quarta-feira, 27 de junho de 2018

A "SOLUÇÃO FINAL" EUROPEIA PARA OS IMIGRANTES AMEAÇA A GRÉCIA


Por Mákis Andronópoulos

(post do Blog SLpress.GR, editado em 26/06/2018)
Texto traduzido do grego e comentado por Francisco José dos Santos Braga 


 

Dramaticamente perigoso para a Europa e, especialmente, para a Grécia é o projeto alemão de construir campos de concentração para os imigrantes na Albânia, Macedônia ¹, Kosovo e, eventualmente, também na Sérvia. O objetivo de Merkel é resolver seu próprio problema político, que surgiu de suas próprias aspirações aventurescas que viraram bumerangues. Atenas não deve de modo algum aceitar tais soluções, que transformarão os Bálcãs ocidentais em uma zona islâmica sem controle.

Não é apenas insuficiente, mas também hipócrita e perigoso o pretexto para tornar a Albânia um local de registro e identificação de refugiados em massa, através da criação de grandes centros de acolhida porque, supostamente, a Albânia tem experiência na gestão de crises de refugiados, como no período 1998-1999 acolheu em território cerca de um milhão de kosovares e dispõe, desde 2015, de acampamentos para refugiados que ficaram inativos.

Há um argumento ainda mais cínico: que na Albânia não são válidos a Convenção de Dublin e o Tratado de Schengen, uma vez que ela não é membro da União Europeia. A periculosidade e o caráter oportunista do plano germano-austríaco, que para muitos lembra a "solução final" ², residem no seguinte:
✓ Estes acampamentos serão convertidos em um sítio de instalação permanente. Isso significa violência, prostituição, contrabando de drogas e armas, cultivo do jihadismo, etc.
✓ Em tal clima de enclausuramento de massas famintas e desesperadas, chefes guerreiros, emires financiadores e a Turquia iriam criar exércitos de fanáticos para o estabelecimento de um Estado Islâmico dentro da Europa que incluirá a Albânia, o Kosovo, as regiões albanesas da Macedônia e Bósnia. Centros jihadistas já estão operando na Bósnia.
✓ A instalação permanente de centenas de milhares de “desperados” será um obstáculo determinante à perspectiva europeia para esses países.
✓ O fato de os países que são sondados estarem na antecâmara das negociações de adesão, faz que se tornem automaticamente vulneráveis a extorsões.
✓ O plano imediato é no verão transferirem da Alemanha para a Albânia 200.000, pelo menos, indesejáveis, de modo que o chefe da União Social-Cristã (CSU) e ministro do Interior, Horst Seehofer, evite uma predominância da Alternativa para a Alemanha ³ (AfD) nas iminentes eleições locais na Baviera.

Esta solução é salutar para o governo Merkel e é apoiada pelo Presidente do Conselho Europeu Donald Franciszek Tusk e o chanceler austríaco Sebastian Kurz. Angela Merkel, na "minicúpula" do último domingo (16) em Bruxelas, trouxe de volta a questão dos acordos bilaterais e trilaterais, correspondentes aos que mantém com a Turquia e com a Líbia, embora não descarte soluções europeias, "onde for possível".

Embora seja difícil serem bloqueadas soluções deste tipo, já que normalmente se trate de acordos bilaterais, a iminente Reunião de Cúpula, caso se acomode com soluções deste tipo, mais uma vez enfiando a cabeça na areia, será suicídio. Soluções unilaterais abrirão a caixa de Pandora. Atenas deve por de lado suas sensibilidades e pensar no interesse do país.



NOTAS EXPLICATIVAS



¹ A Macedônia (também denominada Σκόπια, em grego) costuma ser expressa com as iniciais de Ex-República Iugoslava da Macedônia (ΠΓΔΜ, em grego), FYROM em inglês (Former Yougoslav Republic of Macedonia).

² Refere-se à solução final da questão judaica (em alemão, Endlösung der Judenfrage), plano nazista de remover a população judia de todos os territórios ocupados pela Alemanha, durante a II Guerra Mundial e transportá-la para o Leste. A expressão aparece em uma carta do general das SS, Reinhard Heydrich, ao diplomata Martin Franz Julius Luther, do Ministério do Exterior alemão. Na carta, Heydrich solicita a participação do Ministério na implementação da “solução final para a questão judaica”, ou seja, remover os judeus dos territórios ocupados pela Alemanha, conforme fora decidido pelas lideranças nazistas. Anexa à carta estava a ata da Conferência de Wannsee, na qual fora definido que Heyrich seria o principal responsável pelo cumprimento daquela decisão.

³ Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland, sigla AfD) é um partido político alemão populista de direita, fundado em fevereiro de 2013.


segunda-feira, 25 de junho de 2018

A EUROPA NÃO PRECISA SER ARRASTADA AO ABISMO ALEMÃO


Por Mákis Andronópoulos

(post do Blog SLpress.GR, editado em 20/06/2018)
Traduzido do grego por Francisco José dos Santos Braga

 

Vamos ser gratos e realistas. Os Norte-americanos salvaram a Europa duas vezes da bota alemã a um custo enorme em vidas humanas. Após a Segunda Guerra Mundial, financiaram a segurança da Europa, sua reconstrução e da Alemanha em particular, que apoiaram de toda a forma. Mesmo no nível psicanalítico, deixando-lhe, por assim dizer, ar para ser curada do pesado trauma da derrota e da culpa. Em seguida, financiaram o desenvolvimento da Europa e da Alemanha, abrindo tanto o mercado norte-americano quanto o mundial para os produtos delas. Eles também permitiram a unificação alemã. É uma política generosa.
A cúpula do G-7 na última reunião no Canadá no começo de junho de 2018

Ao invés disso, recebeu o egoísmo europeu (de Gaulle), a Ostpolitik estrategicamente suspeita (Willy Brandt) e, recentemente, a ironia de Berlim que, em vez de finalmente adaptar os gastos para a OTAN a 2% do PIB, disse que vai aumentá-los de 1,1 % para 1,2% (Merkel).

A eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos foi essencialmente feita para a correção e revisão das políticas que apoiaram o crescimento mundial, mas criaram um enorme déficit comercial de US$ 800 bilhões, com consequências dramáticas sobre o emprego e a dívida norte-americana. Os EUA não podem mais pagar para a OTAN (4% do PIB norte-americano), enquanto a Europa tem excedentes de US $ 151 bilhões, disse Trump aos países do G7. Ou, não é possível que os Estados Unidos taxem com 2,5% os carros europeus, enquanto a Europa taxa com 10% os (carros) norte-americanos, consequentemente levando a Alemanha a vender três vezes mais carros de luxo nos EUA (que tem 40% do mercado), em relação com as exportações norte-americanas.

E ainda assim ele está certo

A chanceler Merkel murmurou que Trump "não facilita a situação" e ameaçou que "a Europa deve tomar seu destino em suas próprias mãos e defender seus valores". Aqui se coloca uma questão maior política e existencial. Obviamente, Trump constitui uma afronta à nossa estética europeia e suas decisões são brutais, mas tem razão na área comercial, como também na questão da OTAN.

Ele é o presidente dos Estados Unidos para equilibrar as situações que colocam a Europa à frente do espelho do amadurecimento. Sim, os Europeus pagarão impostos, mas nem moralmente nem logicamente precisam ser arrastados a uma guerra comercial. E, sobretudo, para não estar alinhados atrás da Alemanha de Merkel, porque Berlim ambiciona tirar proveito do descontentamento dos Europeus para com Washington e pegar o destino da Europa nas suas mãos, sob o manto dos valores europeus.

A batalha para impedir a germanização definitiva da Europa está entrando numa fase crítica e os Europeus precisam ser cuidadosos. A Europa não deve ser arrastada ao abismo alemão. Uma nova onda de antiamericanismo seria suicida tanto para a Europa, quanto para o Ocidente. A Alemanha recebeu muito. Agora ela tem que dar e sobretudo suportar que não pode de forma nenhuma liderar a Europa. A Europa que precisamos não necessita de "liderança", mas de democracia, de uma cultura de compreensão e de um sistema de redistribuição.

GRÉCIA: UMA CRISE QUE (NÃO) ACABOU


Por Giánnis Papadimitríou

(em artigo na Deutsche Welle, editado em 23/06/2018)
Traduzido do grego por Francisco José dos Santos Braga

 

Uma avaliação positiva do acordo do Eurogrupo, mas também um ceticismo acerca do “dia seguinte” na imprensa alemã. A crise grega está regulamentada, mas não passa, diz a maioria dos analistas.

