quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O NATAL NA GRÉCIA

Por Francisco José dos Santos Braga

I. RELIGIOSIDADE, TRADIÇÃO E SIMPATIAS 

Na véspera de Natal, as crianças, principalmente os meninos, costumam sair cantando 'kálanda' (canções de natal) pelas ruas. Eles tocam tambores e triângulos, enquanto cantam. Às vezes, eles também carregam maquetes de barcos decorados com nozes que são pintadas de ouro. Carregar um barco é um costume muito antigo nas ilhas gregas. 
 
 
Se as crianças tiverem cantado bem, poderão receber algum trocado, bem como petiscos como nozes, doces e figos secos. 

Uma decoração antiga e muito tradicional é uma tigela de madeira rasa com um pedaço de arame suspenso pela borda. Um ramo de manjericão enrolado em uma cruz de madeira e pendurado no arame. Um pouco de água é mantida na tigela para manter o manjericão vivo e fresco. Uma vez por dia, alguém, geralmente a mãe da família, mergulha a cruz e o manjericão em um pouco de água benta e usa para borrifar água em cada cômodo da casa. 

Acredita-se que isso afaste “espíritos maus ou fantasmas” que devem aparecer apenas durante o período de 12 dias do Natal à Epifania (6 de janeiro). Eles devem vir do interior da terra e entrar na casa das pessoas pela chaminé! Os fantasmas fazem estrepolias como apagar o fogo e fazer o leite derramar. Ter uma lareira acesa durante os doze dias do Natal serve para afastar os fantasmas (queimar sapatos velhos também é uma boa maneira de espantá-los). 

Todo mês de dezembro, na Praça Aristotélica, na cidade de Thessaloníki (que é a segunda maior cidade da Grécia), uma enorme árvore de Natal e um veleiro de três mastros são erguidos. É uma atração turística popular. Existem também grandes exibições de barcos em outras grandes cidades gregas, como Atenas. Os navios decorados são uma tradição antiga na Grécia, onde os pequenos navios eram armados nas casas quando os marinheiros voltavam das viagens marítimas. 

Barco natalino de Thessaloníki - Crédito: Tilemahos Efthimiadis
 

As árvores de Natal são populares na Grécia. A primeira árvore de Natal conhecida na Grécia foi em 1833 e foi instalada pelo rei Otto ao lado de um grande barco decorado. Com o tempo, especialmente no final do século XX, as árvores de Natal decoradas se tornaram mais populares do que decorar um barco. Mas agora ter um barco e uma árvore está se tornando mais popular! 

Ir a uma Missa da Meia-noite é muito importante para a maioria dos gregos. Depois do culto, as pessoas podem ir para casa e encerrar o jejum do Advento. A principal refeição de Natal costuma ser cordeiro ou porco assado no forno ou no espeto. Geralmente é servido com uma torta de espinafre e queijo (em grego, ‘spanakópita’) e várias saladas e vegetais. Outros alimentos de Natal e Ano Novo incluem 'baklavá' (uma massa doce feita de massa folhada fininha, recheada com nozes picadas e adoçada com xarope ou mel), ‘kataífi’ (doce feito de massa aos fios e com recheio nozes e canela), ‘diples ou thiples’ (massa folhada fina frita). Os bolos são consumidos no café da manhã ou como entradas. Outra sobremesa popular de Natal é o melomakárono (bolo em forma de ovo ou oblongo feito de farinha, azeite de oliva e mel e enrolado em nozes picadas). 

Uma decoração de mesa tradicional são pães de 'christópsomo' (pão de Cristo ou pão especial de Natal). É um pão doce redondo aromatizado com canela, laranja e cravo. O topo é decorado com uma cruz. O pão é feito na véspera do Natal e pronto para ser consumido no dia de Natal. 

Christópsomo (pão natalino)

Em grego, Feliz Natal! é 'Kalá Christoúghenna!'. 

Na Grécia, os presentes são frequentemente entregues às crianças por Ághios Vassílis (São Basílio) no dia 1º de janeiro, pois é o dia de São Basílio. 

Na véspera de Ano Novo, muitas famílias farão uma grande refeição e farão jogos. À meia-noite, as pessoas presentes se dão muitos abraços, beijos e dizem: “Kalí chroniá!” (Feliz Ano Novo). Quando da contagem regressiva até a meia noite em ponto, quando o Ano Novo oficialmente começa, alguns irrompem em dança. É uma maneira divertida de expressar um clima de celebração com boas expectativas para o ano que se inicia. Também, talvez, que o velho ano com seus problemas tenha finalmente passado! Em muitos lugares as festas dançantes também são uma forma popular de passar a véspera de Ano Novo. Canções de Ano Novo também podem ser cantadas. No dia de Ano Novo (“Protochroniá”), em muitos locais da Grécia, existe a tradição dos “bounamáthes”. Os adultos da família dão dinheiro e presentes às crianças, desejando-lhes um feliz ano novo. 

“O Dia de Ano Novo (“Protochroniá”) é o primeiro dia do ano e na Grécia é festejado em 1º de janeiro, dia de São Basílio. É uma grande oportunidade para crianças e adultos trocarem presentes, mas também para festejarem juntos a virada do ano, normalmente com muita festa, música e abundantes “comes e bebes”. 
O festejo do Dia do Ano Novo tem início no dia anterior, com as famílias preparando febrilmente o jantar de Réveillon. 
De manhã muitas crianças vão de porta em porta entoando canções do Dia de Ano Novo por uns trocados. 
As mulheres, além de cozinhar e preparar a mesa, prestam atenção especial à aparência. Por ser a festa do ano, naturalmente, elas querem mostrar-se na sua melhor forma! O menu consiste principalmente em carne, mas também inclui muitos doces tradicionais, como biscoitos cobertos de açúcar (kourabiédes), ou biscoitos de mel (melomakárona) e, claro, a famosa torta de Ano Novo, chamada vassilópita. 
À medida que o fim da noite chega e o início de um novo ano se aproxima, as pessoas que comemoram em casa ligam a televisão para assistir à contagem regressiva. À meia-noite, todos se abraçam e se beijam enquanto formulam votos de felicidade. Em grego, eles dizem “Kalí Chroniá”, que significa “Feliz Ano Novo”. À noite, muitas pessoas também abrem uma garrafa de champanhe para dar sorte. Então, o chefe de família corta a vassilópita (torta ou bolo de São Basílio), depois de fazer o sinal da Cruz nela três vezes usando uma faca. A primeira peça é cortada para Cristo, a segunda para a Virgem Maria, a terceira para São Basílio e as peças subsequentes para o resto dos membros da família. Depois disso, pode-se esperar uma festa animada e possivelmente um jogo de cartas. A torta de Ano Novo não é uma torta qualquer! Uma moeda da sorte ou “flourí” está escondida dentro dela. Assim que cada pessoa recebe sua porção, a busca começa! Diz-se que quem encontra a moeda da sorte terá sorte no resto do ano! 
 
Papai Noel (português brasileiro) ou Pai Natal (português europeu) (“Noël” significa natal em francês) é uma figura lendária que, em muitas culturas ocidentais, traz presentes aos lares de crianças bem-comportadas na noite da Véspera de Natal, o dia 24 de dezembro, ou no Dia de São Nicolau (6 de dezembro). A lenda pode ter-se baseado em parte em contos hagiográficos sobre a figura histórica de São Nicolau de Mira (270-343). Uma história quase idêntica é atribuída no folclore grego e bizantino a Basílio de Cesareia. O Dia de São Basílio (São Basílio de Cesareia ✰ ca. 330 d.C. ✞ 1º/01/379), em 1.º de janeiro, é considerado a data de troca de presentes na Grécia. Assim, a tradição grega é que os presentes são entregues às crianças por São Basílio nessa data. 
Na manhã do dia de Ano Novo, “Papai Noel” (ou em grego, São Basílio) traz presentes para as crianças, enquanto os adultos descansam após os folguedos da noite anterior. Cronologicamente, então, a primeira simpatia do Ano Novo em muitas casas é o “podarikó” (“primeiro pé” ou “pé direito”). Esta é uma tradição que muitos gregos observam. As famílias gregas asseguram-se de que a primeira pessoa a entrar na casa deva usar o pé direito, para que tudo o que vier a acontecer durante o Ano Novo dê certo, ou, em outras palavras, venha com sorte. Neste caso, preferem que o primeiro passo seja dado por um parente de bom coração e de sorte, ou por seu filhinho mais novo, porque os filhinhos são puros e inocentes. 
 
