segunda-feira, 26 de setembro de 2022

QUEM DESDENHA QUER COMPRAR!


Por Geórgios Adalís * 
Traduzido do grego por Francisco José dos Santos Braga

 

O símbolo oficial da Rússia por 5-6 séculos é a águia de duas cabeças que também aparece em seu emblema nacional. Apesar disso, a Rússia é internacionalmente chamada de "Urso"! Durante séculos, os russos lutaram para se livrar dessa caracterização até que se cansaram e provavelmente finalmente a aceitaram. No entanto, agora estou convencido de que, após a invasão da Ucrânia, o termo "Urso" está desbotando e, se devemos definitivamente compará-lo a um animal, este é a "Raposa". 

 

A designação "Urso" foi usada pela primeira vez no século XVI, por causa de um remédio que deveria combater a calvície! Comerciantes ingleses visitavam a Rússia de onde importavam peles, mel, cera e uma gordura que supostamente era gordura de urso, que geralmente era gordura de porco! Ingleses que buscavam desesperadamente uma cura para a calvície viram gravuras publicitárias de gordura de urso russa como um salva-vidas! O marketing dos comerciantes da época dizia que os ursos são muito peludos, portanto a gordura os ajuda! Então o produto foi um sucesso.

 

No século XVII, foi fundada uma academia de ursos em uma região da Polônia para serem treinados e revendidos para circos na Europa! O europeu naquela época não conhecia bem geografia e considerava os ursos como russos. Por mais que os russos gritassem que os ursos treinados não eram deles, os europeus, sempre que apresentavam a Rússia em seus textos, usavam imagens com um urso! 

Os séculos passavam e apesar da reação dos russos que não queriam ser identificados com o urso, mas sim com a águia bicéfala, o apelido ficou para sempre. Até que decidiram, durante a URSS, fazer da desvantagem uma vantagem. Começaram a lembrar-se que o urso é um animal muito corajoso e forte. Até que em 1980, nos Jogos Olímpicos de Moscou, eles apresentaram seu mascote, o conhecido ursinho de pelúcia, Misha, que na cerimônia de encerramento conquistou a simpatia do público e causou arrepios de emoção quando lançado com milhares de balões ao céu! 


 

De alguma forma, chegamos a 2000, quando Medvedev funda o partido "Rússia Unida", que, no seu logotipo, tem um urso. É o partido de Putin, embora este não fosse membro na época. A popularidade do "Rússia Unida" disparou em 2008, quando Putin se tornou o presidente do partido e vários de seus funcionários assumiram cargos no governo. Hoje, detém 325 dos 450 assentos na Duma Estatal, 142 dos 170 assentos no Conselho da Federação e elege 58 dos 85 governadores da Rússia. De fato, no edifício Kutuzovsky em Moscou, onde estão seus escritórios, há a ala da Juventude (conhecida como Guarda da Juventude da Rússia Unida), que conta mais de 2.000.000 de membros. 

Poucos dias após o início da "operação militar especial", eu tinha feito a avaliação de que a Rússia não faria uma blitzkrieg, mas uma lenta guerra de desgaste, com o objetivo de manipular os preços da energia internacionalmente. Estamos nos aproximando de 210 dias de guerra, sem vencedores e perdedores claros, com ambos os lados contando muitas baixas. Neste ponto, faço uma pergunta: Onde está a poderosa Força Aérea Russa? Onde está o serviço russo de foguetes espaciais? 

Este que vemos é o exército da Rússia? Porque, se for esse o caso, então não estamos falando de um urso! Nós, ocidentais, provavelmente entendemos mal os benefícios que Putin espera desta guerra! É apenas para não deixar a OTAN ir para o seu "quintal"? Avalio que não seja só isso. Putin não está travando uma guerra de extermínio do exército ucraniano, mas uma guerra de esgotamento energético da Europa, que leva ao agravamento da crise alimentar e à deterioração do padrão de vida dos europeus. 

Em outras palavras, ele está usando a guerra para travar uma guerra energético-econômica multifacetada. E enquanto ele próprio estava suficientemente preparado para enfrentar qualquer cenário, os ocidentais se viram despreparados; em consequência, também perdem com as sanções que impuseram. Apesar de estarem no sexto pacote de sanções, nenhum deu resultado para eles. O que os ocidentais estavam dizendo para nós e o que finalmente aconteceu? 

