domingo, 21 de abril de 2024

“VILLA DEI PAPYRI” EM HERCULANO NO SÉCULO XXI: ATUALIZAÇÃO CIENTÍFICA E SITUAÇÃO DOS TRABALHOS (2000-2016)


Por Profª Drª María López Martínez
Prof. Dr. Andrés Martín Sabater Beltrá * 
Traduzido do espanhol por Francisco José dos Santos Braga, além de autor das três notas explicativas
 
Abstract: Nosso objetivo é avaliar a contribuição para o Humanismo, do legado escondido durante 20 séculos e que apareceu em um dos mais interessantes sítios arqueológicos conhecidos hoje, a Villa dei Papyri em Herculano, soterrada pela lava do Vesúvio no ano 79 a.D. A partir de 1750, começou a ser escavada, o que nos permitiu a descoberta de uma luxuosa mansão que, além de outras peças de grande valor, continha a única biblioteca que nos sobreviveu da Antiguidade. Tal conteúdo é composto por quase dois mil rolos de papiro escritos em grego e atribuídos a um autor oriundo da Síria chamado Filodemo de Gádara. Há vinte e um séculos, reuniu os seguidores de uma escola cognominada O Jardim, cujo objetivo fundamental era a busca da felicidade. Estamos convencidos de que a mensagem de alegria de viver, serenidade e tolerância de Epicuro está mais viva do que nunca. O nosso objetivo é disponibilizar este rico e complexo legado a um grande número de pessoas, não apenas aos interessados na Literatura, na História e na Arqueologia dos períodos helenístico e imperial, mas também a qualquer pessoa culta com preocupações humanísticas.                                                                    Palavras-chave: Herculano, Villa dei Papyri, Filodemo, atualização bibliográfica, século XXI
 
Estantes contendo papiros foram encontradas em um dos quartos dentro da entrada da Villa a partir do longo peristilo.

 

1. INTRODUÇÃO 
 
 
O objetivo destas páginas é apresentar uma revisão bibliográfica de uma parte importante — a descrição pretende ser exaustiva — dos estudos publicados nos últimos anos sobre os materiais que apareceram na Villa dos Papiros na cidade de Herculano, especificamente, durante os primeiros anos deste século XXI recém iniciado. Fundamentalmente, trata-se de fornecer um ponto de partida, um convite a participar numa reflexão mais profunda sobre o interesse científico que o conhecimento deste rico ramo da investigação humanística suscita em campos profissionais e acadêmicos que habitualmente se afastam do quadro estrito dos Estudos Clássicos (Filosofia, Arqueologia ou História Antiga). Referimo-nos a disciplinas como a Psicologia, a Medicina ou a Sociologia, para citar apenas algumas daquelas que poderiam beneficiar-se do contacto com este atrativo e complexo patrimônio material e imaterial que está escondido durante mais de vinte séculos. 
 
 
2. SITUAÇÃO DOS TRABALHOS 
 
 
O núcleo central é um dos sítios arqueológicos mais interessantes conhecidos hoje, a Villa dos Papiros de Herculano. É uma casa romana soterrada pela lava do Vesúvio no ano 79 d.C. Este sítio começou a ser escavado em 1750, quando foi descoberto uma luxuosa mansão que, além de outras peças de grande valor, continha a única biblioteca que nos sobreviveu da Antiguidade. O acervo desta biblioteca é composto por quase dois mil rolos de papiros escritos em grego e atribuídos a um autor sírio chamado Filodemo de Gádara. 
 
Estado atual de um rolo de papiro (foto de perfil)

 
Foto do rolo de papiro visto de lado - Crédito pelas imagens: https://www.bbc.com/mundo/noticias/2013/12/131223_secretos_pergaminos_herculano_jgc

 
Nosso ponto de partida são os textos. Referem-se a temas diversos, incluindo tratados de filosofia, história da filosofia, teologia, ética e estética, entre outros. Dadas as condições em que se encontram os papiros, desde a sua descoberta até aos dias de hoje, muitos esforços têm sido dedicados aos complexos processos de abertura, leitura e edição dos pergaminhos carbonizados e devemos sublinhar que, embora num primeiro momento tenham sido utilizadas metodologias bastante agressivas para poder acessá-los, nas últimas décadas, a leitura e edição de manuscritos têm-se beneficiado dos avanços tecnológicos que, por outro lado, obrigam à revisão da maioria das edições anteriores ao século XXI. 
 
Durante os últimos anos, o próprio local onde foram encontrados os papiros também têm sido estudados em profundidade, nos seus aspectos arqueológicos e históricos. O mesmo aconteceu no que diz respeito à história da sua descoberta e ao impacto que teve na intelectualidade europeia da época. 
 
Acrescentaremos também que Herculano não foi o único foco de divulgação da escola epicurista. Além da Campânia na Itália, encontramos testemunhos interessantes noutros pontos geográficos da periferia, como, por exemplo, na cidade de Enoanda ¹ localizada na atual Turquia. 
 
Aos trabalhos de edição, tradução e comentário dos textos seguem os estudos e interpretações do único sítio arqueológico onde foram encontrados os papiros. Sem medo de exagerar, podemos dizer que este constitui atualmente um dos locais patrimoniais e dos destinos turísticos mais ricos e atrativos da Europa. Por outro lado, os achados da região do Vesúvio foram essenciais para o desenvolvimento da arte neoclássica graças à adoção do estilo herculano, que se tornou um fenômeno europeu cujos vestígios podem ser encontrados nas mais variadas tipologias de objetos (móveis, louças, utensílios domésticos, etc.). 
 
Herculano reuniu, há vinte e um séculos, os simpatizantes de uma escola — mulheres, homens, escravos, livres, cidadãos ou estrangeiros, todos eram admitidos — cujo objetivo fundamental era a busca da felicidade. Algumas das riquezas fundamentais deste ambiente são os textos epicúreos que apareceram na famosa Villa dei Papiri e na sua biblioteca, na sua maioria da autoria de Filodemo de Gádara, apadrinhado pelo patronus da villa, Lúcio Calpúrnio Pisão, notável membro da nobilitas romana, cônsul em 58 a.C. e sogro de César ²
 
Fruto das primeiras escavações arqueológicas na região vesuviana foram as reproduções das peças arqueológicas que Carlos (VII de Nápoles e mais tarde Carlos III, rei de Espanha) encomendou aos mais prestigiados artistas e estudiosos da época. Esta encomenda deu origem a uma coleção intitulada Le Antichità di Ercolano Esposte, composta de oito volumes publicados na Regia Stamperia de Nápoles em 1757-1796. Estes volumes, juntamente com alguns outros conservados na Real Academia de Belas Artes de San Carlos de Valência, fazem parte do catálogo de obras-primas da arte tipográfica do século XVIII e, quando utilizados na Real Academia para a formação dos seus alunos, contribuíram para a formação do estilo herculanense, como é conhecida uma das últimas manifestações da arte barroca e rococó. Podemos assim afirmar que estas esplêndidas ilustrações contribuíram significativamente para a formação do estilo neoclássico na Europa a partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX. 
 
Da mesma forma, as revistas e publicações científicas europeias, para manter os seus leitores informados, compilaram artigos de especialistas e excertos de cartas que os responsáveis ​​​​pelos papiros enviaram ao rei ou à sua família e amigos com comentários sobre estes documentos. Outra alternativa à disposição dos leitores mais curiosos era recorrer aos livros de viagens escritos por quem teve o privilégio de visitar as escavações e o referido museu. Era proverbial o espírito viajante dos franceses, britânicos e alemães. Especificamente, foram as cartas de Winckelmann que chamaram a atenção do público europeu para os papiros. Na Espanha, cultivaram este gênero intelectuais e escritores de prestígio como Francisco Pérez Báyer, Nicolás de Azara, Esteban de Arteaga, Pedro Montengón, Leandro Fernández de Moratín, Pedro Antonio de Alarcón e Juan Andrés y Morell. 
 
Desde meados do século XVIII até ao presente, tem-se realizado um trabalho praticamente ininterrupto de abertura, catalogação, conservação e tradução e, embora no mundo acadêmico as dificuldades derivadas da condição material dos pergaminhos e do conteúdo filosófico-epicúreo dos primeiros exemplares fizeram com que o interesse por eles diminuísse por um longo período de tempo, o avanço na metodologia e na técnica experimentado nas últimas três décadas produziu uma revitalização desses documentos como objeto de estudo. 
 