Para que é usada a romã no dia de Ano Novo na Grécia? A romã, ou em grego “rhódi”, é um símbolo de abundância, fertilidade e boa sorte. Em muitas partes da Grécia, após a virada do ano, os gregos jogam com força uma romã do lado de fora da soleira da porta da frente, quebrando-a em muitos pedaços. Acredita-se que isso traga boa sorte e abundância de bens para o lar. 
Em algumas áreas da Grécia, a pessoa segura uma romã e a quebra na porta da frente antes de entrar em casa. As sementes se espalham, o que simboliza a felicidade e a boa sorte da casa - e quanto mais sementes de romã melhor!

II. A ENCARNAÇÃO DE NOSSO SENHOR, DEUS E SALVADOR, JESUS CRISTO 

 
Inicialmente, observe-se que a celebração do Natal foi estabelecida pela primeira vez em 25 de dezembro de 397 d.C., durante o patriarcado de São João Crisóstomo (✰ ca. 347 - ✞ 407 d.C.), patriarca de Constantinopla. Segundo outros, o primeiro Patriarca de Jerusalém, Juvenal (✰ ca. 380 - ✞ 458 d.C.), separou, uma da outra, as festas da Epifania (Luzes) e do Natal, que eram até então comemoradas no mesmo dia (6 de janeiro). Desde então, a Santa Igreja celebra no dia 25 de dezembro a grande e inexplicável encarnação do Filho e Verbo divino pela Mãe de Deus (“Theotókos”). 
 
A natividade de Cristo
 
A hinologia do Natal é uma das mais ricas e constitui o reflexo da exaltação poética dos poetas sacros da Igreja Ortodoxa Grega. Os poetas inspirados pelo Espírito Santo cantaram o grande mistério da encarnação divina e deram, tanto à Igreja incomparáveis poemas de adoração por séculos, quanto à cultura universal provas superiores de arte poética. Os fiéis são chamados, nesses dias santos, para além dos prazeres materiais desses dias (também eles são acompanhantes como sinal de grande alegria) a aproximarem-se mentalmente da manjedoura de Belém e a curvarem-se em frente ao Menino Deus e a deporem perante Ele a sua vida e sua salvação. A magnífica hinologia sacra da grande festividade os ajudará a dizerem o diálogo pastoril: “Vamos a Belém, e vejamos isso que aconteceu, e que o Senhor nos deu a conhecer.” 

Na Missa da Meia Noite (para nós, a tradicional Missa do Galo) e nas outras Missas celebradas durante todo o dia 25 de dezembro, nos principais templos gregos são entoados alguns hinos natalinos de São Romano, o Melodista (✰ ca. 490, em Émesa, na Síria ✞ ca. 556, em Constantinopla). 

Karl Krumbacher (23/09/1856 – 12/12/1909), um grande estudioso do hinógrafo São Romano, o Melodista, publicou em Munique muitos hinos inéditos deste e de outros, a partir de manuscritos descobertos na biblioteca do Mosteiro de São João Teólogo na ilha de Patmos. O Professor fala sobre o trabalho de São Romano: 
Em talento poético, centelha de inspiração, profundidade de emoção e elevação da linguagem, ultrapassa de longe todas as outras melodias.
Sobre o seu trabalho o Prof. Krumbacher emite o seguinte juízo: 
A história da literatura futura pode declarar Romano o maior poeta eclesiástico de todos os tempos.
Vamos aqui apreciar pelo menos um deles, que está sendo entoado em todo templo ortodoxo, em minha tradução da língua grega. 
 
Apolytíkion (Quarto tom) 
 
Ἡ γέννησίς σου Χριστὲ ὁ Θεὸς ἡμῶν, 
ἀνέτειλε τῷ κόσμῳ, τὸ φῶς τὸ τῆς γνώσεως· 
ἐν αὐτῇ γὰρ οἱ τοῖς ἄστροις λατρεύοντες, 
ὑπὸ ἀστέρος ἐδιδάσκοντο, 
σὲ προσκυνεῖν, τὸν Ἥλιον τῆς δικαιοσύνης, 
καὶ σὲ γινώσκειν ἐξ ὕψους ἀνατολήν, 
Κύριε δόξα σοι. 
 
 
 
Minha tradução: 
Tua natividade, ó Cristo nosso Deus, 
fez a luz do conhecimento levantar-se sobre o mundo; 
pois por tua natividade os que adoraram astros,
por uma estrela foram instruídos 
a te adorar, o Sol da justiça, 
e a te conhecer como Oriente desde as alturas. 
Glória a ti, ó Senhor. 
 
Κontákion (Terceiro tom) 
 
Poema de São Romano, o Melodista 
 
Ἡ Παρθένος σήμερον, τὸν ὑπερούσιον τίκτει, 
καὶ ἡ γῆ τὸ Σπήλαιον, τῷ ἀπροσίτῳ προσάγει. 
Ἄγγελοι μετὰ Ποιμένων δοξολογοῦσι. 
Μάγοι δὲ μετὰ ἀστέρος ὁδοιποροῦσι. 
Δι᾿ ἡμᾶς γὰρ ἐγεννήθη, Παιδίον νέον, 
ὁ πρὸ αἰώνων Θεός. 
 
 
Minha tradução: 
A Virgem hoje dá à luz o Transcendente, 
E a terra oferece uma gruta ao Inacessível, 
Os anjos com os pastores O glorificam, 
Magos vêm em jornada com a estrela. 
Pois por nós nasceu como criancinha, 
O Deus Eterno. 
 
Ὁ Οἶκος  (a ser lido)

Τὴν Ἐδὲμ Βηθλεὲμ ἤνοιξε, δεῦτε ἴδωμεν· 
τὴν τρυφὴν ἐν κρυφῇ εὕρομεν, δεῦτε λάβωμεν, 
τὰ τοῦ Παραδείσου ἔνδον τοῦ Σπηλαίου. 
Ἐκεῖ ἐφάνη ῥίζα ἀπότιστος, βλαστάνουσα ἄφεσιν· 
ἐκεῖ εὑρέθη φρέαρ ἀνώρυκτον, 
οὗ πιεῖν Δαυῒδ πρὶν ἐπεθύμησεν· 
ἐκεῖ Παρθένος τεκοῦσα βρέφος, 
τὴν δίψαν ἔπαυσεν εὐθύς, τὴν τοῦ Ἀδὰμ καὶ τοῦ Δαυΐδ· 
διὰ τοῦτο πρὸς τοῦτο ἐπειχθῶμεν, οὗ ἐτέχθη, 
Παιδίον νέον, ὁ πρὸ αἰώνων Θεός. 
 
 
Minha tradução: 
Belém abriu o Éden, vinde, contemplemos; 
Encontramos deleite no mistério, vinde, recebamos 
as coisas do Paraíso dentro da gruta. 
Ali apareceu a raiz não regada cuja flor é o perdão. 
Ali foi encontrado o poço não cavado 
Do qual outrora Davi desejou beber. 
Ali uma virgem deu à luz um menino 
E saciou simultaneamente a sede de Adão e de Davi. 
Por isso, apressemo-nos a este lugar, ali onde nasceu 
Uma criancinha, Deus eterno. 
 
