segunda-feira, 27 de junho de 2022

O ROQUE CAMÊLLO QUE EU CONHECI


Por Francisco José dos Santos Braga *

Artigo publicado originalmente na Antologia comemorativa dos 60 Anos da Academia Divinopolitana de Letras, p. 30-39, lançada em 08/06/2022, data do 61º aniversário do Sodalício, em que foi declarado oficialmente o 08 de Junho: Dia da Academia Divinopolitana de Letras.
Dr. Roque Camêllo (☆ Mariana,  16/8/1942 ✞ Belo Horizonte, 18/3/2017)

 

Conheci Dr. Roque Camêllo quando participei, como Secretário, da Chancelaria da Comenda da Liberdade e Cidadania em 2011 capitaneada pelo Chanceler da Comenda, Dr. Eugênio Ferraz, então Superintendente do Ministério da Fazenda em Minas Gerais e responsável pela Casa dos Contos de Ouro Preto. Trouxe este, para o lançamento da medalha da referida Comenda no Campo das Vertentes, a experiência de ter sido Chanceler e criador da primeira edição da Comenda Ambiental Estância Hidromineral de São Lourenço, criada um ano antes, em julho de 2010. Sobre a Comenda, vale ressaltar que ela nasceu através de um decreto conjunto dos Prefeitos de 3 Municipalidades: São João del-Rei, Tiradentes e Ritápolis. 

Meu primeiro contato com Dr. Roque Camêllo, durante a realização da festa de entrega das Comendas na Fazenda do Pombal, berço do Tiradentes e do seu sonho de liberdade, foi, a um só tempo, um momento de congraçamento e de percepção de sua mineiridade contagiante. Mas não podia passar despercebido a qualquer observador mais atento, — e este foi o meu caso, — que sua atividade política lhe trouxera, por um lado, grandes alegrias, por outro, inevitáveis desilusões, “estas tanto mais amargas na medida em que agravadas pelos erros, pelas disfunções, pelas insuficiências da máquina judiciária eleitoral”, nas sábias palavras do ex-Ministro do STF, Dr. Francisco Rezek. (“Os sinos de Mariana”, in O Roque Camêllo que conheci, livro organizado por Mário de Lima Guerra, em 2019, p. 100) 

Naquela época (2011), Dr. Roque Camêllo já trazia respeitáveis credenciais: de presidente da Casa de Cultura-Academia Marianense de Letras, de Diretor Executivo da Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana (FUNDARQ) e de proponente, em 2002 e 2004, do projeto de certificação e inscrição do acervo do Museu da Música de Mariana no programa “Registro Memoria del Mundo” da UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, deferido em 2011. Em 2007, tinha comemorado esse patrimônio com um artigo publicado pela Casa dos Contos, intitulado “Museu da Música, uma Relíquia da Cultura Brasileira”. Por fim, acumulava em sua biografia o fato de ter sido prefeito eleito de Mariana, afastado de suas funções por força de um processo iníquo da Justiça Eleitoral. Na área educacional, tinha fundado e dirigido, em Belo Horizonte, o Colégio São Vicente de Paulo, e como professor, atuara nos Colégios Santa Doroteia, Dom Cabral, Estadual de Minas Gerais, Alfredo Baeta e Arquidiocesano de Ouro Preto. Ao mesmo tempo, vinha exercendo a função de Conselheiro da Associação Universitária Internacional (AUI), sediada em São Paulo, da qual era o Diretor Regional para Minas Gerais, com prestação de trabalho voluntário. Por fim, tinha sido empossado recentemente no IHG-MG (20/11/2010) como membro efetivo, ocupante da Cadeira nº 66, patroneada por Princesa Isabel. 