1. Nós ocidentais dizíamos que o mercado de ações russo entraria em colapso!  
O índice MOEX em Moscou, de 4.000 unidades, caiu inicialmente abaixo de 2.000, como resultado de as negociações terem sido suspensas por semanas. No entanto, reabriu em abril e está se movendo de forma constante nos níveis de 2.450 unidades, com ações mostrando grandes ganhos. 
2. Nós ocidentais dizíamos que o rublo entraria em colapso! 
Após a queda inicial em sua taxa de câmbio, o rublo se recuperou com movimentos planejados e, finalmente, hoje se fortaleceu tanto que é a primeira moeda com desempenho internacional! 
3. Nós ocidentais dizíamos: "destruiremos o potencial de exportação da Rússia, para que ela não possa ter renda para financiar a guerra"! 
Nada disso aconteceu, mas com os descontos que ele oferece no petróleo (Urals), a Rússia está conseguindo ganhar o dobro de dinheiro em relação aos anos anteriores. Não é apenas a Ásia que está comprando petróleo e gás russos. E os europeus estão correndo para comprar o máximo que podem de terceiros! 
4. Nós ocidentais dizíamos que isolaríamos Putin diplomaticamente. 
Nós ocidentais nos esquecemos de que as "políticas verdes" e a abolição do petróleo tornou automaticamente aliadas de Moscou as nações da OPEP e as economias emergentes. Putin, portanto, não apenas não ficou isolado, mas teve a oportunidade de emergir como líder de uma aliança internacional informal, trazendo até mesmo potências rivais como Índia e China para o mesmo terreno! Além disso, já se evidencia também uma cisão política dentro dos EUA. 
5. Nós ocidentais dizíamos que iríamos fixar os preços para que os investimentos multinacionais na Rússia fossem rescindidos! 
Em última análise, os seus preços são fixados por Putin com diversas estratégias, adicionando ou deletando grandes quantidades (por exemplo, petróleo), enquanto países como a Líbia param e repõem quantidades superiores a um milhão de bpd, enquanto as monarquias do Golfo não aumentam sua produção. Os preços do petróleo e do gás são amplamente determinados por Moscou. Ao mesmo tempo, há uma cisão no G7, pois o Japão continua seus investimentos em GNL no campo de energia russo de Sakhalin. 
6. Nós ocidentais dizíamos que iríamos nivelar as reservas cambiais da Rússia, tirando-as do sistema swift
Este acabou sendo nosso maior erro! Os detentores de títulos russos são principalmente europeus e americanos. Assim, uma falência da Rússia os afeta principalmente. Além disso, tal falência é chamada de "acadêmica", porque não decorre da incapacidade de pagar à vista, mas de uma proibição deliberada dos fluxos de câmbio. E finalmente o que conseguiram? Abrir o debate sobre a substituição do dólar, como moeda de reserva das transações internacionais, pelo Petroyuan e o rublo. Quão fora de lugar e fora de tempo estava esta medida comprovou-se na semana passada, quando nos EUA foram obrigados a suspender as sanções sobre os títulos russos, os quais serão pagos normalmente! E você sabe por quê? Simplesmente porque as somas eram enormes e atingiriam grandes bancos ocidentais, como o Goldman Sachs. 
7. Nós ocidentais dizíamos que a Rússia iria passar fome! 
Finalmente, o espectro da pobreza bate à porta da Europa. Os preços da energia atingiram níveis recordes, enquanto esses aumentos alimentaram a inflação. E não é a Rússia que está procurando produtos agrícolas baratos, mas principalmente a Europa, que enfrenta a possibilidade de até impor o racionamento de combustível, até mesmo de alimentos! A posição global da Rússia-Bielorrússia em produtos agrícolas estratégicos, como trigo e fertilizantes, a mantém à tona com suas indústrias no índice MOEX registrando superganhos, enquanto suas contrapartes na Europa e nos EUA estão ameaçadas de fechar as portas. Quanto ao gado e ração, nem se fala! Aqui a União Europeia perdeu tanto, que decidiu propor como solução: comer insetos, como grilos e gafanhotos! 
 
 
 
Continuaremos esta análise porque esta é uma pequena parte da dura guerra econômica que começou antes da invasão da Ucrânia. Veremos a sequência imediatamente após as eleições de meio de mandato de novembro nos EUA! Enquanto isso, a guerra econômica está passando por um período de trégua temporária! Por todas as razões acima, a Rússia pode não justificar o título de "Urso" no campo militar, mas merece o título de "Raposa" no campo econômico! 

Está confirmado que caímos em uma armadilha armada por Putin, que não apenas usou petróleo e gás como arma para dobrar o Ocidente, mas também alimentos, e especialmente trigo, algo que nós ocidentais demoramos muito a perceber! E quando percebemos, era tarde demais porque já com suas escolhas erradas, conseguimos tornar o “baixo” mais alto, daí a paródia do provérbio do título do artigo!

* Economista e analista
 
 
 
II. NOTA DO TRADUTOR/GERENTE DO BLOG DO BRAGA
 
 
É difícil que o título do artigo em grego possivelmente encontre uma tradução fiel em português. O autor Geórgios Adalís utilizou com ligeira modificação um provérbio muito utilizado na Grécia para alguém que, não conseguindo um objeto de seu desejo, o deprecia com alguma desculpa esfarrapada. No século VI a.C., a este respeito Esopo compôs a fábula "A raposa e as uvas", onde mostra que a raposa, obrigada a desistir das uvas maduras, saiu-se com a declaração dissimulada de que as uvas estavam verdes ou azedas. É o que se costuma chamar de "erro lógico". No caso da fábula de Esopo, a raposa, em vez de se sentir culpada pelo insucesso, busca uma narrativa que oculte a sua frustração, evidenciando o erro lógico da depreciação do objetivo não alcançado. 
 

 
Em grego o provérbio é citado da seguinte forma: 
"Όσα δεν φτάνει η αλεπού τα κάνει κρεμαστάρια! 
e corresponde ao que foi descrito acima. 
Em português, proponho a seguinte tradução para esse provérbio: Todas as coisas (uvas) que a raposa não abocanha é que estão fora de seu alcance.
"A raposa" em português corresponde ao termo "η αλεπού" em grego. Ocorre que o autor não usa o termo oficial no título do seu artigo, mas o converte para "η αλεΠούτιν", com a intenção evidente de identificar o presidente russo com a raposa. Da mesma forma, altera o termo final "κρεμαστάρια" (palavra no plural que significa "cabides" em português; em sentido figurado, refere-se a frutas colocadas em um lugar elevado para amadurecer, bem acima do alcance... da raposa) para "κρεμαΣιτάρια", acrescentando um iota no interior da palavra, e deixando bem evidente o seu objetivo de mostrar Putin como grande estrategista ao racionar as exportações de trigo ("σιτάρι" em grego, usado no plural σιτάρια, para cereais em geral) e outros produtos, com o objetivo de negociar as sanções que a Rússia e suas autoridades têm sofrido por parte dos EUA, Inglaterra e países da União Europeia. 
Finalmente, em grego, o título do artigo, portanto, restou assim modificado por inteligente refazimento do provérbio: 
"Όσα δεν φτάνει η αλεΠούτιν τα κάνει κρεμαΣιτάρια!",
no qual se destacam os vocábulos Πούτιν e Σιτάρια.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

FUNERAL DA RAINHA ELIZABETH II


Por Francisco José dos Santos Braga 

 

I. INTRODUÇÃO


Com uma cerimônia inesquecível de 13 horas foi encerrado o funeral da rainha Elizabeth II, no dia 19 de setembro de 2022. Após um longo período de solenidades, 11 dias ao todo, o funeral da rainha Elizabeth II aconteceu na Abadia de Westminster, em Londres. O caixão da rainha, que estava no Palácio de Westminster desde quarta-feira (14), quando chegou de uma procissão vinda do Palácio de Buckingham, passou por mais processos fúnebres no dia 19. 

