quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

ÚLTIMAS PALAVRAS DE DECIUS MUS

Por ANATOLE FRANCE (1844-1924)

Tradução do francês e três comentários por Francisco José dos Santos Braga

 
O apóstolo Paulo escreveu em Filipenses, 1:21: "Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro"; frei Geraldo de Reuver o.f.m. (✰ Wassenaar- Holanda, 26/09/1920 - ✞ Santos Dumont-MG, 31/01/2000) pautou sua vida por esse preceito paulino, na sua forma mais modesta e franciscana possível. Dedico esta tradução à sua memória, abnegado e dedicadíssimo educador e mestre de extraordinária cultura, que lecionava as disciplinas de Matemática e Francês, durante todas as minhas 4 séries ginasiais (1961-1964), no Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, utilizando material didático que ele próprio produzia para tal fim. Por falta de espaço, deixarei de mencionar outras qualificações de frei Geraldo, que eram múltiplas e variadas. O texto em francês que traduzi consta de FRANCÊS (Leituras e Exercícios para o terceiro ano), 2ª edição, Santos Dumont, 1986, pp. 60-62 de sua autoria, e corresponde ao capítulo IX de Le Livre de Mon Ami, por Anatole France, e continua inédito até o presente

 

. Por fim, vejo muita semelhança das qualidades do sr. Chotard em frei Geraldo, fruto da minha convivência com ele durante vários anos.
A morte de Decius Mus (óleo sobre tela, 289x518 cm) por Peter Paul Rubens - Crédito pela foto: Link: https://www.liechtensteincollections.at/en/collections-online/the-death-of-decius-mus   👈

 

Esta manhã, frequentando lojas de livros usados (sebos) no cais, encontrei na caixa de promoções um volume desparelhado de Tito Lívio. Ao folheá-lo ao acaso, deparei-me com esta frase: “Os restos do exército romano conquistaram Canusium ¹ na calada da noite”, e esta frase lembrou-me o sr. Chotard. Ora, quando penso no sr. Chotard, é por um bom tempo. Ainda pensava nele ao voltar para casa, na hora do almoço. E, como eu estava com um sorriso nos lábios, me perguntaram o motivo.  
O motivo, meus filhos, é o sr. Chotard. 
— Quem é esse Chotard que faz você sorrir? 
Vou contar-lhes. Se aborrecê-los, finjam que estão ouvindo e deixem-me acreditar que não é a si mesmo que o teimoso contador de histórias narra suas histórias...
 
“Eu tinha quatorze anos e estava na terceira série. Meu professor, cujo nome era Chotard, tinha a tez rosada de um velho monge, e era um. 
 
“O Irmão Chotard, depois de ter sido um dos grupos mais gentis do rebanho de São Francisco, em 1830 renunciou à vida monástica e tomou o hábito secular sem, no entanto, conseguir usá-lo com elegância. Que razão o irmão Chotard teve para agir assim? Uns dizem que foi o amor; outros dizem que foi medo, e que, depois dos Três Dias Gloriosos ², tendo o povo soberano atirado alguns talos de couve aos capuchinhos de ***, o Irmão Chotard saltou sobre os muros do convento, para evitar que os seus perseguidores cometessem um pecado tão grande como maltratar um capuchinho. 
 
“Este bom irmão era um homem culto. Ele se formou, deu aulas e viveu tanto e tão bem que seus cabelos estavam ficando grisalhos, suas bochechas rosadas e seu nariz corado quando fui levado com meus camaradas aos pés de sua tribuna. 
 
“Que professor belicoso da terceira série tínhamos lá! Era preciso vê-lo quando, com o texto em mãos, conduzia a Filipos os soldados de Bruto. Que coragem! que grandeza de alma! que heroísmo! Mas ele escolhia seu tempo para ser um herói, e esse tempo não era o presente. Sr. Chotard se mostrava inquieto e receoso ao longo da vida. Ele se assustava facilmente. 
 
“Ele tinha medo de ladrões, de cachorros raivosos, do trovão, dos carros e de tudo que pudesse, de alguma forma, danificar a pele de um homem honrado. 
 
“Vale dizer que só o seu corpo permanecia entre nós; sua alma estava na antiguidade. Vivia este homem excelente nas Termópilas com Leônidas; no Mar de Salamina, na nau de Temístocles; nos campos de Cannas, junto do cônsul Emílio Paulo; caía todo ensanguentado no lago Trasímeno, onde, mais tarde, um pescador encontraria o seu anel de cavaleiro romano. Em Farsália ele desafiava César e os deuses; ele brandia sua espada quebrada sobre o cadáver de Varus, na Floresta Hercínia ³. Ele era um famoso guerreiro. 
“Tendo resolvido a vender caro a sua vida nas margens do Egos-Pótamos e orgulhoso de esvaziar a taça libertadora na sitiada Numância, Sr. Chotard não desdenhava de forma alguma recorrer, com os astutos capitães, aos mais pérfidos estratagemas. 
“Um dos estratagemas que devemos recomendar”, disse-nos um dia Sr. Chotard, comentando um texto de Eliano, “é atrair o exército inimigo para um desfiladeiro e esmagá-lo sob blocos de pedra.» “Ele não nos disse se o exército inimigo tinha frequentemente a gentileza de se prestar a esta manobra. Mas mal posso esperar chegar ao ponto em que Chotard se notabilizou nas mentes de todos os seus alunos. 
“Ele nos dava como tema de composições, tanto latinas quanto francesas, batalhas, cercos, cerimônias expiatórias e propiciatórias, e foi ditando a correção dessas narrações que exibia toda a sua eloquência. Seu estilo e sua cadência expressavam em ambas as línguas o mesmo ardor marcial. Às vezes ele tinha o costume de interromper o curso de sua ideia para nos dispensar castigos merecidos, mas o tom de sua voz permanecia heróico mesmo nesses incidentes; de modo que, falando alternadamente com o mesmo sotaque, como um cônsul que exorta suas tropas e como um professor da terceira série que distribui tarefas como castigo, ele deixava os estudantes em uma confusão ainda maior porque era impossível saber se era o cônsul ou o professor que falava. Um dia chegou a se superou nesse gênero, com um discurso incomparável. Esse discurso, todos nós o ficamos sabendo de cor; tive o cuidado de anotá-lo em meu caderno sem omitir nada. 
“Aqui está como eu ouvi, como ainda ouço, pois me parece que a voz gutural do Sr. Chotard ressoa ainda em meus ouvidos e os enche com sua solenidade monótona. 
 