Em novembro de 2011, Dr. Roque Camêllo compareceu ao 3º Ciclo de Estudos sobre o Tiradentes, promovido pelo IHG de São João del-Rei, quando ouviu em silêncio a informação de que o Auto de Levantamento da Vila de São João del-Rei datado de 08/12/1713, transcrito literal e fielmente nas Ephemerides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga, editadas pela Imprensa Official do Estado de Minas, em Ouro Preto, no ano de 1897, era, segundo este, uma reprodução litteral de documento oficial, existente no Arcchivo Publico do Estado. Segundo José Álvares de Oliveira, que em 1750 publicou sua História do Distrito do Rio das Mortes, esse Auto de Levantamento se acha lavrado no livro primeiro do registro da dita Câmara a folhas trinta e sete. Como esse livro tinha desaparecido dos arquivos locais, restou a única indagação plausível: “Estaria ele recolhido no Arquivo Público Mineiro?” Dr. Roque, solidarizando-se com o povo são-joanense e com os pesquisadores locais comunicou à assembleia que de fato constatara que essa folha (que continha o Auto de Levantamento) havia sumido, ou mais precisamente, arrancada com corte preciso de gilete, e, na ocasião, manifestou seu desejo de encontrar esse documento tão importante para São João del-Rei, tendo prometido envidar esforços para recuperar o valioso documento. Com esse feliz aparte e tal disposição de espírito, de imediato fez vários amigos são-joanenses. 

Como se vê, Dr. Roque Camêllo já era reconhecido como titular da verdadeira mineiridade, antes de nosso encontro. A bem da verdade, cabe aqui citar dois fatos da maior relevância que comprovam minha assertiva, engrandecem o currículo do meu homenageado e ilustram bem o caráter de Roque Camêllo: o primeiro fato refere-se à criação do Dia de Minas e o papel central do meu homenageado na sua instituição.  
Com base em registros históricos, Roque Camêllo, com muita argúcia, observou a coincidência de algumas datas marcantes da história de Mariana com a história do território que futuramente seria o Estado de Minas Gerais, em especial durante os primeiros 50 anos da existência de Mariana. Com esses dados fundamentou bem sua proposta do "16 de Julho-Dia do Estado de Minas Gerais". Foi no seio da Casa de Cultura-Academia Marianense de Letras, Ciências e Artes, em 16 de julho de 1977, durante a sessão comemorativa do 281º aniversário de Mariana, que o Acadêmico Roque Camêllo lançou a ideia de se instituir o 16 de julho então Dia de Mariana como data cívica estadual, tendo recebido o apoio do então presidente da Casa, historiador Waldemar de Moura Santos, dos Acadêmicos, das Autoridades Municipais e da comunidade marianense. Em seguida, a proposta foi entregue ao governo estadual e à Assembleia Legislativa. Roque Camêllo viu finalmente sua proposta ser coroada de êxito em 19 de outubro de 1979, quando o projeto de lei de iniciativa do deputado Domingos Lannas deu origem à Lei nº 7561, sancionada pelo governador Francelino Pereira dos Santos, instituindo o 16 de Julho como Dia de Minas. Dez anos depois, mais precisamente em 1º de fevereiro de 1989, em nome da Academia Marianense de Letras, Roque Camêllo compareceu ao plenário da Constituinte Mineira e apresentou uma proposição para que o 16 de Julho-Dia do Estado de Minas Gerais fosse declarado data cívica constitucional. Em 21 de setembro do mesmo ano foi promulgada a nova Constituição do Estado de Minas Gerais, editando em seu Título V, das Disposições Gerais, o Artigo 256, o qual manteve os termos da proposição apresentada por Roque Camêllo aos deputados constituintes. Posteriormente, a redação dada ao art. 256 já sofreu duas emendas modificativas: sobre a comemoração (de nº 22) e sobre a transferência simbólica da capital de Minas para Matias Cardoso anualmente em 8 de dezembro (de nº 89). Mas continua inalterada a ideia básica do Dia de Minas em 16 de julho, que permanece intocada. 
 