Após 70 anos do reinado de Elizabeth, a Inglaterra avança oficialmente para o próximo capítulo de sua história, quando o país conduziu talvez sua monarca mais popular à sua morada final. 
Com previsão de duração de até 13 horas e 20 anos de planejamento, a homenagem final à monarca que serviu o Reino Unido por 70 anos consecutivos esteve em perfeito andamento, com a presença de todos os membros da família real britânica e dignitários do Reino Unido e estrangeiros. 
A cerimônia oficial, transmitida em dezenas de cinemas e telas gigantes em toda a Grã-Bretanha, foi assistida por milhares de britânicos que inundaram as ruas de Londres, convencidos de que estavam vivendo um "pedaço de história" que nunca será repetido. 
O funeral de Estado que teve início na Abadia de Westminster, encerrou-se com o enterro da Rainha em lugar privado no Castelo de Windsor. Descrito como um evento histórico – é o primeiro funeral de um monarca britânico em 70 anos, um evento que pelo menos 3 gerações de pessoas estiveram assistindo pela primeira vez. 
O funeral real foi transmitido ao vivo para todo o mundo e os telespectadores que assistiram a ele são incalculáveis. Por exemplo, a cobertura televisiva ao vivo do funeral da princesa Diana em 6 de setembro de 1997 ultrapassou 2,5 milhões de telespectadores. 
Elizabeth havia pré-aprovado todas as etapas de seu funeral e havia solicitado um canto fúnebre específico para ser tocado pela gaita de foles escocesa em Windsor.
 
O objetivo deste trabalho é analisar uma das etapas finais do rito de encomendação do corpo da Rainha. Resumidamente, em Windsor, teve lugar o rito de encomendação, às 16h (12h de Brasília), na Capela Real de São Jorge no Castelo de Windsor, que também foi televisionado e encerrando o cortejo público definitivamente.
O Coro cantou o Salmo 121, musicado por Sir Henry Walford Davies (1869-1941), que também foi organista da capela. Observe que, na Bíblia católica, o salmo correspondente é o de nº 120, cujo verso de abertura diz "Para os montes levanto os olhos". Nas exéquias da Rainha Elizabeth II esta peça coral a cappella foi interpretada pelo Coro da Capela de São Jorge no Castelo de Windsor, sob a direção do regente James Vivian. 
 
TEXTO EM INGLÊS 

I will lift up mine eyes unto the hills:
from whence cometh my help.
My help cometh even from the Lord:
who hath made heaven and earth.
 
He will not suffer thy foot to be moved:
and he that keepeth thee will not sleep.
Behold, he that keepeth Israel:
shall neither slumber nor sleep.

The Lord himself is thy keeper:
the Lord is thy defence upon thy right hand;
So that the sun shall not burn thee by day:
neither the moon by night.

The Lord shall preserve thee from all evil:
yea, it is even he that shall keep thy soul.
The Lord shall preserve thy going out, and thy coming in:
from this time forth for evermore.
 
Glory be to the Father:
and to the Son, and to the Holy Ghost;
As it was in the beginning, is now, and ever shall be:
world without end. Amen. 

TEXTO EM PORTUGUÊS (cf. Bíblia Sagrada "Ave Maria", 1967, p. 773)
 
Para os montes levanto os olhos:
De onde me virá socorrer?
O meu socorro virá do Senhor,
Criador do céu e da terra.
 
Ele não permitirá que teus pés resvalem;
Não dormirá aquele que te guarda.
Não, não há de dormir, nem adormecer
O guarda de Israel.
 
O Senhor é teu guardião,
O Senhor é teu abrigo, sempre ao teu lado,
De dia, o sol não te fará mal,
Nem a lua durante a noite.
 
O Senhor te resguardará de todo o mal,
Ele velará sobre tua alma.
O Senhor guardará os teus passos,
Agora e para sempre.

 
Ouvimos ainda o Kontákion Russo dos Defuntos, que também foi cantado no funeral de Philip, o Duque de Edimburgo e esposo da Rainha e que será apreciado em seção própria neste trabalho. 
Antes do hino final da cerimônia, a coroa imperial, o cetro e o orbe foram retirados do caixão da Rainha pelo Joalheiro da Coroa. 
Ao mesmo tempo, um músico escocês tocou solo, na gaita de foles, um canto fúnebre do lado de fora da capela, conforme pedido explícito da Rainha. 
O caixão foi então transferido para a cripta real sob a capela, onde o corpo do príncipe Philip estava "esperando" insepulto há quase dois anos. 
O enterro da rainha aconteceu de forma privada na cripta real sob a Capela de São Jorge no Castelo de Windsor, após tocante cerimônia fúnebre que durou 13 horas, sem cobertura televisiva às 17h30min (13h30min hora de Brasília), enquanto o rei Carlos III espalhava terra no caixão de sua mãe. 
 
 
II. O KONTÁKION RUSSO DOS DEFUNTOS

 

Embora seja o título inadequado para esta seção, utilizei-o por ter sido o nome equivocado quanto à sua origem dado por seu arranjador Sir Walter Parratt (1841-1924), que nomeou seu arranjo com o título "The Russian Contakion of the Departed", apesar de historicamente ter sido rastreado por historiadores da Música como utilizado no século VI d.C. pela Igreja Bizantina, não sendo portanto russo, nem tampouco ucraniano, como querem alguns. Nas exéquias da Rainha Elizabeth II esta peça coral a cappella foi interpretada pelo Coro da Capela de São Jorge no Castelo de Windsor, sob a direção do regente James Vivian. 