Vejamos os principais jornais alemães:

“O exemplo da Grécia” é título de uma opinião do jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), que está tentando extrair lições da crise grega. Como diz o colunista, o exemplo da Grécia mostra que os acordos europeus não produzem automaticamente soluções ideais. Os Gregos sofreram uma enorme perda de renda, mas continuam tendo uma dívida muito elevada. Os outros países da zona do euro correm o risco de perder bilhões. Na Grécia começou a desenvolver-se um cenário que está se espalhando por todo o continente europeu: a corrosão do sistema político existente por meio de crises sociais e econômicas. Todos os pacotes de ajuda de Bruxelas não conseguiram impedir a ascensão dos partidos populistas ao poder, em Atenas. Algo que é compreensível, dado o fracasso das forças políticas tradicionais, e, além disso, o SYRIZA provou surpreendentemente pragmático no governo. Mas, em última análise, a Europa pagou pela estabilização do euro com um clima político tóxico dentro e entre os Estados-Membros.”

Em resposta de Luxemburgo e com o título "Um momento histórico", o jornal Süddeutsche Zeitung se refere a detalhes interessantes da negociação. Conforme assinala, sobretudo a Alemanha exerceu pressões para serem mínimas possível as facilidades para a dívida. Inicialmente, o ministro das Finanças alemão queria prorrogar o período de reembolso do empréstimo por apenas três anos, mas ele acabou percebendo que isso não seria nem sustentável nem confiável. E assim resultaram dez anos, juntamente com a sinalização de que em 2023 será reexaminado se são necessárias facilidades adicionais para a dívida. Claro que ninguém pode prever tal coisa, nem mesmo se a Grécia vai corresponder às metas que é chamada a cumprir. É um caminho inacessível, que os outros irão supervisionar e avaliar a cada trimestre.

"O corte ¹ é uma questão de tempo"

Ainda mais pessimista nas suas previsões, o jornal Stuttgarter Zeitung: Se a Grécia de fato mudou, permanece uma incógnita. Pelo menos, os indicadores econômicos inspiram otimismo. Mas a grande questão é se a recuperação é sustentável. Sem o corte da dívida, a Grécia provavelmente não vai ficar de pé novamente. É uma questão de tempo para que os estados-membros da zona do euro finalmente percebam isso.

Um humor mordaz exala o comentário na versão eletrônica da revista Der Spiegel. "A crise acabou? Diga isso aos Gregos ..." é o título característico. Como mencionado no comentário: os Gregos têm todas as razões para serem céticos. Não só porque eles já ouviram infinitas vezes anunciar o fim da crise. Mas especialmente porque os benefícios não nítidos do acordo no Eurogrupo contradizem a certeza de que eles vão sofrer de novo cortes penosos no final do ano. "Que reunião do Eurogrupo?", perguntou-me um oficial da reserva de 76 anos. "Minha única preocupação é hoje, como foi ontem, juntar o dinheiro que preciso para o meu funeral". As pensões na Grécia já foram reduzidas em 60% e serão cortadas de novo em 2019, observa o articulista.

Grécia-Itália: Vidas paralelas?

A dimensão diferente no balanço da crise é abordada pelo jornal Die Welt: “Com a sua quase bancarrota, a Grécia trouxe à luz os grandes defeitos estruturais da zona do euro. Com a oposição contínua que ela pôs em evidência e com a crise duradoura que se seguiu, também dividiu politicamente a zona do euro. Bem como o governo federal, que se mostrava um apoiador fanático da austeridade, mas a principal razão pela qual ele estava atormentando os Gregos era que ele queria propor aos Italianos o que os esperaria no caso italiano. Depois de todos esses anos penosos, a questão mais decisiva para a Grécia é: “Foi isso; acabou? Pode o país ficar de pé novamente ou talvez em três, quatro, dez anos, implorará por uma ajuda a Bruxelas? A resposta é frustrante: Não sabemos ...”


NOTA EXPLICATIVA


¹   Corte é um jargão usado para referir-se à redução do valor de face (da dívida).


Fonte: http://www.dw.com/el/%CE%B5%CE%BB%CE%BB%CE%AC%CE%B4%CE%B1-%CE%BC%CE%AF%CE%B1-%CE%BA%CF%81%CE%AF%CF%83%CE%B7-%CF%80%CE%BF%CF%85-%CE%B4%CE%B5%CE%BD-%CF%84%CE%B5%CE%BB%CE%B5%CE%AF%CF%89%CF%83%CE%B5/a-44357710

quarta-feira, 20 de junho de 2018

NOSSA VIDA EM MOSCOU


Por Francisco José dos Santos Braga
 



Em 2001 Rute Pardini, minha esposa, cursava o primeiro semestre do curso superior de Canto Lírico na Faculdade Mozarteum, no bairro de Santana, em São Paulo. Tendo concluído o seu primeiro semestre com êxito, voltou ao nosso apartamento em Brasília, dizendo repentinamente: “Eu também vou. Já estou mesmo de férias.”

Diante de sua decisão inesperada, precisei tomar algumas providências, pois só estava de posse de meu visto solicitado pelo famoso Instituto Estatal A. S. Pushkin de Língua Russa ¹ (ou simplesmente Instituto Pushkin), que me hospedaria durante o período que passaria em Moscou e onde já me inscrevera no seu Curso de Verão de Língua Russa com início previsto para princípio de agosto e com duração média de um mês. Fui, portanto, obrigado a conseguir igualmente o visto dela da Embaixada na última hora.

No meu caso, já fora vacinado contra a febre amarela em 14/03/2000. Também tinha providenciado a compra de minhas passagens de ida e volta. Era necessário sincronizar a minha ida definitivamente acertada, com passagens adquiridas de última hora para minha esposa. Telefonamos para nosso saudoso amigo Prof. Jacob Ancelevicz de São Paulo, que se relacionava muito bem com uma agência de viagens, o qual imediatamente conseguiu, junto à KLM, emissão da passagem da minha esposa em São Paulo, e lá chegando, que finalizássemos a compra da passagem com a seguinte escala: São Paulo-Amsterdam (31/07) com a KLM; Amsterdam-Moscou (01/08) com a Aeroflot com retorno previsto para 09/10, às 16 horas. O nosso visto vencia no dia 10/10.

Como chegamos cedo a São Paulo, tivemos tempo de ir à Faculdade Mozarteum e solicitar trancamento da matrícula da minha esposa para o próximo semestre.

Não estávamos indo a Moscou na condição de bolsistas, nem como participantes de intercâmbio universitário; estávamos indo, isto sim, sem ônus para os cofres públicos, sem diárias nem ajuda de custo: arcamos com todos os gastos com passagens de avião, alimentação, hospedagem, locomoção em Moscou, inscrição nos cursos e aquisição de material didático, suportados por nossas economias. Dá para imaginar a minha disposição de espírito dentro daqueles aviões, incerto se valeria a pena tamanho sacrifício? Qual seria a receptividade dos meus interlocutores? Seria bem recebido pelos moscovitas? Receberia atenção por parte dos professores? Estava certo de que iríamos encontrar muitos desafios de aprender russo como língua estrangeira. Fomos informados de que, logo após o desembarque do avião em Moscou, iríamos direto à polícia alfandegária que nos daria novos documentos russos (Visa) a serem apresentados a quem nos solicitasse e que passaria a valer como nosso documento de identidade russa. Ou seja, o nosso passaporte não teria nenhum valor na Rússia.

Antes de sair do Brasil, ouvi falar de uma máfia do taxi que se organizava nos aeroportos russos. Portanto, não foi diferente para o aeroporto de Sheremetyevo (sigla SVO), situado 29 km a norte do centro de Moscou, onde desembarcamos em 01/08 ² . Precavi-me para não ser enganado no desembarque. Juntei nossas malas e evitei abordagem dos membros da referida máfia. Saímos, portanto, para fora do aeroporto em busca de taxis independentes, não sem alguma discussão e ameaça da máfia para o taxista que ousasse desafiá-la. A situação se agravou de tal forma que não percebemos que uma de nossas malas ficou fora do aeroporto, exatamente aquela em que tínhamos colocado um álbum de partituras e rapaduras que pretendíamos brindar brasileiros e russos com nosso produto genuinamente nacional feito da cana e como propaganda do nosso Brasil.