NOTA: Este hino é a primeira estrofe da obra mais famosa de São Romano, o Melodista, seu primeiro kontákion sobre a Natividade de Cristo. A 'raiz não regada' a que São Romano se refere é uma referência direta a Isaías 11: 1, "Um ramo surgirá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo." A imagem da raiz não regada que floresce não se refere apenas ao nascimento de Cristo, mas também à forma de sua concepção. Diz-nos São Leão Magno que “este rebento representa a Bem-Aventurada Virgem Maria, que nasceu do tronco de Jessé e David, e foi fecundada pelo Espírito Santo, dando à luz uma nova flor de carne humana, do ventre de uma mãe, certamente, mas através de um nascimento virginal.” 
A referência ao poço subterrâneo do qual Davi “expressou forte desejo de beber água da cisterna da porta de Belém” é particularmente perspicaz. Retirado do segundo Livro de Samuel, 23: 15-17, é uma referência a um incidente durante a campanha do rei Davi e do exército de israelitas contra o exército invasor dos filisteus. Eles estavam acampados fora de Belém, que o exército filisteu havia ocupado. O rei Davi ansiava por matar sua sede e três de seus soldados mais poderosos se ofereceram para romper as linhas inimigas e cavar para o poço que estava perto do portão da cidade de Belém. 
Tendo retirado a água, eles a trouxeram a Davi, mas ele se recusou a beber, derramando-a na terra diante de Deus, dizendo: “O Senhor me livre de beber desta água! Seria como beber o sangue dos que arriscaram a vida para trazê-la!” 
Cristo é a água viva que saciou a sede de Davi e Adão, bem como a nossa. O ‘sangue dos homens’ (isto é, todo esforço e sacrifício humano) nunca poderia garantir nossa salvação e oferecer vida eterna. Isso só foi alcançado por meio da vinda da Água Viva, Cristo, "Deus Eterno" 
 
Synaxárion (a ser lido)
 
Τῇ ΚΕ' τοῦ μηνός Δεκεμβρίου, ἡ κατὰ σάρκα Γέννησις τοῦ Κυρίου καὶ Θεοῦ καὶ Σωτῆρος ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ. 
 
Στίχοι 
Θεὸς τὸ τεχθέν, ἡ δὲ Μήτηρ Παρθένος. 
Τὶ μεῖζον ἄλλο καινὸν εἶδεν ἡ κτίσις; 
Παρθενικὴ Μαρίη Θεὸν εἰκάδι γείνατο πέμπτη. 
 
Τῇ αὐτῇ ἡμέρᾳ, Ἡ προσκύνησις τῶν Μάγων. 
 
Στίχοι 
Σὲ προσκυνοῦσα τάξις ἐθνική, Λόγε, 
Τὸ πρὸς σὲ δηλοῖ τῶν Ἐθνῶν μέλλον σέβας. 
 
Τῇ αὐτῇ ἡμέρᾳ, Μνήμη τῶν θεασαμένων Ποιμένων τὸν Κύριον. 
 
Στίχοι 
Ποίμνην ἀφέντες τὴν ἑαυτῶν Ποιμένες, 
Ἰδεῖν καλὸν σπεύδουσι Χριστὸν ποιμένα. 
 
Αὐτῷ ἡ δόξα εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων. Ἀμήν. 
 
 
Minha tradução:
Em 25 deste mês de dezembro. A encarnação de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo. 
Versos 
Deus é gerado, sua Mãe, Virgem. 
A criação viu um milagre maior? 
A Virgem Maria deu à luz Deus em vinte e cinco. 
 
Nesse dia comemoramos a Adoração dos Magos. 
Versos 
A nobreza pagã te adorando, ó Verbo, 
Mostra a honra futura das Nações a ti. 
 
Nesse dia também comemoramos os Pastores que viram o Senhor. 
Versos 
O rebanho conhece o seu pastor, 
Apressa-se para ver Cristo, o Bom Pastor. 
 
A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

PROMESSA AO AMANHECER: O LIVRO E O FILME

Por Francisco José dos Santos Braga

Dedico este trabalho literário a meu amigo Lúcio Flávio Baioneta, autor do livro "De banqueiro a carvoeiro" e de vários artigos publicados no Blog de São João del-Rei, que me incentivou a retomar o estudo da língua francesa e a interessar-me pela obra monumental de Eduardo Canabrava Barreiros, especialmente pelo "Semicírculo (Recordações quase memórias)"


Retrato de Romain Gary (ca. 1970)

I. NASCIMENTO DE ROMAIN GARY NO CENTRO DOS PERIGOS 

Abaixo transcrevo, com pequenos acréscimos de minha responsabilidade, a minha tradução da biografia do romancista Romain Gary, considerado Compagnon de la Libération (Companheiro da Liberação), conforme consta dos arquivos da Ordem da Liberação:
 
Roman Kacew (que ficou famoso com o pseudônimo ROMAIN GARY) nasceu em 8 de maio de 1914 na comunidade judaica de Wilnius na Lituânia, então sob domínio russo. Seu pai, Arieh Kacew, era comerciante de peles e sua mãe, Mina Kacew, modista ¹
Em 1915, enquanto seu pai era convocado pelo exército russo ², Roman era deportado com sua mãe para a Rússia central como um judeu dos países bálticos que os russos suspeitavam de espionagem para benefício dos alemães. 
Em 1921, com a idade de sete anos, volta para Wilno (que se tornara território polonês desde a guerra russo-polonesa de 1920), onde vive até 1925. 
Seus pais se separam e, com sua mãe, ele se muda para Varsóvia, onde frequenta a escola polonesa e tem aulas particulares de francês por dois anos. 
Em agosto de 1928, Roman e sua mãe emigram para a França e se estabelecem em Nice. Roman continua seus estudos secundários no colégio antes de começar a estudar Direito na faculdade de Aix-en-Provence e depois em Paris, onde conclui o terceiro ano do curso. 
Naturalizado francês em 1935, é convocado para o serviço militar para servir na Força Aérea. Incorporado em Salon-de-Provence em novembro de 1938, ele foi um estudante observador na Escola do Ar de Avord. Qualificado metralhador em 1º de abril de 1939, entre trezentos estudantes, foi o único, por causa de sua origem estrangeira, a não ser nomeado oficial. 
Em junho de 1940, o sargento Kacew estava em Bordeaux-Mérignac e decidiu recusar a derrota. Ele escapa da França de avião, pousa em Argel, encontrou a escola aérea fechada em Meknès e, antes da entrada em vigor do armistício no Norte da África, parte para Casablanca onde encontra um cargueiro britânico que o leva para Gibraltar; duas semanas mais tarde, em 22 de julho de 1940, ele desembarca em Glasgow. 
Desde sua chegada, ele pede para servir em uma unidade de combate e é promovido ao posto de ajudante em setembro de 1940. Nomeado para a Esquadrilha de Bombardeio Topic, ele troca a Inglaterra por Takoradi na Costa do Ouro em outubro de 1940. Ele escolhe para si mesmo em seguida, o pseudônimo de Romain Gary de Kacew. Mas Gary que significa "Queima!" em russo ³ em breve continuará sendo seu único sobrenome. Topic adere às Forças Aéreas Equatoriais da França Livre e passa a ser, em 24 de dezembro de 1940, com a esquadrilha "Ameaça", Grupo Reservado de Bombardeio nº 1 (GRB1), sob as ordens do Comandante Jean Astier de Villatte. 
Com sua unidade, Romain Gary serve na Líbia, em Koufra especialmente em fevereiro de 1941, depois na Abissínia antes de ingressar na Síria em agosto de 1941. Nesse ínterim, em abril de 1941, ele foi certificado como observador de aviões e nomeado segundo-tenente. Tendo contraído tifo e quase morrido, ele permanece no hospital por seis meses e então se recupera de dezembro de 1941 a junho de 1942. 
Restabelecido, ele se torna um oficial de ligação com o Estado-maior das FAFL do Oriente Médio, antes de ingressar, em agosto de 1942, na esquadrilha Nancy do Grupo de Bombardeio Lorraine. 
Tenente promovido em dezembro de 1942, ele é levado de volta com sua unidade por mar à Grã-Bretanha, onde desembarca em janeiro de 1943 para servir no teatro de operações ocidental. O grupo é reequipado e retreinado nos centros de treinamento da RAF. A partir de outubro de 1943, o bombardeio de Lorraine é dirigido principalmente contra os sítios de V1; os Bostons que agora equipam o Lorraine voam juntos em grupos de seis, em baixa altitude, acompanhados por Spitfires de proteção. É nessas condições que o tenente observador Gary se destaca em 25 de janeiro de 1944 quando, líder de uma formação de seis aviões, é ferido por um estilhaço de granada ao mesmo tempo que seu companheiro de equipe piloto Arnaud Langer é gravemente danificado nos olhos. Apesar de sua lesão, ele orienta seu companheiro de equipe e toda a sua formação com domínio suficiente para realizar um bombardeio muito preciso e trazer a esquadrilha de volta à base. 
Temporariamente incapaz para o combate, o tenente Gary foi designado para o Estado-maior das Forças Aéreas Francesas em Londres a partir de maio de 1944. Capitão em março de 1945, ele executou na Frente Ocidental mais de 25 missões ofensivas, totalizando mais de 65 horas de voo de guerra. 
Após sua desmobilização em dezembro de 1945, ele ingressa na carreira diplomática ao mesmo tempo em que publica seu primeiro romance: Educação Europeia. Secretário de embaixada, trabalha na Bulgária e na Suíça. Em 1952, foi secretário da Delegação Francesa nas Nações Unidas em Nova York, depois em Londres em 1955. 
Em 1956, foi nomeado Cônsul Geral da França em Los Angeles e recebeu o Prêmio Goncourt pelo romance As raízes do céu
Em 1967, após alguns anos de licença para escrever e dirigir dois filmes, ele ocupou o cargo de gestor de projetos no Ministério da Informação por dezoito meses. 
Em 1975, ele se torna o único escritor a receber duplamente o Prêmio Goncourt concedido naquele ano a Émile Ajar (Ajar que significa “brasa” em russo) por A vida pela frente . Essa mistificação literária não foi conhecida até o suicídio de Romain Gary, que deu fim à sua vida em 2 de dezembro de 1980.
 