O segundo fato refere-se à primazia do meu homenageado, ainda em 2011, em levantar a tese do assassinato do Inconfidente Cláudio Manoel da Costa em artigo que ganhou muita notoriedade, intitulado “Inconfidente Cláudio Manoel da Costa: primeiro advogado assassinado em Minas”, publicado originalmente na revista Justiça e Cidadania, edição 133, setembro de 2011, p. 48-50. Começa seu artigo informando sobre a naturalidade marianense do poeta árcade, já que presumidamente nasceu em Mariana em 5 de junho de 1729 e certamente foi batizado a 29 de junho de 1729, conforme consta de registro a folhas 110-verso e 111 do 2º livro de assentos dos batizados da freguezia do Ribeirão do Carmo (atual Mariana). 
 
Resumidamente para os fins deste artigo, Dr. Roque, sem entrar no assunto da Inconfidência Mineira, defende, com sólida argumentação, a ideia de que Cláudio Manoel, o mais velho e ilustrado de todos os Inconfidentes, foi o único que morreu antes de ser sentenciado, com evidências irrefutáveis de assassinato, e o único deles que não foi levado preso para o Rio de Janeiro. Os Autos de Devassa deram-lhe o fim por suicídio, mas pesquisadores sérios como Tarquínio José Barbosa de Oliveira e Ivo Porto de Menezes convergem pelo assassinato. Dr. Roque conclui que 
“há indagações que se respondem por si próprias. Por que o aprisionaram em Vila Rica e não o conduziram para o Rio de Janeiro como os demais? Barbacena o queria por perto para controlar-lhe a fala perigosa quanto a seu governo e à sua simpatia pelo movimento?” 
Como advogado competente, Dr. Roque constrói sua argumentação, observando que 
“o Visconde de Barbacena é o mesmo que Cláudio tinha no rol de seus devedores e que interceptara uma valiosa peça, um cacho de bananas em ouro maciço, enviado por Hipólita Jacinta Teixeira de Mello a D. Maria I, pedindo clemência a favor de si e de seu marido, o inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes.” 
Dr. Roque se louva na autoridade do historiador Porto de Menezes, analisando os termos da perícia feita no cadáver de Cláudio Manoel, o qual destrói a possibilidade de suicídio com algumas arguições e a evidência, deixando clara a tese do assassinato, de ter compulsado o livro de assentos dos Irmãos da Irmandade de São Miguel e Almas, aberto em 1741, na Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Às fls. 23, consta a inscrição de Cláudio na Irmandade e, à margem do assentamento, “sufragado com 30 Missas e pago tudo a Fazenda Real ao tesoureiro Faustino Vieira de Souza”. Ora, como seria isso possível se ao suicida eram negados os sufrágios bem como a sepultura eclesiástica? Dr. Roque então conclui sua análise com observação sagaz e magistral: 
“A celebração dos sufrágios é a prova inconteste de que Cláudio Manoel da Costa fora assassinado. Além do mais, há o reconhecimento oficial pelo poder civil quando se vê documentado que a Fazenda Real arcou com as despesas dos ditos sufrágios.” 
A posse de Dr. Roque no IHG-MG foi lembrada pelo vice-presidente do IHG-MG, Prof. Raymundo Nonato Fernandes, em pronunciamento feito a posteriori, que a considerou a segunda grande manifestação de caloroso apoio que Dr. Roque recebeu e assim se expressou sobre a presença do novo confrade: 
“(...) Por tudo que fez, que faz e que é, o Doutor Roque José de Oliveira Camêllo, na sua terra, entre vultos históricos de grande notoriedade é hoje o maior homem vivo de Mariana. Por isto, a interrupção de seu mandato de prefeito na sua adorada Mariana causou perplexidade a toda a sociedade mineira. Numerosas foram as manifestações organizadas em sua solidariedade e apoio enquanto se aguardam as festas de seu retorno ao cumprimento do mandato interrompido, tantas eram as realizações esperadas de sua competência e brilho como grande benfeitor de sua querida terra. (...) A outra grande manifestação de caloroso apoio se deu em 20 de novembro no centenário Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, na soleníssima sessão de sua posse como sócio efetivo da venerável Instituição. Não se tem notícia de uma solenidade tão grandiosa na memória recente desse renomado Instituto. As crianças de sua terra vieram cantando. Formavam o Coral “Tom Maior” de Mariana sob a presidência do Dr. Efraim Rocha. Presentes numerosas autoridades civis e religiosas, Bispo, Desembargadores, professores, escritores, advogados. Ouviram-se discursos de superior cultura jurídica e histórica. Foi um evento emocionante e emocionado para todos e inesquecível às crianças e inúmeros jovens estudantes da terra de Roque Camêllo que jamais esquecerão as emoções daquele dia. (...)” 
Também devo a Dr. Roque Camêllo o convite ao duo constituído por mim ao piano e minha esposa Rute Pardini, cantora lírica, para participar das comemorações dos 40 anos do Museu da Música de Mariana, ocorridas em 6 e 7 de julho de 2013, quando pudemos, além de nos apresentar da sacada da Academia Marianense, observar a alegria contagiante, o brilho e o esforço de todos os envolvidos nos festejos. Finalmente, cabe aqui mencionar minha gratidão por terem Dr. Roque e Merania se dirigido a Santos Dumont em 30/11/2013 para prestigiar a apresentação do Coral Trovadores da Mantiqueira, em meu acompanhamento ao piano/órgão, quando da segunda récita da cantata “O Peregrino de Assis”, da autoria do regente frei Joel Postma o.f.m.. 
 