Voltando a 1º de agosto de 2001, fomos direto ao Instituto Pushkin, considerado pelos estudantes estrangeiros um dos melhores centros para aprendizado da língua russa, aonde chegamos de noite, situado na rua Akademika Volgina, nº 6. Quando o taxi se retirou, fizemos a desagradável constatação do extravio de uma de nossas malas, que, como vimos, ficara no aeroporto, como constatamos mais tarde. Receamos ter deixado aquela mala extraviada dentro do táxi e nossa esperança é que o motorista devolveria, porque nos disseram que lá a polícia é muito rigorosa em casos de roubo de estrangeiros.
Instituto Estatal A. S. Pushkin de Língua Russa em Moscou
Apresentamo-nos à recepção do Instituto Pushkin, onde pagamos pelas aulas e acomodação, apresentamos nosso passaporte e entregamos cópia da primeira página do passaporte, cópia dos Visa e uma fotografia para nosso cartão de identidade estudantil e recebemos a informação de que o Curso de Verão já tinha se iniciado em julho, para nossa surpresa, o que nos obrigaria a um esforço adicional para acompanhar o ritmo das nossas turmas. Deram-nos uma chave para acesso ao nosso flat e um cartão de hóspede. Isto posto, instalamo-nos no alojamento de estudantes, no 4º andar, cuja janela dava para um pátio de manobra de caminhões e de entrada de mercadorias que, no térreo, se comunicava com uma oficina, lembrando os tempos soviéticos ³
Nossa identidade estudantil fornecida pelo Instituto Pushkin

Para aquele Curso de Verão de 2001 devíamos ser uns 300 estudantes estrangeiros. Fomos encaminhados, respectivamente eu e minha esposa, para o nível intermediário (B1) e o nível básico de língua (A), este último com suporte da língua castelhana e francesa, já que terminantemente os professores daquele instituto não aceitavam conversação em inglês. (Para falantes fluentes ou nativos, havia ainda os níveis C1 e C2, onde se liam alguns romances mais conhecidos como “Anna Karênina” e “Guerra e Paz”, ambos de Leon Tolstoi.) Passamos os primeiros dias familiarizando-nos com nossos colegas de turma, o lugar e os funcionários que ali trabalhavam. Achamos muito curioso ver a diversidade de culturas ali concentradas. Ficamos hospedados na área de dormitórios pertencentes ao Instituto, a saber, um pequeno “flat” constituído por um quarto para 2 pessoas e um banheiro individual. O dormitório dos estudantes se ligava diretamente ao Instituto de Línguas propriamente dito, por um corredor gigantesco coberto, o que oferecia muita comodidade a nós estudantes. Havia duas lanchonetes: uma no primeiro andar e outra no décimo. O restaurante universitário ficava no segundo andar, onde se podia almoçar e jantar, mas, ao frequentá-lo, nos sentíamos obrigados às poucas opções que as cozinheiras ofereciam, sem falar da forma autoritária que se impunham aos fregueses. Nossas impressões iniciais não eram das melhores. Daí havia o risco de nossas elucubrações nos conduzirem a um pessimismo generalizado. Decidimos não deixar isso acontecer, pois estávamos ali para o que desse e viesse e, se estávamos na chuva, era para nos molharmos... Minha esposa corajosamente se definiu: “A partir de hoje, sou russa.” Com esse estado de espírito iniciamos nossa vida em Moscou.

Desde o primeiro dia no Instituto Pushkin, vimos de cima o desembarque de grande quantidade de um pó branco. Ficamos intrigados com aquela mercadoria, até que descobrimos que aquele pó branco era utilizado para detetização ou desinsetização, de cheiro muito desagradável e depositado nas lixeiras de todos os corredores dos andares, principalmente. Só nos nossos últimos dias no Instituto Pushkin percebemos que o pó branco era utilizado para eliminar baratas, que insistiam em morar sob os colchões dos estudantes, passando despercebidas nesse esconderijo. Elas não eram velozes como as brasileiras: eram de cor mais clara, grandes e muito lentas na locomoção, de modo que camuflavam muito bem sua presença.

Logo descobrimos também que havia escassez de água para nossos banhos diários à moda brasileira. Informaram-nos que o período de férias dos alunos regulares era voltado para reformas e ajustes na canalização de água. Por isso, diante das reclamações constantes, desculpavam-se pelo incômodo com essa justificativa.

No Instituto Pushkin, havia um japonês (assim nos pareceu) que alugava panelas e outros utensílios de cozinha.

Para almoçarmos, normalmente procurávamos restaurantes universitários da redondeza pertencentes à M.G.U. (eme-guê-u), a Universidade Estatal de Moscou, por indicação de outro estudante brasileiro, Rui Pitanga, carioca, que logo ficamos conhecendo. Mesmo morando no Instituto, constatamos a superioridade do serviço nos restaurantes universitários da MGU: nestes comíamos caviar, algas, sobremesas especiais. Por motivo de contenção de despesas, muitos alunos preferiam utilizar uma cozinha comunitária do próprio Instituto, cada andar com sua própria cozinha com fogão industrial elétrico e pia. Cada aluno utilizava seus próprios utensílios e alimentos, especialmente no jantar, e essas atividades culinárias se prolongavam até altas horas. Minha esposa fez ótimos contatos com estudantes franceses e espanhóis nessa cozinha comunitária, aprendendo e trocando sua experiência culinária com seus colegas. Os alimentos a serem preparados nessa cozinha comunitária eram adquiridos em feiras, mercearias e supermercados. Para chegarmos a esses pontos de venda, costumávamos tomar o caminho existente no meio de um bosque florido, muito bem preservado, de rosas silvestres delicadíssimas (não existentes no Brasil) e de árvores muito elevadas (plátanos e vidoeiros prateados ou bétulas). Atrás do bosque, costumava haver um comércio ativo de cidadãos russos que descobrimos com o passar do tempo e com nossa experiência. Ali se vendiam arenques secos na neve, pães de limão, de beterraba, com castanha, pão preto, etc. Também se vendiam roupas íntimas, casacos, etc.

Lembro-me que meu professor de língua russa, cujo nome lamentavelmente não anotei, adotava o manual “Parlez russe” (Moscou: Éditions Rousski Yazyk, 1990, 7ª ed.), da autoria de S. Khavronina, que recomendava, para a sua adoção desse seu livro, que o leitor já deveria dominar um certo vocabulário e os elementos essenciais da gramática russa, de acordo com, por exemplo, o “Manual Breve de Lengua Rusa” (Moscou: Ediciones em Lenguas Extranjeras, 1960, 2ª ed.), de Nina Potapova. O livro “Parlez russe” compreendia 18 temas, cada um dos quais comportava um texto seguido de comentários, diálogos e exercícios. Além disso, recorria ao manual Vamos falar em russo” (Давайте говорить по-русски), da autoria de Olga Igorevna Glazunova (Moscou: Editora Língua Russa, 2000, 3ª ed.) para reforço, fazendo uso de seus textos e exercícios.

Pois bem. Certo fim de semana, meu professor de russo pediu que nós alunos preparássemos, durante o próximo fim de uma semana, uma redação sobre o mausoléu de Lênin. Para visitar o tal monumento, era necessário chegar à Krásnaia Plôshad (como os Russos chamam a sua Praça Vermelha, centro do poder russo). Para lá chegar, de manhã Rute e eu tomamos o metrô, que é o grande meio de transporte de Moscou, e descemos na estação Kitay-Gorod (linha 7) ou Teatrálnaya (linha cor verde). A praça sedia a catedral de São Basílio construída por Ivan, o Terrível; o Kremlin; o Mausoléu de Lênin; monumento em bronze ao príncipe Pozharski e ao açougueiro Minin (que saíram de Nizhny Novgorod para chefiarem um exército de voluntários russos em 1611-2 e expulsarem da capital russa as forças da República das Duas Nações sob o comando do Sigismundo III); e o museu histórico. Para entrarmos no monumento, os vigias nos informaram que teríamos que descartar a máquina fotográfica, pois não era permitida a entrada de equipamento eletrônico, porque o embalsamamento do corpo de Lênin poderia sofrer danos em consequência do flash. Assim sendo, para não perdermos a nossa máquina fotográfica, eu me sacrifiquei, deixando que minha esposa entrasse na fila e me relatasse tudo o que veria, posteriormente. Depois da visita ao mausoléu, passeamos por todo o centro na vizinhança da Praça Vermelha, inclusive indo a uma cerimônia litúrgica na catedral de São Basílio, onde nos encantamos com o seu coral sacro, entoando os cânticos de modo muito fervoroso. Aproveitamos o passeio para visitarmos, além disso, a imensa loja de departamentos GUM em frente às muralhas do Kremlin. Também, perto do Kremlin e na saída da Praça Vermelha, estão as Portas da Ressurreição, junto das quais está o Museu Estatal da História. Fazendo parte desse conjunto, o Jardim de Alexandre abriga o fogo sagrado do Túmulo do Soldado Desconhecido. Outra atração nesse local, sobretudo nos fins de semana, são os casamentos ao ar livre. Noivos e convidados se deslocam para ali. Tiram fotos, tomam champanhe, comemoram. As limusines que levam os noivos são luminosas como as de Las Vegas. Depois, durante a semana, noivos e convidados aparecem nas colunas sociais dos jornais.