Neste contexto, devemos destacar os esforços realizados por Marcello Gigante e pelo CISPE (Centro Internazionale per lo Studio dei Papiri Ercolanesi “Marcello Gigante” [http://www.cispe.org – data da consulta: 01/05/2017- ]), cujas publicações — especialmente a coleção de textos La Scuola di Epicuro e a revista Cronache Ercolanesi — têm atestado a importância arqueológica, filológica e histórica dos papiros e dos achados de Herculano. Precisamente, este ano é inaugurada a Prima Scuola Estiva di Papirologia Ercolanese [http://www.cispe.org/prima-scuola-estiva-di-papirologia-ercolanese/ - data da consulta: 01/05/2017]. 
 
Ao mesmo tempo, surgiram grupos como The Friends of Herculaneum Society [http://www.herculaneum.ox.ac.uk – data da consulta: O1/05/2017], responsável por divulgar informações sobre os restos procedentes das escavações, e o grupo de investigação TELEPHe ("Traduire Ensemble en Langues Européennes les Papyrus d'Herculanum"), que inclui várias universidades e centros de investigação — Universidade de Alicante, Universidade de Barcelona, Humboldt-Universität zu Berlin, l'Université de Bordeaux 3, Universidade de Cambridge, Universität zu Köln, Università del Salento, Lecce, Università degli Studi Federico II di Napoli, Universidade de Oxford, Université de Paris-Sorbonne (Paris IV), Università degli Studi di Siena, Année Philologique, Universität Würzburg e Université Charles de Gaulle – Lille 3. O objectivo da TELEPHe é a edição e tradução de textos em diferentes línguas europeias. Desde 2006, os seus membros têm tentado reunir-se todos os anos, de dois em dois anos ou com a maior frequência possível, num local diferente (Lille 2006, Barcelona 2007, Cambridge 2008, Paris 2009, Genebra 2010, Varsóvia 2013, Barcelona 2015) com o propósito de compartilhar o trabalho desenvolvido pelos membros da equipe. A dinâmica habitual consiste na discussão das passagens especialmente problemáticas. O grupo se beneficia dos avanços tecnológicos que estão sendo aplicados ao estudo dos papiros de Herculano, como as fotografias multiespectrais. Nessa linha, destaca-se também The Philodemus Project [http://classics.ucla.edu/faculty -projects/philodemus-project/ – data da consulta: 01/05/2017], focado na tradução para o inglês da obra estética de Filodemo, a quem devemos a autoria de grande parte dos tratados que foram preservados na referida biblioteca. 
 
A maioria dos papiros está conservada na Biblioteca Nacional de Nápoles. Os antigos microscópios foram substituídos por outros mais potentes e por tecnologia mais sofisticada que permite trabalhar a partir de um computador que não está na Officina: as fotografias são escaneadas, depois digitalizadas e tornadas multiespectrais. Por outro lado, Daniel Delattre e Dirk Obbink estudaram um sistema que possibilitou conhecer a sequência correta dos desenhos centenários dos séculos XVIII e XIX e vários estudiosos também desenvolveram métodos matemáticos para reunir os fragmentos dos papiros de Herculano, reconstruindo virtualmente a posição original interna do rolo. 
 
A utilização de microscópios avançados, de microfotografias, o desenvolvimento dos computadores e do método de Oslo, e a aplicação da fotografia multiespectral melhoraram as tarefas de abertura e leitura, aumentando a obrigação de revisão das edições anteriores ao século XXI. Precisamente em março de 2015, foram tornados públicos progressos espetaculares neste sentido. Este é um novo método de leitura desses papiros carbonizados por meio de uma tomografia cuja apresentação foi realizada por Daniel Delattre em Oxford. A prestigiada revista Nature Communications ecoou esta importante descoberta [http://www.nature.com/ncomms/2015/150120/ncomms6895/full/ncomms6895.html – data da consulta: 01/05/2017]. Na Espanha, a exposição A Villa dos Papiros, inaugurada no dia 17 de dezembro de 2013 em Madri e organizada por Casa del leitor, desfrutou de grande êxito. 
 
 
3. CONCLUSÕES 
 
 
A mensagem de Epicuro é antiga e moderna. Propõe valores eternos, que permanecem válidos até hoje: saúde, paz de espírito, amizade, tolerância e felicidade. Estamos convencidos de que não só os cientistas e acadêmicos mas também, e graças a eles, a sociedade como um todo beneficiaria de um conhecimento mais profundo de uma comunidade que vivia praticando o hedonismo com tanta intensidade como o pragmatismo. Filodemo, Diógenes de Enoanda ¹ e outros representantes desta corrente de pensamento  — marginal na época — propuseram soluções para enfrentar os problemas do indivíduo e da sociedade que eram originais e diferentes daquelas propostas por outras escolas que, naquela época, gozavam de maior sucesso, como o platonismo e/ou o estoicismo, e foram estas últimas, justamente, aquelas que acabaram se impondo como ortodoxia educativa no Ocidente. 
 
Uma perspectiva particularmente sugestiva para abordar o epicurismo antigo é a de género. Ao contrário do que era comum em outras escolas de filosofia, nas comunidades epicuristas a presença das mulheres desde a sua fundação é perfeitamente atestada, assim como o papel ativo que desempenharam na intensa vida d' O Jardim: não se limitavam a ser companheiras de filósofos, mas a sua participação em todas as atividades da escola está expressamente incluída. Essa originalidade d' O Jardim também se reflete paradoxalmente na medida em que o cristianismo também se alimentou da mensagem da escola: basta lembrar o uso que Paulo de Tarso faz do valor terapêutico da liberdade de expressão epicurista durante o período de fundação das primeiras comunidades paulinas. 
 
Dois dos desafios que os especialistas nos materiais encontrados na antiga cidade de Herculano devem enfrentar são, por um lado, difundir o conhecimento desta rica e complexa filosofia e, por outro, demonstrar a sua utilidade pedagógica, para que, num futuro próximo, esse conhecimento possa ajudar educadores, cientistas, médicos e/ou psicólogos na tarefa de se construir uma sociedade mais pacífica e tolerante, composta por indivíduos responsáveis, felizes e inteligentes na gestão das suas emoções. 
 
Numa altura em que disciplinas como a Filologia, a História e a Filosofia estão em crise e o seu papel nos planos de estudos é mesmo questionado — redução da carga letiva no ensino secundário, enquanto a imprensa considera a conveniência da introdução destas disciplinas no ensino primário e, por exemplo, a ONU pede ao governo espanhol que recupere a disciplina de Educação para a Cidadania [http://www.elmundo.es/espana/2015/07/08/559c40ec268e3ef81b8b4589.html – data da consulta: 01/05/2017] — é mais necessário do que nunca demonstrar a sua utilidade através de projetos como este que apresentamos. 
 
Nosso horizonte como humanistas também deveria projetar-se no longo prazo para colocar à disposição da sociedade os instrumentos de estudo adequados para avaliar, na medida que lhe corresponda — sem dúvida, maior do que a que lhe foi atribuído até agora —, a contribuição ao humanismo da escola de Epicuro. Assim como Freud aplicou o que aprendeu com suas leituras sobre a tragédia grega, estamos convencidos de que chegará o dia em que especialistas de outras disciplinas também compreenderão o potencial educacional e a utilidade prática da leitura dos tratados epicuristas. Na verdade, autores como Marinoff — Mais Platão e menos Prozac — ou Damásio — O erro de Descartes: a emoção, a razão e o cérebro humano — e — Em Busca de Spinoza: Neurobiologia da emoção e dos sentimentos —, entre outros, já o compreenderam. Quando chegar esse momento, gostaríamos de poder afirmar que os nossos esforços como filólogos, acadêmicos e/ou humanistas contribuíram para tornar isso possível ³
 
Devemos assumir o estimulante desafio que os investigadores das disciplinas acima referidas — Filologia Clássica, Arqueologia, História Antiga e Filosofia — colocam ao alcance de qualquer pessoa culta e com preocupações humanísticas todo este rico e complexo legado. 
 
Por tudo isso, a mensagem de alegria de viver, serenidade e tolerância de Epicuro está mais viva e, se possível, é hoje mais necessária do que nunca a colaboração, na medida das nossas possibilidades, entre os departamentos e instituições de diferentes universidades europeias, americanas e todas aquelas áreas que desenvolvem ativamente atividades relacionadas com o sítio arqueológico de Herculano com o objetivo de saldar a dívida cultural do Ocidente para com uma das correntes filosóficas mais injustamente criticadas (e até caluniadas) desde a Antiguidade.
 