ÚLTIMAS PALAVRAS DE DECIUS MUS
 
Décio Mus discursando para as legiões por Peter Paul Rubens, na Galeria Nacional de Arte em Washington D.C., nos EUA. Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%BAblio_D%C3%A9cio_Mus_(c%C3%B4nsul_em_340_a.C.)  👈

 
Prestes a se devotar aos deuses manes e já pressionando com as esporas os flancos do seu impetuoso corcel, Décio Mus voltou-se uma última vez para os seus companheiros de armas e disse-lhes: 
“(Se vocês não observarem melhor o silêncio, imporei uma detenção geral a vocês.) Estou entrando, pela pátria, na imortalidade. O abismo me espera. Vou morrer pela salvação comum. (Sr. Fontanet, copie para mim dez páginas de rudimento .) Assim o decidiu, em sua sabedoria, Júpiter Capitolino, o eterno guardião da Cidade Eterna. (Sr. Nozière, se, como me parece, você ainda passar seu dever de casa ao sr. Fontanet para que ele o copie, como sempre, vou escrever ao seu pai.) É justo e necessário que um cidadão se dedique à salvação comum. Invejem-me e não chorem por mim. (É inepto rir sem motivo, sr. Nozière, você será impedido de sair na quinta-feira.) Meu exemplo viverá entre vocês. (Senhores, seus escárnios são de uma impropriedade que não posso tolerar. Informarei o diretor sobre sua conduta.) E verei, do seio do Elísio, aberto às almas dos heróis, as virgens da República pendurando guirlandas de flores aos pés das minhas imagens.
 
“Naquela época, eu tinha uma prodigiosa faculdade de rir. Pratiquei-a inteiramente com base nas últimas palavras de Decius Mus, e quando, depois de nos ter dado o motivo mais poderoso para rir, o sr. Chotard acrescentou que é tolice rir sem motivo, escondi minha cabeça num dicionário e perdi o sentido. Aqueles que aos quinze anos não foram abalados por um ataque de riso sob uma chuva de punições, ignoram o que seja um prazer. 
 
“Mas não se deve pensar que eu só era capaz de me divertir nas aulas. À minha maneira, eu era um pequeno bom humanista. Sentia muito fortemente o que há de amável e nobre naquilo que tão bem chamamos de belas-letras. 
 
“A partir de então tive um gosto pelo belo latim e pelo belo francês que ainda não perdi, apesar dos conselhos e exemplos dos meus contemporâneos mais felizes. O que aconteceu comigo a esse respeito é o que comumente acontece com pessoas cujas crenças são desprezadas. Para mim fiz um orgulho do que talvez só fosse um ridículo. Fui teimoso em minha literatura e permaneci um clássico. Podem me chamar de aristocrata e mandarim; mas creio que seis ou sete anos de cultura literária dão à mente bem preparada para recebê-la uma nobreza, uma força elegante, uma beleza que não se consegue por outros meios.
 
“Quanto a mim, provei com prazer Sófocles e Virgílio. Sr. Chotard, admito-o, Sr. Chotard, ajudado por Tito Lívio, me inspirava sonhos sublimes. A imaginação das crianças é maravilhosa. E algumas imagens magníficas passam pela cabeça dos pequenos brincalhões! Quando não me dava um ataque de riso, sr. Chotard me enchia de entusiasmo. 
 
“Cada vez, com sua voz pastosa de velho pregador, ele pronunciava lentamente esta frase: Os restos do exército romano conquistaram Canusium na calada da noite, eu os via passar em silêncio, à luz da lua, no campo nu, em uma estrada ladeada de tumbas, rostos lívidos, manchados de sangue e poeira, capacetes amassados, couraças desbotadas e postiças, espadas quebradas. E esta visão, meio obscura, que desaparecia lentamente, era tão séria, tão sombria e tão orgulhosa, que no meu peito o coração saltava de dor e admiração dela.
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
¹ Canusium, atual Canosa, é uma das mais importantes cidades da Apúlia, situada próximo à margem direita do rio Aufidus, atual Ofanto, cerca de 15 milhas de sua foz. Como houve uma forte infusão de civilização helênica na região, supõe-se que seu fundador tenha sido de origem pelasga. A primeira menção histórica de Canusium aparece durante as guerras dos Romanos contra os Samnitas, na qual os habitantes de Canusium se aliaram a estes, até que as repetidas devastações do seu território pelos Romanos os levaram a submeterem-se aos vencedores, entregando-lhes o seu oppidum (cidadela ou cidade fortificada), que foi totalmente devastado.
 
²  Nos dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, conhecidos como os Três Dias Gloriosos, o povo de Paris e as sociedades secretas republicanas, liderados pela burguesia liberal, fizeram uma série de levantes contra Carlos X.
Levantaram-se barricadas na capital francesa e generalizou-se a luta civil. As revoltas populares sucediam-se a tal ponto que a própria Guarda Nacional acabou por apoiar, aderindo à sedição.
A revolução de julho de 1830 criou uma monarquia constitucional.
 
³ Notas históricas de frei Geraldo
Filipos: Bruto que conspirara contra César, foi derrotado na batalha de Filipos (na Macedônia) em 42 a.C. 
Termópilas: Leônidas lutou com seus espartanos no desfiladeiro das Termópilas contra as tropas persas, derrotando-as em 481 a.C. 
Salamina: Temístocles destruiu a esquadra persa perto da ilha de Salamina em 480 a.C. (guerras greco-persas) 
Cannas (Cannae): Aníbal derrotou as legiões romanas no lago de Trasímeno em 217 a.C. e na planície de Cannas, na Apúlia, sudoeste da Itália, em 216 a.C. 
Farsália: Júlio César venceu seu rival Pompeu na batalha de Farsália (na Grécia) em 48 a.C. 
Floresta Hercínia: O chefe germano Armínio destruiu, na floresta de Teutoburgo (outro nome para Floresta Hercínia), as legiões de Varo, no ano 9 d.C. 
Egos-Pótamos: Em 404 a.C. os espartanos destruíram a esquadra de Atenas perto do rio Egos-Pótamos (guerra do Peloponeso) 
Numância: antigo assentamento celta em região da atual Espanha que resistiu várias vezes aos invasores romanos. Foi tomado por Cipião Emiliano, após um cerco de quinze meses, em 133 a.C.
 
Devotio (sacrifício sagrado ou suicídio sagrado) é o ato pelo qual um cônsul, ditador ou pretor, ou ainda um cidadão por um deles designado, vendo as suas legiões em perigo, lança-se para combater as fileiras inimigas, levando o exército adverso à morte, por uma espécie de contágio mágico: ele se "devota" solenemente aos deuses Mânes e à Terra; seu sacrifício, se agradar aos deuses, "devota" igualmente as tropas inimigas à morte. Esta façanha foi atestada três vezes na história de Roma, cada vez por um membro da gente plebeia dos Décios, que se "devotaram" respectivamente em 340 a.C. (durante a guerra latina que opõe Romanos e Samnitas), em 295 a.C. (durante a terceira guerra samnita, em Sentinum) e em 279 a.C. (durante o conflito que opôs Roma ao rei do Épiro, Pirros (Pyrrhus em latim)).
O texto em questão parece referir-se ao discurso proferido por  Décio (Públio Décio Mus) às suas legiões em 295 a.C. Pelo menos é o que defende [GUITTARD, 1984, 582], para quem "a devotio de Décio em 340 é unanimemente considerada a réplica antecipada daquela de seu filho em 295... Muitas dúvidas cercam o suicídio sagrado do terceiro Décio em Ausculum... Somente a devotio de Sentinum resiste à crítica histórica e pode ser considerado autêntico."
 
