sexta-feira, 11 de março de 2022

PELLÉAS ET MÉLISANDE: CLAUDE DEBUSSY RESPONDE ÀS CRÍTICAS EM LE FIGARO EM 1902



Por Véronique Laroche-Signorile
Traduzido do francês e ilustrado por Francisco José dos Santos Braga de acordo com o original
 
 À esquerda: pôster criado por Georges-Antoine Rochegrosse em 1902 para a ópera "Pelléas et Mélisande"; à direita:     compositor Claude Debussy (1862-1918). Crédito: Rue des Archives/TAL;Lebrecht/Rue des Archives
 
 
OS ARQUIVOS DE LE FIGARO - Em 30 de abril de 1902, acontece a première em Paris do drama lírico, tirado do teatro de Maurice Maeterlinck, cuja música é de Claude Debussy. Na época, a obra suscitou fortes críticas: o compositor se defendeu nas colunas de Le Figaro
 
 
Uma obra discutida com paixão. Há 120 anos, acontecia na Opéra Comique em Paris a primeira apresentação de Pelléas e Mélisande, com libreto de Maurice Maeterlinck e música de Claude Debussy. O evento fez muito barulho e causou polêmica pela originalidade da obra. Mas também por causa da diferença entre Maeterlinck e Debussy e Albert Carré, o diretor.
 
Maurice Maeterlinck (1862-1949) é um escritor belga, poeta, dramaturgo e ensaísta. Crédito: Rue des Archives/Rue des Archives/Tallandier


 
É assim que Maurice Maeterlinck se dissocia da obra antes mesmo do ensaio, quando publica uma carta na seção "Courrier des Théâtres" do Le Figaro datada de 14 de abril de 1902. Nela se lê: “A direção da Opéra Comique anuncia a representação próxima de Pelléas e Mélisande. Essa performance acontecerá contra a minha vontade, porque M.M. Carré e Debussy desrespeitaram o mais legítimo dos meus direitos. [...] Eles conseguiram assim me excluir da minha obra, e a partir de então ela foi tratada como um país conquistado. Foram feitos cortes arbitrários e absurdos que a tornam incompreensível; mantiveram o que eu pretendia suprimir ou melhorar, como fiz no libreto que acaba de ser lançado, onde se verá o quanto o texto adotado pela Opéra Comique difere do texto autêntico. Em uma palavra, o Pelléas em questão é uma peça que se tornou estranha para mim, quase hostil; e, despojado de todo o controle de minha obra, estou reduzido a desejar que sua queda seja rápida e retumbante.”
 
 
A originalidade e a novidade musicais de Claude Debussy são desconcertantes 

Cena 1 do Ato I: "Uma floresta" da ópera "Pelléas et Mélisande" de Claude Debussy. Crédito: Rue des Archives/Rue des Archives/Tallandier


 
Quanto à música do compositor Claude Debussy, ela suscita opiniões contraditórias, que levam René Lara a escrever em Le Figaro de 3 de maio de 1902: "A obra do sr. Debussy nos remete, de fato, a tempos heróicos, quando Wagner, Chabrier, César Franck e Vincent D'Indy desencadeavam tempestades no santuário de tradições respeitadas. Ele despertou uma curiosidade apaixonada, polêmicas ardentes, críticas acerbas: sofre o destino das obras de combate, e imagino que isto seja, para um músico do valor de sr. Debussy, o sucesso mais nobre que poderia ter desejado". 
O crítico de teatro Henry Bauër especifica de fato na edição de Le Figaro de 5 de maio de 1902 que "desde a primeira audição, o drama musical de originalidade, de novidade desconcerta e irrita muitos espectadores". Mas todas as reações e polêmicas deles são uma boa publicidade para a ópera, porque incitam inúmeros espectadores a virem descobri-la. E Henry Bauër predisse aos leitores de Le Figaro que “hoje ou amanhã a partitura de Debussy se imporá. É uma questão de tempo, de pouco tempo. Ela se imporá, eu lhes digo: em pouco tempo, Colonne ou um outro produzirá, ato por ato, o sucesso de seus concertos, e vocês consagrarão (com o pesar de não ter sido dos primeiros no teatro) esta obra tão apaixonadamente artística, tão jovem, tão pura e terna, tão original de assunto, de inspiração, de expressão”.

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Artigo aparecido em Le Figaro em 16 de maio de 1902 

Crítica das críticas 

 Pelléas et Mélisande - A namorada 

Quem foi que disse que "músicos tinham almas fechadas"? Este não estava errado. Não é pouca coisa saber o que sr. Claude Debussy pensa da crítica de Pelléas et Mélisande. Ele responde pouco e sorri mais. Ele fala bem baixinho, com uma voz abafada e melodiosa. Acham que ele odeia a propaganda por temperamento e a publicidade por higiene. Ele é de uma discrição quase conventual. É preciso bater suavemente à porta e tirar seus sapatos para não fazer barulho nesta alma onde todos os sons têm um valor profissional e uma ressonância particular.

"A luta não é igual. Os críticos têm o direito de julgar em uma hora o esforço, o trabalho, a gestação de vários anos."  
Claude Debussy.

“Os críticos... os críticos?... ele murmura. São pessoas corajosas, muito corajosas, quero acreditar. São, em todo caso, pessoas muito felizes. Eu os invejo talvez mas sente-se que o sr. Debussy não os inveja de forma alguma com eles a luta não é igual. Eles têm o direito de julgar em uma hora o esforço, o trabalho, a gestação de vários anos. 

Quase modesto, continua sr. Debussy. 

"Há doze anos que tenho Pelléas e Mélisande como companheiros de existência diária, senhor. Desse longo trabalho, não me queixo. Trouxe-me acima de tudo uma alegria, um contentamento íntimo que nenhuma palavra, nenhuma culpa poderia diminuir. Além disso, alguns críticos me entenderam e adivinharam perfeitamente. Só posso agradecer ao sr. Gaston Carraud (La Liberté), sr. Camille de Sainte-Croix (La Petite République), sr. Gustave Bret (La Presse), sr. André Corneau (Le Matin), e sr. Henry Baüer pelo seu belo artigo publicado no Le Figaro.