Foi agraciado com os seguintes títulos honoríficos, condecorações e medalhas por seus feitos militares: 
 
• Comandante da Legião de Honra 
• Companheiro da Liberação por decreto de 20 de novembro de 1944 
• Cruz de Guerra 39/45 (2 citações) 
• Medalha Colonial com grampo “Koufra-Erythrée” 
• Medalha dos Feridos 
 

 

II. A REENCARNAÇÃO PELA ESCRITA 

 

[LEMONNIER, 2015, p. 43-53], no artigo intitulado “Do amanhecer até à noite. Romain Gary ou a reencarnação pela escrita”, examina a ideia de suicídio sempre presente em Romain Gary, tanto na sua obra quanto na sua vida. Quando ele parou de escrever, pôs fim à sua vida. 
Ela se propõe a estudar a ligação entre a escrita e sua função. Na introdução do seu artigo, Lemonnier afirma que o próprio Gary, em seu livro A noite será calma, atribui à escrita o objetivo de permitir que esse autor se reencarne, o que pode ser observado no uso frequente de pseudônimos, o último dos quais foi Émile Ajar. 
Sabendo que ele se suicidou, interessa indagar quais foram os motivos que o levaram a esse gesto fatal? Por que não funcionou na escrita aquela chama que ainda muito jovem ele tinha achado e que lhe permitia renascer sem cessar? Se essa chama se apagou, cabe indagar: Por quê? 
À luz da psicologia, Lemonnier pretende oferecer sua resposta a essa questão, entendendo que a obra de Gary apresenta um terreno muito fértil para aplicações do conhecimento da Psicologia, abordando os seguintes temas expostos em Promessa ao Amanhecer
 
•  Um futuro promissor 
•  O casal mãe/filho 
•  Uma mãe profeta 
•  A escrita contra a loucura 
•  O mundo imaginário de Gary 
•  O desvio 
 
Devo mencionar que apreciei a forma como ela subdividiu o conteúdo do livro através de tópicos sugestivos. Ela, por sua vez, colheu informações do livro “Romain Gary, o camaleão”, por Myriam Anissimov. 
Portanto, vou apresentar alguns elementos colhidos diretamente desse artigo de Lemonnier, onde houver sintonia com o assunto que estudamos. Antes, porém, de verificar os elementos que a autora menciona, é fundamental mencionar o que ela omite. A autora evita mencionar ou analisar um trecho de uma crítica constante do capítulo X de Promessa ao Amanhecer que Gary desfere à Psicanálise e seus praticantes, sem reservas e até com certa agressividade, questionando a sua cientificidade, bem como os seus benefícios popularmente preconizados. 
Vejamos em que situação essa divergência ocorre na sua obra. 
Ora, a obra de Romain Gary é frequentemente estudada na psicanálise por conter explicitamente referências freudianas. Para essa tendência de tentar explicar tudo através da psicanálise (o famoso “Freud explica”), parece que ele tem a resposta pronta. Ele zomba dessas teorias, em particular do famoso complexo de Édipo, explicando que ele nunca conheceu nada além de sentimentos platônicos e afetuosos por sua mãe. Assim, Gary revida qualquer transgressão da ordem natural e social em sua relação com sua mãe:
“A psicanálise hoje assume, como todas nossas ideias, uma forma totalitária aberrante; ela busca nos prender nas algemas de suas próprias perversões. Ela ocupou o terreno deixado livre por superstições, esconde-se habilmente num jargão semântico que fabrica seus próprios elementos de análise e atrai clientes por meio de intimidação e chantagem psíquicas, um pouco como aqueles gângsteres americanos que te impõem sua proteção. Portanto, de bom grado deixo isso para os charlatães e os loucos que nos governam em tantas áreas o trabalho de explicar meu sentimento por minha mãe, por algum exagero patológico: dado que a liberdade, a fraternidade e as mais nobres inspirações do homem estão em suas mãos, não vejo porque a simplicidade do amor filial não se deformaria em seus cérebros doentios, além disso.”

Feita essa ressalva, continuemos com os tópicos da análise de Lemonnier para o livro de Gary, acompanhados de trechos de sua análise psicológica, em minha apresentação, tradução e seleção de trechos.

UM FUTURO PROMISSOR 

Romain Gary foi atraído pela escrita desde cedo, um tema que ele aborda desde a abertura de Promessa ao Amanhecer (1960), que escreveu aos 44 anos. Foi aos 12 anos que ele situou essa "necessidade obscura e confusa, mas imperiosa" de escrever (...), mostrando-se mais ocupado em encontrar seu pseudônimo do que em escrever livros.
“A ideia de que aquelas horas de trabalho poderiam ter sido mais proveitosamente gastas no desenvolvimento das obras-primas em questão nunca nos ocorreu. 
O que é este “nós” por trás desse tom enfático e zombeteiro? É ele mesmo compartilhando seus sonhos ambiciosos com Mina Kacew, sua mãe, que é indiscutivelmente o personagem central na sua vida e no livro Promessa ao Amanhecer, bem como no filme homônimo.

O CASAL MÃE/FILHO 

Gary também analisa a complexidade da relação entre ele e sua mãe, que ele resume sob o signo da promessa. 
Promessa da mãe aos filhos (um futuro brilhante e radiante, conquistas, sucessos, amor incondicional...), à qual responde tacitamente o filho à mãe, com a promessa de não decepcioná-la e de corresponder também às suas esperanças, por mais loucas que sejam.” 
Outra passagem do livro, quando já residia em Nice, fala da realidade desse liame com sua mãe, tecido de promessas que iam constituir a trama de sua vida: 
“(...) Eu pensava na promessa que tinha feito, ao amanhecer de minha vida, de lhe fazer justiça, […] depois de ter disputado vitoriosamente a posse do mundo com aqueles cujo poder e crueldade tinha tão bem aprendido a conhecer, desde meus primeiros passos […] e devolver a terra àqueles que a habitam com sua coragem e seu amor.” 
Noutra passagem do livro, Gary surpreende sua mãe se privando de alimentação por ele. Imediatamente após essa descoberta, tomado de vergonha e de impotência, correu para se jogar sob um trem. Eis que foi retido por “uma resolução feroz de endireitar o mundo e colocá-lo um dia aos pés de minha mãe, […] mordeu meu coração com uma queimação cujo fogo meu sangue carregou até o fim.” 
A imagem banal da queimação e do fogo não é metáfora inútil para o escritor, quando se sabe que o sobrenome “Gary” que ele escolheu e obteve oficialmente, significa em russo “queima!” que ressoa como um imperativo de prazer. É ainda a mola da vergonha e da impotência a salvar sua mãe da injustiça que faz de novo surgir a tentação de se matar. Ele a retoma numa outra lembrança de infância, em que sua mãe, acusada de furto por suas vizinhas, foi o objeto da chacota de suas acusadoras. 
Gary nunca relativizou, em seus romances ou entrevistas, o papel determinante que sua mãe desempenhou em sua vida, fazendo dela, por sua vez, “profetiza de seu futuro, seu “centro de gravidade”, sua “testemunha interior”, sua voz alucinante. 
É, de fato, a aposta de Promessa ao Amanhecer: mostrar que tudo, absolutamente tudo, vem a ele de sua mãe e somente dela, e que ele não teve outra escolha senão fazer-se executor de sua lei.