Outra ocorrência de "devotio" ainda, a de Catão, está narrada no Livro II do poema épico Farsália de Lucano. Cf. meu texto intitulado "O patriotismo de Catão na Farsália de Lucano", em especial a nota explicativa nº 5. 

Nota de frei Geraldo: Livro que contém os elementos da língua latina. 
 
 
III. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: O patriotismo de Catão na Farsália de Lucano, publicado no Blog do Braga em 23/01/2023

FRANCE, Anatole: capítulo IX, Les dernières paroles de Décius Mus, extraído do Livre de Mon Ami

GUITTARD, Charles: Tite-Live, Accius et le rituel de la devotio, 1984, Relatório da sessão de 16 de novembro da Academia das Inscrições e Belas-Letras, nº 4, pp. 581-600
Link: https://www.persee.fr/doc/crai_0065-0536_1984_num_128_4_14205  👈

HANSLEY, Keith: The death of Decius Mus in a battle against the Latins, by Peter Paul Rubens (c. 1577-1640)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

BATUQUE, poema rosiano


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Dedico este ensaio ao Prof. JOSÉ CIMINO, escritor, poeta, filósofo e referência intelectual em Barbacena, membro da ABL-Academia Barbacenense de Letras e presidente da AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos e da ABROL-Academia Brasileira Rotária de Letras (MG Leste).

Batuque. Rugendas: Caderno do Arquivo 1, APM, 1988, p. 21.
I. INTRODUÇÃO
 
Como oficial de 3ª classe do Itamaraty, Rosa ganhava um ordenado insuficiente para um chefe de família, quando tomou conhecimento de um concurso de poesias promovido pela Academia Brasileira de Letras. Após aconselhar-se com seu tio paterno Vicente Paulo Guimarães, poeta experiente, relatou-lhe sobre a sua pretensão de concorrer com um livro de poemas, declamando dois dos poemas do futuro livro: "Caminhos de Minha Roça" e "Adeus do Lázaro". Do depoimento de seu tio, após ouvi-lo, colheu-se o seguinte trecho: "De emoção, meus olhos ressumbraram lágrimas. Eu lhe disse: Faça todos os seus poemas desse quilate e poderá contar com o prêmio. Nenhum candidato escreverá melhores", conforme [BARBOSA, 2007, 169-170].
 
Reproduzo aqui trecho do parecer de Guilherme de Almeida, o qual, acatado pela ABL, deu o prêmio ao livro de Rosa. Inicialmente vejamos como a poesia de Guimarães Rosa é avaliada pelo escritor paulista in [ROSA, 1997; p. 6]:
“Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos. Há aí vivo de beleza todo o Brasil: a sua terra, a sua gente, a sua alma, o seu bem e seu mal. Aí estão “Iara”, os “Ritmos Selvagens”, a “Boiada”, “Gruta de Maquiné”, a “ Maleita”, o “Luar na mata”, o “Batuque”, o “Caboclo d' ́água”, e, principalmente, aquela “Resposta”, que é, sem dúvida, uma das mais espantosamente verdadeiras e doloridas páginas da nossa literatura; e todos os quatro poemas de “No Araguaia”, uma quase epopeia na sua verde simplicidade de água e vegetal. E ao lado disso, as mais finas emoções líricas, como, por exemplo,“Elegia” e “Ausência”.
Concluindo: É, pois, meu parecer que seja o 1º prêmio do Concurso de Poesia de 1936 concedido ao livro "Magma", de João Guimarães Rosa; e que não seja a ninguém, neste torneio, conferido o 2º prêmio, tão distanciados estão do primeiro premiado os demais concorrentes. Proponho, entretanto, sejam concedidas, em igualdade de condições, duas menções honrosas aos livros "Noite confidente", de Mário Donato (inscrito sob nº 13) e "Livro de poemas de 1935", de Odilo Costa Filho e Henrique Carstens (inscrito sob o nº 24).
Tal é, salvo melhor juízo, o meu parecer.
São Paulo, 22 de novembro de 1936.
(ass.) Guilherme de Almeida, Relator
De acordo: (ass.) Laudelino Freire
Observe que Guilherme de Almeida teve a antevisão de toda a obra rosiana, tendo indicado os principais pontos sobre os quais a crítica se debruçaria: o universalismo e o regionalismo, a performance linguística de Rosa e o seu aproveitamento da literatura mundial.

II. DESENVOLVIMENTO DO TEMA
 
De acordo com [FREITAS, 2006, 9],
o parecer de Guilherme de Almeida enaltece a criatividade e inovação do poeta mineiro que apresenta uma poesia telúrica, cuja temática se concentra em elementos que remetem à questão da identidade nacional.

[FREITAS, idem, 14] indaga: Como o Brasil é imaginado pelo eu-lírico rosiano? O próprio [FREITAS, ibidem, 10] responde à questão:

O nosso país aparece através da fauna e da flora, do índio, do negro, do caboclo, dos mitos folclóricos e da crendice e superstição populares, temáticas bem exploradas pelo canto poético rosiano.” (...)
Com seu livro de poemas intitulado Magma conquistou o 1º lugar, concorrendo a um prêmio em dinheiro (cinco contos de réis ao vencedor). GR recebeu o prêmio pessoalmente, na ABL, em 29/06/1937. Discursou em agradecimento. Foi seu primeiro discurso. 

Eis dois pequenos trechos do discurso de GR, ao receber o prêmio da ABL:

“O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem vossa consagração me força a respeitar.”
“O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são ideias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto. (...)
Vejamos Batuque no livro MAGMA in [ROSA, 1997: 104-107]: 
 
Batuque
 
A negrada dança,
e nunca descansa,
no chão do terreiro,
de pés no chão...
 
“A premera imbigada
é papudo qui dá.
Eu também sou papudo,
eu também quero dá...”
 
E o batuque ferve,
e a sanfona geme,
e a violada chora,
arrastando a função...
comidas finas, querendo comer,
bebidas finas, querendo beber:
pau-a-pique, cobu, bolo de fubá,
cachaça queimada, garapa e aluá...
 
Cheiro de negro, catingada brava,
chitas luzentes, já amarrotadas.
o Felão que não veio, graças a Deus,
que eu tenho muito medo de seu Felão...
(Tenente Felão, cabra malvado,
que foi capitão-do-mato, noutra encarnação...,
 
“Felão veio?”
“Num vei não...”
“Pruquê qui nun veio?...”
“Nun sei não...”
 
Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,
pisando, pelados, aos pulos pesados,
a poeira do chão...
“Corre, gente, fui envém sordado!...
Some, gente, qui envém Felão!...”
 
“Pula, negrada, no meio do terreiro,
que eu vou ensiná vocês a dançá!...
Dança de refe, sanfona e rebenque,
Olá, violero, começa a tocá!...
Quem fugi, fogo nele, no meio da testa,
E não tem i nem a, se a justiça manda!...”
 
E têm de dançar a noite inteira,
a noite toda, sem parar...
“Canta, cambada, o que tavam cantando
antes de Felão chegá!...”
 
“Felão veio?...”
“Nun vei não...”
“Pruquê que nun veio?...”
“Nun sei não...”
 
E a negada dançando, e os refes batendo
nossa gente preta,
que em trezentos anos
sofreu a apanhar... 

Quem era esse personagem tão presente na consciência dos negros e tão estranho à dança que se desenrola durante o poema?
Felão, "tenente que foi capitão do mato", é uma presença ameaçadora sentida mas não realizada: uma espécie de sensação que lança uma sombra sobre a dança dos negros, fazendo-a parecer menos importante do que o próprio título sugere, obscurecendo e ofuscando o ambiente que devia ser de congraçamento e alegria.
Rosa faz uso da técnica literária do "overshadowing" para eclipsar o ambiente que devia ser festivo.
A sensação da presença de Felão objetiva criar uma sensação de des-ordem na ordem natural das coisas.
O próprio nome Felão evoca "felonia", termo que significa traição, deslealdade, perfídia e até admite o significado de crueldade.
É como se, na peça teatral que se representa, se desenrolasse um "deus ex machina" às avessas, que gerasse a expectativa de um desastre. Contrariando a opinião generalizada de que o dispositivo do "deus ex machina" é utilizado pelo dramaturgo para evitar o seu constrangimento perante um final de enredo confuso na tragédia, 
tão comum nas tragédias de Eurípides,  Rush Rehm, em particular, cita exemplos de tragédias gregas em que o "deus ex machina" complica a vida e as atitudes dos personagens confrontados pela divindade, ao mesmo tempo em que traz o drama para sua audiência.
Mas, quem é de fato esse Felão, que cria tanta turbulência para o bem-estar, a tranquilidade e a euforia dos negros?
 
Segundo [FREITAS, ibidem, 84],
o poema Batuque deixa evidente a hierarquia dos valores na figura do capitão do mato Felão, que representa a ordem dos donos dos escravos; fazendeiros que usavam as negras como objeto de desejo e os negros como máquinas lubrificadas pelo suor provocado por meio do calor do sol que não iluminava a consciência desses que impunham aos negros os valores da Colônia. Ao contrário do índio, o negro, em nosso país, era um estrangeiro que não tinha nenhum privilégio. (...)
[FREITAS, 85 apud SÜSSEKIND: 1982; 22]
quando busca as representações do negro na literatura dramática brasileira, estabelece três conceitos relevantes em relação à função deste personagem. O negro é uma metáfora dentro de um discurso amoroso e patriótico; um arlequim, quando tece e desfaz tramas, mas está sempre submetido, enquanto eterna criança, à autoridade e ao lar senhoriais; e como negro, num momento posterior à Abolição, em que se necessita de uma máscara racial que, colada ao rosto negro, sirva de instrumento de controle nas mãos daqueles que desejam mantê-lo a seu serviço.
O poema de Rosa, como observa a autora, traz a segunda perspectiva. O negro, dentro de sua senzala, dança provocado pelo ritmo da sanfona e da viola, o que mais tarde vai dar origem ao famoso samba brasileiro.
O negro aparece no poema rosiano sob a perspectiva do segundo modo de representação: como um negro-arlequim que teme a chegada de Felão, tenente que foi capitão do mato, representação de figura senhorial, que, nestes versos, aparece para acabar com a alegria dos estrangeiros africanos. A dança perpassa todo o poema, o discurso coloquial, presente no poema em prosa, separa, pela hierarquia linguística da norma culta e coloquial, a voz do poeta e a do negro.
Pelo valor social o negro pode ser visto sob dois aspectos, conforme [FREITAS, ibidem, 86 apud PRADO:  1931; 190],
“como fator étnico, intervindo pelo cruzamento desde os primeiros tempos da colônia, e como escravo, elemento preponderante na organização social e mental do Brasil.”
[FREITAS, ibidem, 87 apud PRADOidem; 193] ainda acrescenta:
“o negro não é um inimigo: viveu, e vive, em completa intimidade com os brancos”,
o que leva [FREITAS, ibidem, 87] a concluir que o negro é uma raça feliz que, mesmo sofrendo o poder de quem tem os chicotes na mão, contribui para a formação do povo brasileiro. Ou seja:
A cultura africana também forma de maneira indireta a nossa cultura, através da culinária, dos dogmas religiosos, da dança, e principalmente por meio do respeito às alteridades sociais e hegemônicas. O aspecto culinário aparece nos sétimo e oitavo versos da segunda estrofe, através do pau-a-pique, cobu, bolo de fubá, cachaça queimada, garapa e aluá; aspecto religioso, pela recorrência a Deus para que seu Felão, representação do senhor, não chegue à senzala; e a dança é mais evidente na sexta estrofe pela aliteração da consoante “P”: sapateio, patadas, em pés, em pancadas,/ pisando, pelados, aos pulos pesados,/ a poeira no chão... (...)
[NASCENTES, s/d, 20] analisa algumas estrofes do poema Batuque:
Em Magma encontramos no poema Batuque, já musical no próprio título, o melhor exemplo de exploração do estrato fônico: "Sapateio, patadas, em pés, em pancadas,/ pisando, pelados, aos pulos pesados,/ a poeira do chão..." A combinação da vogal /a/ com as surdas /p/, /t/ e /k/ e a sonora /d/ contribui para aumentar a intensidade do barulho produzido pela dança dos negros. Temos então aliterações /p/ e /d/ predominando no primeiro e segundo versos e coliteração /t/ /d/ só no primeiro. Como todo batuque é ritmado, o poeta cria cadência e ritmo no segundo verso através da cesura como técnica para construir duas redondilhas menores pi/san/do/ pe/la/dos aos/ pu/los/ pe/sa/dos, acrescidas de outra no verso seguinte, no qual o forte –ão encerra toda a cadeia melódica do trecho, como a nota mais alta de uma escala musical: a/ poei/ra/ do/ chão/...

III. FORTUNA CRÍTICA DE BATUQUE, in MAGMA, de Guimarães Rosa
  
BARBOSA, Alaor: Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa-Tomo I, Brasília: LGE Editora, 2007, 388 p. 
 
FREITAS, Sávio Roberto Fonseca: Representações do Brasil na poesia rosiana, dissertação de Mestrado para o Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, Recife: 2006, 135 p.  
 