"Eu respeitei, sobretudo, o caráter, a vida dos meus personagens, queria que eles se expressassem fora de mim, por si mesmos."  
Claude Debussy.

O sr. Catulle Mendès, depois de muitos elogios com os quais me declaro confuso, considera que não traduzi “a essência poética do drama”, e que minha música permanece “independente dela”. No entanto, tentei com todos os meus esforços e toda a minha sinceridade identificar uma com a outra. Respeitei, sobretudo, o caráter, a vida dos meus personagens, queria que eles se expressassem fora de mim, por si mesmos. Eu os deixei cantar em mim. Tentei ouvi-los e interpretá-los fielmente. Isso é tudo. O sr. Gauthier-Villars admiro sua ciência técnica e a fidelidade com que dá ao “ acorde com 9ª ” uma publicidade bastante inesperada critica minha partitura pelo fato de que aí o desenho melódico nunca se encontrar na voz, e sim sempre na orquestra. De fato, eu quis que a ação nunca parasse, fosse contínua, ininterrupta. Eu quis não carecer de frases musicais parasitas.

A cantora escocesa srta. Mary Garden (1874-1967) no papel de Mélisande na ópera "Pelléas et Mélisande" na Opéra Comique em 1902. Crédito: Rue des Archives/Rue des Archives/PVDE.


Ao ouvir uma obra, o espectador está acostumado a experimentar dois tipos bem distintos de emoção: a emoção musical, por um lado; a emoção do personagem, por outro; geralmente, ele as experimenta sucessivamente. Tentei fazer com que essas duas emoções estivessem perfeitamente combinadas e simultâneas. A melodia, se assim posso dizer, é quase antilírica. É impotente para traduzir a mobilidade das almas e da vida.  Ela se adequa essencialmente à canção que confirma um sentimento fixo. Eu nunca consenti que minha música apressasse ou atrasasse, como resultado de exigências técnicas, do movimento dos sentimentos e de paixões de meus personagens. Ela desaparece desde que convenha que ela lhes deixe a inteira liberdade de seus gestos, de seus gritos, de sua alegria e de sua dor. É o que um de meus juízes, sr. de Fourcaud, de Le Gaulois, compreendeu muito bem, sem querer, falando, a propósito de Pelléas e Mélisande, de "declamação com notas, acompanhada apenas..." 
Sei que inspirei grandes temores ao sr. d'Harcourt ¹. Sinto muito. Ele fala a meu respeito como “arrivistas barulhentos”. Que ele fique tranquilo! Ele evoca a “Santíssima Trindade” musical: “melodia, harmonia e ritmo” cujas leis não podem ser infringidas. Está muito bem dito. Mas existe uma lei que impede o músico de misturar esses três elementos em certa proporção do que em outra. Eu penso que não. Além disso, apesar de duas leituras atentas, não consegui penetrar no sentido de todas as reflexões do sr. d'Harcourt, que devem ser infinitamente profundas. O mesmo crítico fala do “Despertar de Mélisande”. Talvez ele esteja confundindo com o Despertar de Brunnhilde?
"Meu método de trabalho, que consiste sobretudo em dispensar todos os métodos, não deve nada a Wagner."  
Claude Debussy.

Imprudentemente pronuncio o nome de Richard Wagner diante de sr. Debussy, que ultimamente tem dedicado a ele, na ativa e frutífera Revue Blanche, vários artigos singularmente vivos e penetrantes! “Sem dúvida, meu método de trabalho, que consiste sobretudo em prescindir de todos os métodos, nada deve a Wagner. Com ele, cada personagem tem, por assim dizer, seu “prospecto”, sua fotografia, seu “leitmotiv”, de que é sempre precedido. Confesso que acho este método um pouco grosseiro. Da mesma forma, o desenvolvimento sinfônico que ele trouxe ao drama lírico parece-me frustrar continuamente o conflito moral em que estão engajados os personagens, a ação passional, que é a única que importa."
Página manuscrita de Claude Debussy, ópera "Pelléas et Mélisande". Crédito: Rue des Archives/© Granger NYC/Rue des Archives 

 

Sr. Debussy fica animado. Ele perdeu sua bela timidez de agora há pouco. Ele carrega nas palavras e as martela. Sente-se que expressa uma profunda convicção, longamente ponderada, preciosamente preservada. Também é com alguma dificuldade que ele aceita voltar ao campo da discussão. “O que eu diria a você sobre outros críticos? Sem dúvida o sr. Gaston Serpette declara com admirável segurança que minha partitura é a “negação” de toda arte musical. Este escritor indulgente esquece que muito frequentemente uma negação vale várias afirmações. La Vie Parisienne e La Libre Parole não se preocupam felizmente com o ponto de vista artístico. Portanto, não posso prestar atenção a elas. Aliás, por lamentável descuido, o redator deste último jornal esqueceu-se de assinar seu artigo. Você tem que rir de tudo isso... ou melhor, sorrir disso.” 
E o Sr. Claude Debussy sorri, sim, e prossegue: “Mas que alegria para mim, ter tido colaboradores como srs. Albert Carré e André Messager, intérpretes como os de Pelléas e Mélisande, e permanecer, após a batalha, seu amigo grato e dedicado.” Mas aqui está o sr. Debussy partindo para os países do Sonho e da Quimera. Ele já está longe. Sou obrigado a deixá-lo, enquanto sua alma musical e discreta retoma o curso de seus pensamentos harmoniosos, delicados e sutis.[...] 
 
Por Robert de Flers
 
 
 
II. NOTA EXPLICATIVA
 
 
¹  Claude Debussy refere-se à crítica de Eugène d'Harcourt, publicada em 1º de maio de 1902 em Le Figaro, na qual evoca longamente o compositor e sua obra. Na edição de 20 de maio de 1902, o colaborador musical do jornal faz questão de especificar que não designava Claude Debussy quando falou de “arrivistas barulhentos” em seu artigo. 
 