* Professora Titular da Universidade de Alicante (Espanha); Doutor em Pré-História, Arqueologia, História Antiga, Filologia Grega e Filologia Latina pela Universidade de Alicante (Espanha)
 
 
4. NOTAS EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga


¹ Em março de 2019, no meu discurso de posse na AMEF-Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos, sediada em Barbacena-MG, enalteci Diógenes de Enoanda, um filósofo grego do século II que divulgou a filosofia de Epicuro como representante do epicurismo moral. É conhecido por ter mandado gravar as máximas epicúreas sobre um muro, de 80 metros de largura por quase 4 metros de altura, totalizando uns 200 blocos da antiga cidade de Enoanda na Lícia, sudoeste da atual Turquia, na altura da ilha de Rhodes. O muro foi destruído por um terremoto ainda na Antiguidade, e muitos de seus blocos de pedra foram espalhados e enterrados. Era a maior inscrição do mundo grego que conhecemos. Dizem que se localizava perto da ágora da cidade, como uma mensagem sugestiva de salvação, como um evangelho filosófico, não só para os seus concidadãos, mas também para todos os que por ali passassem, constituindo um alerta para que os cidadãos que comprassem nas lojas de Enoanda não esperassem encontrar a felicidade ali, comprando. 
Para fazer um estudo detalhado dos fragmentos encontrados, recomendo consultar a edição de The Epicurean Inscription, Bibliopolis, Nápoles, 1993, por Martin Ferguson Smith. Este esplêndido volume de 660 páginas, não só constitui a edição crítica mais completa dos textos, mas também com seus comentários e sua extensa bibliografia oferece uma perspectiva muito bem documentada e atualizada dos estudos sobre Diógenes de Enoanda, fruto de muitos anos de trabalho na área mesma de escavações e de reflexões muito aguçadas sobre os textos, difíceis em muitos pontos não só pela sua terminologia epicúrea, mas acima de tudo, como é óbvio, pelo seu caráter fragmentário.
 
² Este Lúcio Calpúrnio Pisão (Cesonino) era pai de Lúcio Calpúrnio Pisão, cônsul em 15 a.C., conhecido como "Pontífice", e de Calpúrnia, terceira esposa de Júlio César, segundo Tácito, Anais, Livro VI, 10. Em 59 a.C., sua filha, Calpúrnia Pisão casou-se com Júlio César, que fez seu sogro tornar-se cônsul no ano seguinte; segundo Cícero, isto era intolerável, por ser o poder supremo prostituído por alianças matrimoniais, e porque homens estavam se ajudando no poder e com os exércitos por causa de mulheres. César menciona seu sogro em "De Bello Gallico". O avô do seu sogro, outro Pisão, homônimo, foi assassinado pelos mesmos gauleses que César depois conquistaria. Ao chegar, Pisão endereçou o Senado em sua defesa, e Cícero respondeu com áspero e exagerado discurso conhecido como "In Pisonem", criticando seu comportamento na Macedônia, ridicularizando seu adversário e fazendo uso magistral de sua conhecida retórica, criando uma colorida e caricatural descrição do aspecto físico e dos modos de Pisão; por fim, criticou asperamente a sua simpatia pelo epicurismo e a sua hospitalidade em relação ao filósofo grego Filodemo de Gádara. Pisão também publicou um panfleto como resposta e o assunto terminou, pois é provável que Cícero tenha ficado com medo de processar o sogro de Júlio César.
 
³ De minha parte, fiz o possível para tornar as doutrinas de Epicuro conhecidas pelos leitores do Blog do Braga, traduzindo a Carta de Epicuro a Meneceu, e publicando-a em duas partes:


4. BIBLIOGRAFIA


Da extensa bibliografia fornecida pelos autores, apartei apenas a que utilizaram na pesquisa referente a "Filodemo e o epicurismo", a saber: 
· ARRIGHETTI, Graziano. Filodemo biografo dei filosofi e le forme dell’erudizione. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 33, 2003, p. 13-30. 
· ASMIS, Elisabeth. Basic Education in Epicureanism. En: LEE TOO, Yun. Education in Greek and Roman antiquity, Leiden: Brill, 2001, p. 210-239. 
· ASMIS, Elisabeth. Epicurean Economics. En: FITZGERALD, John T. - OBBINK, Dirk. - HOLLAND, Glenn S. Philodemus and The New Testament world. Leiden-Boston: Brill, 2004, p. 133-176. 
· CAPASSO, Mario. Who Lived in the Villa of the Papyri at Herculaneum - A Settled Question?. En: ZARMAKOUPI, Mantha. The Villa of the Papyri at Herculaneum: archaeology, reception, and digital reconstruction. Alemania: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, Göttingen, 2010, p. 89-113. 
· CLAY, Diskin. Philodemus on the Plain Speaking of the Other Philosophers. In: FITZGERALD, John T. - OBBINK, Dirk. - HOLLAND, Glenn S. Philodemus and The New Testament world. Leiden-Boston: Brill, 2004, p. 55-72. 
· DELATTRE, Daniel. Un modèle magistral d’écriture dialectique: la Lettre à Hérodote d’ Épicure. In: INDELLI, Giovanni - LEONE, Giuliana - LONGO AURICCHIO, Francesca. Mathesis e Mneme: Studi in memoria di Marcello Gigante. Nápoles, v. I, 2004, p. 149-169. 
· DORANDI, Tiziano. The school and texts of Epicurus in the early centuries of the Roman empire. In: LONGO, Angela - TAORMINA, Daniela Patrizia. Plotinus and Epicurus: Matter, Perception, Pleasure. Cambridge University Press, 2016, p. 29-50.
· DORANDI, Tiziano. Diogene Laerzio, Epicuro e gli editori di Epicuro e di Diogene Laerzio. Eikasmos, Bolonia, n. 21, p. 273-301. 
· DORANDI, Tiziano. Pratiche della Philosophia nella Roma repubblicana. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 44, 2014, p. 167-177. 
· HEBLER, Jan E. Proposte sulla data di composizione e il destinatario dell’Epistola a Meneceo. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 41, 2011, p. 7-12. 
· ERLER, Michael. Νήφων Λογισμός. A proposito del contesto letterario e filosofico di una categoria fondamentale del pensiero epicureo. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 40, 2010, p 23-29. 
· ERLER, Michael. Autodidact and student: on the relationship of authority and autonomy in Epicurus and the Epicurean tradition. In: FISH, Jeffrey - SANDERS, Kirk R.. Epicurus and Epicurean Tradition. Cambridge University Press, 2011, p. 9-28. 
· GIGANDET, Alain - MOREL, Pierre-Marie. Lire Épicure et les épicuriens. París: Presses universitaires de France, 2007. 
·  GIGANTE, Marcello. Virgilio all’ombra del Vesuvio. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 31, 2001, p. 5-26. 
· KLEVE, Knut. Epicurean Theology and Herculaneum Papyri. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 33, 2003, p. 249-266. 
· LONGO AURICCHIO, Francesca. Il porto della filosofia. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 31, 2001, p. 27-30. 
· MILITELLO, Cesira. Filodemo storico della filosofia greca. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 30, 2000, p. 103-110. 
· MONET, Annick. Pratiques exégétiques au sein de l’école épicurienne: le corps et le visible. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 33, 2003, p. 169-173. 
· PORTER, James I. Epicurean Attachments: Life, Pleasure, Beauty, Friendship, and Piety. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 33, 2003, p. 205-227. 
· SANTORO, Mariacarolina. Il pensiero teologico epicureo: Demetrio Lacone e Filodemo. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 30, 2000, p. 63-70. 
· SMITH, Martin Ferguson. Herculaneum and Oinoanda, Philodemus and Diogenes: Comparison of Two Epicurean Discoveries and Two Epicurean Teachers. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 33, 2003, p. 267-278. 
· TEPEDINO GUERRA, Adele. La Scuola di Epicuro: Metrodoro, Polieno, Ermarco. Cronache Ercolanesi, Nápoles, n. 30, 2000, p. 35-44.
 

domingo, 7 de abril de 2024

DOSTOIÉVSKI: a história de vida de um jogador


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Página de rosto do livro "O Jogador", por Dostoiévski (1ª edição de 1866 impressa por Stellovski) - Crédito pela imagem: Link: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Gambler_(novel)
 