NASCENTES, Zama Caixeta: MAGMARANA: A poesia de Magma em Sagarana, de Guimarães Rosa, s/d, 25 p.  
 
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1931, 223 p.  
 
REHM, Rush: Greek Tragic Threatre, Londres: Routledge, 1992, 178 p. 
 
ROSA, João Guimarães: Magma, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, 148 p.  
 
SÜSSEKIND, Flora: O Negro como Arlequim: Teatro & Discriminação, Rio de Janeiro: Achiamé, 1982, 78 p.

domingo, 14 de janeiro de 2024

O PREFACIADOR DE “JARDINS E RIACHINHOS”


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Dedico este ensaio aos filólogos em geral e, em especial, à minha amiga, poetisa e filóloga HILMA RANAURO, por seu reconhecido amor à palavra e ao discurso, bem como pela sua ânsia de aprender e compartilhar o conquistado.
Edição comemorativa dos 75 anos do nascimento de Guimarães Rosa
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O livro "JARDINS E RIACHINHOS" (1983) constitui uma edição comemorativa dos 75 anos de Guimarães Rosa (1908-1983), homenagem que lhe é prestada pelas Empresas Petróleo Ipiranga. Segundo a Apresentação da obra, "era desejo do próprio Guimarães Rosa reunir estas crônicas em um livrinho, como ele mesmo se referia, que se chamaria Jardins e Riachinhos." O que era um desejo se concretizou em realidade 16 anos após a sua morte (1967) com os contos rosianos ilustrados pelas magníficas fotos de Luiz Cláudio Marigo. 
 
Os contos escolhidos para integrar a nova coletânea foram extraídos da sessão homônima "Jardins e Riachinhos" do livro póstumo de Guimarães Rosa, intitulado Ave, Palavra (na edição da GLOBAL Editora: pp. 285-309), organizado por Paulo Rónai, assim denominados: Jardim fechado, O riachinho Sirimim, Recados do Sirimim, Mais meu Sirimim e As garças. 
 
Consta ainda do livro, além dos textos de Guimarães Rosa, um Perfil de Guimarães Rosa por Renard Perez e uma Bibliografia de & sobre João Guimarães Rosa
 
Para prefaciador do notável livro foi convidado Geraldo França de Lima (1914-2003), natural de Araguari-MG, escritor que recebeu durante sua vida inúmeras premiações por seus romances, razão por que foi eleito para ocupar a Cadeira 31 da ABL-Academia Brasileira de Letras, onde foi recebido em 19 de julho de 1990 pelo Acadêmico Lêdo Ivo. 
 
A Academia Barbacenense de Letras, sob a presidência do Prof. Mário Celso Rios, achou por bem dedicar o seu Anuário 2000 a João Guimarães Rosa, que desembarcara em Barbacena a 3 de abril de 1933 para assumir o posto de capitão-médico no 9º Batalhão de Infantaria, hoje 9º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais (9º BPM) e deixara essa cidade a 8 de agosto de 1934, tendo aí completado 25 e 26 anos de idade. Antes de editar o dito Anuário comemorativo, Prof. Mário Celso Rios escreveu uma correspondência a Geraldo França de Lima, àquela altura já Acadêmico imortal da ABL, para solicitar-lhe que lhe enviasse alguma nota para figurar no Anuário comemorativo. 
 
ANUÁRIO 2000 "João Guimarães Rosa" da Academia Barbacenense de Letras

 
O famoso romancista laureado enviou-lhe não só seu famoso depoimento intitulado "O homem Guimarães Rosa" (in "Em memória de João Guimarães Rosa", Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, 1ª edição), como também ainda enviou para o Anuário 2000 da Academia Barbacenense de Letras o seguinte testemunho, segundo [RIOS, 2000, 8-9] no referido Anuário:
"Eu era dono do jornal "O Quepe". O dia: uma Quarta-feira de Trevas (sic). Quando entrei no Grande Hotel, local em que morava, aproximei-me de um capitão da Polícia Militar, que estava sentado no salão de entrada e ofereci a ele uma assinatura do jornal. Ele mostrou-se interessado e me respondeu que nem endereço tinha para que o referido lhe fosse enviado, uma vez que acabara de ser transferido para Barbacena e não havia encontrado acomodação em lugar algum.
Esse capitão era Guimarães Rosa.
Aí, eu disse para ele que, após a Semana Santa, ele encontraria um lugar para se hospedar e, enquanto isso não acontecia, poderia ficar numa vaga improvisada no quarto que ocupava.
Daí nasceu nossa amizade.
Posteriormente, ajudei-o como procurador e recordo-me de ter-lhe oferecido o edital para o concurso do Itamarati."

(Rio de Janeiro 28-12-98)

Segundo a biografia de Geraldo França de Lima no site da ABL, o futuro romancista laureado
"em 1929 (isto é, pouco mais de três anos antes de Guimarães Rosa), seguiu para Barbacena, matriculando-se no internato do Ginásio Mineiro. Ali permaneceu por cinco anos, distinguindo-se no aprendizado de línguas e sendo um dos mais assíduos frequentadores da biblioteca. Em 1932, os estudantes do último ano do ginásio, levados pela efervescência cultural de Barbacena, transformaram o grêmio literário no grupo literário Arcádia Ginasiana de Letras. Geraldo França de Lima foi eleito seu presidente e diretor do jornal O Quépi, semanário de ideias em Barbacena. Nesse jornal, apareceram suas primeiras poesias. (...)
Em 1934, no Rio de Janeiro, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil e obteve o primeiro emprego, como revisor do jornal A Batalha, de Júlio Barata, estreando também como articulista. (...)
Em 9 de dezembro de 1938 colou grau de bacharel em Ciências Jurídicas. Depois de rápida passagem por Araguari, voltou para Barbacena, como professor do Ginásio Mineiro, nomeado pelo governador Benedito Valadares. Em Barbacena, nos dias incertos da Segunda Guerra Mundial, conheceu o escritor francês Georges Bernanos, de quem se tornou amigo e confidente. Ali, iniciou vagarosamente todo o plano da obra literária. (...)
O ano de 1961 foi o ano do ingresso de Geraldo França de Lima em definitivo na vida literária. Guimarães Rosa, almoçando em casa do amigo, encontrou na escrivaninha os originais do romance "Uma cidade na província". Levou-os consigo e, entusiasmado, leu-os no mesmo dia. Pela madrugada, ao terminar a leitura, telefonou para dona Lygia, esposa do romancista e, emocionado, transmitiu-lhe sua impressão: "Ou muito me engano ou estou na frente de um grande romancista." Mudou o nome para "Serras azuis", providenciou a publicação, indo pessoalmente procurar o editor Gumercindo Rocha Dórea. Na tarde do lançamento, na Livraria Leonardo da Vinci, em 2 de junho de 1961, Guimarães Rosa pediu a palavra e em discurso relatou sua amizade com Geraldo França de Lima, terminando com a apologia do romance. O sucesso alcançado valeu ao livro o Prêmio Paula Brito Revelação Literária 1961, da Biblioteca Pública do Estado da Guanabara."
São estas algumas interações que divisei entre os dois amigos e irmãos nas Letras.
 