 
III. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo traduzido por mim.

segunda-feira, 7 de março de 2022

FRANZ LISZT EM MILÃO (1837-38)


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Franz Liszt (1811-1886), pintado por Wilhelm von Kaulbach

"Mal se sabe por boatos que Beethoven e Weber eram deste mundo."                                                            Franz Liszt fala sobre cultura musical milanesa em carta endereçada a Schumann (abril de 1838) 
"A música de quarteto é completamente negligenciada na Itália, com exceção das aberturas das óperas... é quase impossível ouvir até mesmo a menor peça de música orquestral."                                                   Franz Liszt fala sobre as condições da música na Itália (março de 1839) 

 

Dedico este trabalho de pesquisa à minha irmã Elizabeth dos Santos Braga, que em viagem à Hungria visitou o Museu Memorial Liszt Ferenc em Budapeste, ocasião em que teve a grata lembrança de presentear-me com o livreto totalmente ilustrado "Hungarian and European Franz Liszt (1811-1886)", reeditado em 2018, e uma partitura para piano solo de "Szózat (1840) e Hino Nacional Húngaro (1844) - S. 486/R 158", em monumental transcrição para piano por Liszt, datada de 1873.

 

I. INTRODUÇÃO

 

Biedermeier é um sobrenome que acabou por se tornar um estilo muito popular na primeira metade do século XIX, mais precisamente entre os anos de 1815 (Congresso de Viena) e 1848 (Revoluções de 1848 nos Estados alemães), época em que a crescente classe média se interessou pelas artes e pelos temas mais sensíveis à sociedade burguesa. 
O estilo Biedermeier designava o padrão do gosto da classe média típica alemã no começo do século XIX. 
 
 Origem do estilo 
 
Ao término dos conflitos napoleônicos, houve um período de certa tranquilidade e paz entre os países do centro da Europa. Assim, com a economia se estabilizando, houve o crescimento da classe média. E esse panorama de prosperidade foi a porta de entrada para o movimento artístico e cultural conhecido por Biedermeier se manifestar não apenas nos lares das populações, mas também prevalente em artes, tais como: moda, artes plásticas, arquitetura, música, literatura, design de interiores. 
 
Estilo Biedermeier: invenção da simplicidade no mobiliário e nas artes

O termo Biedermeier foi aplicado tanto a um estilo sóbrio de mobiliário e de decoração típico da Alemanha, como à pintura e à literatura do mesmo período, caracterizadas pelo sentimentalismo, pelo intimismo e por uma sátira bem-humorada do mundo pequeno-burguês.
O estilo Biedermeier designa a cultura burguesa a arte e a literatura marcada pelo conservadorismo dessa época. A restrição das liberdades e sobretudo uma certa desconfiança no tocante à ação política provocam um recuo dos artistas para a esfera privada a família e o ambiente doméstico. 
Na arte, é considerado como um período de transição expressando um Romantismo Inicial ou Primeiro Romantismo, tal como interpretado pela burguesia, particularmente na Alemanha, na Áustria, no norte da Itália e nos países escandinavos. 
Apesar de o termo Biedermeier ter uma relação com a História, ele é muito utilizado para conceituar vários estilos artísticos que surgiram ao longo do período. 
A arte Biedermeier se fez mais presente entre as inúmeras obras fantasias, paráfrases e arranjos pianísticos para árias, cabalettas e outros trechos populares de óperas, destacando-se neste métier os mais virtuosos, a saber: Franz Liszt, Hummel, Kalkbrenner, Moscheles, Thalberg, Heller, Henselt, Fétis, etc. A música de alguns destes reflete a transição do período clássico para o romântico, como é o caso típico do húngaro Hummel. Além disso, esses virtuosos do piano transpunham para esse instrumento obras orquestrais ou sinfônicas. 
Essa técnica dentro das composições musicais serve para ilustrar como o Biedermeier obteve sucesso popular, justamente por possuir facilidade em atingir, de forma rápida e ampliada, um grande público para sua época. Pelo menos, seus principais representantes tiveram um status de pop stars.
Na literatura, o Biedermeier, conservador, opõe-se à Vormärz ¹, corrente de tendência revolucionária que se desenvolve a partir dos anos 1830.
 
A razão por que tratei do período Biedermeier na música romântica do século XIX, antes de analisar a presença de Liszt em Milão (1837-38), se justifica por Liszt se encontrar no seu melhor momento de virtuosismo, criatividade, invenção e técnica compositiva, em perfeita conexão com a arte Biedermeier, durante sua permanência na Itália. Outra razão é que pretendo utilizar, em minha tradução livre do italiano, passagens de um longo artigo de Giuseppe Rausa, jornalista, crítico cinematográfico e pianista, historiador da música e musicólogo, conferencista e escritor, intitulado Liszt a Milano, de envolta com trechos do capítulo Intermezzo: Il Biedermeier, extraídos do livro Storia del pianoforte. Lo strumento, la musica, gli interpreti, por Piero Rattalino. 
 

II. OS CONCERTOS DE LISZT EM MILÃO, por Giuseppe Rausa 

 