Anna G. Dostoiévskaia: Meu Marido Dostoievski

 
As Grandes Reformas de Alexandre II da década de 1860 — incluindo a emancipação dos servos — que parecia serem um ponto de inflexão na política russa, não satisfizeram o apetite dos radicais por mudança. Os russos moderados que já se sentiam atemorizados com tais medidas, consideraram ainda mais alarmantes as mudanças sociais com mulheres se juntando às fileiras dos autodenominados niilistas, os quais, com base nos escritos de Nietzsche, defendiam a teoria da realidade do nada como algo intrinsecamente associado ao sentido de declínio, catástrofe, crise cultural do Ocidente. Elas fumavam cigarros, cortavam o cabelo curto, preferiam Feuerbach às novelas e rejeitavam o casamento em favor de carreiras na ciência e na medicina (ou, ocasionalmente, no terrorismo). 
Os pensadores viam uma Rússia em rota de colisão consigo mesma, mas poucos temiam mais os resultados potenciais desta viragem do que Fiódor Mikháilovitch DOSTOIÉVSKI, que na cerimônia de inauguração do monumento a Aleksandr Pushkin em Moscou em 1880, proferiu um inflamado discurso memorável, sobre o destino da Rússia no mundo, enquanto apelava a seus compatriotas que considerassem as novas teorias de progresso social vindas do Ocidente como estranhas ao espírito russo. Continuando, ele elogiou Tatiana, a heroína de “Eugene Onegin”, romance em verso de Pushkin de 1833, por incorporar um espírito de auto-sacrifício exclusivamente russo. No romance, Tatiana era uma mulher casada que rejeita os avanços de seu antigo amante que a desprezara quando moça em condição humilde, mas que agora, mulher experimentada e sofisticada, a assediava porque, adulta e realizada com o casamento com um nobre, galgara uma posição social invejável. Onegin descobre que ela ainda o ama, mas ela afirma que permanecerá fiel ao marido para sempre. Tatiana, para Dostoiévski, era a prova de que uma verdadeira “mulher russa sempre se recusaria a construir sua felicidade com base na infelicidade dos outros”. 
Ao referir-se aos valores morais da verdadeira mulher russa, certamente Dostoiévski tinha diante dos olhos a figura de uma mulher que não fosse fictícia. Anna Grigórievna Snítkina (nome de solteira) era a mulher em quem se espelhava, 24 anos mais nova do que ele. 
Anna tinha crescido numa casa senhorial em São Petersburgo, numa família sobre a qual escreveu ela mais tarde, “sem brigas, dramas ou catástrofes”. Seu pai, funcionário público, era um grande admirador de Dostoiévski e falou longamente sobre o jovem e promissor autor de “Gente Pobre” (1846). “Infelizmente”, disse ele à filha, “o homem (Dostoiévski) se envolveu na política, desembarcou na Sibéria e desapareceu lá sem deixar vestígios”. Anna, em seu livro "Meu Marido Dostoiévski" observa que ela mesma admirava suas obras e conta que chorou ao ler "As recordações da casa dos mortos". 
Mas... Anna não era apenas o exemplo de caráter moral que Dostoiévski, no seu louvor a Pushkin, procurava passar para as moças russas. 
Nos primeiros anos de seu casamento, agora Anna Dostoiévskaia, foi chamada a praticar níveis sobre-humanos de altruísmo e perdão. Ela viveu à mercê do vício do jogo do marido, oscilando na ruína financeira durante anos — a certa altura, tendo que penhorar suas próprias roupas íntimas. Dostoiévski pouco fez para protegê-la de sua família dominadora, que tentava controlar seus recursos financeiros. Quando Pavel Aleksandrovitch, enteado de Dostoiévski no seu primeiro casamento, soube do seu segundo e futuro casamento, "pediu ao 'pai' para voltar atrás e se lembrar que já é um 'velho', sem idade, nem forças para começar uma vida nova e que Fiódor Mikháilovitch possuía outras obrigações, etc.". (p. 67 de "Meu Marido Dostoiévski" por Anna Grigórievna Dostoiévskaia) 
 
Retrato por Vassily Perov c. 1872 - Crédito: https://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoevsky

 
“Ela não só ajudou Dostoiévski a se reerguer de uma terrível fase pessoal e financeira, causada pelo vício em jogos, como estabeleceu um padrão de publicação e distribuição de livros que mexeu com o mercado editorial e fez dela a primeira mulher russa a ter uma editora própria, bem como estabeleceu um padrão de publicação e distribuição de livros que mexeu com o mercado editorial. Apesar de sua bem-sucedida carreira ao lado do marido famoso, Anna acabou relegada pela história”, observa com propriedade a jornalista Raquel Carneiro da VEJA na edição de 18/09/2021. 
Um especialista em literatura russa, o americano Andrew D. Kaufman, narra em detalhes os quatorze anos dessa união no livro The Gambler Wife: A True Story of Love, Risk, and the Woman Who Saved Dostoyevsky (A Esposa do Jogador: uma História de Amor, Risco e a Mulher que Salvou Dostoiévski, ainda não traduzido para o português). “Se não fosse por Anna, dificilmente teríamos obras magníficas como Os Irmãos Karamázov e O Idiota”, disse Kaufman a VEJA
A jornalista da VEJA conclui: "Anna também foi marqueteira talentosa. Recém-casada, percebeu que Dostoiévski estava no fundo do poço — e botou ordem na casa. Estipulou horários para a produção do marido, estudou o esquema das livrarias, reuniu os textos publicados de forma seriada em obras únicas e devolveu ao autor a estabilidade financeira que lhe garantiria tempo para tecer trabalhos como Os Irmãos Karamázov. Ao ficar viúva, recusou ofertas polpudas pelos direitos das obras e investiu em boxes de coletâneas — ação inédita que lhe renderia 5 milhões de dólares em valores atuais. Ela era uma mulher invisível, mas não brincava em serviço." 
Com determinação, Anna se autodenominava "mulher emancipada" — termo corrente na Rússia da década de 1860 —, ansiosa por traçar seu próprio caminho sem depender de marido. Como outras mulheres de sua geração e orientação política, decidiu estudar ciências. Inicialmente ingressou numa escola de zoologia, mas desistiu, depois de desmaiar diante da primeira cobaia: o cadáver de um gato. Ela então, num ginásio masculino, se matriculou em um curso de estenografia cujo instrutor, vendo seu progresso, em 03/10/1866 ofereceu-lhe um trabalho estenográfico para ninguém menos do que o escritor Dostoiévski que precisava do auxílio de um estenógrafo para escrever seu novo romance. (p. 37, idem) Diante dessa oportunidade de emprego, sentia-se uma profissional abandonando a condição de estudante e, "como uma moça dos anos 60" sonhava, podia finalmente "ganhar dinheiro com o seu próprio trabalho", já que "a ideia de independência para ela era uma das mais caras". (p. 38, idem)
Relembrando: na ocasião em que travaram conhecimento, Dostoiévski tinha 44 anos de idade e Anna, 20. 
Observe, porém, que Anna afirma em seguida que "a possibilidade de trabalhar com Dostoiévski e conhecer pessoalmente este escritor era o que mais me agradava e importava no trabalho oferecido." (p. 38, idem) No dia seguinte, quando Anna chegou à casa de Dostoiévski para uma entrevista, o escritor enfrentava um prazo impossível (26 dias) e não havia escrito nada, exceto algumas notas para uma “história de um jogador russo devasso perdido em uma cidade turística europeia chamada Roulettenburg”. 
 
Roulettenburg ou Roletemburgo, cidade das roletas, foi o título dado originalmente ao livro por Dostoiévski, e depois mudado por exigência do editor Stellovski, que queria "algo diferente, mais russo"

 
Ademais, a própria Anna nos relata os detalhes da "revoltante armadilha em que caíra" Fiódor Mikháilovitch: "Após a morte de seu irmão mais velho, Mikhail, Fiódor assumira todas as dívidas da revista 'Vremia', editada por seu irmão. As dívidas eram em promissórias, e os credores não davam descanso a Fiódor, ameaçando-o com penhora de bens e prisão no departamento de dívidas. Naquela época era possível fazer isso." (p. 45, idem) "Quando todas as tentativas de convencer os credores se revelaram inúteis, e Fiódor estava à beira do desespero, apareceu inesperadamente em sua casa o editor F. T. Stellovski com a proposta de comprar por três mil os direitos da edição das obras completas em três volumes. Além disso, Fiódor era obrigado a escrever um novo romance, sem cobrar nada. Como a situação de Fiódor era crítica, ele concordou com todas as condições do contrato, pois o principal era se livrar da ameaça de ser preso." (p. 46, idem
Segundo Anna, "o contrato fora assinado no verão de 1865, e Stellovski registrou o valor combinado em cartório. Com este dinheiro, no dia seguinte, Fiódor pagou os credores e ficou sem um tostão. (...) Stellovski era um esperto e trapaceiro explorador dos nossos escritores e músicos (de Pisemski, Krestovski, Glinka). (...) A condição mais difícil era a obrigação de entregar um novo romance no dia 1º de novembro de 1866. Em caso de atraso na entrega dos originais, Fiódor pagaria uma pequena multa. Agora, caso entregasse somente no dia 1º de dezembro do mesmo ano, perderia todos os direitos sobre suas obras, que passariam para as mãos de Stellovski para sempre. Claro que o selvagem Stellovski pretendia exatamente isso. Fiódor, em 1866, estava mergulhado no romance "Crime e Castigo" e queria finalizá-lo. Como poderia ele, um homem doente, escrever mais tantas páginas de um novo romance?" (p. 46, idem
Em resumo: Dostoiévski concluiu os originais de "O Jogador" no dia 29 de outubro de 1866 com o auxílio de sua colaboradora Anna, que já chamava de "minha zelosa amiga", o que a deixava muito feliz. (p. 50, idem
 