Inicialmente, consideremos a letra dessa peça, que constitui parte típica de uma Missa de Réquiem ou Missa para os Defuntos: 

TEXTO EM INGLÊS 

Give rest, O Christ, to thy servant with thy Saints: 
Where sorrow and pain are no more; 
Neither sighing but life everlasting. 
Thou only art immortal, the Creator and Maker of man: 
And we are mortal formed of the earth, 
And unto earth shall we return: 
For so thou didst ordain, 
When thou createdst me, saying, 
"Dust thou art and unto dust shalt thou return. 
All we go down to the dust; 
And, weeping o’er the grave we make our song: 
Alleluia, alleluia, alleluia. 
Give rest, O Christ, to thy servant with thy Saints: 
Where sorrow and pain are no more; 
Neither sighing but life everlasting. 
 
TEXTO EM PORTUGUÊS (em minha tradução)
 
Dá o descanso, Ó Cristo, ao teu servo com teus santos: 
Onde tristeza e dor não existem mais; 
Nem suspiro, só a vida eterna. 
Tu apenas és imortal, o criador e autor do homem: 
E nós somos mortais formados da terra, 
E à terra devemos voltar: 
Pois assim tu ordenaste, 
Quando tu me criaste, dizendo, 
"Tu és pó e ao pó voltarás." 
Todos nós descemos ao pó; 
E, chorando sobre o túmulo, entoamos: 
Alleluia, Alleluia, Alleluia. 
Dá o descanso, Ó Cristo, ao teu servo com teus santos: 
Onde tristeza e dor não existem mais; 
Nem suspiro, só a vida eterna. 
 
A seguir, apresento ao leitor dois espécimes de gravações existentes para a peça do rito de encomendação de defuntos intitulada "O kontákion russo dos defuntos": a primeira, para o funeral do Príncipe Philip, cantada em 17 de abril de 2021;  e a outra, para o funeral de sua esposa, a Rainha Elizabeth II, cantada em 19 de ssetembro de 2022, ambas na mesma Capela de São Jorge no Castelo de Windsor: 
 
 
Excertos do kontákion original / Crédito: Alamy

 

Tenho o prazer agora de propiciar ao leitor o conhecimento do arranjo intitulado Kontákion Russo dos Defuntos, originalmente composto para coro masculino a 4 vozes (2 tenores e 2 baixos) por Sir Walter Parratt sobre letra traduzida por W. J. Birkbeck (1869-1916): 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 









 

 

 

 

 

 

 

 

 

III. ALGUMA INFORMAÇÃO ÚTIL SOBRE KONTÁKION NA IGREJA ORTODOXA E SUA ETIMOLOGIA


Inicialmente, vejamos o que seja a encomendação num funeral. É um ritual cristão, mais comumente associado a denominações ortodoxas e católicas, embora não exclusivamente. Segue-se ao funeral e envolve uma seleção de orações e, em alguns casos, uma despedida da pessoa que partiu da comunidade. 

"O kontákion russo dos falecidos" é cantado durante os funerais como uma declaração de nossa própria mortalidade e da inevitabilidade de que a vida vá terminar. 

Kontákion é geralmente chamado de início (prelúdio) dos Hinos da Igreja. Seu nome se deve ao fato de seu uso ser visto como uma “introdução” ao tema do hino que se segue, razão pela qual os hinos inteiros passaram a ser, em última análise, caracterizados como kontákia (plural de kontákion). É um tipo especial de poesia eclesiástica que historicamente se diz ter sido cultivada por volta dos séculos VI e VII. Etimologicamente, alguns derivam o nome "kontákion" de limitado ou curto, portanto, curto em comprimento. Outros acham que o nome kontákion deriva etimologicamente do banco da capela, onde os cantores deixavam, ou muitas vezes tocavam, os textos litúrgicos. Destas, a primeira acepção parece mais próxima da realidade. 

O kontákion consiste em uma única volta. A estrofe ou stanza que segue o hino principal é chamada de "οἶκος" (casa, em português), que pode ser única ou ilimitada em número. Mas, ao final de cada "οἶκος" (ou seja, cada estrofe), podemos distinguir o "efymnium" que pode ser um, dois ou três versos que se repetem exatamente da mesma forma em todas as estrofes, ao longo do hino. Exemplo de "efymnia" é a tripla repetição de allelluia

Um grande poeta desse tipo de poesia eclesiástica (kontákion referente à Natividade de Cristo) foi São Romano, o Melodista, como já vimos em trabalho anterior, mencionado na bibliografia, apresentado no festejo da Natividade de Cristo do ano de 2020. 



IV. AGRADECIMENTO
 
 
O gerente do Blog do Braga agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 
 
 
V. BIBLIOGRAFIA
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: O NATAL NA GRÉCIA, postado no Blog do Braga em 24/12/2020.
 
CENTRO BÍBLICO DE SÃO PAULO: Bíblia Sagrada, São Paulo, Ed. Ave Maria Ltda, 10ª edição, 1967, 1.602 p.
 

sábado, 17 de setembro de 2022

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte 1

Por Francisco José dos Santos Braga

Retrato ficcional de Hipátia feito por Jules Maurice Gaspard, para a biografia ficcional  de Hipátia por Elbert Hubbard in "Little Journeys to the Homes of Great Teachers" de 1908 [East Aurora, New York: The Roycrofters]


 

Inicialmente, para esclarecimento do leitor, refiro-me à imagem de Hipátia que aparece na abertura deste ensaio. Obviamente não se trata do semblante real da minha homenageada, mas de uma réplica da gravura extraída do volume dedicado a ela e intitulado "Little Journeys to the Homes of the Great Teachers" por Elbert Hubbard, 1908. Frequentemente tal gravura é usada para representá-la na maioria dos trabalhos publicados sobre ela.