Outra curiosidade sobre a Praça Vermelha é que em frente ao Museu Histórico Estatal  fica a Catedral Mãe de Deus de Kazan. Conta-se que no século XVI, ocorreu um grande incêndio na cidade de Kazan, capital do Tatarstão. Nossa Senhora teria aparecido para uma menina de 9 anos, Matryona, indicando o ponto em que nos escombros da igreja incendiada de Kazan estaria o ícone intacto sob os escombros. Após a comprovação desse fato, o ícone foi considerado santo e foi levado para Moscou, onde uma Igreja de Kazan foi construída próxima ao Kremlin para abrigar esse ícone. A igreja original teve sua construção finalizada em 1625. Porém, não sobreviveu aos tempos socialistas e foi demolida em 1936 por Stalin, pois ela impedia a realização dos grandes desfiles militares que eram realizados na Praça Vermelha. O ícone original da mãe de Deus de Kazan sumiu, tendo reaparecido algumas vezes durante os anos pós-2ª Guerra nos Estados Unidos e Portugal, em leilões. Na década de 90 foi parar nas mãos do Papa João Paulo II, que repatriou o ícone, devolvendo-o aos Russos. Após a ascensão de Boris Yéltsin à presidência da Rússia, a igreja começou a ser reconstruída para abrigar novamente o santo ícone, sendo finalizada em 1993, sendo vermelha com muitas arcadas com contornos brancos, com uma cúpula dourada no topo, encimada por uma cruz em cada torre.

Consta que em São Petersburgo também há uma Igreja de Kazan.


Dentro do mausoléu de Lênin na Praça Vermelha
Monumento em bronze do príncipe Pozharski e do açougueiro Minin na Praça Vermelha
 
Catedral da Mãe de Deus de Kazan na Praça Vermelha


É curioso observar que Kremlin significa cidadela, cidade fortificada ou fortaleza: “kástro” em grego e “oppidum” em latim. Atualmente designa uma parte provida de muralhas, onde são abrigados vários órgãos do governo. O Kremlin dá nome à parte que deu origem a Moscou, e que era murada como proteção contra os invasores. Quando a cidade era invadida, os camponeses que viviam fora dos seus muros, corriam para dentro do Kremlin, para sua defesa. Importante reter que há Kremlin em várias cidades russas.

De lá, seguimos para o famoso hotel ROSSYIA, gigantesco, com mais de cinco mil quartos. Nossa maior surpresa foi ver passeando, ali perto, bem abertamente, algumas prostitutas de roupas provocantes e dentes com obturações de ouro. Uma delas, mais arrojada, lançou-se sobre mim, beijando-me na boca, obrigando minha esposa a entrar em ação e libertar-me dos braços da russa ensandecida.

Mas, voltando à redação sobre Lênin, na segunda-feira cedo entreguei a minha, onde cometi a impropriedade de me referir ao “cadáver” de Lênin; o professor corrigiu-me publicamente, esclarecendo que não era polido escrever “cadáver”, e sim “corpo” de Lênin.

Rute diante da Igreja da Ascensão

Além das aulas de língua russa, o Instituto Pushkin nos propiciou uma excursão ao parque Kolomenskoye, que faz parte da reserva natural e conjunto histórico-arquitetônico, e fica em um planalto elevado com vista para o rio Moskva, localizado na jurisdição de Moscou, na antiga estrada que levava a Kolomna. Sua primeira menção foi registrada em 1339 no testamento do Grande Príncipe de Moscou, Ivan Danilovich Kalita, como a residência oficial dos príncipes e czares da Rússia. Fomos até certo ponto de metrô, descendo na estação Kolomenskaya (linha 2). É um antigo refúgio no campo para a realeza. Atualmente, é um parque aberto ao público que contém diversas atrações. Aí dentro desse parque se localiza a Igreja da Ascensão, listada na UNESCO. Entramos na igreja e vimos as coleções do museu, que incluem mídia (slides, vídeos, fitas) e artefatos relacionados à história da igreja. Segundo o guia que nos acompanhava, uns dizem que foi Vassíli III, pai de Ivan, o Terrível, quem fez a promessa de construir a igreja de 1528 a 1532, caso a sua esposa desse à luz um filho. Outras fontes defendem que foi em gratidão após o nascimento de Ivan. A aparência atual da Igreja da Ascensão não é a mesma de 500 anos atrás, pois foi reconstruída e restaurada muitas vezes. Czares russos usavam Kolomenskoye como enorme casa de campo imperial, a partir do século XIV. O parque continha um esplêndido palácio de madeira construído pelo Czar Alexei I. Além disso, apreciamos a Igreja de Nossa Senhora de Kazan datada do século XVII, com suas cúpulas em azul e dourado. Também observamos, no mesmo parque, a semelhança da forma arredondada da Igreja de São João Batista com a da Catedral de São Basílio na Praça Vermelha. Também entramos em um museu de arquitetura tradicional de madeira, que é parte única integrante do “United Museum-Reserve” de Moscou. Estes monumentos excepcionais da arquitetura do prédio de madeira nos deram uma ideia do que foram as antigas cidades russas, com suas fortificações e mosteiros de madeira. Finalmente caminhamos pelos pomares de Kolomenskoye.
Igreja da Ascensão no parque Kolomenskoye
Igreja de Nossa Senhora de Kazan no parque Kolomenskoye
Rute e eu ao lado da guia

Outra coisa que constatamos em Moscou foi o profundo respeito da comunidade acadêmica pelos professores idosos, que eram tidos como especialistas e grandes estudiosos do idioma. Tanto no Instituto Pushkin quanto na Universidade Estatal de Moscou (MGU), privilegia-se o corpo docente idoso: só há professores jovens no curso básico; os cursos intermediário e avançado de língua e literatura russa são reservados aos professores de maior experiência. Eu não tenho a estatística, mas a produção acadêmica e científica na área da gramática e da sintaxe da língua russa é gigantesca e, em grande parte, se deve à aplicação sistemática desses professores idosos no ensino da língua russa, com destaque para o sexo feminino. Além disso, a presença de muitas senhoras idosas controlando a escada rolante das estações de metrô mostra a importância que os Russos dão a essa faixa etária da população, tão esquecida na América Latina, como, por exemplo, no centro de São Paulo em que os velhos circulam portando tabuletas no peito e nas costas com os dizeres: “Compra-se ouro!”. 

Além disso, algo nos chamou a atenção: como o hábito da leitura está arraigado entre os Russos. No metrô, especialmente, isso pode ser muito bem observado. Os vagões de metrô eram autênticos salões de leitura. Constatamos que ali reinava mais silêncio do que em muitas bibliotecas brasileiras, onde quem lê se vê perturbado pelo burburinho, cochichos e, às vezes, estrepitosas gargalhadas, prejudicando a atenção dos poucos que leem. Ao contrário, lá quase todo o mundo estava sempre lendo um jornal, uma revista, um livro, mas muitas vezes um calhamaço. Muitos leitores liam de pé, no meio do vagão, sem se apoiarem absolutamente, suas mãos segurando suas relíquias, demonstrando notável equilíbrio, indiferentes aos solavancos. Certo dia, chamou-nos a atenção uma jovem mãe ensinando a lição à sua filhinha dentro de um vagão. Observe que estamos falando de 2001, sem saber qual é a situação atual após o advento do celular.

Aqui cabe uma observação sobre a necessidade do hábito da leitura entre os Russos. A língua russa, diferentemente da nossa e da maioria das línguas ocidentais, é muito complexa, exigindo o domínio das declinações de substantivos, adjetivos e pronomes no singular e no plural; como nas línguas latina e grega antigas, há diversos casos para o singular e o plural (nominativo, genitivo, dativo, acusativo, instrumental e prepositivo);  há muitos verbos irregulares; como nas outras línguas eslavas, praticamente todos os verbos admitem dois aspectos (o perfectivo e o imperfectivo, dependendo se a ação já foi concluída ou está em processo) nos tempos pretérito e futuro, enquanto que o tempo presente só existe para o aspecto imperfectivo (o aspecto do verbo perfectivo no presente do indicativo tem significado futuro), etc. Toda essa complexidade requer que a população se instrua para preservar a sua língua. Infelizmente, não é o que vemos acontecer no Brasil, com o mau exemplo vindo de cima. 

Atualmente, noticia-se muito sobre o desaparecimento de línguas e o fenômeno é mundial. Todos os linguistas estão apavorados diante da possibilidade do desaparecimento de sua própria língua, porque os falantes de uma língua têm diminuído em virtude da redução demográfica, principalmente nos países desenvolvidos. Para contornar esse problema, os educadores têm incentivado o aprendizado de suas línguas para evitar que elas morram pela ausência de falantes. Estou dizendo isso apenas para reafirmar a importância que a educação na Rússia, e por extensão o aprendizado da língua russa, tem sido uma preocupação permanente das autoridades soviéticas até 1991, e russas pós-Perestroika com as reformas de Gorbachev.