Nos últimos anos, vinha presidindo a Comissão de Defesa do Patrimônio Histórico da OAB/MG. No dia da instalação da referida Comissão (21/10/2013), o Informativo “OAB-Minas Gerais”, de 22/10/2013 publicou a seguinte notícia: 
“Segundo Roque Camêllo, a Comissão já foi devidamente criada e instalada, sendo que será possível a posse dos membros assim que ela for completamente formada. Ele acrescentou que pretende convidar integrantes das seguintes subseções para fazer parte da Comissão: Mariana, Ouro Preto, Poços de Caldas, Governador Valadares, Congonhas, São João del-Rei, Tiradentes, Diamantina, Sabará, Serro, Paracatu, Minas Novas, Santa Bárbara, Barbacena, Montes Claros, Juiz de Fora, Uberlândia, Sete Lagoas, dentre outras. Roque Camêllo ainda salientou que o objetivo da Comissão é valorizar as raízes históricas do povo mineiro. ‘Preservar a história é não apenas reverenciar o passado, mas construir os caminhos que constroem o futuro. O povo que sabe de onde veio sabe traçar o seu próprio destino. Minas Gerais, não sendo o mais velho Estado da Federação, no entanto, é o Estado do equilíbrio nacional e representa os anseios de todo o povo brasileiro que prima por privilegiar o sentimento libertário a exemplo dos Inconfidentes’.” (texto transcrito no Informativo AVL da Academia Valenciana de Letras nº 121, Ano XI, novembro de 2013) 
Outro momento inesquecível foi nosso reencontro no Seminário “Meandros da Inconfidência Mineira” patrocinado pelo IHG de São João del-Rei, em 12 de novembro de 2015, quando ele, com sua presença ilustre, prestigiou os confrades são-joanenses, sobretudo a mim que estava proferindo a palestra “Baptista Caetano de Almeida e seus projetos civilizatórios”. Só com o passar dos anos de nossa convivência, pude verificar que sua razão de ser eram seus projetos culturais para Minas grande, para os quais investia todo o seu prestígio pessoal e conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Da mesma forma, relembro aqui, com saudade, as palavras proféticas que Dr. Roque inseriu na seção de Agradecimentos do seu último livro “Mariana: Assim nasceram as Minas Gerais”, de 2016, lançado em homenagem aos 305 anos da elevação de Mariana à categoria de vila: 
“O tempo foi exíguo para singrar as águas de Minas que não tem mar, mas é um oceano de Cultura e um continente de patriotismo.” 
Tive a honra de ter sido convidado pelo autor para participar de um grupo seleto de representantes de cidades que se expressaram sobre Minas Gerais, Mariana ou sua cidade natal. Nestes termos dei minha contribuição à página 72 do referido livro: 
“São João del-Rei é muito especial por suas características e pelo peso de sua História. Tenho orgulho de minha cidade por tudo que representa para Minas e para o Brasil e pelo fato de ter integrado a circunscrição religiosa de Mariana, primeira sede episcopal mineira. Desta se desmembrou em 1960, criada que foi por João XXIII a Diocese de São João del- Rei. Ambas guardam em comum a fé cristã e as tradições culturais advindas do Século XVIII.” 
Além disso, após o livro ter sido publicado em 2016, o autor fez a seguinte dedicatória carinhosa no meu exemplar: 
“Ao ilustre amigo Dr. Francisco Braga, cidadão culto e compromissado com o bem de nossa Pátria, e à querida Rute Pardini, aquinhoada pelo Criador com uma voz divina e singular, ofereço este “MARIANA”, homenageando-os pelo engajamento em defesa da Cultura. Merania e eu somos honrados com a amizade de ambos e desejamos contínuos sucessos em suas belíssimas trajetórias musicais. Com todo o apreço e admiração do Roque Camêllo – 16.7.2016
Por serem por demais conhecidos tais projetos do Dr. Roque Camêllo em prol de Mariana, Minas Gerais e o Brasil, acho que não devo me alongar apresentando a relação completa de suas benemerências. Mas devo confessar que foi tão grande a nossa identificação, — minha com a do notável marianense, orador consagrado e mestre pela sua cultura literária, jurídica, religiosa, filosófica e histórica, de que deu provas suficientes por onde passava, — eis que, desde 2012, Dr. Roque e sua esposa Merania vinham participando com sua rica presença de todos os eventos culturais que desenvolvi nas Academias, mormente defesa de meus patronos no IHG de São João del-Rei (Lincoln de Souza) e nas Academias de Barbacena (Omar Vianna), Formiga (Guimarães Rosa) e Divinópolis (Padre António Vieira), esta última em 14 de dezembro de 2016, quando já se encontrava fisicamente debilitado. Entretanto, não posso me furtar de dar a conhecer que um de seus extremos atos de vontade, em 17 de março de 2017, à véspera de seu óbito, foi o de convidar-me para tomar parte do enriquecedor convívio com os Acadêmicos do sodalício marianense, convite este que foi imediatamente aceito por mim, esperando colaborar sob seu comando durante muitos anos vindouros. 
 