I. INTRODUÇÃO SOBRE FONTES PRIMÁRIAS E FICCIONAIS SOBRE A FILÓSOFA NEOPLATÔNICA, MATEMÁTICA E ASTRÔNOMA HIPÁTIA

 

Preliminarmente, com base no ensaio 63, feito por [DEAKIN, 1995], para a História da Matemática, intitulado As Fontes Primárias para a Vida e Obra de Hipátia de Alexandria, são as seguintes as fontes primárias de que dispomos atualmente para a biografia de Hipátia e, portanto para seu assassinato: 

1) uma passagem na História Eclesiástica por Sócrates Escolástico. A maioria dos autores seguem Sócrates Escolástico no seu relato da morte de Hipátia, embora haja também material sobre ela no Suda Lexikon e alhures. Sócrates era um cristão fiel, entretanto não incluiu material explicitamente crítico do assassinato de Hipátia (nas mãos de fanáticos cristãos). O bispo cristão na época era Cirilo (São Cirilo de Alexandria) e a questão sobre até que ponto houve sua cumplicidade (se é que houve alguma) no delito tem gerado muita controvérsia. 
2) um excerto de Crônica de João, Bispo copta de Nikiu 
3) inúmeras cartas de um discípulo de Hipátia, Sinésio de Cirene 
4) quatro breves extratos heterogêneos de outras obras (a inscrição no começo do Livro III do Comentário sobre Almagest de Ptolomeu pelo pai de Hipátia, Théon; e breve referência de cada um dos seguintes autores: historiador eclesiástico Philostorgius, que era ariano; Crônica de João Malalas e Chronographia de Theophanes. 
5) o excepcionalmente longo verbete no Suda Lexikon, uma enciclopédia do século X disposta alfabeticamente. 
Embora não seja necessário que as fontes primárias sejam coincidentes em todos os seus detalhes, realmente essas fontes históricas para Hipátia se contradizem em alguns pontos. Em relação às fontes primárias, mormente para Hipátia, convém uma boa dose de interpretação e avaliação por parte do pesquisador. Muitas dessas fontes primárias foram escritas em grego patrístico, cujas traduções estão publicadas principalmente em inglês sobre a biografia de Hipátia. 
 
Ainda segundo [DEAKIN, idem], os historiadores precisam dizer de eventos passados que eles re-contam não apenas o que aconteceu, mas também como eles o souberam ou quem consultaram. Essa última questão é geralmente respondida por referências às fontes, isto é, aos relatos anteriores da matéria sob consideração. Não é aconselhável que fontes secundárias vão além daquilo que as fontes primárias afirmam, sem uma boa razão. Finalmente, deve ser dito que obras de ficção (seja a ficção intencional ou não!) não são fontes históricas absolutamente. Lamentavelmente muito daquilo que está prontamente disponível sobre Hipátia deriva de fontes ficcionais, mais do que históricas.¹ 
 

II. O ASSASSINATO DE HIPÁTIA E OUTRAS TURBULÊNCIAS EM ALEXANDRIA DURANTE E APÓS SUA VIDA

 

O assassinato de Hipátia está descrito nos escritos do historiador cristão do século V, Sócrates, o Escolástico de Constantinopla, o historiador mais próximo aos eventos relativos à vida e morte de Hipátia e autor de uma História Eclesiástica que cobre a história do antigo Cristianismo durante o período que vai de 305 a 439 d.C., e que assim se manifestou acerca do incidente da morte cruenta de Hipátia, em minha versão para o português, da tradução de Philip Schaff para o inglês: 

"Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha de Théon, o filósofo, que conseguiu tantos feitos em literatura e ciências, a ponto de superar todos os filósofos de seu tempo. Tendo sucedido na Escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios de filosofia a seus ouvintes, muitos dos quais vinham de longe para receber suas instruções. Devido à sua serenidade e boas maneiras que ela havia adquirido em consequência do cultivo de sua mente, ela não raro apareceu em público na presença dos magistrados. Também ela não se sentiu envergonhada em vir a uma assembleia de homens, pois todos os homens a admiravam ainda mais por causa de sua extraordinária dignidade e virtude. No entanto até ela foi vítima do ciúme político que prevalecia naquela época. Pois, como muitas vezes ela mantinha encontros com (o prefeito) Orestes, correu o boato calunioso entre a população cristã de ter sido ela quem impediu Orestes de se reconciliar com o Bispo. Alguns deles, então, incitados por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor chamado Pedro, assaltaram essa mulher voltando para casa e, arrastando-a de sua carruagem, levaram-na para a igreja chamada Cæsarium, onde a despiram completamente e, em seguida, arrancaram-lhe a pele e cortaram-lhe a carne do corpo com conchas afiadas, desmembraram-lhe o corpo, levaram seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron e lá os queimaram. Este caso não trouxe o menor opróbrio, não apenas a Cirilo, mas também a toda a Igreja alexandrina. E certamente nada pode estar mais longe do espírito do Cristianismo do que a permissão de massacres, lutas e situações semelhantes. Isso aconteceu no mês de março durante a Quaresma, no quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honório, e sexto de Teodósio." (História Eclesiástica, Livro 7, Capítulo 15)

"Morte da filósofa Hipátia" (1866), ilustração por Louis Figuier in "Vidas de sábios ilustres, desde a antiguidade até o século XIX", representando o que o autor imaginava ter sido o massacre de Hipátia pela multidão religiosa em 415 d.C.
 