Em certa altura do Curso de Verão, houve um momento de congraçamento entre os estudantes de diversos países hospedados no Instituto Pushkin. Para isso, os organizadores do evento de união entre os povos pensaram numa apresentação musical dos diversos países ali representados. A apresentação artística ocorreu no palco de um teatro existente no interior do Instituto. Durante os ensaios naquele palco, tivemos a curiosidade de verificar o que havia atrás das cortinas. Qual não foi nosso espanto ao descobrir ali, na maior escuridão, uma imensa cabeça de Lênin, íntegra e colossal em bronze, de quase 2 metros de altura, mas sem aquela sua famigerada barbicha. Por que Lênin estava encoberto em mistério e trevas? Parece que o líder comunista russo, depois do golpe desferido pelo plebiscito de 1991, em que os Russos decidiram não manter o nome toponímico Leningrado (1924-1991) e restaurar o nome São Petersburgo que vigorou de 1703 a 1914 para a segunda cidade russa em importância, reforçado pelos ventos liberalizantes da Perestroika, foi retirado de seu antigo pedestal e mantido no seu mausoléu como atrativo turístico da Praça Vermelha, nada socialista. Como Roberto de Castro Neves escreveu: “O defunto regime soviético ainda estava sobre a mesa e já começara a sua desconstrução.” Da mesma forma, o símbolo oficial da Rússia da foice e martelo, a partir de dezembro de 2000, voltou a ser a águia de duas cabeças, tudo como dantes.

Representando o Brasil, o duo formado pela cantora lírica Rute Pardini e pianista Francisco Braga apresentou-se com o seguinte repertório verde-amarelo:
Eu tenho adoração por meus olhos (música de Marcello Tupynambá e versos de Cleómenes Campos)
Meu caro amigo (música de Francis Hime e letra de Chico Buarque)
Carinhoso (música de Pixinguinha e letra de João de Barro)
Amarilli, mia bella (música de Giulio Caccini)

Nosso duo se apresenta no teatro do Instituto Pushkin
Rute agradece os aplausos aos ouvintes

Foi uma oportunidade única e maravilhosa de verificar a grande aceitação da música brasileira pelos Europeus, aplaudindo com grande entusiasmo a nossa apresentação das peças brasileiras. A última peça italiana foi incluída para exibir a qualidade e a beleza da voz de minha esposa, já que faz parte do repertório de qualquer “prima donna” com esse nome. Pena que não tenhamos uma gravação desse recital que nos traria tão belas recordações.

Pudemos verificar que o povo russo alimenta uma surpreendente simpatia e interesse pelo povo brasileiro. O atual principal responsável por esse fenômeno é, sem dúvida, o futebol, ou melhor, as vitórias que obtivemos nas copas mundiais de 1958 na Suécia, de 1962 no Chile, em 1970 no México, em 1994 nos Estados Unidos e em 2002 no Japão. O nosso time tem, durante esses 60 anos, apaixonados torcedores soviéticos. O craque Pelé na Rússia é quase tão popular quanto no Brasil. Outro nome brasileiro, popular na Rússia, é Oscar Niemeyer, “aquele arquiteto de Brasília”. Também lá há muitos leitores dos livros bem traduzidos de Jorge Amado, tais como “Gabriela, Cravo e Canela”, com o título de “Gabriela” na tradução russa. Também se tornou ídolo na Rússia a cantora Alcione, carinhosamente conhecida por "Marron". Por fim, na época que visitamos Moscou, ficamos surpresos com a enorme popularidade do escritor brasileiro Paulo Coelho. Não sabemos exatamente que livro ele lançava naquela manhã fria de setembro de 2001, numa importante livraria de Moscou, mas percebemos que o autor era bem aceito por seus leitores, porque havia um enorme afluxo de pessoas para comprar um de seus livros e conseguir o seu autógrafo. A fila dava a volta no quarteirão anexo à livraria, semelhante à que vimos para compra de carnes importadas do Brasil (Sadia) com o objetivo de estocagem para o inverno que se aproximava .

Após um mês de aula, um colega espanhol de sala da Rute optou por deixar o Instituto Pushkin e continuar seu estudo na MGU-Universidade Estatal de Moscou, justificando que lá teria melhores condições, aguçando o interesse dela pelo novo estabelecimento de ensino superior. Ela trouxe ao meu conhecimento a notícia dada por seu colega, deixando claro que também ela não se adaptara bem ao Instituto. Foi o suficiente para eu me dirigir à Secretaria do Instituto e solicitar os nossos certificados de conclusão do curso em que fomos matriculados. De posse desses certificados emitidos pelo Instituto, fomos visitar a secretaria da MGU em 29/08 e verificar a possibilidade de nossa transferência para o seu curso de língua russa e fomos muito bem tratados.

Certificado de Francisco Braga fornecido pelo Instituto Pushkin
Certificado de Rute Pardini fornecido pelo Instituto Pushkin

Ofereceram-nos inclusive ou alojamentos simples ou moradia num prédio de apartamentos especiais para professores assistentes ou associados, desde que nos dispuséssemos a pagar pela acomodação diferenciada. Diante dessas ofertas, pareceu-nos que devíamos fazer a opção pelo apartamento especial. Paguei a conta pelos cursos e pela acomodação até o dia 9/10/2001, recebendo nossos respectivos passes livres ou permissões de admissão (propusk) no prédio de apartamentos especiais. Advertiram-nos que os cursos já estavam em andamento, e que poderíamos, caso quiséssemos, inscrever-nos em qualquer dos cursos que estavam já sendo ministrados, devendo, entretanto, nos submeter a um teste inicial para verificar o nível de nossa proficiência na língua russa. Fui muito bem colocado no referido teste, constituído de pequenos quesitos com espaços que deviam ser completados por expressões ou verbos fornecidos, o que, a meu ver, não comprova o nível de proficiência de ninguém numa língua, podendo, quando muito, medir os seus conhecimentos de gramática e sintaxe. Em geral, esses testes pecam por não levar em conta a habilidade do aluno em expressar-se na língua em questão através de uma conversação livre e descontraída. Logo, com base naquele teste, fui encaminhado para um nível acima de meus modestos conhecimentos de russo na ocasião, o que me trouxe algumas dificuldades futuras. 

Passes livres de acesso ao nosso apartamento
Rute no hall de entrada do apartamento da MGU
Idem
Então, é hora de apresentar-lhes minhas novas professoras na MGU: Anna Vladimirovka (gramática e literatura russa) e Irina Petrovna Kastélina (história russa). A primeira teve a infelicidade de, na metade do curso, pegar uma gripe (terrível na Rússia!), tendo sido substituída por outra professora, Liudmila Aleksandrovna Sokolova, por uns quinze dias. Outra vantagem da MGU em relação ao Instituto é que, na primeira, as salas de aula eram relativamente pequenas em tamanho e cada turma era formada de poucos alunos, até uns 7 alunos, o que permitia um rendimento excepcionalmente elevado.
Rute e minha Profª Anna Vladimirovka
Profª Anna e meus colegas de turma

O material didático utilizado para o curso de gramática e literatura russa foi: Verbo Russo (2000), por Marina Nikolaevna Lebedeva, com o seguinte título: Русский Глагол - Словарь-справочник синтаксической сочетаемости глаголов...; Perspektiva (São Petersburgo: Златоуст, 3ª ed., 2000, vol. 1-5), por Kostina, Aleksandrova, Aleksandrova & Bogoslovskaya, com o título em russo: Перспектива: Русский язык: Продвинутый этап: Основная часть: Выпуск 1-5: Пособие для иностранных слушателей краткосрочных слушателей курсов русского языка; Chrestomatia (2001), por Belikova, Artemieva & Kotchetov (utilizado na MGU), Parte I, publicações de nº 1 e 2; enquanto para o curso de história russa, foi utilizado o livro Episódios da História Russa, por Serguei Alexeiev; e Livros-texto sobre a história russa (1997), por Kastélina, Parfiónova & Ragulskaya, com o título russo Учебное пособие по истории России (для студентов-иностранцев).

Na MGU a Rute teria um professor praticamente particular, Serguei, que lecionara na África e falava fluentemente o português, e Olga. Rute ficou radiante; isso me tranquilizou, porque ela estava muito melancólica no Instituto. O inconveniente da transferência é que teríamos que nos deslocar todos os dias de metrô até o local onde estavam sendo ministradas as aulas. Por outro lado, isso representou a nossa liberdade, pois poderíamos sair e visitar quaisquer pontos atrativos de Moscou. Só então percebemos que até então vivêramos trancados dentro do Instituto.
Prof. Serguei e Rute
No dia de seu aniversário, Rute e Profª Olga

Rute e seus colegas de turma

Ao deixarmos o Instituto Pushkin, descobrimos como é divertido e prático deslocar-se de metrô pelos vários bairros da capital, com o suporte de um mapa. 