Anna Gregórievna Dostoiévskaia

 
Uma parte considerável do livro de Anna é dedicada à “lua de mel” do casal, uma viagem de três meses à Alemanha que acabou durando quatro anos. O hábito de jogo de Dostoiévski tornou-se tão agudo que eles não podiam regressar à Rússia sem medo de que ele fosse preso na fronteira e enviado para a prisão de devedores. 
Vamos agora ao livro "O Jogador". 
 

 
Preliminarmente, convém que nos ambientemos com alguns fatos e feitos que constituem a linha temporal do autor e do seu romance O Jogador, considerado um "romance maravilhoso" por Thomas Mann. 
Em 1857 ele se casou com uma viúva, Maria Dmitrievna Isaieva (1824-1864), que criou uma relação de amizade com o seu jovem amante semelhante à descrita em Noites Brancas (1848). 
Entre 1862 e 1863 fez várias viagens pela Europa, onde conheceu Paulina Suslova, sua amada marcante que serviu de modelo para algumas das suas heroínas. Sobre essa personagem real, convém observar que há este lado biográfico em O Jogador: em 1863, quando viajava ao encontro de Paulina Suslova, a grande paixão amorosa da sua vida, que vivia então em Paris, Dostoiévski, endividado e alucinado pelo enriquecimento súbito, tentou a sua sorte nas roletas de Wiesbaden. Ganhou, perdeu, recuperou e retomou o caminho para Paris. Mas na viagem que fez com Paulina procurou de novo as intensidades da roleta em Baden-Baden, onde perdeu tudo o que tinha, incluindo o seu relógio e o anel de Paulina. Inventou um sistema para ganhar que falhou em Bad Homburg, obrigando-o a voltar sozinho a São Petersburgo.
Foi em Wiesbaden que se iniciou na paixão pelo jogo. O próprio Dostoiévski estivera em cidades de jogatina citadas no romance O Jogador, como Hamburg e Baden-Baden, fora viciado em jogo, vivenciara o episódio com o eclesiástico católico contado pelo narrador, e também extraíra de uma situação da própria vida a intriga amorosa que permeia a trama. 
Lembremo-nos de que O Jogador é a obra em que ficcionou a sua atração pela roleta, publicada alguns anos mais tarde (1866) e logo se tornou uma das suas obras mais lidas, na qual depositou, tal como em grande parte dos seus outros livros, as suas traumatizantes experiências de vida. 
Passado na Alemanha, num ambiente de cassinos, Aleksei Ivánovitch destaca-se como figura principal — um jovem com um forte sentido crítico em relação ao mundo que o rodeia, mas carente de objetivos, que descobre em si a paixão compulsiva pelo jogo. Dostoiévski expõe as personagens nas suas motivações mais íntimas, com humor e ironia, criando uma obra simultaneamente viva e profunda, na melhor tradição dostoievskiana. O fascínio torturado dos jogadores adequa-se genialmente ao tratamento de temas caros ao autor, e ainda o descontrole e o desespero, as paixões que raiam a loucura e a solidão sem perspectivas, além de uma análise social impiedosa, por vezes satírica. O Jogador tem o subtítulo “Das anotações de um jovem”, e o jovem em questão é Aleksei Ivánovitch, o narrador-protagonista. Por essa razão, Dostoiévski fez desta obra uma espécie de autobiografia. Ficamos sabendo pouca coisa sobre Alexei ao longo do livro: ele é aristocrata, tem 25 anos, sangue tártaro e formação universitária, mas obviamente pertence à nobreza pobre, pois trabalha num hotel como preceptor dos filhos de um general que é considerado um nobre russo de grande fortuna e cujo nome não se menciona. 
 
Quanto à trama ou enredo do romance, reconheço que há excelentes resenhas, normalmente desenvolvidas pelos tradutores brasileiros e portugueses da obra. A que mais me agradou é a de Érika Batista, intitulada "Resenha: O jogador, de Fiódor Dostoiévski", publicada pelo portal Medium, e vou, nos parágrafos abaixo, reproduzir parte do seu texto dedicado à análise de O Jogador de Dostoiévski. 
 
Quando a ação começa, ele está retornando para a cidade alemã de Roletemburgo (a cidade imaginária em que se passa a história) após cumprir algumas incumbências de natureza financeira para o patrão e a afilhada dele, Polina. Por essa jovem, o protagonista está apaixonado, confessamente, e as relações entre eles são estranhas, ao mesmo tempo íntimas e hostis. Outra pessoa apaixonada por Polina é o tímido e honrado ricaço inglês Mr. Astley, um amigo que Aleksei fez na viagem. Polina, por sua vez, está apaixonada pelo francês Des Grieux, conforme mais tarde descobrimos. O triângulo (ou quadrilátero) amoroso, no entanto, não é o ponto central do enredo, embora possa parecer, à primeira vista. Eu diria até que o livro não é só sobre o vício em jogo, seu motivo óbvio, mas sobre o dinheiro. 
Sim, a cada três parágrafos, tropeçamos no dinheiro, que está no centro de quase todas as relações interpessoais retratadas no livro. O general já começa a história afundado em dívidas com o francês Des Grieux, com a propriedade e os bens de seus filhos totalmente hipotecados em favor do sócio (ou ex-sócio), e aguardando ansiosamente que sua tia solteirona morra para receber uma boa herança. Ele também precisa de dinheiro para manter o estilo de vida luxuoso dos nobres russos no estrangeiro e para se casar com uma moça de reputação duvidosa por quem se apaixonou, também francesa, a Mlle. Blanche “de Cominges”. 
Polina também precisa de dinheiro, mas ela não diz para quê, só pede que Aleksei o ganhe para ela, apostando na roleta o dinheiro que ela conseguira ao penhorar suas jóias. O preceptor aceita, apesar do pedido do general para que ele não jogasse, para não manchar a reputação do patrão, ganha dinheiro, perde dinheiro, conversa vai, conversa vem, Polina acaba provocando indiretamente a demissão de Aleksei e, nisso, quando menos esperam, em vez de um telegrama sobre a herança, aparece em Roletemburgo a própria vovó, que estava com um pé na cova. Afinal, a cidade também era um balneário termal, e os médicos tinham-lhe recomendado terminar a recuperação no estrangeiro. 
Como se não bastasse esse choque, a vovó acaba viciada na roleta, perde tudinho o que trouxera da Rússia, tendo que pedir dinheiro emprestado para voltar e dando o que falar na cidade. Os dois franceses, vendo a viola em cacos — i.é., que daquela fonte não sairia nem um dinheiro para o general, nem, consequentemente, para eles — preparam-se para decolar. É nesse momento que se revela que Des Grieux e Polina eram amantes e, para se livrar dela de maneira “honrosa”, ele perdoa uma parte da dívida do padrasto da moça, parte essa correspondente ao patrimônio da própria Polina, herdado da mãe dela, que o general havia dissipado. 
Desesperada, ela recorre a Aleksei, e é nesse momento que o demônio da roleta possui o rapaz. Desde o começo ele queria jogar, acreditava que sua própria sorte mudaria na roleta, mas não tinha tentado até então. O desabafo de Polina, interpretado por ele como um pedido de socorro, é o empurrão que faltava. E, talvez devido à afamada “sorte de principiante”, ele ganha uma verdadeira, quebra a banca de vários jogos disponíveis, apesar de jogar sem nem um cálculo, numa espécie de frenesi. 
Ele leva o dinheiro para casa e oferece parte dele para Polina, para que ela jogue na cara de Des Grieux o valor da dívida “perdoado” por ele e se liberte moralmente. Polina também está numa espécie de febre, e eles dormem juntos. No dia seguinte, furiosa, ela acusa Aleksei de tratá-la como uma prostituta, joga o dinheiro na cara dele e foge para o abrigo do Mr. Astley. Nosso herói vai saber notícias dela, troca farpas com Mr. Astley, e pouco depois esquece de repente do seu amor por Polina quando recebe daquela mesma Mlle. Blanche um convite para ir a Paris com ela torrar o dinheiro que ele ganhara em Paris. 
O convite é aceito. A curta temporada em Paris traz prazeres a Aleksei, mas não muita satisfação: ele passa os dias em um cabaré aprendendo a dançar cancã e se embebedando enquanto a Mlle. Blanche compra e mobilia um apartamento e vive em alto padrão com o dinheiro dele. Segundo suas próprias notas, o rapaz não via a hora de que a temporada acabasse. E quando isso acontece, ele volta para as cidades de jogatina alemãs, as quais percorre por muito tempo, apostando, ganhando um pouco, mas perdendo muito, chega ir preso por dívida e a se empregar como secretário-lacaio de um figurão.
 