Quando Liszt chegou a Milão em 29 de agosto de 1837, a música pianística, camerística e sinfônica além dos Alpes era essencialmente desconhecida para a maioria. É verdade que algumas obras de Chopin já apareciam no catálogo de Giovanni Ricordi, mas eram apenas algumas gotas no mar de um catálogo que já contava com cerca de dez mil títulos. Além disso, as obras para piano de Mozart, Beethoven, Mendelssohn e Schumann continuavam quase totalmente desconhecidas dos milaneses, enquanto algumas fantasias sobre temas operísticos por Liszt já constavam do mencionado catálogo. 
O jovem pianista é recebido com todas as honras por Giovanni Ricordi e realiza concertos nos principais salões milaneses. Em primeiro lugar, apresenta-se no dia 3 de setembro na casa do seu editor, na via Ciovasso, para uma variada Academia: o artista escolhe para a ocasião o Divertimento sobre os Teus Batimentos Cardíacos, de Pacini ² (ou Divertissement sur "I tuoi frequenti palpiti") e a Grande Valse di Bravura. ³ O resultado é soberbo e os cidadãos são comunicados da chegada de um dos maiores intérpretes de concertos aos palcos milaneses. 
O próprio Liszt confirma isso ao escrever a Lambert Massart em outubro de 1837:  
"causei um furor, muito exaltado em uma academia (assim são chamados os concertos neste país), há seis semanas, em Milão na Ricordi's ..."
Entre outubro e novembro daquele ano, Ricordi publicou um comunicado em vários jornais milaneses sobre a presença de Liszt na cidade e a lista de suas composições já disponíveis. Aí se lê:
"Estando entre nós o famoso pianista Francesco Liszt... que não tem rivais no gênero fantástico e inspirado, certamente agradará aos srs. profissionais da música e aos muitos ilustres amadores de pianoforte em que Milão é rica, sabendo como a editora Ricordi Gio. Ricordi publicou as seguintes obras do referido autor: Reminiscências de I Puritani de Bellini ; Duas fantasias sobre motivos de Soirèes musicales de Rossini : 1) A Serenata e 2) A Orgia;  Trois morceaux de salon ; Grande Agilidade para piano de 2 e 4 mãos; Reminiscências de Os Huguenotes ; Reminiscências de A Judia ; Álbum dum viajante: 1º ano 1837 ; Três árias suíças para piano ¹⁰..."

Liszt também se apresenta durante as chamadas sextas-feiras musicais realizadas na residência de Rossini entre novembro de 1837 e janeiro de 1838, na da condessa russa Samoyloff e, finalmente, na da condessa Maffei em 1838, onde não encontra o favor da dona da casa. 
Os momentos culminantes da atividade de concerto milanês de Liszt são representados pelos três concertos que o pianista húngaro realiza no Teatro alla Scala. O primeiro concerto no grande salão (10 de dezembro de 1837; peças principais: Divertimento sobre a cavatina Os Teus Batimentos Cardíacos de Giovanni Pacini, Serenata e Orgia da Rossini e o Estudo em Sol menor destinado a transformar-se em Visão na versão final dos Estudos Transcendentais; no concerto estas poucas peças para piano estão dispersas entre duetos, cavatinas e coros de ópera). 
Os outros dois concertos no Teatro Ridotto (18 de Fevereiro e 15 de março de 1838), eventos organizados pelo empresário Bartolomeo Merelli em que o pianista ainda não se apresenta sozinho, mas, conforme os costumes da época, em um longo concerto antológico com cantores, dançarinos e peças para orquestra e coro. As peças propostas por Liszt são principalmente relacionadas ao repertório operístico, bem conhecido dos frequentadores do maior teatro milanês com a adição do Grande Septeto nº 1 (op. 74) de Hummel. ¹¹ 
Naquela época o catálogo de composições de Liszt ainda não oferecia muitas peças totalmente originais (a primeira coleção dos 12 Estudos foi elaborada precisamente naqueles meses) e suas performances se enquadravam, portanto, no âmbito habitual do entretenimento virtuoso sobre temas conhecidos, quase sempre de origem vocal. 
Deve-se acrescentar também que Liszt também se apresenta no Ridotto della Scala em 3 de dezembro de 1837, em um concerto coletivo (com Hiller e outros), executando a Abertura da Flauta Mágica em uma espetacular transcrição a seis mãos em três pianos. Na sala está Karl Thomas Mozart (segundo filho do compositor de Salzburgo, residente em Milão). 
No entanto, as execuções obtêm críticas positivas unânimes, muitas vezes entusiasmadas em relação ao virtuosismo apaixonante do pianista e, desde o outono de 1837, fala-se de "Paganini do piano", de "público em transe", de "uma grandiosa , irreprimível, enérgica maneira de tocar que já não parece ser o som do piano, mas a maestria de toda uma orquestra e é uma vibração que te sacode, te eletriza, te surpreende e muitas vezes produz uma sensação de ansiedade e agitação" (La Moda, 11 de dezembro de 1837). Só o Estudo em sol menor (tocado, como dissemos, em 10 de dezembro de 1837) não obtém aprovação unânime, tanto que, em quase toda parte, é citada a fala daquele ouvinte impaciente que se queixa de que "vai ao teatro para se divertir e não para estudar". 
Para finalizar aquele ano em grande estilo, Liszt apresenta um concerto em 29 de dezembro de 1837 no Teatro Sociale de Como, onde são executadas as habituais paráfrases rossinianas (A Serenata e A Orgia), seguidas de improvisações livres sobre temas propostos pelo público. 
No segundo concerto realizado no domingo 18 de fevereiro de 1838, ao lado do Grande Septeto op. 74 de Hummel, realizado com outros instrumentistas, incluindo Ernesto Cavallini, o destaque são as Variações de bravura sobre um tema de I Puritani de Bellini ¹² (uma versão quase completa do assim chamado Hexaméron, obra coletiva nascida em Paris, na sala da princesa Belgiojoso), inspirada em Suoni la tromba, e intrepido ¹³ que subentende um convite necessário à luta patriótica anti-austríaca. Nesta ocasião, seu amigo Rossini estava presente na plateia. 
O pianista, acompanhado por Marie d'Agoult (sua segunda filha nascida Cosima Liszt em Como em dezembro de 1837, mais tarde Cosima Wagner), deixa Milão naquele março de 1838 com a intenção de ali voltar em setembro seguinte, por ocasião da coroação de Fernando I, rei de Lombardo-Vêneto.
No entanto, naquele mesmo mês, envia uma correspondência desleal à Revue Musicale de Paris (publicada em maio de 1838), na qual fala mal do Teatro alla Scala, dos milaneses que o frequentam e, em geral, da cidade lombarda. O famoso artigo "La Scala" também foi "retocado" pela Condessa d'Agoult, por enquanto apenas no início de uma longa e brilhante carreira como escritora e jornalista comprometida com a causa progressista, e é enviado a Paris na certeza que isso causaria uma sensação. Pontualmente a polêmica explode: os principais jornais milaneses reagem todos negativamente, alguns com tons elegantes, outros de forma mais visceral, às acusações absurdas feitas pelo pianista de 26 anos. Liszt responde aos ataques com uma longa carta a Lampato, o diretor de La moda, tentando minimizar o alcance de suas declarações por meio de desculpas patéticas (o que sugeriria que a virulência anti-milanesa do texto é mais obra de d'Agoult do que do pianista) e, acima de tudo, argumentando uma alegada superioridade da cultura musical austríaca e alemã sobre a cultura da ópera italiana. Em suma, temos aí a polêmica generalizada. Para não fugir ao escopo do artigo e evitar que meu propósito se desvie para assuntos não-musicais, resumi o grande texto referente a essa polêmica, tópico amplamente tratado por Giuseppe Rausa. 
Voltando ao nosso fio da meada, Liszt e Marie retornam a Milão em 15 de julho de 1838. A polêmica domina os ânimos. De fato, a tensão chega a tal ponto que se fala em duelos e espancamentos. Prudentemente, Liszt e sua parceira deixam Milão em 23 de julho de 1838. 
Nos primeiros quinze dias de setembro, Milão recebe Fernando I para as celebrações solenes por ocasião de sua coroação na catedral de Milão. Liszt retorna à metrópole lombarda nessa ocasião, assiste às cerimônias entediado e decide dar um novo concerto no Ridotto della Scala. Após a acirrada controvérsia, porém, ele não pode se dar ao luxo de pedir honorários e, portanto, toca por caridade, tentando de alguma forma encontrar alguma harmonia com pelo menos uma parte da cidade. Na segunda-feira, 10 de setembro, em seu quarto concerto Scala (também desta vez uma academia vocal e instrumental), o pianista executa sua própria transcrição da abertura rossiniana de Guilherme Tell (ou seja, uma obra semi-proibida pela censura asbúgica por seu conteúdo liberal, encenada no teatro amplamente remodelado com o título Guglielmo Vallace em 1836) ¹, uma fantasia livre sobre temas operísticos, novamente L'orgia (das Soirées) e o Grande Galope Cromático ¹. Como você pode ver o programa usual "italiano", "desengajado" sem composições de Beethoven e Weber... Os milaneses, em todo caso, são bastante numerosos e aplaudem Liszt, apesar de tudo. 
 