Quis o Criador que assim não fosse... Dr. Roque, no convite a mim endereçado, expressou o desejo de que eu tomasse posse na Cadeira nº 2, cujo patrono é Dr. Francisco de Paula Cândido, seu antepassado mais famoso, atribuindo a mim qualidades que não possuo: acreditava ele que apenas eu, pesquisador de História e Genealogia, seria capaz de representar e fazer uma apologia à altura do grande mestre e médico do Império, na Casa de Cultura que presidia. 
 
Ainda mais surpreso fiquei, quando fui informado por Profª Hebe da decisão solene da Diretoria da Academia Marianense, que exarou um comunicado com o seguinte teor: 
“Considerando que o Prof. Roque se empenhou em trazê-lo para nossa Academia, em reunião a Diretoria decidiu sugerir-lhe o nome do referido ex-presidente, Roque Camêllo, para seu patrono. Ficaremos muito gratos pela sua presença nesta Casa.” 

Aqui se apresenta uma situação clara em que a generosidade se alia à História com resultados os mais profícuos. Foi assim que tomei posse naquela douta Academia em 1º de junho de 2019, ocupando a cadeira nº 23, patroneada por Dr. Roque José de Oliveira Camêllo, ocasião em que tive a honra de ser saudado por Dom Francisco Barroso Filho, digníssimo Acadêmico marianense, Bispo emérito de Oliveira-MG e um dos baluartes que lutam na defesa e preservação da fé, da arte e da cultura de Ouro Preto.