 
Cabe, nesta altura, indagar qual foi a participação do Bispo Cirilo de Alexandria neste crime hediondo. Adianto que não tenho uma opinião formada sobre a questão. Em nota explicativa de Philip SCHAFF (1819-1893) para o trecho acima da História Eclesiástica, em sua competente tradução, ele entendeu que 
"a responsabilidade de Cirilo, Patriarca de Alexandria, neste incidente foi distintamente avaliada por diferentes historiadores. 
Walch, Gibbon e Milman estão inclinados a culpá-lo. 
James Craigie Robertson atribui a ele responsabilidade indireta, afirmando que os executores do crime "eram na maioria pessoas que ocupavam um posto de confiança e de autoridade na igreja dele, e tinham inquestionavelmente incentivado ações criminais anteriores", cf. History of the Christian Church, Vol. I, p. 401.
William Bright diz: “Cirilo não participou desse ato hediondo, mas esse foi o trabalho de homens cujas paixões ele originalmente convocou. Se não tivesse havido um ataque às sinagogas, sem dúvida não haveria assassinato de Hipátia", cf. History of the Church, 313-451, pp. 274-5. Vide também Philip Schaff, History of the Christian Church,  Vol. III, p. 943. ²"
Até aqui, a nota explicativa de Schaff em minha tradução.
 
Pode ser interessante repassarmos um pouco de História, o que pode ajudar a lançar alguma luz sobre a complexidade da questão. 
Seria oportuno tercer algum comentário sobre essa turba de fanáticos cristãos que desempenharam papel ativo na morte de Hipátia, sob a liderança de um leitor chamado Pedro. A informação que temos é que a morte dela esteve a cargo dos "parabolanos", os quais eram membros de uma irmandade cristã que, nos primeiros séculos da Igreja, se encarregavam, de forma voluntária, de cuidar dos enfermos e de enterrar os mortos. A denominação de "parabolanos" adveio do fato de serem atendentes de hospital, porque eles arriscavam suas vidas, ao se exporem a doenças contagiosas. Geralmente provenientes dos estratos mais baixos da sociedade, eles também funcionavam como assistentes de bispos locais e às vezes eram usados por eles como guarda-costas e em violentos confrontos com seus oponentes. Acredita-se que a irmandade foi organizada pela primeira vez durante a grande praga em Alexandria no episcopado do Papa Dionísio de Alexandria (segunda metade do século III). Embora os parabolanos fossem escolhidos pelo bispo e permanecessem sempre sob o seu controle, o Codex Theodosianus colocou-os sob a supervisão do prefeito de Alexandria. Como o fanatismo deles resultou em tumultos, leis sucessivas limitaram seu quantitativo: assim, eram 1100 em Constantinopla no tempo de Constantino e 950 no de Anastácio. Certamente devido ao incremento das agressões, o decreto de Teodósio II de 28 de setembro de 416 limitou o número deles a 500, aumentado para 600, dois anos depois. ³
 
O que lemos da autoria de Sócrates Escolástico se passou há quase 17 séculos atrás na Alexandria. Desde o começo do século II d.C., o Império Romano começou a esboçar sua fragilidade decorrente das guerras civis, das disputas internas pelo poder político e das invasões externas de estrangeiros. Em 330 d.C., o imperador romano Constantino patrocinou a cristianização do Império Romano e mandou construir Constantinopla onde na antiguidade se localizava Bizâncio. Em 395 d.C., o imperador Teodósio I fez a divisão do Império Romano em duas partes com o objetivo de controlar e manter a preponderância do Império Romano: a parte oriental, com a capital em Constantinopla, coube a seu filho mais velho Arcádio (375-408), que se tornou o primeiro imperador do Império Romano do Oriente; com a morte de Arcádio em 408, assumiu seu filho Teodósio II (401-450). A parte ocidental, com a capital em Roma, herdou o filho mais novo de Teodósio I e irmão de Arcádio, chamado Honório (395-423), que se tornou o primeiro imperador do Império Romano do Ocidente. 
 