 
Na próxima sessão, constataremos o fato de que não poderiam os editores de "Jardins e Riachinhos" ter encontrado alguém mais digno da divulgação da obra do que Geraldo França de Lima, conhecedor que era da intenção de seu amigo e irmão nas Letras, eis que sabia ele que "a paixão superior e convergente de Guimarães Rosa foi a palavra", que para este "se revestia de um caráter sacramental, supremo", fazendo todo o sentido Ave, Palavra de 1970 ter alcançado 5 edições subsequentes pela Editora Nova Fronteira e em 2022 uma nova edição pela GLOBAL Editora.
 
Abaixo se lerá o prefácio (pp. 6-7) do livro JARDINS E RIACHINHOS da autoria de Geraldo França de Lima.
 
PREFÁCIO 
 
Por GERALDO FRANÇA DE LIMA 
 
CONHECI JOÃO GUIMARÃES ROSA ao acaso numa esplêndida manhã de Quinta-feira Santa, em Barbacena, no hall do Grand'Hotel, no ano remoto de 1933  e naquele instante começou a nossa amizade, constante, duradoura. Sem recurso a qualquer hipérbole, posso dizer que somente a morte nos separou. Conheci-o num encontro fortuito: ele, capitão da Polícia Militar; eu, no último ano de preparatório. Sua condição de médico e minha situação de aluno do Ginásio Mineiro não impediram que entre nós crescesse e florescesse a mais sólida de todas as amizades. Ele mesmo repetia: Somos irmãos e quando me apresentou ao grande José Olympio, fê-lo com estas palavras: É mais que um amigo, é meu irmão. 
 
Desde o primeiro instante em que o vi  num momento em que se angustiava por não ter achado na cidade, toda voltada para as devoções da Semana Santa, um lugar onde ficar, onde dormir,  percebi a força de sua personalidade. No entanto, uma força amena, que não impunha, mas cativava, misturada, diluída numa bondade imensa, numa compreensão intensa, numa tolerância envolvente. 
 
De rara erudição, consolidada nas contínuas incursões pelo universo das bibliotecas, era pessoa simples, modestíssima. Detestava o pedantismo das citações exibicionistas, o inapelável dogmatismo das opiniões decisivas. Só aos poucos, vencida a timidez, lançava uma ideia, que rebrilhava instantaneamente com a energia de rutilante luz. Fora das enfermarias do batalhão, fechava-se em casa debruçado sobre os livros ou estudando línguas. Nunca em toda a sua existência teriam escoado três horas sem que tivesse um livro sob os olhos. À noite enfrentávamos o frio seco de Barbacena com um passeio que terminava no cinema. 
 
Benfazejamente dotado, com uma sensibilidade à flor da pele, com a esmerada persistência de um filigranista, amava também a linha e a cor: lápis em punho apanhava o traço grave dos sobradões ou a silhueta graciosa das igrejas de Minas, dessa Minas que ele ampliou nas páginas permanentes de seus livros. A sua paixão, porém, superior e convergente, foi a palavra e que por isso afirmava ser maior do que o homem. Porque se o homem não tivesse tido o dom de falar perder-se-ia no amontoado das coisas inúteis. E a palavra para Rosa revestia-se de um caráter sacramental, supremo. Com a palavra Rosa brincou na sua infância solitária; pela palavra varou os caminhos que o conduziram aos altiplanos do gênio. Amava inventá-las, alimentá-las com um substrato inédito, dando-lhes dimensão tão infinita quanto o pensamento. A palavra em si, como a nota musical, ou a cor, movimento ou risco, constituía a razão imanente da arte, o logos determinante de qualquer concepção estética. Para que a Literatura se renovasse, nutrindo-se de seiva agreste e quente, mister se tornava que a palavra, como inspiração, brotasse do nada. E Rosa via nesse nada, naquele nonada incipiente e exclamativo com que rompe a obra-prima, "Grande Sertão: Veredas", numa síntese prodigiosa, a origem de tudo. Em verdade, nos termos da linguagem bíblica, Deus tirou o mundo do nada. Para Rosa, a palavra é tão vasta na sua expressão quanto o infinito  e a arte nada mais é do que a projeção do pensamento nesse infinito. 
 
O sentido da ciclópica obra de Rosa  chantada entre o grandioso e o incomensurável  destaca-se pelo gigantismo da concepção e pela exuberância da originalidade. 
 
Num dia de maio de 1933, quando as paineiras ainda trajavam um roxo claro e as quaresmeiras enfeitavam as serras, fugimos, Rosa e eu, pela bitolinha da Oeste de Minas, para São João d'el Rey e Tiradentes. Integrados na compacta beleza daquelas cidades, Rosa só tinha exclamações de pasmo e de assombro ante o mistério da criação ali caprichosamente reunido. O artista,  afirmava , por um instinto indefinível se aparta do comum das coisas, para deixar-se guiar por um toque transcendente e sobrenatural. 
 
Rosa foi o fiel enamorado da morte, a nela pensar a todo instante, deduzindo, no entanto, que, no seu macabro triunfo, imortalizaria o homem, como magistralmente asseverou noutra síntese admirável na oração de sua posse na Academia: "As pessoas não morrem, ficam encantadas". 
 
Serão poucos, por mais numerosos, repetidos e avolumados, os aplausos à Empresa Petróleo Ipiranga por ter patrocinado a publicação desta finíssima obra d'arte, de gosto aprimorado, imaginada por Salamandra, sob a direção idealista de Geraldo Jordão Pereira, em cujas veias corre o sangue de seu pai  José Olympio , o benemérito maior das Letras no Brasil. 
 
Quem ler as páginas que adiante se vão abrir há de ver que Rosa fez da palavra a sua profissão de fé e por outro lado bendirão a todos os que colaboraram na feitura deste livro, um hino à palavra, instrumento de que Rosa se serviu para transmitir pelos tempos afora a emocionada mensagem com que marcou, em sulcos indeléveis, sua meteórica passagem pela Terra. 
 
Quanto a mim, continuarei a guardar de Rosa a saudade imorredoura, a recordação aveludada, que torna vivos os mortos inesquecíveis. 
 
Rio, setembro, 83  
 

II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog do Braga agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 
 
III. BIBLIOGRAFIA 
 
 
ACADEMIA BARBACENENSE DE LETRAS: ANUÁRIO 2000 "João Guimarães Rosa", Ano XXI, vol. 19, 107 p.
 