Resta ainda acrescentar que, enquanto aguardava a oficialização do convite para pertencer àquela Academia, compareci em Mariana à fundação do Instituto Roque Camêllo em 18/03/2018 tornando-me Conselheiro Honorário dessa entidade, e ao lançamento do livro “O Roque Camêllo que conheci” em 17/03/2019, fruto do empenho da jornalista Merania Aparecida de Oliveira e de Dr. Mário de Lima Guerra, idealizador e coordenador do projeto do livro, do qual participei com o artigo “Falecimento do escritor dr. Roque Camêllo constitui irreparável lacuna na comunidade cultural de Minas e do Brasil”, às páginas 9-14, originalmente postado no Blog de São João del-Rei em 18/03/2017 em forma de elogio fúnebre. 

É uma pena que o tempo não volte! Daria muito para reviver aqueles dias e, mais ainda, por novos momentos. Todas aquelas e ainda muitas outras recordações estão guardadas em um lugar muito especial do meu coração. Hoje em dia compreendo que algumas pessoas são imortais: vêm a este mundo para transformar a vida de quem está ao seu redor. E Roque Camêllo, certamente, é uma delas. Saudade eterna, meu querido amigo! 

 

                                                                * Membro efetivo da Academia Divinopolitana de Letras, ocupante da Cadeira nº 11 - Patrono: Pe. António Vieira.



 
V. REFERÊNCIA  BIBLIOGRÁFICA

 

BRAGA, Francisco J.S.: Falecimento do escritor dr. Roque Camêllo constitui irreparável lacuna na comunidade cultural de Minas e do Brasil”, postado no Blog de São João del-Rei em 18/03/2017
 
CAMÊLLO, Roque J.O.: Mariana - Assim nasceram as Minas Gerais: Uma Visão Panorâmica da História”, Belo Horizonte: Editora Nitro, 2016, lançado em homenagem aos 305 anos da elevação de Mariana à categoria de vila, 231 p.
 
–––––––––––––– (coord.): 16 DE JULHO: O DIA DE MINAS(Discursos, pronunciamentos, ensaios, crônicas e poemas sobre a data constitucional mineira), Belo Horizonte: Editora Lemi S.A., 1991, 254 p.  
 
–––––––––––––––––– Inconfidente Cláudio Manoel da Costa: primeiro advogado assassinado em Minas”, publicado originalmente na revista Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, volume 13, edição nº 133, setembro de 2011, p. 48-50.
 
––––––––––––––––––  Museu da Música, uma relíquia da cultura brasileira, publicado em dezembro de 2007 pela Casa dos Contos, Revista do Centro de Estudos do Ciclo do Ouro, do Ministério da Fazenda (download in  https://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_da_M%C3%BAsica_de_Mariana)
 
CUPELLO, Mário P.:  Informativo AVL da Academia Valenciana de Letras nº 121, Ano XI, novembro de 2013.
 
GUERRA, Mário L. (org.): O Roque Camêllo que conheci, Belo Horizonte: Gráfica O Lutador, 2019, 292 p.
 
JÚNIOR, Arnaldo (org.): Antologia da Academia Divinopolitana de Letras - 60 anos, Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2022, 163 p.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 12: MENÊNIO AGRIPA, POR ABADE LHOMOND