*
  *     * 
 
Anos mais tarde, após ter estado preso, Ivánovitch encontra Mr. Astley na Alemanha, que afirma ter vindo a Homburg a pedido de Polina. Ele revela o amor que esta sentia por Aleksei, afirmando que o diz sem quaisquer receios por ter a certeza de que Aleksei é um homem perdido, depois que Aleksei desconfia do amor de Polina com a exclamação e a dúvida: "Será possível! Será possível?
Astley o repreende pela incredulidade e desfaçatez e faz um grande desabafo por ver tamanha insensibilidade em Aleksei, nos seguintes termos: “Sim, desgraçado, ela o ama, posso revelar-lhe isto porque você é um homem perdido! Mais ainda, se eu lhe disser que ela o ama até hoje, você apesar disso ficará aqui! Sim, você se perdeu. Tinha certas aptidões, um caráter vivo, e era boa pessoa, podia ser útil à sua pátria, que tanto necessita de homens, mas... ficará por aqui, e sua vida terminou. Dizendo a seguir que não pode acusá-lo, Astley emite a opinião de que "todos os russos são assim, ou inclinados a ser assim. Se não fosse a roleta, seria coisa parecida. As exceções são raríssimas. Você não é o primeiro a não querer saber o que é trabalho (não estou falando do seu povo). A roleta é um jogo essencialmente russo. Até hoje você foi honesto e preferiu ser lacaio a furtar...  mas é terrível pensar o que lhe pode acontecer no futuro. 
E para finalizar e em tom de despedida, Astley oferece a Ivánovitch uma pequena quantia (dez luíses de ouro) que lhe permitiria viajar até à Suíça, onde se encontra Polina. 
O romance termina com um conflito interior de Aleksei, indeciso entre apostar aquela quantia na roleta ou correr de imediato para os braços de Polina.
 
Aqui estão registradas algumas impressões que me causaram as leituras de O Jogador de Fiódor Dostoiévski e  Meu Marido Dostoiévski de Anna Grigoriévna Dostoiévskaia.
 

BIBLIOGRAFIA


BATISTA, Érika: Resenha: O jogador, de Fiódor Dostoiévski, publicado pelo portal Medium em 29/12/2020
 
CARNEIRO, Raquel: Livro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçada, publicado por VEJA, edição de 18/09/21
 
DOSTOIÉVSKAIA, Anna Grigoriévna: Meu Marido Dostoiévski, publicado por MAUAD Editora, trad. por Zoia Prestes, Rio de Janeiro, 1999, 334 p.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch: O JOGADOR (Obs. Minha xerocópia menciona tradução para o português de Pedro Gambarra, infelizmente sem outros detalhes técnicos de edição, com 154 p.)

NET SABER: Resumo: O Jogador

POPOVA, Maria: Anna Dostoyevskaya on the Secret to a Happy Marriage: Wisdom from One of History's Truest and Most Beautiful Loves, publicado pelo portal The Marginalian
 
WILSON, Jennifer: The Stenographer Who Married Dostoyevsky — and Saved Him From Ruin, publicado pelo The New York Times, edição de 31/08/21

terça-feira, 26 de março de 2024

MEU DISCURSO A FAVOR DA “RUA CELINA DOS SANTOS BRAGA”


Por FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA
 
Celina dos Santos Braga (✰ São João del-Rei, 23/01/1928 - ✞ 29/05/2014)

 
Exmo. Sr. Sargento Machado, Presidente da Câmara Municipal de São João del-Rei, 
Exmo. Sr. Professor Leonardo, proponente do Projeto de Lei nº 7.984, em nome de quem saúdo todos os outros representantes eleitos do povo são-joanense, 
Saúdo igualmente todas e todos os convidados que comparecem a esta cerimônia de valorização de uma mulher (minha mãe) que dedicou o melhor do seu tempo a causas sociais sem qualquer remuneração e pela simples recompensa de ter agido conforme a sua consciência, 
 
Inicialmente, quero agradecer de coração à Câmara Municipal de SJDR, carinhosamente chamada pelos são-joanenses de "Casa do Povo" e, em particular, ao Presidente Sargento Machado por conceder cinco minutos para este membro da Academia de Letras de São João del-Rei falar de sua gratidão nesta oportunidade. Todos aqui têm em mãos um texto de Dª Celina dos Santos Braga, minha mãe, intitulado "Reminiscências do Dr. Tancredo de Almeida Neves em 1944", escrito para uma edição comemorativa da Academia em 2010, ano em que se celebrava o centenário do são-joanense e também ex-presidente desta Casa Legislativa, Dr. Tancredo de Almeida Neves. (Obrigado, Dr. Tancredo! Receba todo o respeito e gratidão da nossa Academia de Letras!) Em especial, quero agradecer ao Vereador Professor Leonardo por ter indicado, no seu Projeto de Lei 7.984, o nome de minha mãe para denominação de via pública no Condomínio Novo Horizonte e que está sendo examinado nesta pauta da reunião ordinária deste dia de 26 de março de 2024. 
 
A iniciativa dessa homenagem cívica partiu de Átila Franco, vizinho de minha mãe e filho do taxista e político conhecido carinhosamente por "Patativa", o qual solicitou que a denominação da rua reverenciasse a memória de Dª Celina dos Santos Braga, alegando que podia atestar a veracidade do extremo cuidado e consideração dela para com as crianças da vizinhança, como foi o seu caso. Junto ao Professor Leonardo mencionou que, quando criança, muitas vezes pedia "mandados" à minha mãe para obter "pratinhas" e, assim, satisfazer seus desejos infantis por guloseimas e brinquedos. Mais meritória ainda foi a iniciativa de Átila, tendo em vista que partiu de um vizinho querido, e não de alguém da família, o qual, antes de tudo e por primeiro, enalteceu publicamente com louvor as qualidades de minha mãe, catequista na Rua do Ouro, razão pela qual eu e meus irmãos queremos abraçá-lo pelas referências elogiosas feitas juntamente com o pedido da homenagem à memória dela, que o Professor Leonardo guardou em seu coração e prontamente atendeu, e só depois este me comunicou ter feito esta indicação do nome dela para aquela rua, a pedido de seu amigo Átila. 
 
Prezado Professor Leonardo: considero valioso mimo a sua iniciativa de homenagear nossa mãe com a denominação de uma via pública são-joanense e a maior prova de amizade que V. Exª poderia presentear nossa família, aqui representada por mim, dois irmãos e uma irmã, além de Dinéa, nossa tia e irmã muito querida de nossa mãe, e sua leal secretária, Fota, todos aqui presentes. Os outros quatro irmãos justificaram sua ausência por compromissos assumidos anteriormente em função de suas atividades profissionais. 
 
Nossa mãe repetia a seus filhos que tinha um sonho: o de ter um dos seus filhos pianista e outro, padre. Pois bem, atendendo seu pedido, dois filhos se encaminharam para o piano (eu próprio e minha irmã, Luzia Rachel, que é formada pelo Conservatório são-joanense e que se deslocou de Florianópolis para prestigiar esta cerimônia), além de outro filho (Luís), ter optado pelo violino, tocando-o com tal esmero que veio a pertencer à Orquestra Ribeiro Bastos, sob a competente regência de José Maria Neves. Quanto ao filho padre, lamento dizer que minha mãe se frustrou, porque nenhum dos cinco filhos sentiram o chamado da vocação para o ministério sacerdotal. Em compensação, uma filha (Celina Maria Braga Campos), hoje viúva, seguiu os passos de nossa mãe, tendo também se encaminhado para o ministério de catequista  sim, ministério de catequista , que o papa Francisco chama de "antiquum ministerium", o mais antigo ministério desde os primórdios da Igreja. O Bispo de Roma fez questão de instituí-lo oficialmente em 10 de maio de 2021, para preencher uma lacuna e diante da necessidade urgente de evangelização no mundo contemporâneo. Para isso, assinou naquela data uma carta apostólica sob forma de "motu proprio", estabelecendo, desta forma, o ministério de catequista. 
 