UMA MÃE PROFETA 

“Ela sabia”, assim resume [GARY, La Promesse de l'aube, 52-3] o poder profético de sua mãe. Sabia qual seria o destino de seu filho: “Ele será embaixador da França, cavaleiro da Legião de honra, grande autor dramático, Ibsen, Gabriele D’Annunzio!” 
Gary escreve a profecia maternal quando já era Cônsul da França, condecorado com a Legião de honra, exceto Ibsen e D’Annunzio, mas não é por falta de tentativa, desculpa-se ele. 
Esse processo ficcional, essa “manipulação temporal” em a profecia é enunciada no après-coup de sua realização, visa a acentuar o estado de submissão do escritor aos ditos de sua mãe, que não lhe deixava outra escolha. 
“De mim sabia que estava prometido a píncaros vertiginosos, dos quais faria chover sobre minha mãe meus louros, como reparação. Pois eu sempre soube que não tinha outra missão; que eu existia, de certa forma, apenas por procuração”, “eu era seu happy end. Eu sempre me vi como vitória dela.” 
Happy end? Claro que não. Conforme [GARY, ibid., 38], o amor maternal pode provocar efeitos desastrosos: 
Com o amor maternal, a vida lhe faz uma promessa ao amanhecer que nunca cumpre. Você é então forçado a comer frio até o fim da vida. Depois disso, toda vez que uma mulher o abraça, são só condolências. Sempre voltamos para gritar sobre o túmulo de nossa mãe como um cachorro abandonado. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.” 
Este dever de reparação, mesmo até à morte, se necessário, é narrado em um episódio em que, comunicando à sua mãe, sua confusão e silêncio diante de seus colegas de classe que a chamavam de cortesã. Antes de abandonar a Polônia e ir prosseguir seus estudos na França, sua mãe o fez sentar-se diante dela: 
“Me escuta bem. A próxima vez que insultarem tua mãe na tua frente (sem uma reação de tua parte), a próxima vez, prefiro que te tragam para casa em macas. Entendes? (...) Prefiro que te tragam para casa sangrando, entendes? Mesmo se não te restar nenhum osso intacto, me entendes?” 
“Sem isso não vale a pena partir... Não vale a pena ir tão longe.” 
“Lembra o que te digo. A partir de agora, tu vais me defender. Não me importa o que te farão com os punhos deles. É com o descanso que dói. Tu serás morto, se necessário.”

A ESCRITA CONTRA A LOUCURA 

Escrever para Gary é uma questão de sobrevida, conforme confessa em L’affaire homme, outro livro de Gary: “Eu sou doente de nascença. É preciso que eu entregue minha tripa quente; é auto-terapia. Eu não posso parar de escrever. É um fenômeno de compensação, senão eu fico doente, picado.” 
Ou seja, segundo ele, ou escreve ou fica louco. De fato, ele foi um autor particularmente prolífico, escrevendo às vezes dois romances por ano, entre 1944, ano de seu nascimento literário com Educação Europeia, e 1979. 
Conseguiu o sucesso desde seu primeiro livro, recebeu o prêmio Goncourt com seu romance As Raízes do Céu em 1956 e quando o mundo literário se afastou dele, ele se reencarnou no pseudônimo Émile Ajar com um sucesso renovado e um segundo prêmio Goncourt com A Vida pela frente (1975)... 
Essa necessidade imperiosa de escrever senão de tornar-se picado no mundo que [GARY, ibid., 160] qualificava de “invasivo, esmagador, intolerável, insuficiente, inadaptado, mutilado” consistia em “se refugiar num mundo imaginário e ali viver, através dos personagens que eu inventava, uma vida plena de sentido, de justiça e de compaixão.”

O MUNDO IMAGINÁRIO DE GARY 

Sua identidade histórica é: criança judia, russa, imigrada, refugiada em toda parte, da qual não queria ficar prisioneiro. Não querendo que seu projeto literário ficasse preso a essa “inaceitável limitação”, ele aspirava sair do Reino do Eu, por todos os seus poros, isto é, por todos seus personagens. A escrita devia ser um ato de travessia de fronteiras desta limitação: “livrar-se de si mesmo” é continuamente reafirmado por Gary como sendo a perspectiva ética de sua obra. 
Cabe perguntar se Gary conseguiu sair da claustrofobia da sua identidade histórica e subjetiva, posto que suas personagens se submetem a fenômenos de introjeção do escritor e aparecem muitas vezes como o reflexo de sua identidade histórica, até mesmo como anunciadoras de seu destino (suicídio, muito presente nas suas obras, desde os seus primeiros romances), sob a forma de vociferações e alucinações que o povoam. 
Foi no contexto de desaparecimento literário progressivo o que ameaça todo o edifício de sua missão salvífica que ele inventou em 1974 o pseudônimo Émile Ajar, uma nova máscara mas que guarda um parentesco com Gary, já que Ajar significa “brasa” em russo. Essa estratégia tem a ver com a ligação do nome de Gary a valores demodês: símbolo da Resistência, diplomata, fiel ao heroísmo gaulês. Considerou que o nome Gary se tornava um obstáculo a suas obras, numa época em que o Novo Romance recebia a preferência do público. 
Como segunda travessia de fronteiras, tratou-se então de livrar-se de sua identidade literária: Gary se apagou atrás de Ajar e pediu a seu sobrinho Paul Pavlowitch emprestar-lhe seu nome e sua biografia imaginária, com a proibição de revelar sua verdadeira identidade. 
Ele operou essa muda equalização, modificando seu estilo: livra-se de certo academicismo com ganho de um linguajar familiar, altera a sintaxe, a linguagem, e dá a seus personagens uma identidade comum, a de estrangeiro. O escritor afirma seu judaísmo, sua identidade histórica, representando por essa montagem a necessidade que os judeus tiveram de se esconder.

O DESVIO 

Gary parou de escrever um ano antes de sua morte. Convém lembrar que ele fazia da escrita uma função vital. Então por que ele parou de escrever? 
Na sua carta de suicídio ele afirma com vigor: “Nenhuma relação com Jean Seberg“. Sabe-se que sua esposa, da qual acabava de se divorciar, estava sendo assediada pelo FBI por seus envolvimentos políticos com as Panteras Negras, razão por que mergulhou na loucura.
Será que se pode separar totalmente a morte da atriz como não tendo tido nenhuma ligação com o seu suicídio? Sabe-se que ele ficara muito próximo da atriz, zelando por ela, enquanto ela estava mergulhada na loucura. O suicídio da atriz coloca em xeque a posição que ele tinha sempre adotado de salvá-la da injustiça da qual era vítima. Aliás, após a morte dela, ele tentará de novo reparar a injustiça que lhe fizeram, defender sua honra, convocando a imprensa para denunciar o verdadeiro culpado de sua morte. 
 