Por Francisco José dos Santos Braga

Estátua do Abade Lhomond em Amiens esculpida em 1860 por Gédéon de Forceville
 

I. ABADE LHOMOND: De Viris Illustribus Urbis Romae a Romulo ad Augustum, trecho 

Menenius Agrippa concordiam inter patres plebemque restituit: nam cum plebs a patribus secessisset, Agrippa, vir facundus, ad plebem missus est; qui intromissus in castra hoc narravisse fertur: "Olim humani artus, cum ventrem otiosum cernerent, conspiraverunt ne manus ad os cibum ferrent, nec os acciperet datum, nec dentes conficerent. At ipsi quoque defecerunt, totumque corpus: inde apparuit ventris haud segne ministerium esse, eumque acceptos cibos per omnia membra disserere: itaque cum eo in gratiam redierunt. Sic senatus et populus quasi unum corpus discordiā pereunt, concordiā valent.
Hac fabula Menenius flexit hominum mentes ; plebs in urbem regressa est. Creavit tamen tribunos qui libertatem suam adversus nobilitatis superbiam defenderent. Paulo post mortuus est Menenius, vir omni vita pariter patribus ac plebi carus; post restitutam civium concordiam carior plebi factus. Is tamen in tanta paupertate decessit, ut eum populus collatis quadrantibus ¹ sepeliret, locum sepulcro senatus publice ² daret. Potest consolari pauperes Menenius sed multo magis docere locupletes, quam non sit necessaria solidam laudem cupienti nimis anxia divitiarum comparatio.
Links: http://www.thelatinlibrary.com/lhomond.viris.html ou https://la.wikisource.org/wiki/
 
[Minha tradução: Menênio Agripa restabeleceu a concórdia entre Patrícios e Plebeus: pois quando a plebe se separou dos Patrícios (saindo de Roma), Agripa, dotado de eloquência, foi enviado à plebe, o qual, introduzido no acampamento, conta-se que disse simplesmente isto: "Um dia, os membros do corpo humano, quando viram o estômago ocioso, conspiraram para que as mãos não levassem o alimento à boca, para que a boca não aceitasse o que lhe era dado, nem os dentes o mastigassem. Ora, eles e todo o corpo perderam o ânimo: por isso ficou evidente que o serviço do estômago não era lento e era ele responsável por distribuir os alimentos recebidos por todos os membros. Assim estes se reconciliaram com ele. Da mesma forma, o Senado e o povo, formando, por assim dizer, um único corpo, perecem pela discórdia, são fortes com a concórdia."
Com esta fábula Menênio aplacou as mentes das pessoas: a Plebe retornou à Cidade. No entanto, (o Senado) criou tribunos ​​que defendessem sua liberdade contra a arrogância da nobreza. Logo após morreu Menênio; homem igualmente caro aos Senadores e à Plebe por toda a vida; tornou-se ainda mais querido depois que foi restaurada a harmonia. No entanto, ele morreu tão pobre que a Plebe com quadrantes arrecadados o enterrou; o Senado concedeu o lugar para o túmulo às custas do Estado. Menênio é capaz de consolar os pobres, mas pode sobretudo ensinar aos ricos o quanto a obtenção ávida demais de riqueza não é necessária a quem deseja um louvor genuíno.]
 

II. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  De acordo com a numismática, quadrante (em latim: quadrans; romaniz.: lit. "um quarto") era uma moeda romana de baixo valor cunhada em bronze. Ela pesava e valia um quarto de um asse ou ás. O quadrante foi cunhado em moedas de bronze durante a República Romana com três pequenos "pontos" ou "pastilhas", representando três úncias (unciae), como marca de seu valor e eram, por isso, conhecidas também como terúncio (teruncius; "três úncias"). O anverso, depois de algumas variações iniciais, trazia o busto de Hércules; no verso, a proa de uma galé. 
 
Quadrante do século III
 
O asse ou ás (as, em latim, plural asses) era uma moeda romana de bronze e, posteriormente, de cobre, em circulação durante a república e o império. Recebeu o nome da unidade de peso também chamada asse, que era equivalente a 12 onças (unciae), isto é, uma libra romana.
 
² Publice significa "às expensas do tesouro público ou do Estado".
 

III. COMENTÁRIOS 
 
 
1) O objetivo de apresentar a versão simplificada do Abade Lhomond para o Apólogo dos Membros e do Estômago, já examinado na edição nº 11 da série "Recupere seu Latim" na versão de Tito Lívio, é possibilitar que o leitor que acompanha a evolução desse trabalho possa comparar a narração do mesmo episódio da história de Roma com um melhor aproveitamento, observando a composição do texto de cada autor e percebendo a diferença de seus estilos de expressão. 
A vantagem está em possuir essa segunda versão uma maior simplicidade, em linguagem quase coloquial, sendo seu próprio autor, Abade Lhomond, quem primeiramente utilizou com proveito em sala de aula esse texto extremamente didático na 6ª série (1ª do curso colegial na França). Naquele país, o seu método de ensino do latim foi reconhecido como bastante eficiente, sendo De Viris Illustribus do Abade Lhomond considerado provavelmente a melhor obra adaptada para uso de iniciantes no aprendizado da língua latina do que qualquer outro trabalho da mesma espécie que tivesse aparecido até então.
 