III. NOTAS EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga 

 

¹  Vormärz é um termo que designa um período na História da Alemanha, referindo-se aos anos que antecederam as Revoluções de Março nos estados alemães da Confederação Alemã de 1848. Há uma controvérsia quanto ao início do movimento, embora alguns autores demarque o seu ponto de partida com a Revolução Francesa de julho de 1830. Tal período é marcado por controle e censura por parte da Áustria e Prússia em resposta aos apelos revolucionários para o liberalismo. 

²   S-419 (da ópera "Niobe" de Giovanni Pacini) - Piano: Steven Mayer
 
³  S-209, datada de 1835 - Piano: Alexander Polyakov 
 
  S-390i (Fantasia sobre I Puritani, datada de 1836) - Piano: Janos Hegedüs
  S-424 (Trata-se da Grande Fantasia sobre motivos de La Serenata e L'Orgia das Soirées musicales de Rossini, datada de 1837, nºs 10 e 11) - Piano: Praxedis Geneviève Hug
Link: https://www.youtube.com/watch?v=UaisM5wp2aA   👈
 
  S-142 e 143 (Morceaux de salon - Études de perfectionnement) - Piano: Kotaro Fukuma
Link: https://www.youtube.com/watch?v=9a4iIIGS_Bg   👈
 
  S-412ii (versão de 1838) - Grande Fantasia Dramática - Piano: Mark Viner
Link: https://www.youtube.com/watch?v=vXkjUrXIYkQ   👈
 
  S-409a - Reminiscências de La Juive, de Halévy - Piano: Stephen Hough
Link: https://www.youtube.com/watch?v=6MnXpen6XzY   👈  
 
  S-156 (Livro I: Impressões e Poesias) - Piano: Ashley Wass
Link: https://www.youtube.com/watch?v=olNJqtCkY50    👈
 
¹⁰  S-156/R. 8: nº 1: Ranz de chèvres - Piano: Jean Dubé
Link: https://www.youtube.com/watch?v=1z3beZWAIL0   👈
     S-156/R. 8: nº 2: Un soir dans la montagne - Piano: Jean Dubé
Link: https://www.youtube.com/watch?v=yNbyGu0-vXU   👈
     S-156/R. 8: nº 3: Ranz de chèvres - Piano: Jean Dubé
Link: https://www.youtube.com/watch?v=QE3UWV2g0ts   👈 

¹¹  Conforme [RATTALINO, 2008, 96], "em 1816, Hummel apresentou o seu Septeto op. 74 para piano, flauta, oboé, trompa, viola, violoncelo e contrabaixo. Foi um triunfo inaudito. A escrita explicitamente virtuosística de todos os instrumentos lançava a ideia de uma música de câmara não mais como colaboração, como criação de uma personalidade coletiva, mas como competição, como confronto dos talentos. Ao septeto op. 74 seguiram o Septeto op. 88 de Moscheles, o Septeto op. 132 de Kalkbrenner, o Grande Septeto Militar op. 114 de Hummel, com muito trompete, e os dois Septetos de Alexander Festa, além de uma evidente quantidade de Quintetos." 
 