Carta de suicídio de Romain Gary ¹⁰

 
É possível reconhecer a criança de Promessa ao Amanhecer que quer reparar a injustiça feita a outrem, e que, não podendo alcançá-lo, é tentado à morte. 
Essa matriz infantil se encontra em todos os seus envolvimentos: com sua mãe, com a França. O trabalho de escrita apropriou-se muito cedo dessa função de reparação. 
Sua missão salvífica é colocada em xeque em todos os fronts: a atriz se suicidou, o escritor se livrou de si mesmo, mas seu renascimento fracassou. Ele se sente cada vez mais à mercê dessa criatura “Ajar demais”, como ele próprio escrevia acerca de seu sobrinho Paul Pavlowitch. 
Um evento contingente vem acentuar essa sensação de despojamento: ele será obrigado a responder a uma intimação de controle fiscal que corre o risco de revelar em plena luz do dia sua mistificação literária. O medo de um novo despojamento Gary não queria fosse revelada a identidade de Ajar enquanto vivesse o precipita na ideia de que por seu erro o escândalo ia “respingar no exército francês, na Ordem da Liberação. Iam considerá-lo um canalha, um criminoso. Estaria liquidado, humilhado, degradado. Gary falava de sua mãe morta, cuja voz não parara jamais de ressoar nele. Não era possível ser resolvido infligir-lhe esta prova. Iam decerto colocar uma bomba nele, descarregar no seu filho.
Despojado de seus últimos redutos contra a sua desaparição literária, Gary se identifica com um mau escritor, para de escrever definitivamente. 
Lacan, no seu conceito de passagem ao ato, faz do objeto o agente do ato. Aqui nós reencontramos esse objeto incarnado no mau escritor. 
Esmagado pelo objeto, põe fim a seus dias. 
Ele o revela em seu livro póstumo de 1981, Vida e Morte de Émile Ajar: “Eu sabia que Émile Ajar estava condenado. (...) Por que me fui deixado tentar secar a fonte que ainda continuava a trazer ideias e temas dentro de mim? Mas é claro! Porque eu estava despojado. Agora havia outra pessoa vivendo a fantasia em meu lugar. Ao se materializar, Ajar tinha posto fim à minha existência mitológica. Justa virada das coisas: o sonho agora estava às minhas custas..." 
 
E, finalmente, sobre sua adaptação para o cinema, o diretor Eric Barbier comenta o seguinte, a respeito do livro Promessa ao Amanhecer:
"Acabou" e "Eu vivi" são as duas frases que começam e terminam um livro melancólico, de luto, mas em que não há vestígios de amargura, cinismo ou derrotismo. Em vez disso, há um elogio de esperança e vontade, tolerância e heroísmo também. Gary nunca é crítico ou queixoso. Ele destila com humor devastador uma visão da existência que exalta o que há de melhor em nós, que valoriza o desejo de tornar reais os nossos sonhos e as ficções que trazemos.
 
 
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS
 
 

¹  Promessa ao Amanhecer é um livro autobiográfico de 1960 escrito por Roman (sob o pseudônimo de Romain Gary). No filme homônimo de 2017, dirigido por Eric Barbier em parceria com Marie Eynard, a atriz Charlotte Gainsbourg atua no papel da mãe de Roman, Mina Kacew, cujo nome é levemente alterado para "Nina" Kacew. No filme, desempenham o papel de Roman: na infância, Pawel Puchalski; na adolescência, Némo Schiffman, e na idade adulta, Pierre Niney. 
O tema central de Promessa ao Amanhecer é o amor maternal. A obra de Romain Gary é assombrada pela guerra e pela figura do sobrevivente. Romain se inspira em elementos autobiográficos retirados de sua infância com sua iídiche mamma (mãe judia), uma ex-atriz e comediante quando jovem em Moscou, que o ama incondicionalmente. Gary, portanto, conta a história desse amor maternal que nutre uma fé extravagante e inabalável no filho, bem como a energia desdobrada por este último para realizar o sonho que sua mãe tem para ele. O verdadeiro objetivo do livro não é, portanto, refazer os passos do autor, mas homenagear quem lhe deu a vida e o levou a ser o que é: famoso e reconhecido. 
 
²  Na ocasião em que Arieh é convocado como combatente na I Grande Guerra pelo exército russo, inicialmente Mina e seu filho ficam refugiados na casa dos pais dela em Święciany, a 60 km de Wilnius. Roman, no seu romance Promessa ao Amanhecer, rememora seus primeiros sete anos (1914-1921), evocando estadas em Koursk e Moscou (omitindo a figura paterna, é verdade, conforme estudos recentes o comprovam). 
Tão logo é desmobilizado, o pai de Roman é o primeiro a retornar a Wilno provavelmente em 1918, mas, não encontrando sua família, acaba por abandonar o lar em 1925 para ir viver com outra mulher, Frida Bojarska, com quem terá dois filhos. 
Em 1921, Mina e Roman retornam a Wilno, que, de agora em diante, está integrada ao território polonês, mas levam uma vida difícil. 
Mina, fascinada pela França desde seu encontro com atores na Rússia, instala-se em um prédio chamado "Le Petit Versailles" e se faz passar por modista "de Paris". Ela não se intimida de apresentar sua loja como a única filial do famoso estilista Paul Poiret no país. Pudera! 
Com efeito, o apartamento fica no final de um pátio no antigo bairro judeu, degradado e sujo, e as encomendas são escassas. 
Ela não desanima: luta para prover as necessidades de ambos, mas não perde a oportunidade de levar o filho ao cinema ou de incentivá-lo a devorar Vitor Hugo, Alexandre Dumas ou Júlio Verne. 
Nada é bom demais para o seu filho que, está convicta , encontrará um grande destino nesta França que ela venera e da qual o faz decorar as palavras da “Marseillaise”. 
É particularmente especial o tempo que o filme reserva à infância de Roman na Polônia, onde a câmera de Barbier se posiciona na altura dos olhos do protagonista e o espectador tem a oportunidade de enxergar Mina com a mesma admiração e temor que o menino. Nesta fase, a iluminação natural é capturada de forma brilhante, criando uma atmosfera de sonho, de nostalgia. 
Em outro momento, é notável a aura mágica e de fascinação exercida sobre Roman pelo mar. Recém-curado de uma febre tifóide, quando criança, Roman em convalescença é levado por sua mãe a Bordighera na Itália. É da seguinte forma que ele narra, em seu livro “Promessa ao Amanhecer”, seu primeiro encontro inesquecível com o grande azul em março/abril de 1925:
“Meu primeiro contato com o mar teve um efeito comovente sobre mim. Eu estava dormindo pacificamente em meu beliche quando senti em meu rosto um sopro de frescor perfumado. O trem acabava de parar em Alassio e minha mãe baixara a janela. Levantei-me nos cotovelos e minha mãe seguiu meu olhar, sorrindo. Olhei para fora e soube, bruscamente, claramente, que havia chegado. Vi o mar azul, uma praia de seixos e barcos de pesca deitados de lado. Eu contemplei o mar. Algo aconteceu dentro de mim. Não sei o quê: uma paz ilimitada, a sensação de ter chegado. Desde então, o mar sempre tem sido para mim uma metafísica humilde mas suficiente. Não sei falar do mar. Tudo o que sei é que de repente ele me livra de todas as minhas obrigações. Cada vez que olho para ele, torno-me um afogado feliz.”
Link: http://www.buzz-litteraire.com/200907221466-devenir-un-noye-heureux-extrait-de-la-promesse-de-l-aube-de-romain-gary/
 
³  Na infância Roman falou russo e polonês e, a partir dos 14 anos, principalmente francês, que seria a sua língua literária, embora também tenha escrito livros em inglês. Em 1935 tornou-se cidadão francês e, mais tarde, trocaria seu nome de Roman Kacew para Romain Gary, sobrenome que significa “Queima!”, em russo, no modo imperativo do verbo, extraído de uma canção cigana em russo: Гори, Гори, Любовь Цыганки (literalmente: Queima, queima, amor da cigana ou, em francês, “Brûle, brûle d’ amour, tzigane”). 
 
 
  Émile Ajar foi o ultimo pseudônimo usado por Romain Gary. Esta, porém, não é uma exceção, uma vez que Romain Gary publicou inúmeras outras obras sob outros pseudônimos como Shatan Bogat, Lucien Brûlard, René Deville e Fosco Sinibaldi. 
 
  Título irônico para quem iria se suicidar cinco anos depois, assim como já o tinha feito, alguns meses antes, sua ex-mulher, a atriz Jean Seberg. O suicídio dele com certeza não fazia parte dos planos de sua iídiche mamma Mina. 
 