As estações do metrô são luxuosas, autênticas galerias de arte, com gravuras, esculturas, pinturas e uma variedade muito rica de candelabros. São uma verdadeira aula de história, cada estação possuindo uma decoração diferente das demais, geralmente homenageando a classe trabalhadora da antiga URSS. Não é possível não maravilhar-se com as gigantescas escadas rolantes, os lustros belíssimos, as paredes cobertas de mármore. Numa palavra, o requinte surpreende o visitante. Dizem que as estações de metrô de São Petersburgo são ainda mais maravilhosas do que as de Moscou. Cabe ainda ressaltar que essas obras de arte se encontram até a uma profundidade de 200 metros abaixo da superfície. 
Estação de metrô Arbatskaya


Em certas estações do metrô, podíamos adquirir itens necessários em lojinhas localizadas na parte externa e interna, mas não nas galerias descritas acima.

Rute numa florista na entrada do metrô
Estrada rolante de uma estação do metrô de Moscou



Conforme disse, foi-nos oferecido um flat de um prédio da MGU do lado da estação de metrô Shablowskaja que ficava bem próximo a uma torre de televisão . Para lá nos dirigimos e na portaria do prédio ficamos sabendo que uma moça chamada Gezilda Martins Lima, brasileira, era moradora do prédio e que estava deixando o apartamento onde vivera por algum tempo. Recomendaram-nos pernoitar num flat provisório até que Gezilda liberasse o apartamento. No dia seguinte, a portaria se encarregou de localizá-la e então tivemos o prazer de conhecer Gezilda, uma baiana muito simpática que nos apresentou o flat que estava deixando e mostrou-se muito interessada em que continuássemos no apartamento que ocupara. Dispôs-se até a emprestar-nos alguns itens de cozinha, para que não tivéssemos que adquiri-los, já que ficaríamos por pouco tempo. No meio dessa conversa, relatamos o extravio de nossa mala nas dependências do aeroporto Sheremetyevo quando de nossa chegada a Moscou e ela imediatamente se prontificou a ir conosco, qualquer dia desses, até os “achados e perdidos” do aeroporto, pois estava convencida de que a mala não teria sido roubada, porque a legislação russa é muito severa para com os ladrões. Ela se mostrava confiante e eu temia ofendê-la com meu pessimismo. De fato, não acreditava que pudéssemos reaver a mala, mas não custava tentar. Um ou dois dias depois, ela nos levou com o seu carro até o aeroporto. Entramos nos “achados e perdidos” e o funcionário nos perguntou se podíamos identificar a mala.

Dissemos que sim. Quis saber o conteúdo da mala. Minha esposa respondeu: “um álbum de partituras e rapaduras”. É claro que o funcionário sabia que não mentíamos. Acompanhou-nos até uma área próxima à mala, de modo que não foi difícil localizá-la. Em seguida, o funcionário pediu que abríssemos a mala e verificássemos se lá dentro estavam os itens que tínhamos relatado. Ali mesmo fizemos uma degustação da rapadura brasileira para o pessoal dos “achados e perdidos”. Quanto ao álbum de partituras, ao vê-lo, o pessoal do departamento de "achados e perdidos" pediu uma "canja" da proprietária. Rute não se fez de rogada e, em meio às centenas de malas, brindou os presentes com uma ária da ópera La Traviata, "Addio del passato", para surpresa de todos os presentes que, até aquele momento, não imaginavam que naquele ambiente se achava uma cantora lírica. Para levar a mala, assinamos um recibo de que encontramos em ordem o que buscávamos. Diante do sucesso, comentei que nossa guia Gezilda parecia ter poder junto aos órgãos públicos da Rússia. Ela então informou-nos que era jornalista, correspondente da TV Globo Ltda envolvida com notícias da Bielorrússia. Mantivemos esse bom relacionamento por alguns dias sempre através da portaria do prédio, até que ela fez uma viagem e finalmente perdemos o contato. Temos ótimas recordações da boa e simpática amiga brasileira.

Rute e Gezilda


Bem perto daquele prédio havia uma casa de câmbio que, sempre que necessitava, recorria àquele agente, para trocar dólares por rublos (US$1.00=29 rublos). Entretanto, para fazer o câmbio dos traveller’s checks do Banco do Brasil, que trazia e que valiam naquela época o valor de face ali declarado em dólares, precisava ir até uma agência de banco russo muito distante, porque, segundo colegas de turma bem informados na MGU, só aquele referido banco fazia essa modalidade de operação. Cada ida nossa a essa agência bancária levava umas quatro horas de angústia e temor. Todo tipo de burocracia era exigida pelos funcionários na hora da conversão de meus traveller’s em rublos. Segundo eles, precisavam certificar-se de que aqueles papéis eram autênticos. Para tanto, punham-nos a esperar durante horas. Com quem eles entravam em contato, até hoje para mim é uma incógnita.

Constatamos ainda que havia uns poucos mendigos pelas ruas, normalmente oriundos de países membros da antiga União Soviética que clandestinamente se refugiavam em Moscou. Os professores nos disseram que era proibido dar esmola a refugiados. Diziam que eles não sobreviveriam ao inverno, que era inclemente, em especial para esses desassistidos da sorte. Talvez por isso, a população de Moscou fosse tão indulgente com a presença deles. Parece que algum órgão governamental de assistência se preocupava com eles, pois os víamos agasalhados com casacos grossos para protegerem-se do frio. Havia também na entrada das estações de metrô alguns russos pobres acompanhados de seus cães e gatos portando tabuletas com a informação de que eram cuidadores daqueles animais, necessitando do socorro da população. 

Também observamos que em Moscou não havia pardais, essa praga das cidades brasileiras. Informaram-nos que o governo (não sei se local ou federal) decidiu exterminá-los com a disseminação de aves de rapina, espécie de gralhas, inofensivas para o ser humano mas terríveis contra os pardais. Não restou um pardal sequer.

Em 2001, conforme mencionei no começo desse relato, havia muito poucos carros trafegando nas ruas e avenidas muito amplas de Moscou, o que favorecia a direção irresponsável. O nosso prédio dava para uma avenida muito ampla, construída para grande tráfego de veículos, mas o que mais víamos lá era uma frota de LADAs, caindo aos pedaços, veículos que, importados, não foram aprovados pelos consumidores brasileiros, embora alguns os tenham adquirido, infelizmente para eles. Dizem que hoje em dia há em Moscou automóveis de todas as marcas: BMW, Bentley, Honda, etc. 

Tivemos grande dificuldade de encontrar uma igreja católica em Moscou. Na fase final de nossa estada em Moscou, minha esposa recebeu um panfleto anunciando missas em diferentes línguas (português, inglês, italiano, francês, espanhol, polonês, pelo menos), sendo oferecidas à comunidade católica de Moscou, e ficou radiante em poder comungar, coisa que até àquele dia lhe tinha sido recusada pela igreja ortodoxa. Esclareço que não se tratava da Catedral da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, a maior da Rússia, de estilo neogótico, localizada no centro de Moscou. De fato, fomos num domingo a uma igreja muito modesta, pequena e um tanto distante do centro.

Perto do final de nossa estada na Rússia, começamos a descobrir pontos valiosos de atração turística e cultura. O teatro do Balé BOLSHOI em todo o seu esplendor, o Conservatório Tchaikovski, o Estádio Luzhniki (também conhecido como Estádio Olímpico, palco da abertura da Copa da Rússia de 2018), próximo à estação PROSPEKT MIRA; KUZNETSKI MOST, “rua da moda” e de compras chiques no centro de Moscou; perto da estação Arbátskaya se encontra a rua ARBAT, rua eternizada pelo bardo soviético Bulat Okudzhava que ali residia, rua de pedestres, perto do centro da cidade, onde as pessoas passeiam, os artistas pintam e vendem seus quadros, os músicos tocam para os transeuntes, ponto preferido de turistas por seus restaurantes, bares, lojas de souvenirs e do museu “Casa de Alexander Pushkin”. Também gostávamos de ir de metrô à estação Arbátskaya, de onde nos dirigíamos ao supermercado “Progress”, saindo da estação Park Kultúry, para adquirirmos Martini italiano, bons vinhos e uma grande variedade de produtos finos. Quanto aos vinhos tintos, apreciava o Apsny e o Lykhny;  meu preferido vinho branco era Anakopia, todos os três extraídos de uva cultivada na Abkhazia.  Observe-se que não havia saco plástico, sendo obrigatório que o freguês levasse de sua casa uma sacola ou bolsa de mercado para as compras. Ali perto também frequentávamos uma livraria chamada Dom Knigi (Casa de Livros).

Muito frio!