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: Biografia de Geraldo França de Lima 

RIOS, Mário Celso: Guimarães Rosa em Barbacena, in Anuário 2000 "João Guimarães Rosa, pp. 08-23.
 
ROSA, João Guimarães: AVE, PALAVRA, São Paulo: GLOBAL Editora, 2022, 1ª edição, 319 p. (na qual foram incluídas: na abertura do livro, Nota da primeira edição e Advertência da segunda edição, ambas da autoria de Paulo Rónai (org.) das 6 seis edições lançadas pela Editora Nova Fronteira; no encerramento do livro, o texto "Fita verde no cabelo": a perenidade do era uma vez, publicado originalmente em Veredas de Rosa, em Belo Horizonte, pela PUC Minas, no ano de 2000. 
 
________________________: JARDINS E RIACHINHOS, Rio de Janeiro: Salamandra, Empresas Petróleo Ipiranga, 1983, 79 p.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A BUSCA PELO INSTRUMENTO IDEAL: Os pianos de Glenn Gould. Ref.: um ensaio de Katie Hafner.


Por Georges Leroux *
Tradutor do francês para o português: Francisco José dos Santos Braga
 
Resumo do artigo: Recensão crítica da obra de Katie Hafner: Um Romance sobre Três Pés e Busca Obsessiva de Glenn Gould pelo Piano Perfeito, New York: Bloomsbury, 2008, 259 p. (publicado na revista Circuit - Musiques Contemporaines, vol. 22, nr. 2, 2012, pp. 37-41)

Piano Steinway modelo CD 318 de Glenn Gould, no seu apartamento em Toronto
 
 
A busca pelo instrumento ideal pertence à história da interpretação, mas permanece pouco estudada. Várias razões podem explicar esta lacuna, aparentemente não muito importante, mas, em muitos aspectos, decisiva para o desenvolvimento da estética musical. É preciso primeiro ter em conta o fato de vários instrumentos, e em particular muitos violinos, terem adquirido uma celebridade independente da dos artistas que os utilizaram. É o caso de todos estes instrumentos terem um nome próprio que identifica os seus autores, como os violinos das ilustres famílias de fabricantes de Cremona (Amati, Guarneri, Stradivarius). A história destes instrumentos se junta, por assim dizer, à dos seus proprietários. O artista coloca-se a serviço dum instrumento que o ultrapassa imediatamente e lhe impõe uma exigência antes de mais nada dependente da sua história. Mas é preciso considerar também a humildade do artista perante o instrumento: mesmo que todos os artistas possam afirmar merecer um instrumento superior ao que possuem, as circunstâncias muitas vezes os obrigam a aceitar aquele que têm em mãos. Servir a música encontra aqui a sua ilustração mais banal, na medida em que a arte ultrapassa na sua essência todos os instrumentos criados para servi-la. 
 
A história dos pianos usados ​​por Glenn Gould constitui uma exceção. Embora devamos abster-nos de julgá-la, especialmente no que diz respeito a este critério moral da humildade, é preciso reconhecer que a relação deste genial pianista com os instrumentos que tocava ou possuía vai além de tudo o que se pode imaginar na idealização do instrumento. Comparado a pianistas quase indiferentes ao instrumento e apenas desejosos de obter o melhor resultado possível de cada um, como Sviatoslav Richter, Glenn Gould nunca ficou satisfeito com o instrumento que tocava. Quando pensou que finalmente o tinha encontrado, nunca deixou de tentar modificá-lo para extrair dele o que dele ainda esperava. Num estudo fascinante e soberbamente documentado, Katie Hafner apresenta as várias fases desta busca e, embora não possa evitar relacioná-las com a concepção da interpretação perfeita que Gould se impunha, sua análise centra-se primeiro no instrumento em si. Vários aspectos da vida e da personalidade de Gould certamente são evocados ao longo do caminho, mas o objeto da investigação é a busca incessante pelo instrumento ideal. 
 
Essa investigação passou por diversas fases que podemos resumir da seguinte forma. Na sua juventude, Gould tomou consciência da importância do instrumento para si e rapidamente determinou as qualidades essenciais ao seu toque, desenvolvendo assim uma linguagem sobre elas que possibilitava uma descrição rigorosa das suas expectativas, tanto no que diz respeito ao mecanismo do instrumento, quanto ao que concerne o som esperado. Este primeiro período está ligado a um instrumento que aparece como um objeto querido ao longo da sua vida, a ponto de podermos pensar que nunca deixará de procurar a sua presença, apesar de nunca a ter perdido. O segundo período é o da procura de um piano de concerto, realizada essencialmente na empresa Steinway. Durante muitos anos, correspondentes ao período de concertos e aos primeiros discos, Gould examina centenas de instrumentos, sem encontrar nenhum que parecesse corresponder às suas expectativas. Entre esses pianos, um instrumento, porém, terá o mérito de superar todos os outros, é o CD 174. Gould acreditava ter sem dúvida chegado então ao fim de sua busca, e podemos pensar que ele teria parado de examinar instrumentos concorrentes, se o impensável não tivesse acontecido: este piano sofreu danos irreparáveis ​​durante um transporte e Gould teve que resolver retomar sua busca. Durante vários anos, embora aceitasse tocar instrumentos que considerava medíocres, permaneceu em busca do instrumento perfeito. Por acaso descobriu-o bem perto dele, no showroom da Steinway, na loja Eaton em Toronto. Esse piano era o famoso CD 318, com o qual Gould manteve durante quase vinte anos uma relação tão íntima e intensa que o considerou uma história de amor. Mas esta história também teve um final trágico, para o qual o acidente do CD 174 poderia tê-la preparado: o CD 318 também foi vítima de uma queda, provavelmente por negligência dos prestadores de serviço de cargas da empresa Eaton, no regresso de Cleveland, onde Gould devia gravar um concerto de Beethoven, sessão que ele havia cancelado. Gould nunca se separava desse instrumento, que o aproximava a cada dia deste elísio musical a que aspirava e que hoje se tornou objeto de museu. 
 
Na sua juventude, a relação de Gould com o seu instrumento já era objeto de especial atenção. Katie Hafner relembra esse vínculo físico, manifestado na postura inclinada aproximando o rosto do teclado e na adoção da pequena cadeira baixa feita por seu pai em 1953. Ao longo de sua infância, quando foi apresentado ao piano através de sua mãe, Florence Grieg, e depois com seu professor no conservatório de Toronto, Alberto Guerrero, Gould trabalhou em diversos instrumentos, mas não mudou essa atitude de proximidade física. 
 
Fotografia que mostra sua postura incomum ao piano / Crédito: Don Hunstein / Sony







                           
















 
 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
O primeiro instrumento ao qual ele realmente se apegou foi um Chickering, feito em Boston em 1895. Ele descobriu esse instrumento em 1953, na casa de um amigo que o alugava. Gould o amava tanto que acabou comprando-o em 1957 e nunca mais se desfez dele. Esse instrumento tinha muitas das qualidades desejadas, mas não podia ser usado em concerto. A sorte serviu Gould ao apresentá-lo em 1955 ao Steinway CD 174 nas oficinas da empresa. O período foi próspero, pois o músico passou a contar com dois instrumentos cuja leveza e sutileza apreciava. 
 