¹²   S-392/R. 131 - Hexaméron - Morceau de Concert : Grandes Variations de Bravoure sur la Marche des Puritains de Bellini por MM. Liszt, Thalberg, Pixis, Henri Herz, Czerny et Chopin
1) Piano: William Wolfram
2) Piano: Horowitz
Link: https://www.youtube.com/watch?v=hQe_-sySBs4   (2ª parte)   👈

Gostaria de reproduzir aqui o que em 1991 escreveu Leslie Howard, famoso pianista, musicólogo e compositor australiano, mais conhecido por ser o único pianista a ter gravado as obras completas de Liszt para piano solo. São dele as seguintes notas certeiras a respeito do Hexaméron
"A colaboração entre compositores nunca esteve particularmente na moda, e geralmente só tem sucesso quando cada compositor é contratado separadamente para escrever um movimento ou uma variação. Mesmo assim, os exemplos mais famosos são notoriamente desiguais (...). Não é o caso do Hexaméron, que é realmente um sucesso, mesmo que suas exigências técnicas mantenham relativamente raras suas aparições em concertos. 
O concerto da princesa Belgiojoso, na verdade para benefício dos refugiados italianos, aconteceu em Paris em 31 de março de 1837, mas o Hexaméron não foi concluído a tempo. O concerto entrou para a história, no entanto, por ser a ocasião do célebre ‘duelo’ pianístico entre Liszt e Thalberg, rendendo o lendário veredicto da princesa de que ‘Thalberg é o primeiro pianista do mundo – Liszt é o único’. O que certamente nunca aconteceu foi uma execução combinada da peça por todos os seis compositores, apesar de muitos comentários posteriores. Nem seis pianistas fizeram fila na frente de uma orquestra para tocá-la até o momento presente. De qualquer forma, a única partitura manuscrita de Liszt de uma versão orquestral é reduzida pela metade. Curiosamente, a versão solo original tem muitas indicações de um acompanhamento orquestral proposto que é claramente destinado a toda a peça, e uma passagem de tutti é especificada no final. Mas como não apareceu nenhuma versão orquestral desta peça da autoria de Liszt, ou de qualquer outro contemporâneo, a peça é gravada aqui na versão impressa de Liszt para piano solo por completo. (Liszt também fez duas partituras para dois pianos bem diferentes da peça, nenhuma das quais é tão longa quanto a da versão solo original, e uma das quais tem um final totalmente reescrito.) 
São de Liszt o título e a forma desta obra surpreendentemente bem integrada: ele coletou e ordenou as contribuições de outros compositores, removendo até o último compasso das variações de Czerny e Chopin para estabelecer uma ponte melhor para dois interlúdios próprios: a primeira uma interrupção dramática, a segunda uma coda reflexiva antes do final. A nobre introdução começa com um tema de Liszt que muitas vezes combina e contrasta com o tema de Bellini. A variação de Liszt é contida e nada virtuosa. Chopin se mantém distante da bravura em um belo noturno. Todos fazem o máximo para surpreender: Thalberg, com seus efeitos de três mãos, Pixis, com suas oitavas maldosas, Herz com seu moto perpétuo, e especialmente Czerny, com uma bateria de truques diabólicos, sem dúvida destinados a testar até mesmo seu aluno mais famoso. Liszt guarda seu trovão para o final, onde mostra sua altivez para com cada um de seus colaboradores antes de um fecho brilhante." 
 
¹³  Cabaletta em dueto de baixo e barítono extraída da ópera I Puritani de Bellini, considerada o hino do independentismo siciliano, sobre a qual foram compostas 6 variações de bravura por Liszt, Thalberg, Pixis, Henri Herz, Czerny e Chopin. 
 
¹S-552/R-237 - Transcrição de Franz Liszt da famosa Overture Finale da ópera Guilherme Tell de Rossini (1938) - Piano: Kemal Gekić
Link: https://www.youtube.com/watch?v=hMqYN538i8s  
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A transcrição operística de Liszt do finale da abertura "Guillaume Tell" de Rossini também é de tirar o fôlego. A performance limpa e dramática de Gekić é memorável: ele estabelece um novo padrão para tocar este magnífico trabalho. Na auspiciosa transcrição de Liszt, este "tema" é arrebatador com seu cintilante vigor e bravura.  
Os cinéfilos conhecem essa abertura, é claro, para a trilha sonora composta por Hans Zimmer para "The Lone Ranger".

"Guillaume Tell" estreou em agosto de 1829 e foi a última das 39 óperas de Rossini. O compositor também forneceu para a Opéra de Paris uma versão mais curta de três atos, que incorporou a seção final do pas redoublé (marcha rápida da abertura em seu final); foi apresentada pela primeira vez em 1831 e tornou-se a base das futuras produções da Opéra.
A ópera teve muito sucesso desde o início e teve frequentemente novas récitas. Em 1868, o compositor esteve presente em sua 500ª apresentação na Opéra.
Le Globe comentou com entusiasmo, numa memorável edição, que 
"uma nova época se abriu não apenas para a ópera francesa, mas para a música dramática em outros lugares."
¹  S-219 - Grand Galop Chromatique - Piano: György Cziffra 

Nas notas de Leslie Howard, pode-se ler o seguinte: 
"O Grande Galope Cromático figura com destaque nos próprios programas de recitais de Liszt, e sua enorme popularidade provavelmente seja responsável pela rápida publicação da versão simplificada e da versão para dois pianos... A clara leveza do caráter da obra fez desta peça um "prato instantâneo de agrado para qualquer multidão", porém a imaginária corrente submarina lança numa sequência maravilhosa de tons inteiros e alguns cromáticos maldosamente mal resolvidos na coda." 
Da Wikipedia colhi algumas informações adicionais: 
"Este Galope era um dos 'bis' favoritos de Liszt, que considerava um 'estimulante'. O Grande Galope Cromático, composto em 1938,  foi publicado para piano solo e também em uma versão para dois pianos (S-616). Entre os pianistas do século XX, György Cziffra alcançou notavelmente enorme sucesso de público com esta peça." 
 
Igualmente, a Wikipedia, noutra parte tratando de obras específicas, dá mais algumas indicações sobre a peça, nos seguintes termos: 
"Grande galope cromático composto em 1837. Foi a mais popular das peças virtuosas que Liszt tocou durante suas turnês pela Europa. Liszt o estabeleceu durante uma festa privada dada em 19 de abril de 1838 em Veneza, pela Baronesa de Thaltzar, mãe de Thalberg; depois tocou a versão a quatro mãos com Clara Wieck (futura Madame Schumann) durante um sarau oferecido por Haslinger em Viena. A estreia pública finalmente aconteceu em um show em Viena em 2 de maio de 1838.
 