Nossa mãe cumpriu a missão de catequista da Paróquia Nossa Senhora do Pilar sob a competente direção do Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva durante 30 anos, atuando especialmente em comunidades com vulnerabilidade social, tais como o Alto das Mercês e a Rua do Ouro e, neste caso, como diretora de catequese, segundo Dª Conceição Ferreira, coordenadora da catequese paroquial. Onde tardava ou faltava o serviço público, nossa mãe assumia o encargo de prestar assistência às pessoas carentes com seus próprios recursos. Mesmo diante dos problemas físicos de locomoção, perseverou na missão de catequista, e, com autorização de Monsenhor Paiva, precisou utilizar um carro da Paróquia e motorista para sua condução até os seus alunos. Enquanto pôde, ensinava catecismo até mesmo dentro de sua própria residência. Muito do que fez em prol dos necessitados, além da catequese, só ficamos sabendo aos poucos, depois de sua morte. O testemunho de algumas moças foi de que ela as incentivava a ingressar no coro da Orquestra Ribeiro Bastos — conselho que seguiram , de outros foi o de que se tornaram ávidos leitores de livros por sua influência e através da doação do acervo dela para formação de seu caráter.
 
Nossa irmã Elizabeth relembra, num texto denominado "Homenagem à minha mãe", que 
Há ainda uma coisa importantíssima: o amor. Mamãe tinha um coração de ouro. Era caridosa e acolhedora. Nossa casa foi sempre referência na Rua das Flores, referência de solidariedade aos necessitados. Amava as pessoas e amava a Deus, lembrando sempre que Ele estava em primeiro lugar.
 
Vou evocar alguns dados biográficos de nossa mãe. Nascida em 23 de janeiro de 1928 em São João del-Rei, era filha do acordeonista e eletricista, funcionário da Distribuidora são-joanense, Francisco Nestor dos Santos (nome de praça no Pau d'Angá) e Brasilina Sebastiana dos Santos, cozinheira do Colégio Nossa Senhora das Dores antes do casamento. Em 1944, Celina formou-se normalista no Colégio Nossa Senhora das Dores e, nos anos de 1945 e 1946, trabalhou como professora rural numa edificação da Estação ferroviária de César de Pina, próxima ao balneário das Águas Santas, proporcionando às crianças daquela comunidade rural o letramento e o acesso aos rudimentos das ciências, letras e artes. Em 15 de fevereiro de 1947, nossa mãe Celina casou-se com Roque da Fonseca Braga (1918-1984), com quem viveu durante 37 anos. Esposa e mãe exemplar, abandonou o emprego para dedicar-se ao cuidado do lar, ao marido e à educação de sua prole (constituída de 8 filhos), o que fez com muito carinho, sensibilidade e conhecimento de causa como educadora. Educou-nos com muita dedicação, tendo todos nós, seus filhos, conquistado pelo menos o grau de bacharel nas mais diversas áreas do conhecimento. Quando ainda éramos crianças, ajudava-nos nos deveres de casa e tarefas escolares, supervisionava nossos boletins escolares e estimulava a leitura, presenteando-nos com livros. Vestia-nos com roupas asseadas e engomadas e incentivava-nos a participar de atividades extra-classe, ocasião em que nos apresentávamos trajando fantasias para teatrinhos infantis e compondo, como pajens e damas de honra, o séquito de autoridades civis e eclesiásticas. 
 
Com seus oito filhos já crescidos, nossa mãe passou a frequentar novamente as carteiras da escola, matriculando-se como aluna no Conservatório de Música Pe. José Maria Xavier, dando continuidade à época de sua juventude em que integrou o coro orfeônico do Maestro Ten. João Cavalcante, professor do Colégio Nossa Senhora das Dores, em cujo coro participara como soprano. Na época em que o Diretor do Conservatório era o Prof. Abgar Campos Tirado (de 1971 a 1976), retomou os estudos de música e teve início sua participação no Coral Opus 78, sob a direção do Prof. André Luís Dias Pires, e do Coral de Ex-alunas do Colégio Nossa Senhora das Dores. Também, retomou as lições de piano com o saudoso Prof. Euclides José Correia (canto e piano). Nos últimos anos foi aluna particular da professora são-joanense Maria Amélia Viegas. 
 
Conforme se lê no projeto de lei do Vereador Professor Leonardo: 
“A Câmara Municipal de São João del-Rei aprova (e eu, Prefeito Municipal, sanciono a seguinte Lei): 
Art. 1º - Passa a denominar-se "Rua Celina dos Santos Braga", a rua conhecida como Órion, no loteamento Novo Horizonte, município de São João del-Rei, conforme croqui em anexo. 
Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 
Sala das Reuniões, 05 de janeiro de 2024.”
 
Croqui do loteamento Novo Horizonte - Crédito pela foto: Professor Leonardo

 
Devo aqui mencionar um fato digno de consideração por parte dos legisladores. É muito difícil elucidar certas coincidências que acontecem na vida da gente, mas é possível constatá-las e reconhecer o mistério da sua ocorrência. 
 
Antes e durante a referida enfermidade, mamãe possuía um cão chamado Órion, que, como um anjo, alegrava sua vida decadente com o seu latido e sua alegria, tornando as suas agruras menos dolorosas. Pois bem: após a morte dela em 29 de maio de 2014, esse cão nunca mais latiu, num luto solitário percebido por todos. 
 
Observem agora a feliz coincidência e o mistério inerente a essa denominação da "Rua Celina dos Santos Braga". No croqui, o loteamento homenageava constelações e Órion foi a denominação provisória desta via pública. Ora, Órion deve ser uma das constelações mais populares no mundo todo. Sua posição privilegiada em relação à Linha do Equador permite que seja vista tanto no Hemisfério Norte quanto no Hemisfério Sul da Terra. Além disso, Órion era o nome do cão que alegrava a vida de mamãe antes e durante o último quadrante de sua vida. Relembro essas coisas, reafirmando a existência de estranhas coincidências nessa homenagem prestada pela Casa do Povo. Certamente, a alma dela deve estar muito comovida nos páramos celestiais, por ter seu nome substituindo seu amado cão em vida, juntando ambos na pós-morte. 
 
Nossa mãe, durante a sua enfermidade que infelizmente veio a vitimá-la em 2014, era assistida por todos os oito filhos; pôde contar especialmente com a companhia constante de meu irmão Rafael e sua esposa Lourdes, que moravam na cidade, secundados por Carlos Fernando e sua esposa Maria do Carmo e por mim e minha esposa Rute, que tivemos a coragem de mudar-nos para São João del-Rei, vindos respectivamente de Belo Horizonte e Brasília, ficando assim mais próximos neste momento delicado de sua vida,  dando-lhe conforto e confiança até seu último dia.
 
Para finalizar, revisito o texto "Homenagem à minha mãe" de nossa irmã Elizabeth, em que fala também do amor de nossa mãe à música: 
Gostava de música e ensinou a todos nós o amor por essa arte maravilhosa. Incentivou-nos no aprendizado de instrumentos, inclusive com seu exemplo, iniciando as aulas de piano já adulta e com oito filhos. Gostava de cantar, desde os tempos do canto orfeônico do Colégio Nossa Senhora das Dores, e foi sua voz afinada que moldou nossos bons ouvidos. O conservatório, o coral, a música clássica, o barroco mineiro... nossa Mãe amava a música e até seus últimos dias pediu aos filhos que tocassem para ela o velho piano.
 
À nossa mãe está reservada a coroa dos justos e simples de coração, tementes a Deus. Com São Paulo, na 2ª carta a Timóteo capítulo 4 e versículos 7-8, nossa mãe certamente está dizendo nas regiões celestiais: 
"Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me entregará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amam a sua vinda." 
 
Muito obrigado pelo carinho de todos.
 
