sexta-feira, 15 de março de 2024

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 19: CÍCERO: DISCURSO PARA ARCHIAS POETA

Introdução, tradução do latim, comentários e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga

Archias foi um poeta grego de Antioquia. Adquiriu a cidadania romana com o nome Aulus Licinius Archias, mas Gratius contestou a decisão por motivos técnicos – essencialmente políticos. O poeta foi defendido com sucesso por Cícero em 62 a.C. Seu discurso é um dos elogios mais brilhantes da literatura escrita na antiguidade. Na passagem que se segue, a perspectiva do orador é principalmente romana: os textos literários preservam o comportamento exemplar ("exempla") dos grandes homens para os mais jovens imitarem. 

Marco Túlio Cícero (✰ 106 a.C., Arpino ✞ 43 a.C., Fórmias)
 

I. INTRODUÇÃO

 

Em sua fala em defesa da poesia em geral e do poeta grego Archias em particular um panegírico muito elaborado do valor moral da poesia na fronteira entre a retórica epidítica e a retórica forense  Cícero se apresenta como uma espécie educada de homo novus ¹ compensando sua falta de modelos (imagines) aristocráticos com a imitação de exemplos (exempla) literários. 

Inicio minha digressão sobre o discurso de Cícero em 62 a.C. com o paratexto ao título Pro Archia Poeta Oratio, pág. 85 do livro "LATIUM: Antologia Latina, comentada e anotada por A. da Silva D'Azevedo:  

GRATIUS contestara o direito de cidadão romano, que o literato Archias obtivera em Heracléa, por intermédio de Lúculo. Defendendo o velho mestre e poeta, Marco Túlio presta primeiramente uma homenagem às belas-letras; ora, Archias (que tomara o nome de Licínio, que era o de Lúculo, seu amigo), a elas se dedicara desde a puerícia, e por isso, granjeara-lhe naturalmente a estima e o respeito de todos, de forma que os heracleenses tinham apenas feito um ato de justiça, concedendo ao poeta exímio, o direito de cidadania. Era absurdo exigirem-se os livros ou folhas de registro, visto ser do conhecimento de todos que um incêndio havia destruído os arquivos. Restava o testemunho de Lúculo e outros. Além disso, se Archias não fosse cidadão romano, convinha que lhe concedessem esse direito, visto como, a só qualidade de cultor das letras era tão nobre que generais e homens do governo timbravam em se dedicar à literatura, ou ambicionavam perpetuar nos livros o eco das suas façanhas e triunfos. Esta oração pode considerar-se uma tese em prol das Letras e da Cultura Humanística, em geral.

 

II. TRADUÇÃO


TEXTO LATINO: Discurso para Archias Poeta, por Cícero (capítulo VI, seção 14)

VI. (14) Nam nisi multorum praeceptis multisque litteris mihi ab adulescentia suasissem, nihil esse in vita magno opere expetendum nisi laudem atque honestatem, in ea autem persequenda omnis cruciatus corporis, omnia pericula mortis atque exsilii parvi esse ducenda, numquam me pro salute vestra in tot ac tantas dimicationes atque in hos profligatorum hominum cotidianos impetus obiecissem. Sed pleni omnes sunt libri, plenae sapientium voces, plena exemplorum vetustas: quae iacerent in tenebris omnia, nisi litterarum lumen accederet. Quam multas nobis imaginesnon solum ad intuendum, verum etiam ad imitandum  fortissimorum virorum expressas scriptores et Graeci et Latini reliquerunt? Quas ego mihi semper in administranda re publica proponens, animum et mentem meam ipsa cognitatione hominum excellentium conformabam.

MINHA TRADUÇÃO 

VI. (14) Pois, se não me tivesse persuadido desde a adolescência em diante, pelos preceitos de muitos (mestres), e por muitas leituras, de que nada na vida  deve ser particularmente desejado senão a glória, mas também a honra; porém, buscando obter tais coisas, todos os sofrimentos físicos, todos os perigos de morte e de exílio ² devem ser considerados de pouca importância: nunca me teria atirado pelo vosso bem-estar a tantos e tamanhos conflitos e a estes ataques cotidianos de pessoas desprezíveis. Contudo, todos os livros estão cheios, as palavras dos sábios abundantes, a antiguidade plena de exemplos, tudo isso ficaria enterrado nas trevas, caso não se tivesse aproximado a luz das letras. Quantos modelos dos homens mais corajosos nos deixaram retratados os escritores tanto gregos quanto latinos, não só para contemplarmos, mas também para os imitarmos! ³ Eu, pondo diante de mim esses modelos sempre , para minha própria conduta pública, moldava minha mente e inteligência com o próprio pensamento desses homens excelentes.
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹ Homem novo: termo utilizado na Roma antiga para um homem que fosse o primeiro em sua família a ocupar o cargo de Senador. Neste caso, o termo "homo novus" tem um elemento negativo: o de um outsider. Tentativamente, podemos, como fez [DUGAN, 2005, 01], definir "homo novus" como um outsider político, alguém que não possui uma família com um passado prestigioso, isto é, um homem livre com nenhum parente que ocupou altos cargos. De acordo com essa definição, tanto Cícero quanto Horácio preencheram esses requisitos para serem considerados "homines novi". Ambos os autores utilizam os termos em suas próprias obras, porém em ambos os casos, o "homo novus" é visto como uma figura positiva: sua condição é algo a ser louvado e destacado, considerando que ambos construíram para si como que uma nova entidade dentro da vida cultural romana: a de um líder que baseou sua autoridade em realizações intelectuais, oratórias e literárias em vez dos tradicionais acessos para o prestígio, tais como um pedigree de família distinta ou feitos políticos ou militares.