A MGU nos levou a algumas autênticas excursões a sítios históricos na periferia de Moscou. Como não haveria tempo útil para fazer um tour completo pelo chamado “Anel de Ouro”, isto é, um circuito por cidades históricas na periferia de Moscou, os organizadores das excursões contentaram-se em nos mostrar apenas três delas. A excursão completa pelo Anel de Ouro duraria no mínimo alguns dias. Mas devo confessar que uma excursão programada pela MGU é algo muito organizado. É contratado um guia para explicar durante todo o trajeto e apresentar todos os monumentos e fatos ligados ao sítio visitado. Foi assim que, em dias diferentes, normalmente aos sábados, para não prejudicar os dias de aulas, fomos levados a Serguiev-Possad, o Monastério da Trindade-São Sérgio, o “Vaticano da Igreja Ortodoxa”, a setenta quilômetros de Moscou. A cidade de mesmo nome se desenvolveu no século XV a partir desse monastério. Ficamos sabendo que este esteve fechado durante muitos anos ao longo do período soviético. O curioso é que o anticlerical Stalin, que mandou destruir centenas de igrejas no país, foi quem teve a generosidade de permitir que ele voltasse a operar. Respira-se história naquele ambiente consagrado do monastério, constituído de capelas, catedral e igrejas, intimamente ligado à História russa. O nome original foi restaurado em 1991 com o fim da União Soviética. Consta que lá se encontra a tumba em que estaria sepultado Boris Godunov, um dos czares mais importantes da Rússia, cantado em prosa, em verso e em ópera, cujo nome dá o título a uma ópera de Modest Mussorgski, baseada no drama homônimo de Alexander Pushkin.

Noutra oportunidade, continuando nosso curto tour pelo “Anel de Ouro”, conhecemos Vladímir, outra cidade histórica fundada no alvorecer do século XII (transferida de Kiev em 1169 pelo príncipe Andrei Bogolyubsky), que tinha sido capital quando Moscou era uma povoação de menor importância. Fica a 176 km a nordeste de Moscou. Essa época ficou conhecida como a Era de Ouro de Vladímir com seus muitos edifícios de pedras brancas, pelos quais a área ficou famosa. Depois que uma invasão mongol devastou a cidade em 1238, o poder migrou para aquela pequena povoação chamada Moscou. Visitamos as catedrais da Assunção e de São Demétrio, e fomos até a Porta Dourada.

Fazendo parte da mesma região de Vladímir e situada no referido “Anel de Ouro”, está a cidade de Suzdal localizada a uma distância de 51 km de Vladímir. É grande atração turística. Vários de seus monumentos estão classificados pela UNESCO na lista de Patrimônio Mundial, destacando-se a Catedral da Natividade de Suzdal com suas cúpulas azuis e o Kremlin da cidade. Além desses dois pontos turísticos, também visitamos o Museu de Arquitetura de Madeira, o Mosteiro S. Ethymius e a Catedral da Transfiguração. No século XII, Suzdal foi capital do principado, quando Moscou era apenas um assentamento de menor importância.

Outra excursão que fizemos, patrocinada pela MGU, foi a visita a um palácio que fazia a exposição do serviço de mesa em porcelana que pertenceu a Catarina II, a Grande (Prússia, 1729-São Petersburgo, 1796, imperadora russa desde 1762). Minha esposa ficou especialmente impressionada com a delicadeza e preciosidade da coleção da imperatriz russa, que deu importante impulso às artes, à cultura, à filosofia e à política externa da Rússia.

Terça-feira, 11 de setembro de 2001. Queda das Torres Gêmeas, motivada por uma série de quatro ataques terroristas coordenados pelo grupo islâmico terrorista Al-Qaeda contra civis nos EUA. A televisão russa transmitiu tudo. O povo russo mostrou-se solidário com o povo norte-americano, assistindo a tudo com tristeza e horror. Tropas russas foram colocadas em alerta em resposta aos ataques. O presidente Putin fez uma reunião de emergência com os oficiais de segurança e disse apoiar uma resposta dura a esses “atos bárbaros”. Também telefonou a Condoleezza Rice para dizer que qualquer hostilidade pré-existente entre os dois países seria posta de lado enquanto a América estivesse lidando com a tragédia. Em Moscou, mulheres que não falavam inglês e nunca tinham estado na América foram filmadas aos soluços em frente a um tributo improvisado na calçada. Além disso, as estações de televisão fizeram um minuto de silêncio em memória dos mortos. No dia seguinte, quarta-feira, todos na MGU, professores, alunos e funcionários, choravam desolados com a tragédia humana nos EUA e contra o terrorismo islâmico.

Na ocasião em que estivemos em Moscou, um ponto fraco era identificado por todos como um gargalo às comunicações com a Rússia: o seu sistema de comunicação via telefone. Tentamos inicialmente o serviço estatal que não nos agradou pelo alto custo. Recorremos então ao mesmo serviço, só que clandestino, por recomendação do brasileiro Rui Pitanga, que descobrira uma saída para o problema. Os estudantes da Universidade Russa da Amizade dos Povos “Patrice Lumumba” ofereciam para qualquer pessoa ligação telefônica para qualquer parte do mundo, mediante cobrança de um preço simbólico, pelo custo do serviço prestado, isto é, sem impostos e custos indiretos que incidem sobre uma ligação telefônica oficial. Parece que esse sistema clandestino de telefonia só funcionava nos termos descritos, se o telefone não fosse desligado e se seu interlocutor na África, num país latino-americano ou na Ásia, etc. continuasse sempre em contato durante as ligações. Entrávamos numa fila e esperávamos a nossa vez. A pessoa responsável pela ligação tinha o cuidado de não desligar nunca o aparelho entre as ligações.

Alguns dias antes de finalizarmos nosso curso em Moscou, visitamos o edifício principal da MGU (Universidade Estatal de Moscou), projetado por Lev Rudnev, considerado o mais elevado dos 7 arranha-céus stalinistas de Moscou. É usado desde a sua inauguração como sede da MGU. Percebemos que ainda ostenta símbolos do período soviético. A arquitetura tem o mesmo estilo de outros prédios públicos, por exemplo, do Ministério dos Negócios Estrangeiros: não há curva e os prédios são enormes caixotes, lembrando o gótico. O romântico neste passeio foi ver as macieiras carregadas de frutas, caídas pelo chão às centenas.


Edifício principal da MGU
No primeiro plano, estátua de Mikhail Vassilyevich Lomonossov; no fundo, edifício principal da MGU.


No dia 07/10, fomos à Secretaria da MGU e obtivemos nossos certificados que passo a traduzir:

Certificado de Francisco Braga fornecido pela MGU

Federação Russa
Universidade Estatal de Moscou “Mikhail Vassilyevich Lomonossov”
Cidadão Brasileiro
Dos Santos Braga, Francisco José
De 03 de setembro de 2001 a 07 de outubro de 2001
Cursou no Centro de Ensino Internacional
MGU “M.V. Lomonossov”
pelo seguinte certificado:
Curso Prático de Língua Russa: 120h
História da Literatura Russa: 10h
Estudos Nacionais*: 10h

* Stranovedenie em russo = disciplina científica complexa, estudando a natureza, economia, estrutura social, língua e cultura de cada país (no caso, da Rússia).

Obs. O certificado de minha esposa Rute Pardini só contemplou sua frequência ao “Curso Prático de Língua Russa”, num total de 140 horas. No seu nível básico, não eram oferecidas outras disciplinas.
Certificado de Rute Pardini fornecido pela MGU


No penúltimo dia de nossa estada em Moscou (08/10/2001), fomos às nossas salas de aulas despedir-nos de nossos colegas e professores, munidos de nossos certificados. Foi um momento inesquecível de belos sentimentos de ambas as partes, mas principalmente calou fundo em nós uma saudade indescritível, uma incerteza se deveríamos ou não voltar, um despreparo para aquela despedida sempre retardada porque nos parecia que seria definitivamente a última.

No último dia de nossa estada em Moscou (09/10/2001), levantamo-nos cedo, tomamos rapidamente nosso café da manhã e achamos que havia tempo suficiente para eu tomar o metrô e fazer compra de uma boneca de porcelana e de alguns últimos souvenirs, enquanto minha esposa preparava as malas. Nosso avião estava programado para decolar às 16h. Após essa compra, demorei-me ainda algum tempo tentando prolongar a minha despedida de uma terra tão querida. Já me sentia consternado por deixar os amigos que fizemos em tão pouco tempo, em condições tão difíceis, pressionados todo o tempo pelo inverno rigoroso, pelas tarefas escolares e por desafios de comunicação. Enfim, tínhamos que adaptarmo-nos ao prazo previsto em nosso visto, concedido pela Embaixada russa em Brasília, que expirava no dia seguinte (10/10/2001). Não adiantava retardar a nossa despedida.

