e município a Sudoeste da ilha de Creta, correspondente à antiga província de Sfakiá. Faz parte da unidade regional de Chaniá, sendo a capital Chóra Sfakíon (situada à beira do mar da Líbia). 

Localização do municipio de Sfakiá na ilha de Creta

Chóra Sfakíon é célebre como um dos centros da resistência contra as forças de ocupação, tanto veneziana quanto otomana, e mais recentemente, germânica, durante a II Guerra Mundial. É uma região montanhosa e agreste, situada nas Montanhas Brancas, conhecida pelo arraigado espírito de autonomia dos seus habitantes. É considerada um dos poucos locais na Grécia que nunca foi completamente ocupado por qualquer potência estrangeira. As praticamente impenetráveis Montanhas Brancas ao Norte e as praias rochosas e alcantiladas ao Sul ajudaram as localidades vizinhas a combater todos os invasores que se atreveram a conquistar a região. Patrick Leigh Fermor, escritor britânico que teve um papel proeminente no apoio à resistência à ocupação alemã durante a II Guerra Mundial, escreveu sobre os Cretenses serem orgulhosos de Sfakiá por sua resistência à ocupação. Muitos dos casos de revoltas e insurreições em Creta têm o seu início nas montanhas da parte ocidental da ilha, local de guerrilha de combatentes corajosos e bandos de rebeldes.
Sfakiá é famosa pela aspereza da paisagem e pelo espírito guerreiro dos seus habitantes, os sfakiótas. Eles se veem um pouco fora do alcance dos legisladores e cobradores de impostos de Atenas. O roubo e o banditismo eram uma forma de vida comum nas montanhas. Apesar disso, os sfakiótas são também famosos por sua hospitalidade e generosidade para com os que os visitam.
Aí há muitos desfiladeiros ou gargantas de grande beleza natural, principalmente, a de Samariá, classificada como reserva da biosfera e a mais comprida da Europa. Na região vivem alguns animais raros, como abutres, águias e o kri-kri, a cabra selvagem de Creta.

  A palavra "omalós" em grego significa plano, liso e regular, referindo-se a um planalto. A localidade de Omalós está situada no canto nordeste do Planalto de Omalós, 38 km a sul de Chaniá nas Montanhas Brancas. 

  Grande parte da música cretense é improvisada, especialmente em termos de sua letra. Tipicamente, a letra da música instrumental cretense toma a forma de "MANTINÁDA" (pron. mandináda), um poema que é constituído frequentemente de dois versos (ou dístico) de 15 sílabas com rima (ou também 4 hemistíquios que não rimam necessariamente). Constitui um meio de expressão popular instintiva dentro das canções de Creta. A mantináda cretense distingue-se pela expressão particular, a concisão da frase e reflete os sentimentos, o pensamento e a vida do povo cretense. É uma herança cultural de todos os Cretenses e não são propriedade exclusiva de ninguém.



IV.  BIBLIOGRAFIA 




Enderrock.cat: Quan faci el cel estrellat, http://www.enderrock.cat/noticia/6678/quan/faci/cel/estrellat 

WIKIPÉDIA: verbete "Sfakiá" in https://pt.wikipedia.org/wiki/Sfakiá

WIKIPÉDIA: verbete "Omalós" in https://en.wikipedia.org/wiki/Omalos