 
Orador: Francisco Braga - Crédito pela foto: Professor Leonardo


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rute Pardini e Francisco Braga

 
Composição da Mesa: Sargento Machado (no centro) e Professor Leonardo (à direita) - Crédito pela foto: Professor Leonardo

Auditório lotado com familiares e convidados - Crédito pela foto: Professor Leonardo




REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
 
BRAGA, Celina dos Santos: Reminiscências de Dr. Tancredo de Almeida Neves em 1944, publicado na Revista da Academia de Letras de São João del-Rei, Ano IV, nº 04, 2010 (número especial dedicado às comemorações de centenário de nascimento do Dr. Tancredo de Almeida Neves), pp. 143-144; também transcrito no Blog de São João del-Rei, publicado em 28/12/2010

BRAGA, Elizabeth dos Santos: Homenagem à minha mãe Celina dos Santos Braga (1928-2014), publicado no Blog de São João del-Rei em 08/07/2014

BRAGA, Francisco José dos Santos Braga: Colaboradora: Celina dos Santos Braga, publicado no Blog de São João del-Rei, 28/12/2010.

sexta-feira, 15 de março de 2024

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 19: CÍCERO: DISCURSO PARA ARCHIAS POETA

Introdução, tradução do latim, comentários e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga

Archias foi um poeta grego de Antioquia. Adquiriu a cidadania romana com o nome Aulus Licinius Archias, mas Gratius contestou a decisão por motivos técnicos – essencialmente políticos. O poeta foi defendido com sucesso por Cícero em 62 a.C. Seu discurso é um dos elogios mais brilhantes da literatura escrita na antiguidade. Na passagem que se segue, a perspectiva do orador é principalmente romana: os textos literários preservam o comportamento exemplar ("exempla") dos grandes homens para os mais jovens imitarem. 

Marco Túlio Cícero (✰ 106 a.C., Arpino ✞ 43 a.C., Fórmias)
 

I. INTRODUÇÃO

 

Em sua fala em defesa da poesia em geral e do poeta grego Archias em particular um panegírico muito elaborado do valor moral da poesia na fronteira entre a retórica epidítica e a retórica forense  Cícero se apresenta como uma espécie educada de homo novus ¹ compensando sua falta de modelos (imagines) aristocráticos com a imitação de exemplos (exempla) literários. 

Inicio minha digressão sobre o discurso de Cícero em 62 a.C. com o paratexto ao título Pro Archia Poeta Oratio, pág. 85 do livro "LATIUM: Antologia Latina, comentada e anotada por A. da Silva D'Azevedo:  

GRATIUS contestara o direito de cidadão romano, que o literato Archias obtivera em Heracléa, por intermédio de Lúculo. Defendendo o velho mestre e poeta, Marco Túlio presta primeiramente uma homenagem às belas-letras; ora, Archias (que tomara o nome de Licínio, que era o de Lúculo, seu amigo), a elas se dedicara desde a puerícia, e por isso, granjeara-lhe naturalmente a estima e o respeito de todos, de forma que os heracleenses tinham apenas feito um ato de justiça, concedendo ao poeta exímio, o direito de cidadania. Era absurdo exigirem-se os livros ou folhas de registro, visto ser do conhecimento de todos que um incêndio havia destruído os arquivos. Restava o testemunho de Lúculo e outros. Além disso, se Archias não fosse cidadão romano, convinha que lhe concedessem esse direito, visto como, a só qualidade de cultor das letras era tão nobre que generais e homens do governo timbravam em se dedicar à literatura, ou ambicionavam perpetuar nos livros o eco das suas façanhas e triunfos. Esta oração pode considerar-se uma tese em prol das Letras e da Cultura Humanística, em geral.

 

II. TRADUÇÃO


TEXTO LATINO: Discurso para Archias Poeta, por Cícero (capítulo VI, seção 14)

VI. (14) Nam nisi multorum praeceptis multisque litteris mihi ab adulescentia suasissem, nihil esse in vita magno opere expetendum nisi laudem atque honestatem, in ea autem persequenda omnis cruciatus corporis, omnia pericula mortis atque exsilii parvi esse ducenda, numquam me pro salute vestra in tot ac tantas dimicationes atque in hos profligatorum hominum cotidianos impetus obiecissem. Sed pleni omnes sunt libri, plenae sapientium voces, plena exemplorum vetustas: quae iacerent in tenebris omnia, nisi litterarum lumen accederet. Quam multas nobis imaginesnon solum ad intuendum, verum etiam ad imitandum  fortissimorum virorum expressas scriptores et Graeci et Latini reliquerunt? Quas ego mihi semper in administranda re publica proponens, animum et mentem meam ipsa cognitatione hominum excellentium conformabam.

MINHA TRADUÇÃO 

VI. (14) Pois, se não me tivesse persuadido desde a adolescência em diante, pelos preceitos de muitos (mestres), e por muitas leituras, de que nada na vida  deve ser particularmente desejado senão a glória, mas também a honra; porém, buscando obter tais coisas, todos os sofrimentos físicos, todos os perigos de morte e de exílio ² devem ser considerados de pouca importância: nunca me teria atirado pelo vosso bem-estar a tantos e tamanhos conflitos e a estes ataques cotidianos de pessoas desprezíveis. Contudo, todos os livros estão cheios, as palavras dos sábios abundantes, a antiguidade plena de exemplos, tudo isso ficaria enterrado nas trevas, caso não se tivesse aproximado a luz das letras. Quantos modelos dos homens mais corajosos nos deixaram retratados os escritores tanto gregos quanto latinos, não só para contemplarmos, mas também para os imitarmos! ³ Eu, pondo diante de mim esses modelos sempre , para minha própria conduta pública, moldava minha mente e inteligência com o próprio pensamento desses homens excelentes.
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹ Homem novo: termo utilizado na Roma antiga para um homem que fosse o primeiro em sua família a ocupar o cargo de Senador. Neste caso, o termo "homo novus" tem um elemento negativo: o de um outsider. Tentativamente, podemos, como fez [DUGAN, 2005, 01], definir "homo novus" como um outsider político, alguém que não possui uma família com um passado prestigioso, isto é, um homem livre com nenhum parente que ocupou altos cargos. De acordo com essa definição, tanto Cícero quanto Horácio preencheram esses requisitos para serem considerados "homines novi". Ambos os autores utilizam os termos em suas próprias obras, porém em ambos os casos, o "homo novus" é visto como uma figura positiva: sua condição é algo a ser louvado e destacado, considerando que ambos construíram para si como que uma nova entidade dentro da vida cultural romana: a de um líder que baseou sua autoridade em realizações intelectuais, oratórias e literárias em vez dos tradicionais acessos para o prestígio, tais como um pedigree de família distinta ou feitos políticos ou militares.

² Tendo em vista que o "Pro Archia" foi proferido em 62 a.C., as referências de Cícero a perigos de morte e exílio devem ser lidos à luz de sua luta contra a conspiração de Catilina (novembro-dezembro de 63 a.C.).

³ Pelo bem do aperfeiçoamento moral, é de fundamental importância mover-se além do nível da simples observação (intueri) e abraçar a prática da imitação consciente (imitari), que está baseada no ato mental de manter os exemplos (exempla) diante dos olhos (sibi proponere).

  O uso de modelos mnemônicos e mentais para fins criativos é uma técnica bem conhecida da retórica greco-latina, discutida tanto por Cícero quanto por Quintiliano, entre outros. O perfil duplo de Cícero como um estadista e escritor no "Pro Archia" lembra-nos que semelhantes práticas intelectuais poderiam ser sincreticamente assimiladas pelos romanos a seus costumes ancestrais. Cidadãos romanos como Cícero, que não cresceram em berço de ouro, podem absorver da literatura os mesmos ideais da educação tradicional  a paixão abnegada por glória e honra que leva alguém a arriscar a vida e a derrotar inimigos públicos como Catilina.

 
IV. BIBLIOGRAFIA
 

BRAGA, Francisco José dos Santos: CONSPIRAÇÃO CONTRA A REPÚBLICA ROMANA (65-63 a.C.), texto publicado no Blog do Braga em 11/04/2016.

D'AZEVEDO, A. da Silva: LATIUM: Antologia Latina, São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & Cia, 1933, 383 p.
 
DUGAN, John. Making a New Man: Ciceronian Self-Fashioning in the Rhetorical Works. Oxford: Oxford University Inc., 2005, 388 p.

SILVA, Camilla F.P. & LEITE, Leni R.: Reinventing the concept of homo novus in Rome: Cicero as Horace's  role model, Rio de Janeiro: Topoi (Rio J.), v. 21, nº 45, pp. 602-619, set/dez 2020.