Jean Seberg e Romain Gary

 
  A primeira esposa de Gary foi a escritora, jornalista e editora da Vogue britânica, Lesley Blanch. Eles se casaram em 1944 e se divorciaram em 1961. De 1962 a 1970, Gary foi casado com a atriz americana Jean Seberg, com quem teve um filho, Alexandre Diego Gary. Gary morreu de ferimento a bala auto-infligido em 2 de dezembro de 1980 em Paris, com a idade de 66 anos. Ele deixou uma carta misteriosa dirigida à imprensa, com a inscrição “Jour J” (Dia D), dizendo que sua morte não tinha relação com o suicídio de Seberg em 30/08/1979. Ele também declarou na mesma carta que era Émile Ajar. 
 
  Por sua importância, convém reproduzir o texto no original francês:
La psychanalyse prend aujourd'hui, comme toutes nos idées, une forme aberrante totalitaire; elle cherche à nous enfermer dans le carcan de ses propres perversions. Elle a occupé le terrain laissé libre par les superstitions, se voile habilement dans un jargon de sémantique qui fabrique ses propres éléments d'analyse et attire la clientèle par des moyens d'intimidation et de chantage psychiques, un peu comme ces racketters américains qui vous imposent leur protection. Je laisse donc volontiers aux charlatans et aux détraqués qui nous commandent dans tant de domaines le soin d'expliquer mon sentiment pour ma mère par quelque enflure pathologique: étant donné ce que la liberté, la fraternité et les plus nobles aspirations de l'homme sont devenues entre leurs mains, je ne vois pas pourquoi la simplicité de l'amour filial ne se déformerait pas dans leurs cervelles malades à l'image du reste.
  Em julho de 1958, Gary anuncia a Gaston e Claude Gallimard que ele está a ponto de lhes entregar o manuscrito deste que intitula então A Posse do Mundo
Dando uma importância particular a esse relato autobiográfico, Gary informa a seus editores que relerá e corrigirá pessoalmente as primeiras provas. 
O livro aparecerá em abril de 1960 sob o título La Promesse de l’aube (Promessa ao Amanhecer). Esse título definitivo foi escolhido por Gary em setembro de 1958, depois de ter considerado outros títulos, a saber: A Posse do Mundo, A Confissão de Big Sur e A Corrida contra a Vida. 
Segundo Gary, “falta pouca coisa: uma linha geral mais clara entre o querido e o vivido, um contraste mais acentuado entre a dimensão da alma e a das mãos, e o humor prevalece um pouco demais sobre a poesia, que é para mim poesia a única forma possível de transcender nossa condição, e a única filosofia. Portanto, estou lhe dizendo que não considero o livro totalmente concluído e vou gastar inúmeras semanas, talvez meses, nele. Depois disso, teremos que refazer as provas, para que eu possa julgar o projeto com clareza antes de me aproximar do mármore.” 
 
 
 
  O tempo do après-coup é um conceito fundamental no arcabouço freudiano. Há acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas psíquicas que ficam informes, indefinidas, à espera de um acontecimento e que só depois adquirem sentido. Temos então a idéia de um passado que não é fixo, mas que se ressignifica no presente.
Vide ALONSO, Sílvia Leonor: O tempo que passa e o tempo que não passa, Revista CULT 
 
 
¹⁰   Minha tradução para a carta de suicídio de Romain Gary:
"para a imprensa     Dia D 
Nenhuma relação com Jean Seberg. Pede-se aos crentes no coração partido para se dirigirem a outro lugar. 
Obviamente, isso pode ser atribuído a uma depressão nervosa. Mas então é preciso admitir que isso dura desde que eu atingi a idade adulta e me terá permitido realizar minha obra literária. 
Então, por quê? Talvez seja preciso buscar a resposta no título de minha obra autobiográfica, "A noite será calma", e nas últimas palavras de meu último romance: "Pois não se saberia dizer melhor". 
Eu finalmente me expressei completamente, 
Romain Gary"
 
 

IV. BIBLIOGRAFIA



BUZZ... LITTÉRAIRE: La promesse de l'aube de Romain Gary: Tu seras un héros mon fils
 
 
________. Devenir un noyé heureux... (extrait de "La promesse de l'aube" de Romain Gary) 

 
GARY, Romain: "La Promesse de l'aube", Paris: Gallimard, Folio, 1960.
 
Obs. Para carregar uma cópia PDF do livro em francês, clicar abaixo: 

Romain Gary La promesse de l'aube - e-Disciplinas


LEMONNIER, Brigitte: Revue de psychanalyse Savoirs et Clinique, 2015/2 (nº 19), p. 43-53.

 
Musée de l'Ordre de la Libération: "Romain Gary". 


Romain Gary (1914-1980), L'homme sans identité, publicado em 07/07/2020.
 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

GERAÇÃO DE IDEIAS PELO DIA DE FINADOS

 
Por Francisco José dos Santos Braga

 

PRIMEIRA ESTAÇÃO 

Nesta data de 2 de novembro em que reverenciamos a memória dos nossos entes queridos falecidos, valho-me do carme 101 do poeta Catulo (Gaius Valerius Catullus, ✰ Verona, 87 ✞ Roma, 54 a.C.), composto de 10 versos escritos em dísticos elegíacos, isto é, formados por cinco pares de hexâmetro seguido de pentâmetro. 

Catulo foi integrante do grupo de "poetas novos" em Roma, que desempenharam um papel essencial no desenvolvimento da poesia na época de Augusto, tendo ajudado a criar a possibilidade da profissão de poeta. Atribui-se ao mesmo grupo a iniciativa de ter trazido para Roma o estilo culto e constrangido da poesia helenística, contribuindo para criar e explorar aqueles interesses pela patologia erótica que deu origem à elegia de amor. Mais tarde, durante o Império, Catulo se tornou o modelo para os epigramas de Marcial, poemas que eram espirituosos, frequentemente com observações vulgares e satíricas da vida em Roma, fazendo amplo uso da linguagem coloquial. Por tais razões, sua poesia praticamente ficou esquecida com raras exceções ao longo dos séculos. Só bem mais tarde, os sábios renascentistas o ressuscitaram como mestre de talento e brevidade, principalmente após vir à tona o manuscrito conhecido como V em Verona cerca do ano de 1305, apenas para desaparecer antes do fim do século. A descoberta fortuita de V deu uma segunda vida a Catulo e sua poesia, pois felizmente duas cópias foram feitas de V: O e X. Daquela época até hoje, só tem aumentado a admiração pelo poeta Catulo. Logo ele se tornou um dos favoritos da lírica europeia, à medida que seu verso respondeu bem a diferentes leitores anglo-saxões em diferentes épocas: Robert Herrick, John Milton, o romântico William Butler Yeats e os modernos T. S. Eliot, Ezra Pound e Robert Frost. 

Segue abaixo o texto latino no formato de elegia (em dísticos) do Carme 101 de Catulo: 

Multas per gentes et multa per aequora vectus 
advenio has miseras, frater, ad inferias, 
 
ut te postremo donarem munere mortis 
et mutam nequiquam alloquerer cinerem. 
 
Quandoquidem fortuna mihi tete abstulit ipsum. 
Heu miser indigne frater adempte mihi, 
 
nunc tamen interea haec, prisco quae more parentum 
tradita sunt tristi munere ad inferias, 
 
accipe fraterno multum manantia fletu, 
atque in perpetuum, frater, ave atque vale. 
 
Minha tradução do latim:
 
Tendo sido transportado por muitos povos e muitos mares, 
cheguei, ó irmão, a estas tristes ofertas fúnebres 
 
para prestar-te a derradeira homenagem de morte, 
e falar inutilmente com as tuas mudas cinzas. 
 
Já que a sorte te afastou de mim, 
ai, pobre irmão, cruelmente arrebatado de mim, 
 
ao menos aceita agora, conforme antigo costume de nossos ancestrais, 
essas tristes ofertas que te são trazidas, 
 
banhadas de muito pranto fraterno. 
Irmão, eu te saúdo. Adeus para sempre. 
 