Cirilo de Alexandria nasceu por volta de 375 d.C., foi bispo de Alexandria a partir de 412 e morreu em 27 de junho de 444. Santo para os ortodoxos e católicos, é também, desde a proclamação do Papa Leão XIII em 1882, padre e doutor da Igreja Católica. Reconhecido como santo pelos ortodoxos e católicos, ele é celebrado respectivamente em 9 de junho e 18 de janeiro pelos ortodoxos e em 27 de junho pelos católicos. Foi proclamado Doutor da Igreja em 1882 pelo Papa Leão XIII. Em uma audiência de 3 de outubro de 2007, Bento XVI o homenageou por sua importante contribuição ao culto mariano. 
Pelos valores da época contemporânea, ele também é uma figura polêmica por suas ações contra os judeus (Livro 7, Capítulo 13), e por seu envolvimento (ainda não comprovado!) na tentativa de homicídio de Orestes (Livro 7, Capítulo 14) e depois no homicídio de Hipátia (Livro 7, Capítulo 15). Cirilo se empenha em erradicar o paganismo, o judaísmo e o que considera heresias: escreve contra os arianos e os antioquianos, e manda fechar as sinagogas e igrejas dos novatos. Ele assim aniquila a comunidade judaica e ataca da mesma forma outras comunidades cristãs qualificadas como hereges. Essas medidas brutais o opuseram a Orestes, prefeito de Alexandria (também cristão), e foram ocasião de pogroms e outras cenas sangrentas, durante as quais faleceu em 415 a filósofa Hipátia, vítima de um linchamento por fanáticos cristãos. 
Por volta de 440 d.C., o historiador cristão Sócrates, o Escolástico, apresenta seu relato em última análise hostil a Cirilo sobre os incidentes verificados em Alexandria, embora não o tenha incriminado diretamente pelo assassinato de Hipátia. No entanto, um crime continua sendo um crime. Mas vejamos como ele apresenta num "crescendo" os dois capítulos anteriores ao capítulo 15 cujo trecho trata da morte de Hipátia: 
Capítulo 13: "Conflito entre cristãos e judeus em Alexandria: e ruptura entre o bispo Cirilo e o prefeito Orestes"
Capítulo 14: "Os Monges de Nitria descem e levantam uma Sedição contra o Prefeito de Alexandria"  
Foi da seguinte forma que o autor Sócrates Escolástico abre o Capítulo 13, na tradução de Philip Schaff e em minha versão para o português: 
"Por volta dessa mesma época, aconteceu que os habitantes judeus foram expulsos de Alexandria por Cirilo, o bispo, pelo seguinte relato. O público alexandrinense se deleita mais com o tumulto do que qualquer outro povo: e se em algum momento encontrar um pretexto, irrompe nos excessos mais intoleráveis; pois nunca cessa sua turbulência sem derramamento de sangue. Aconteceu na presente ocasião que surgiu um distúrbio entre a população, não por uma causa de grande importância, mas por um mal que se tornou muito popular em quase todas as cidades, a saber, um gosto por exibições de dança. Em consequência dos Judeus estarem desobrigados de negociarem no Sábado e de passarem seu tempo, não em ouvir a Lei, mas em diversões teatrais, os dançarinos frequentemente reúnem grandes multidões naquele dia, e uma desordem é produzida quase invariavelmente. E embora isso fosse em certo grau controlado pelo governador de Alexandria, no entanto os Judeus continuavam a se opor a essas medidas. Quando, por isso, o prefeito Orestes estava publicando um edito no teatro para a regulação dos shows, alguns da facção do bispo Cirilo estavam presentes para tomar conhecimento da natureza das ordens prestes a serem expedidas. Havia entre eles um certo Hierax, professor dos ramos rudimentares da literatura, e que era um ouvinte muito entusiasmado dos sermões do bispo Cirilo, e se destacou por sua ousadia em aplaudir. Quando os judeus observaram essa pessoa no teatro, eles imediatamente clamaram que ele tinha vindo ali com o único propósito de excitar a sedição entre o povo. Ora, Orestes há muito via com ciúmes o crescente poder dos bispos, porque eles usurpavam a jurisdição das autoridades nomeadas pelo imperador, especialmente porque Cirilo desejava espionar seus procedimentos; ele, portanto, ordenou que Hierax fosse preso e o submeteu publicamente à tortura no teatro. Cirilo, ao ser informado disso, mandou chamar os principais judeus e os ameaçou com a maior severidade, a menos que desistissem de molestar os cristãos. A população judaica ao ouvir essas ameaças, em vez de reprimir sua violência, só ficou mais furiosa e foi levada a formar conspirações para a destruição dos cristãos; um deles era de caráter tão desesperado que causou sua expulsão total de Alexandria; isso vou agora descrever. Tendo sido acordado que cada um deles deveria usar um anel no dedo feito da casca de um ramo de palmeira, para o reconhecimento mútuo, eles decidiram fazer um ataque noturno aos cristãos. Eles, portanto, enviaram pessoas para as ruas para levantar um protesto por estar em chamas a igreja com o nome de Alexandre. Assim, muitos cristãos ao ouvir isso correram, alguns, de uma direção, e outros, de outra, em grande aflição para salvar sua igreja. Os judeus imediatamente os atacaram e os mataram; facilmente distinguindo um ao outro por seus anéis. Ao raiar do dia, os autores dessa atrocidade não podiam ser escondidos: e Cirilo, acompanhado por uma imensa multidão de pessoas, indo às sinagogas deles – pois assim os judeus chamam sua casa de oração – tirou-os delas e expulsou os judeus para fora da cidade, permitindo que a multidão saqueasse seus bens. Assim, os judeus que habitavam a cidade desde o tempo de Alexandre, o Macedônio, foram expulsos dela, despojados de tudo o que possuíam, e dispersos alguns, em uma direção, e outros, em outra. Um deles, um médico chamado Adamantius, fugiu para Atticus, bispo de Constantinopla, e professando o cristianismo, algum tempo depois retornou a Alexandria e fixou sua residência lá. Mas Orestes, o governador de Alexandria, encheu-se de grande indignação com essas operações, e estava excessivamente pesaroso de que uma cidade de tal magnitude tivesse sido subitamente desprovida de uma parcela tão grande de sua população; ele, portanto, imediatamente comunicou todo o caso ao imperador. Cirilo também escreveu para este, descrevendo a conduta ultrajante dos judeus; e, enquanto isso, enviou pessoas a Orestes que deveriam mediar a reconciliação: para tal o povo o instou a fazer. E quando Orestes se recusou a escutar iniciativas amigáveis, Cirilo estendeu-lhe o livro dos evangelhos, acreditando que o respeito pela religião o levaria a deixar de lado seu ressentimento. Quando, contudo, mesmo isso não teve qualquer efeito pacífico sobre o prefeito, mas ele persistiu em hostilidade implacável contra o bispo, o evento abaixo ocorreu a seguir. (...)" (grifo nosso) 
O capítulo 14, na tradução de Philip Schaff e em minha versão para o português, também atesta a hostilidade do historiador Sócrates Escolástico em relação a uma suposta justiça e imparcialidade de Cirilo diante de ações criminosas de uma turba de fanáticos cristãos: 
Alguns dos monges habitantes das montanhas da Nítria, de humor muito inflamado, que Teófilo algum tempo antes armara injustamente contra Dióscoro e seus irmãos, sendo novamente transportados com um zelo ardente, resolveram lutar a favor de Cirilo. Cerca de quinhentos deles, portanto, deixando seus mosteiros, entraram na cidade; e encontrando o prefeito em sua carruagem, chamaram-no de idólatra pagão e utilizaram para ele muitos outros epítetos abusivos. Supondo que isso fosse uma armadilha armada por Cirilo, exclamou que era cristão e havia sido batizado por Ático, o bispo de Constantinopla. Como eles deram pouca atenção aos seus protestos, e um deles, chamado Amônio, atirou uma pedra em Orestes, que o atingiu na cabeça e o cobriu com o sangue que escorria do ferimento, todos os guardas, com poucas exceções, fugiram, mergulhando na multidão, alguns em uma direção e outros em outra, temendo ser apedrejados até a morte. Enquanto isso, a população de Alexandria correu em socorro do governador e colocou o resto dos monges em fuga; mas, tendo prendido Amônio, entregaram-no ao prefeito. Ele imediatamente o submeteu publicamente à tortura, que foi infligida com tanta severidade que ele morreu sob seus efeitos: e não muito tempo depois, ele prestou relato aos imperadores do que havia acontecido. Cirilo, por outro lado, encaminhou ao imperador sua declaração sobre o assunto: e fazendo com que o corpo de Amônio fosse depositado em uma certa igreja, deu-lhe a nova denominação de Admirável, ordenando que fosse inscrito entre os mártires e elogiando sua magnanimidade na Igreja como a de alguém que caíra em um conflito em defesa da religiosidade. Mas os mais sóbrios, embora cristãos, não aceitaram a julgamento preconceituoso de Cirilo sobre ele; pois eles bem sabiam que este havia sofrido o castigo devido à sua imprudência e que não havia perdido sua vida sob a tortura pelo fato de que não negaria a Cristo. E o próprio Cirilo, consciente disso, deixou que a lembrança da circunstância fosse gradualmente obliterada pelo silêncio. Mas a animosidade entre Cirilo e Orestes não diminuiu de forma alguma neste momento, mas foi reacendida por uma ocorrência semelhante à anterior.
A seguir, apresento a argumentação de [DZIELSKA, 1997], a respeito desse delito mostruoso. 
Segundo essa historiadora polonesa, a situação em Alexandria não permite uma fácil ideologia da história, e talvez seja por isso que Sócrates Escolástico atribui as atitudes à cidade e seu clima como um todo, e não apenas a uma parcela da população, expressando, como outras antigas fontes, "uma incapacidade de explicar a tendência dos alexandrinenses para a violência e crimes". 
A turba de Alexandria não é apenas responsável pela morte horrível de Hipátia em 415 ou 416 d.C., mas também pela morte igualmente horrível do bispo Jorge durante o reinado de Juliano em 361, bem como pelo assassinato do Patriarca Protério em 457. Em todos os casos, "seus cadáveres, como aconteceu com Hipátia, foram arrastados por toda a cidade e depois entregues à pira", enquanto os responsáveis escapavam da punição, o que "muitas vezes acontece em casos de tumultos".
Aparentemente, Hipátia não foi perseguida por suas ideias religiosas ou filosóficas. Como Crawford e Rist, entre outros, argumentaram, a morte de Hipátia foi resultado dos tumultos em Alexandria com causas mais políticas do que religiosas. A cidade sofria de conflitos, e a multidão cristã estava certa de que a influência de Hipátia estava exacerbando o conflito e acreditava que, se ela saísse do caminho, a reconciliação (entre o prefeito Orestes e o patriarca Cirilo de Alexandria) poderia ser concretizada. Assim, eles a assassinaram por iniciativa própria, não como inimiga da fé, mas como um suposto obstáculo à sua paz.
Em todo caso, mesmo que Cirilo quisesse, "era difícil atacar ou perseguir Hipátia a pretexto de seu paganismo, porque, ao contrário de seus contemporâneos, ela não era uma pagã ativa e devotada. Ela não cultivou a filosofia mágica neoplatônica, ela não foi aos santuários pagãos e não reagiu à sua conversão em igrejas cristãs. Na verdade, ela gostou do Cristianismo e protegeu seus discípulos cristãos. Com seu secularismo e compreensão plena das questões metafísicas, ela os ajudou a alcançar a realização espiritual e religiosa. Dois deles se tornaram bispos. Os pagãos e os cristãos que estudavam com ela eram amigos entre si".
 