² Tendo em vista que o "Pro Archia" foi proferido em 62 a.C., as referências de Cícero a perigos de morte e exílio devem ser lidos à luz de sua luta contra a conspiração de Catilina (novembro-dezembro de 63 a.C.).

³ Pelo bem do aperfeiçoamento moral, é de fundamental importância mover-se além do nível da simples observação (intueri) e abraçar a prática da imitação consciente (imitari), que está baseada no ato mental de manter os exemplos (exempla) diante dos olhos (sibi proponere).

  O uso de modelos mnemônicos e mentais para fins criativos é uma técnica bem conhecida da retórica greco-latina, discutida tanto por Cícero quanto por Quintiliano, entre outros. O perfil duplo de Cícero como um estadista e escritor no "Pro Archia" lembra-nos que semelhantes práticas intelectuais poderiam ser sincreticamente assimiladas pelos romanos a seus costumes ancestrais. Cidadãos romanos como Cícero, que não cresceram em berço de ouro, podem absorver da literatura os mesmos ideais da educação tradicional  a paixão abnegada por glória e honra que leva alguém a arriscar a vida e a derrotar inimigos públicos como Catilina.

 
IV. BIBLIOGRAFIA
 

BRAGA, Francisco José dos Santos: CONSPIRAÇÃO CONTRA A REPÚBLICA ROMANA (65-63 a.C.), texto publicado no Blog do Braga em 11/04/2016.

D'AZEVEDO, A. da Silva: LATIUM: Antologia Latina, São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & Cia, 1933, 383 p.
 
DUGAN, John. Making a New Man: Ciceronian Self-Fashioning in the Rhetorical Works. Oxford: Oxford University Inc., 2005, 388 p.

SILVA, Camilla F.P. & LEITE, Leni R.: Reinventing the concept of homo novus in Rome: Cicero as Horace's  role model, Rio de Janeiro: Topoi (Rio J.), v. 21, nº 45, pp. 602-619, set/dez 2020.

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
Um trecho do Discurso para Archias Poeta de Cícero (que será lido em minha tradução) nos dá a oportunidade de constatar que o discurso é, de fato, um panegírico da poesia e de seu valor na sociedade.
CÍCERO, um dos maiores oradores da Roma antiga, utiliza sua habilidade retórica para argumentar que a poesia é uma forma de arte nobre e necessária para o bem-estar da sociedade.
Em seu discurso, Cícero defende o poeta Archias, que havia sido acusado de falsificar sua cidadania romana para poder receber a proteção de um mecenas.
O orador utiliza a figura de Archias para argumentar que a poesia é uma atividade nobre e valiosa, que merece ser protegida e apoiada.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/03/recupere-seu-latim-parte-16-cicero.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Obrigado!
Precioso...
Tanto pelo exemplo
como pelas 'notas explicativas"

Como tenho a aprender com suas lições!

Lúcio Flávio Baioneta (autor do livro "De banqueiro a carvoeiro", conferencista e proprietário da Análise Comercial Ltda em Belo Horizonte) disse...

Meu prezado amigo FJSBRAGA, você levou-me novamente aos bancos escolares do Ginásio Santo Antonio, onde meus professores, inicialmente frei Conrado, e depois Frei Salésio que não acreditava que eu conseguia aprender as declinações e os verbos com uma só leitura e, em dúvida, mandava-me copiar por centenas de vezes as declinações e os verbos... tudo ficou no passado, mas a saudade nos acompanha até hoje.
Vc, Braga, é uma prova viva do que conseguimos aprender naquele sagrado educandário. Sinto-me orgulhoso disto. Parabéns pela exímia tradução e tambem pelos comentários do uso de termos caracteristiscos dos cidadãos romanos que não tinham origem em berço de ouro, leia-se, famílias abastadas ou advindos de cidadãos que conquistaram lugares naquela sociedade pelos seus feitos militares ou políticos. Gostei muito.
Abs do amigo,
Lúcio Flávio.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Magnífica defesa da função da Arte e dos "homens novos" à sua época! Curiosamente, o "outsider" é agora um elemento da própria "aristocracia" e, portanto, um refinado hipócrita.
Sinceros parabéns pelos seus profundos conhecimentos de Latim e pela escolha da peça.
Saudações,
Cupertino

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Obrigado!

Tenho aprendido muito nos últimos meses,,,,

Claro que minha ignorância é infinita...

Tive algumas oportunidades e tenho ainda
e nem sempre as aproveito....

Por exemplo, meu latim que já foi razoável
nos tempos de estudo na 'Faculdade D. Bosco"
em que todos os livros de filosofia "escolástica" eram em latim e cantávamos as 'missas solenes" em gregoriano.

Mas depois na "vida prática" desde 1970 não mantive a prática da língua e tenho quase que 'reaprendê-la" como se fosse um iniciante... a memória já não ajuda muio mais.

O grego nunca cheguei a 'dominar" apesar dos esforços do Padre Gruen... agora está quase esquecido também
O hebraico era reservado à teologia, que não fiz.
Zero de Hebraico... se Deus me conceder vida, ainda embarco no seu aprendizado....
Seus textos e explicações vão me ajudando a aprender algumas coisas e trazendo motivação...