 
SEGUNDA ESTAÇÃO 
 
David Eagleman, PhD, é neurocientista e autor de best-sellers traduzidos para várias línguas. Ele leciona na Universidade de Stanford, é o criador e apresentador da série de televisão indicada ao Emmy, O Cérebro, e é o CEO da Neosensory, uma empresa que constrói a próxima geração de hardware de neurociência. Autor de sete outros livros, ele mora no Vale do Silício, na Califórnia. 
Um de seus livros mais lidos tem título curioso "Sum: Forty Tales from the Afterlives", cuja tradução literal para o português ficaria: Eu sou: Quarenta Contos do Além, ou com o título português bem mais prolixo: Cogito Ergo Sum: Quarenta Histórias da Vida para além da Morte, Lisboa: Editorial Presença, 2010, 104 páginas, cuja sinopse diz: "Este é um livro para que não existe termo de comparação. Estes contos ressumam humor e ironia na mesma medida da sua originalidade e desafiadora subtileza, criando em certa medida intrigantes novas perspectivas sobre o nosso presente. (...)". 
Esse livro foi escrito como obra de ficção onde imagina 40 diferentes pós-vidas. Sobressai na coletânea dos 40 contos, um que se intitula "Metamorfose", para cujo texto impactante ofereço abaixo a...
 
Minha tradução do inglês: 
 
"Há três mortes. A primeira é quando o corpo deixa de funcionar. A segunda é quando o corpo é colocado na tumba. A terceira é aquele momento no futuro, em que o nome da pessoa é pronunciado pela última vez. 
Então você espera neste saguão até a terceira morte. Há mesas compridas com café, chá e biscoitos; você mesmo pode servir-se. Há pessoas aqui de todo o mundo e, com um pouco de esforço, você pode começar uma conversa animada. Esteja ciente de que a conversa de vocês pode ser interrompida a qualquer momento pelos Porta-vozes, que anunciam o nome do seu novo amigo para indicar que nunca mais haverá outra lembrança dele por ninguém na Terra. Seu amigo despenca: seu rosto como um prato quebrado e colado de novo, desconsolado, embora os Porta-vozes lhe digam gentilmente que ele está indo para um lugar melhor. Ninguém sabe onde esse lugar melhor está ou o que ele oferece, porque ninguém que sai por aquela porta voltou para nos contar. 
Todo o lugar parece uma infinita sala de espera de um aeroporto, mas a companhia é ótima. Há muitas pessoas famosas dos livros de história aqui. Se ficar entediado, você pode avançar com independência em qualquer direção, passando por alas e alas de assentos. Depois de muitos dias de caminhada, você começará a notar que as pessoas parecem diferentes e ouvirá sons de línguas estrangeiras. As pessoas se reúnem com os de sua própria espécie, e o que se vê é o surgimento espontâneo de territórios que refletem a forma como foram constituídos na superfície do planeta. Com exceção dos oceanos, você está atravessando um mapa da Terra. Além de nenhum oceano, não há fusos horários também. Ninguém dorme aqui, embora a maioria desejasse poder. O local é uniformemente iluminado por lâmpadas fluorescentes. 
Nem todo o mundo fica triste quando os Porta-vozes gritam seus nomes, enquanto anunciam a partida do próximo vôo. Pelo contrário, algumas pessoas pedem e imploram quando os Porta-vozes entram. Eles se prostram aos pés dos Porta-vozes enquanto os próximos nomes são lidos. Geralmente são as pessoas que estão aqui há muito, muito tempo, principalmente aquelas que são lembradas por motivos desleais. Por exemplo, tome o fazendeiro ali, que se afogou em um pequeno rio há 200 anos. Agora, sua fazenda é o local de um pequeno colégio, e os guias turísticos contam sua história toda semana. Então ele está apegado e infeliz. Pois quanto mais sua história é contada, mais ela se espalha. Ele está totalmente alienado de seu nome; não mais se identifica com ele, mas continua a apegar-se a ele. A mulher desanimada do outro lado é louvada como santa, embora os caminhos em seu coração tenham sido complicados. O homem de cabelos grisalhos na máquina de venda automática foi celebrizado como herói de guerra, depois demonizado como chefe de bando e finalmente canonizado como agitador necessário entre dois momentos na história. Ele espera com o coração dolorido que suas estátuas caiam. E essa é a maldição desta sala: uma vez que permanecemos vivos na cabeça daqueles que se lembram de nós, perdemos o controle de nossas vidas e nos tornamos quem eles querem que sejamos." ¹
 
 
Fiquemos no primeiro parágrafo do texto, em que David Eagleman diz que cada pessoa morre três vezes: a primeira ocorre no momento em que suas funções vitais cessam; a segunda é quando o seu corpo é colocado na tumba; e a terceira acontece em algum momento no futuro, no qual o nome dela é pronunciado pela última vez. Aí então a pessoa realmente morre. 
Pois é! Consta que é no México que existe essa curiosa crença. 
De qualquer forma, é uma crença que estimula muito todos os genealogistas, pois, consciente ou inconscientemente, eles se habituam a repetir muitos nomes de ascendentes, o que favorece a preservação de sua memória, mas mais importante ainda, contribui para não deixar advir a terceira morte àquelas pessoas que se encontram no pós-vida. A ideia é que a pessoa realmente morre apenas quando seu nome deixa de ser mencionado ou lembrado.
 
 
ÚLTIMA ESTAÇÃO 
 
No dia de Finados, uma pessoa que já não está entre nós tomou conta de minha memória: minha finada mãe Celina dos Santos Braga. Recordei diversas passagens de sua vida, a saber: seu nascimento em 23/01/1928, a quarta de 10 crianças ao todo, que foram fruto da união de Francisco Nestor dos Santos, natural de Barroso-MG, e de Brasilina Sebastiana dos Santos, nascida no distrito de Vitoriano Veloso ("Bichinho") da cidade de Prados-MG. De todos os seus 8 filhos que sobreviveram, apenas minha mãe teve um curso secundário, tendo obtido seu diploma de normalista em 1944 e dando muito orgulho a seus pais. Imaginei as dificuldades que enfrentou, dividindo seu tempo entre dois misteres: preparar as atividades prescritas pelas professoras e ao mesmo tempo ajudar seu pai nas correspondências comerciais dos vários empreendimentos em que ele se meteu, com muita competência diga-se de passagem. Mas a sorte estava lançada para a curta existência de seu pai: em 06/02/1946 a moira cortou-lhe o fio da vida de forma cruenta e atroz, tendo morrido eletrocutado. 
 
Quadro de formatura de normalistas de 1944
 
Normalista de 1944: Celina dos Santos
 
Convite para a cerimônia de formatura das normalistas em 8/12/1944
 
Desde que minha mãe se formou normalista (1944) até uma data próxima a seu casamento com meu pai, o bancário Roque da Fonseca Braga, em 15/02/1947, exerceu a profissão de professora rural numa sala da Estação Ferroviária César de Pina (que funcionou ininterruptamente de 1923 a 1966) nas Águas Santas em Tiradentes-MG. Com o casamento veio a decisão de abandonar o magistério para cuidar exclusivamente da educação de sua futura família constituída de 8 filhos, todos com formação universitária. Minha mãe retomou sua carreira pedagógica um pouco antes da morte de meu pai (26/09/1984) e se prolongou por 30 anos, até cerca de 4 anos antes de sua morte em 29/05/2014, colaborando com as aulas de catecismo para moradores do Alto das Mercês e da Rua do Ouro em São João del-Rei, no âmbito das Obras Sociais da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, sob a direção do Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva. Até onde pôde, resistiu e perseverou na fé cristã, ensinando e formando crianças, adolescentes e adultos. Sua vida consistiu numa luta renhida, personificando um princípio enunciado por Guimarães Rosa: "O que a vida quer da gente é coragem.
 
Em todos os dias do ano e particularmente no dia de Finados, eu leio em voz alta o nome de meus ancestrais e especialmente o de minha genitora, e, dentro daquela crença mexicana, também contribuo para não deixar acontecer sua terceira morte. 
 
 
 

I. AGRADECIMENTO



Agradeço carinhosamente à minha esposa Rute Pardini Braga pelo trabalho fotográfico, edição e formatação das fotos.
 


II. BIBLIOGRAFIA



¹   EAGLEMAN, David: Sum: Forty Tales from the Afterlives,  Pantheon Books, 2009, 110 p.