Hipátia ensinando na Escola de Alexandria, obra de Masolino da Panicale, 1428

 
Além disso, como se depreende das fontes, nenhum caso de ciúme sexual poderia existir contra uma mulher com idade entre 45-60 anos, cuja modéstia, ascetismo e abstinência consciente de qualquer atividade sexual eram conhecidos de todos.
Finalmente, de acordo com Maria Dzielska, a acusação desse período como um tempo de "declínio do espírito" também é infundada: "Não podemos, portanto, concordar com aqueles que lamentam Hipátia como a "última dos gregos" ou que argumentam que a sua morte marcou o declínio da ciência e filosofia alexandrinenses. O paganismo não desapareceu com Hipátia, assim como a matemática e a filosofia grega. Após sua morte, o filósofo Hierocles iniciou um desenvolvimento bastante impressionante do neoplatonismo eclético em Alexandria [...] até floresceu até certo ponto, com os "santos" do neoplatonismo que combinaram a filosofia platônica tardia com o ritual formal e sacerdotal para os deuses."
 
Detalhe de Hipátia, única filósofa, ao lado de Parmênides, na famosa obra A Academia de Atenas de Rafael Sanzio (Observação: Brambly, biógrafo de Leonardo Da Vinci, considera que o modelo para esta representação é o próprio Rafael).

 
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
DZIELSKA, Maria, Υπατία η Αλεξανδρινή (μτφρ. Κουσουνέλος Γιώργος), Ενάλιος, Αθήνα 1997, p. 184-5.  👈
Ibidem, idem, p. 192. 👈
Ibidem, idem, p. 192-3.  👈
Ibidem, idem, p. 194-5.  👈
 
 

 

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DEAKIN,  Michael A.B.: The primary sources for the Life and Work of Hypatia of Alexandria, History of Mathematics Paper 63, 1995.
 
DZIELSKA, Maria: Υπατία η Αλεξανδρινή (μτφρ. Κουσουνέλος Γιώργος), Ενάλιος, Αθήνα 1997, 210 p.

SCHAFF, Philip: History of the Christian Church, 8 vol., 1890.