Enquanto vários músicos se contentavam com metáforas para descrever as suas expectativas,  como Horowitz dizendo de um piano que carecia de “buquê”,  Gould conseguia descrever com precisão o que esperava de uma ação e do conjunto do mecanismo. Embora contasse com a habilidade de técnicos especializados, como Verne Edquist, com quem manteve relacionamento que durou muitos anos, Gould conhecia todos os aspectos técnicos do instrumento. No seu ensaio, Katie Hafner não só analisa a fabricação de todos os componentes de um piano de concerto, mas também explica detalhadamente sobre quais elementos o trabalho técnico pode ser realizado para modificar-lhe a ação e som. Esta análise permite-nos compreender como a idealização de Gould se baseou num conhecimento incomum da técnica. Desde a manutenção dos feltros dos martelos até à largura das teclas, todos os aspectos estão envolvidos numa síntese controlada em última instância pelo músico, e apenas por ele. Esta estreita ligação entre o interesse pela técnica e a procura da interpretação perfeita revela-se assim perfeitamente consistente com a paixão de Gould pela tecnologia de gravação. 
 
Em se tratando das qualidades estéticas do toque, como por exemplo a clareza da articulação, Gould é conhecido pelas escolhas de repertório que ilustram suas preferências. O som Steinway, que pode ser descrito como um equilíbrio perfeito entre um baixo dramático e poderoso, e um registro agudo brilhante, claro e cantante, talvez não fosse a priori a primeira escolha de Gould, que preferia um som seco, limpo e leve. Katie Hafner chama esse som de “puritano”. O fato de ter ficado afastado do repertório privilegiado pelos artistas patrocinados pela Steinway não constituiu, no entanto, um obstáculo: quando se tornou famoso em 1955, após a gravação das Variações Goldberg de Bach, feitas no CD 174, a Steinway não poupou esforços para fornecer-lhe instrumentos que o satisfizessem e, principalmente, para reparar aqueles que lhe interessassem. Foi o caso, por exemplo, do CD 205 ou do CD 90, dos quais Gould gostou durante algum tempo, mas dos quais se afastou pela rigidez da sua ação. Durante este tempo, continuou a sentir saudade do seu Chickering, falando do seu “deslumbramento diante da sua versatilidade de interpretação, da sua capacidade de modificação, da soberba exuberância da sua paleta tonal”. 
 
O encontro de Gould com o instrumento que se tornaria objeto de uma predileção absoluta não pode ser datado com precisão. Em junho de 1960, cansado de procurar um novo instrumento, Gould visitou o Auditório da Eaton, onde o CD 318 se encontrava por acaso. Quando começou a tocá-lo, reconheceu o instrumento que desde sempre procurava. Assim se iniciou uma história, onde se reúnem as preferências estéticas de um artista que havia atingido a maturidade de sua arte e de um instrumento já velho e deteriorado, mas que apresentava, nas palavras de Gould, “o som mais translúcido” que um piano possa oferecer. O seu técnico em afinação, Verne Edquist, rapidamente concordou que este instrumento era “um piano com alma”. O relato de Katie Hafner sobre a relação de Gould e Edquist com o instrumento ilustra o desafio estético do que iria se tornar uma luta contínua para levar o CD 318 aos seus limites extremos. A gravação dos Intermezzi de Brahms, onde se combinam a intimidade da interpretação e a austeridade da leitura, nos coloca frente a frente com esta questão. Gould encontrou o instrumento no qual reconheceu sua própria voz. Por ocasião do seu último concerto público, em Los Angeles, em março de 1964, ele tocou no CD 318. 
 
Após sua retirada do concerto, a vida do CD 318 se transformou. Gould concentrou-se na gravação e sua busca pela perfeição atinge tais limites que até mesmo Verne Edquist considerou impossível alcançá-la. Sua cumplicidade com o artista exigia dele habilidade técnica no dia a dia, mas ele sabia que o instrumento havia se tornado, como escreve Katie Hafner, “a extensão do próprio Gould”. Foram produzidas mais de noventa gravações com o CD 318, e o repertório é muito diversificado, apesar de incluir um núcleo significativo de obras de Bach. Mas esse idílio ia conhecer um destino desastroso. Em setembro de 1971, enquanto Gould se preparava para gravar o Segundo Concerto de Beethoven com a Orquestra de Cleveland, ele cancelou a sessão. Ele previu o que iria acontecer? O piano já estava a caminho e teve que ser repatriado para Toronto. Quando a caixa foi aberta, constatou-se que ele estava gravemente danificado. 
 
Gould ficou muito consternado com esse acidente que arruinava seus esforços, e sem dúvida por muito tempo, mas durante vários meses não se desesperou em restaurá-lo. Apesar de várias tentativas, nenhum técnico foi capaz de obter êxito. Porém, adquiriu-o em 14 de fevereiro de 1973, após a decisão da empresa de rescindir o contrato de aluguel. Até 1980, continuou a mandar fazer vários trabalhos no instrumento, muitas vezes considerados irrealistas pelos seus técnicos, mas ao final Gould teve que se resignar. Ficou arriscado continuar gravando num instrumento que era apenas uma sombra de si mesmo. Enquanto trabalhava no Cravo Bem Temperado, na companhia de Bruno Monsaingeon que estava rodando um filme, o piano deixou de funcionar. Este foi o fim do CD 318. Como continuar? A busca por um novo instrumento levaria ao rompimento com a empresa Steinway: Gould ficou impressionado com um instrumento Yamaha e, embora diversas falhas tenham impedido o esquecimento do CD 318, um novo relacionamento foi formado. A segunda gravação das Variações Goldberg foi feita no novo Yamaha e sem dúvida ele teria se tornado a nova figura do ideal se a vida de Gould não tivesse terminado tão repentinamente em 4 de outubro de 1982, após uma grave hemorragia cerebral. 
 
Túmulo de Glenn Gould, com a inscrição das Variações de Goldberg de Bach
 
Este livro sensível e meticuloso conta uma história rara, mas vai muito além das inúmeras anedotas que reproduz. Dá-nos acesso a um elo que toca a própria essência do ato musical: a exigência do artista quanto ao seu instrumento. Não é de estranhar que o próprio Gould tenha sido o exemplo de uma relação alimentada pelo excesso, ele que nunca deixou de esticar até aos limites mais improváveis ​​a procura do que esperava da música. O instrumento,  somos assim levados a compreender,  acaba por ultrapassar a instrumentalidade: torna-se parte integrante da arte. 
 
* Professor na Universidade de Quebec em Montreal