Cabe finalmente mencionar que [RAUSA, idem] menciona que, naquela década de 1830, a Ricordi imprimiu de Liszt inúmeras fantasias sobre temas operístico (principalmente de Rossini, Bellini, Donizetti e Meyerbeer), às quais se somam a primeira versão do Álbum dum Viajante, os 24 grandes estudos e o Grande Galope Cromático. 


IV. AINDA SOBRE A ÉPOCA BIEDERMEIER: O PIANO, A MÚSICA, OS INTÉRPRETES, por Piero Rattalino 

 

O desenvolvimento de várias invenções, mudanças no gosto da sociedade, o concerto público mediante pagamento, a ampliação de salas de concerto segundo normas acústicas, tudo isso em conjunto propiciou o surgimento de uma arte musical mais próxima do gosto burguês que a financiava. Conforme escreveu [RATTALINO, 2008, 89-90]:  
"O período conhecido por Biedermeier pode ser entendido como a fachada oposta da civilidade representada por Beethoven e Schubert. Não que o Biedermeier deva ser considerado incivilidade: o Biedermeier é, no entanto, do cotidiano, é a vida, é a relação com uma realidade histórico-social que vem aceita e dentro da qual se decide operar sem rebeliões. Ao contrário de Schubert, os músicos do Biedermeier são todos de sucesso, ativos no campo internacional, e que desenvolvem a relação social simbolizada do concerto público, indo ao encontro de novos ouvintes e ansiosos por coisas que atinjam a imaginação e que os excitem com a revelação de um mundo fabuloso. O concerto público mediante pagamento, como já havíamos visto, é a instituição que a burguesia cria para si lentamente, sob modalidade associativa ou empresarial, para ter acesso comunitário à fruição da música instrumental que a aristocracia até então garantia para si, em vez disso, com financiamento direto. Haydn tinha ficado diretor da orquestra privada do príncipe Esterházy, Mozart havia feito parte da orquestra do arcebispo de Salzburgo, Beethoven havia feito parte da orquestra do príncipe eleitor de Bonn. Mozart, após ser liberado do emprego fixo, tornara-se empresário de si mesmo, Beethoven organizou, mas mais raramente do que Mozart, concertos de música próprias (vivendo com os proventos que lhe vinham da venda das composições aos editores e com uma pensão que três aristocratas tinham se comprometido de pagar-lhe, pedindo como única contrapartida que o compositor alemão residisse no Império Austríaco). Ao invés, Haydn, quando aposentado, foi contratado pelo empresário inglês Johann Peter Salomon que o empregou como compositor e diretor com uma compensação fixa e que assumiu tanto o risco de eventual perda quanto a vantagem do eventual ganho."
  

Caracteres essenciais dos Concertos Salomon e dos concorrentes Concertos Profissionais

Conforme [RATTALINO, 2008, 90], no capítulo Intermezzo: Il Biedermeier do seu livro,  
"a periodicidade sazonal  e o custo padronizado do bilhete de ingresso foram as principais características dos Concertos Salomon. Consequências necessárias eram a disponibilidade das salas que não seriam relacionadas a outra atividade e que fossem, tanto quanto possível, espaçosas para permitirem o máximo saque ou uma redução do custo unitário do bilhete. A amplitude da sala, obviamente, era limitada só pela audibilidade, pelas condições da acústica: no que diz respeito ao piano, era necessário que o instrumento adquirisse um volume de som suficiente a fazê-lo sentir em salas grandes e em relação com o volume de uma orquestra de 40-50 elementos. Este problema é sentido particularmente na Inglaterra, cuja temporada de concertos públicos se afirma mais cedo do que em qualquer outro lugar, e desafia sobretudo John Broadwood. Em 1783 Broadwood patenteia o mecanismo do pedal, sendo o introdutor do pedal de sustentação ou prolongamento ("sustain"); em 1788 divide em duas a ponte de madeira que transmite as vibrações das cordas que são percutidas dentro de uma caixa de ressonância por martelos de madeira acionados por teclas."
 
Segundo [SIGNORELLI, 2019, 18-42], o som resultante é ampliado pela grande caixa de ressonância. Os pianos Broadwood eram os favoritos de Beethoven, Cramer, Dussek e Clementi. Tal fato pode explicar a revolução técnica e estética operada na obra de Beethoven: com incremento da sonoridade (mais robustez); enriquecimento do timbre (com o acréscimo do pedal de sustentação); maior largueza dinâmica e agógica, porém com rigor rítmico; solidez do toque aliada à fluidez ou fluência da pulsação; crescimento dos contrastes e da dramaticidade; maior detalhamento de suas intenções na escrita; e aumento consistente da expressividade com o consequente aprofundamento vertical do conteúdo musical. Em 1823, Sebastian Erhardt (Érard), alemão radicado na França, inventou e concluiu o chamado “duplo escape”. Com o acréscimo de mais uma mola que fazia o martelo retornar ao seu ponto de partida; porém detendo-se na metade no caminho ficando, assim, mais perto da corda. Este novo mecanismo permitia à tecla agir sobre o martelo não importando o ponto em que estivesse (não sendo necessário que ele retornasse à sua posição original e antes que o abafador caísse abaixando-se completamente). Como resultado, a transmissão do impulso motor (energia musical) tornou-se mais eficiente (diminuição do esforço para colocar o martelo em ação); o teclado ficou mais leve, embora mais resistente ao toque (a produção sonora só acontecia quando a tecla atingia o seu fundo, não bastando pressioná-la apenas até a metade com a tecla abaixada a metade da tecla correspondia apenas ao primeiro escape); a repetição de uma mesma nota a grandes velocidades (antes o martelo separava-se da corda percorrendo um longo caminho antes de voltar ao seu ponto de partida). Vale dizer que os pianos Érard eram os preferidos por Franz Liszt, o que explica a revolução técnico-pianística que este compositor (e grande pianista) realizou no universo musical. De modo que a técnica pianística pode ser dividida em antes e depois de Liszt. De fato, os pianos com “duplo escape” construídos por Érard, dotados de teclado mais resistente, exigiam um aporte maior de peso do braço (como veremos na escola lisztiana de piano), bem como a participação de todo o corpo na execução.
 