Ao voltar ao nosso apartamento, chamamos a funcionária responsável por dar-nos a autorização para sair do apartamento que nos abrigara durante mais de um mês. Neste instante, ocorreu um incidente desagradável. A funcionária deu pela falta de uma fronha numerada. Nesta hora, conhecemos um pouco do inferno da burocracia russa (semelhante à brasileira, afinal). A funcionária só admitia dar um comprovante de quitação, se devolvêssemos tal fronha. Minha esposa ponderou que muitas vezes devolvera roupas limpas que chegavam em excesso sem nunca ter exigido qualquer comprovante e que agora a funcionária fazia uma exigência descabida. Enquanto dizia isso, desfazia as malas, abria pacotes, desembrulhava presentes para localizar a fronha extraviada. O tempo passava e fomos ficando nervosos. Quando já víamos a impossibilidade de chegar ao aeroporto a tempo de tomar o avião, a funcionária finalmente concordou em nos dar o visto de saída, mesmo com a falta da malfadada fronha. Corremos com a bagagem (8 malas) para a calçada da avenida e levantamos a mão para qualquer carro que passasse por ali. Essa era uma prática comum em Moscou, naquela época. Parou um carro particular e combinei com ele um preço até o aeroporto de Sheremetyevo, que ficava a 29 km dali.

Está claro que não nos foi possível chegar a tempo de fazer o check-in. “O avião já está taxiando”, informou-nos uma recepcionista da Aeroflot. Diante de nossos insistentes pedidos, ela repetiu o refrão: “O avião já está taxiando”. Pelo nosso atraso e pela remarcação de nossa viagem para o dia seguinte (10/10/2001, data do vencimento de nosso visto para permanência na Rússia) pagamos uma multa de US$150.00 e fomos obrigados a pernoitar no aeroporto, aguardando o próximo voo para Amsterdam.

Durante a noite que passamos no aeroporto, observamos dois fatos estranhos que ocorreram diante de nossos olhos e contribuíram para a nossa experiência na Rússia. Primeiro, sentamo-nos desolados com a perda do avião, quando se aproximou uma senhora de meia idade, asiática, puxando conversa e portando umas malas e bolsas. A certa altura, disse que ia ao banheiro, mas não retornou. Depois de alguns minutos, a polícia russa se aproximou, observou aquela bagagem desacompanhada e indagou se era nossa. Dissemos que não; então, a polícia russa, supondo tratar-se de tráfico de droga, levou a bagagem para averiguação. Nunca mais soubemos do paradeiro da senhora e da sua bagagem.

Outro evento muito marcante foi o intenso movimento noturno de mães com seus bebês em carrinhos com destino a países europeus e EUA. Percebia-se que os bebês choravam muito, sem que as mães soubessem acalentá-los. Mais tarde, anos depois, na Polônia, em conversa com um casal espanhol, ficamos sabendo que as meninas russas engravidavam e o Estado assumia a gravidez. Ao nascer seu bebê, o Estado era proprietário do bebê e cobrava US$5,000.00 de quem quisesse adotá-lo. O objetivo não era vender a criança, mas garantir a sobrevivência do abrigo que a adotou, até que fosse adotada por uma família digna que pudesse amá-la e educá-la como seu filho.
Souvenirs russos que conservamos até hoje: ovos de madeira pintados à mão


Calendário p/ o ano de 2002. Ex.: data de 6 de julho







NOTAS EXPLICATIVAS






¹ Esclareço que, naquela época, era impossível solicitar o visto diretamente à Embaixada da Rússia: era necessário ser convidado por instituição russa, para então o turista brasileiro dirigir-se à Embaixada e conseguir o seu visto, munido do seu certificado de vacinação “anti-amarílica”.

²  Hoje em dia o turista, que chega de avião a Moscou no Aeroporto Internacional de Sheremetyevo, pode optar por taxi, ônibus ou trem, este último chamado AeroExpress para o deslocamento até o centro de Moscou. Dizem que, diferentemente da época em que lá estivemos, o trânsito em Moscou piorou muito, é um caos, com muito congestionamento. Quanto a esse trem AeroExpress, consta que sai do aeroporto de Sheremetyevo e vai direto à estação de trem chamada Bielorusski, no centro de Moscou em exatos 35 minutos, com 2 trens por hora, ou seja, com partida a cada 30 minutos. O AeroExpress foi inaugurado em 2005 e faz parte da Russian Railways, sendo um trem moderno, confortável e seguro. É possível comprar a passagem online, no app do celular, nas máquinas (com versão em inglês) ou nos guichês de atendimento. Na classe econômica (standard), o ticket custava, em valor referente a setembro de 2016, 470 rublos (R$23,00). O horário de funcionamento desse trem é das 05h00 às 00h30min. Ainda a respeito do aeroporto de Sheremetyevo, é bom saber que atualmente tem 4 terminais, sendo que um deles, o Terminal E, tem um hotel. Claro que tudo isso era impensável em agosto de 2001.
http://contandoashoras.com/2016/10/07/russia-como-ir-do-aeroporto-de-sheremetyevo-ao-centro-de-moscou/
 

³  Fundado em 1973, como todas as construções dos “novos distritos”, aquele educandário estava num prédio bem alto. Nele residiam mais de mil alunos estrangeiros de todo o mundo, principalmente europeus, que no momento se encontravam em férias, isto é, tinham desocupado seus alojamentos para a realização do Curso de Verão de 2001.

⁴  A Internet traz uma entrevista concedida por Ekaterina Pantchenko à Voz da Rússia em 2012. A entrevistada era chefe do departamento internacional da editora AST, que é o único proprietário legal das obras do brasileiro Paulo Coelho. De acordo com a reportagem, “na Rússia, Paulo Coelho é conhecido desde 1996. Seu primeiro livro publicado em russo foi o famoso romance O Alquimista (1988), depois foi Veronika Decide Morrer (1998) e O Monte Cinco (1996), O Manual do Guerreiro da Luz (1997), O Demônio e a Srta. Prym (2000), Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei (1994) (...). E já no segundo milênio Coelho teve na Rússia o pico da sua popularidade. (...) O público russo de Coelho continua muito grande e suficientemente estável e os encontros que organizamos contribuíram para manter o interesse dos leitores.” Antenado nas melhores oportunidades para a publicação de seus livros, “Paulo Coelho visitou a Rússia várias vezes. A mais ressonante foi a sua visita em 2006, quando o famoso brasileiro viajou de Moscou a Vladivostok de trem na mais longa ferrovia do mundo, a Ferrovia Trans-Siberiana, que se estende mais de 9.000 km. (...)” 
Um ano depois de nossa ida a Moscou, Paulo Coelho foi eleito para a ABL em 25/07/2002 e recebido em 28/10/2002 pelo Acadêmico Arnaldo Niskier para ocupar a cadeira nº 21.


⁵  TASS é uma importante agência mundial de notícias russa, fundada em 1902, no estilo da Reuters, Associated Press e Agence France-Presse. Outra agência que estava bem ativa quando de nossa estada era a RIA NÓVOSTI, agência noticioso-analítica de divulgação do Estado com representações em 120 países e que editava 13 jornais e revistas ilustradas, editava livros, fornecia reportagens e material fotográfico, com vistas a propagar as coisas da Rússia no estrangeiro. Em 09/12/2013 Vladimir Putin assinou a liquidação da Nóvosti e do serviço de rádio internacional Voz da Rússia para criar a Agência de Informação Internacional RUSSIA TODAY. O RT (anteriormente Russia Today) é um canal de televisão russo com emissão em três línguas: em inglês britânico, lançado em 10/12/2005; em árabe (2007) e em espanhol (2009); e em 2010 foi iniciada a programação da RT América, com sede em Washington. RT, com sede em Moscou, emite 24 horas por dia boletins de notícias, documentários, debates e talk-shows, bem como esportes, notícias e programas culturais sobre a Rússia, visando ao mercado de notícias do exterior. 
Em 10 de novembro de 2014 o grupo de mídia russo Rossiya Segodnya lançou a marca de mídia SPUTNIK. A sede da Sputnik se encontra em Moscou, mas a agência têm escritórios nos principais países e regiões por todo o mundo, incluindo o Brasil (Rio de Janeiro). Segundo informações dadas pela Sputnik, ela substituiu a agência internacional de notícias RIA Nóvosti e a rádio Voz da Rússia (Golos Rossii), que foram dissovidas em 2013. 






AGRADECIMENTO 








Nesta seção quero agradecer à minha esposa Rute Pardini pela sua contribuição ao formato final do texto, muitas vezes servindo-se de sua extraordinária memória, e pela dedicação de cuidar, por tantos anos, das fotos que ela registrou de nossa participação naqueles cursos de língua russa e nas excursões, sem as quais não teria sido possível ilustrar e enriquecer o presente texto.







BIBLIOGRAFIA








NEVES, Roberto de Castro: Viagens para sempre serem lembradas, Rio de Janeiro: MAUAD Editora Ltda., 2012, 282 p.