[RATTALINO, idem, 91] conclui dizendo que 
"o aumento da tensão permitia um volume de som maior e consequente aumento do martelo favorecia uma variabilidade tímbrica mais ampla. O aumento da extensão das 5 oitavas de 1780 às 6 de 1815 aproximadamente,  às 7 de cerca de1830 fazia o piano alcançar o espectro sonoro completo da orquestra, enquanto o aperfeiçoamento da mecânica, cujo funcionamento estava sendo processado sempre mais seguro e mais ágil, encorajava o desenvolvimento do virtuosismo e favorecia o concertismo." 
 [RATTALINO, idem, 95-6] considera que 
"o desenvolvimento do virtuosismo, tendo em conta a necessidade de uma escrita completa, que não deixe à orquestra qualquer parte essencial para o equilíbrio do discurso, dirige-se, portanto, às oitavas, às notas duplas, aos acordes, para o uso do mão direita em duas funções ao mesmo tempo (tema ou melodia no dedo anelar e mínimo, figurações ornamentais nos outros dedos), tanto aos saltos da mão esquerda, quanto aos harpejos muito rápidos em uma metade ou mais do teclado. A tendência é fazer soar o piano contemporaneamente em toda a sua extensão, abrangendo assim o espectro sonoro da orquestra nesse sentido o engenho, a capacidade de inventividade, a coragem, o domínio dos nervos está nos compositores-intérpretes verdadeiramente admiráveis. Note-se que esta escrita, determinada pela necessidade de fazer ouvir um discurso completo em vastos ambientes, parece chamar mais a atenção para os registos de órgão-cravo do que para um desenvolvimento da utopia pianística. Aqui acentuam-se os caracteres da máquina e perde-se a possibilidade de identificar e personalizar o som e o seu controle. Mesmo as melodias são preferencialmente exibidas com uma riqueza de ornamentação que, embora exemplificada na arte do bel canto, expressa uma renúncia à expressão patética, à expressão comovente. O problema também diz respeito ao canto, é claro, e na história da vocalidade a conquista do canto plano, da melodia sem adornos e que se vale da expressividade do som e do sotaque levará, com a melodia de Bellini, a uma nova técnica de emissão. A nova técnica pianística, a busca de sonoridade expressiva e paravocalística mesmo em grandes ambientes, será possível após a difusão da mecânica com o duplo escape e após a adoção geral de barras metálicas de tensão na armação, ou seja, aproximadamente, por volta de 1830. Não podemos aqui analisar em seu desenvolvimento e em seus protagonistas um processo que durou cerca de trinta anos e do qual tentamos resumir. Recordemos apenas que depois de Dussek e Cramer, ainda parcialmente ligados às concepções mozart-beethovenianas, o concerto Biedermeier adquire o seu carácter com Steibel e Field e desenvolve-se ao máximo com Hummel, Moscheles, Ferdinand Ries, Kalkbrenner."
 [RATTALINO, idem, 96] continua: 
"Ao lado do concerto, as variações para piano e orquestra também estavam em voga, e até 1830 ainda mais, com uma orquestra, é claro, se possível ainda mais ad libitum do que em concertos. (...) 
Outro uso típico Biedermeier do piano foi aquele, intermediário entre a música de concerto e a música de recital, de formações instrumentais mistas. (...)"

E a respeito da preferência pela formação Biedermeier de septetos, em contraposição ao bem comportado Septeto em mi bemol maior op. 20 (1799-1800) de Beethoven, para cordas e sopros, [RATTALINO, idem, idem] enumera a seguinte produção dos novos compositores:

"Ao Septeto op. 74 de Hummel seguiram-se o Septeto op. 88 de Moscheles, o Septeto op. 132 por Kalkbrenner, o Grande Septeto Militar op. 114 de Hummel, com muito trompete, e os dois Septetos de Alexander Fesca." 
 [RATTALINO, idem, 97] continua: 
"Ao lado do concerto e da variação com orquestra ou, se necessário, sem orquestra, em apresentações públicas foi utilizado o Allegro di bravura, uma vasta peça em forma de primeiro movimento de uma sonata e de grande compromisso virtuosístico, quase um primeiro movimento de concerto para piano solo. O inventor do Allegro di bravura parece ter sido Ferdinand Ries, aluno de Beethoven, que em 1813 havia se mudado de Viena para Londres e que tentou encomendar Allegro di Bravura também de seu professor. Embora não fosse alheio a considerar empreendimentos comerciais que garantissem um lucro seguro, Beethoven hesitou por uma razão crítica muito exata: "Devo dizer francamente que não sou muito amigo dessas coisas: eles querem muito, muito mecanismo , pelo menos os que conheço" (carta de 16 de julho de 1823). Em 5 de setembro, Beethoven estava quase decidido, tanto que fixou o preço de um allegro di bravura em 30 ducados (um preço enorme se você pensar que o príncipe Galitzin havia pedido 50 ducados para um quarteto de cordas sete meses antes): mas então ele pensou melhor e não fez nada. (...)"

 
 
V. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


ECKHARDT, Mária: Hungarian and European Franz Liszt (1811-1886), publicado por Liszt Museum Foundation, Budapeste, 2018.
 
RAUSA, Giuseppe: Liszt a Milano: Franz Liszt a Milano nel 1837-38 - La ricezione delle composizioni pianistiche di Liszt, Chopin e Schumann nella città lombarda tra il 1840 e il 1918, [s.d.].
 
RATTALINO,  Piero: Storia del Pianoforte. Lo strumento, la musica, gli interpreti. Milán: Il Saggiatore, 2008, 412 p.
 
SIGNORELLI,  A. R.: A importância da disciplina "história do piano e pianistas" para o ensino moderno do piano e o empoderamento dos educandos. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano, 04, ed. 11, vol. 02, pp. 18-42, nov. 2019
 
Site ARTOUT: Biedermeier: história, estilo, arte e literatura, [s.d.].
 
WIKIPEDIA
__________: Verbete Biedermeier
__________: Verbete Vormärz.