2) "De Viris Illustribus Urbis Romae a Romulo ad Augustum" de Charles François Lhomond, mais conhecido por Abade Lhomond, é importante obra didática. Esta obra apresenta uma galeria de homens notáveis de Roma, dos primórdios até a morte de Augusto. Quanto às fontes, o autor Lhomond cita três, no prefácio do seu livro: Tito Lívio, Floro e Valério Máximo. Ele também usa Cornélio Nepos, conforme afirma Jean-Étienne-Judith Forestier Boinvilliers, na reedição da obra em 1805, declarando que Lhomond se inspirou muito no livro de idêntico título de Nepos. 
Entretanto, na verdade, no caso particular do presente texto que estamos analisando, Lhomond seguiu muito de perto, quase pari passu, o texto de Aurelius Victor, capítulo 18 do livro de mesmo título: De Viris Illustribus Urbis Romae, que pertence ao Corpus Aurelianum
Consta que das 86 biografias do livro de Aurelius Victor, Lhomond reproduziu 64. (Sugestão: Compare os dois textos, o do Abade Lhomond com o texto de Aurelius Victor no Link: http://www.thelatinlibrary.com/victor.ill.html, tendo o cuidado de isolar a primeira sentença do capítulo 18 do livro de Aurelius Victor, que se refere a outro assunto: a vitória de Menênio Agripa, quando cônsul, sobre os sabinos em 503 a.C.).
 
3) Charles François Lhomond, conhecido como Abbé Lhomond, nascido em 1727 em Chaulnes, Picardia, e falecido em Paris em 31 de dezembro de 1794, foi um humanista, pedagogo, gramático e erudito francês. Foi professor de francês na Universidade de Paris. Abade Lhomond deixou várias obras destinadas principalmente à educação. É o autor do manual para latinistas De viris urbis illustribus Romæ a Romulo ad Augustum (ca. 1775), sua obra mais famosa, através da qual gerações de estudantes aprenderam latim. Segundo o prefácio do livro, De viris tinha a pretensão de suprir a falta de autores latinos para a sexta série nas escolas francesas. 
Outras obras do Abade Lhomond são: 
Elementos da Gramática Latina, Paris (1779), 
Doutrina Cristã, ibid. (1783), 
Epitome historiæ sacræ, ibid. (1784), 
História resumida da Igreja, ibid. (1787), 
História reunida da religião antes da vinda de Jesus Cristo, ibid. (1791). 
 
Os que conheceram o Abade Lhomond o representaram como um homem simples em suas maneiras, com uma abordagem fria, mas franca e agradável. 
Sempre verbalizou este pensamento que é a alma de seus escritos: “A juventude é um depósito precioso pelo qual respondemos a Deus e à nossa pátria.
 
4) Homenagens póstumas 
Seu nome ganhou popularidade desde sua morte em proporção dos grandes serviços que suas obras prestaram à instrução pública, ao ponto de Amiens e Chaulnes terem disputado a honra de lhe erguer uma estátua. Portanto, duas estátuas foram erguidas em sua homenagem por subscrição popular, em 1860, ambas na Picardia: a primeira, esculpida por Eugène-Louis Lequesne e está em Chaulnes;  a segunda, em Amiens (mostrada na abertura do post). 
O Abade Lhomond deu seu nome a uma rua no 5º arrondissement de Paris.

sábado, 18 de junho de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 11: APÓLOGO DOS MEMBROS E DO ESTÔMAGO, POR TITO LÍVIO


Por Francisco José dos Santos Braga


Menênio Agripa narrando seu apólogo à Plebe. Gravura de B. Barloccini, 1849: La rebelion de la plebe en el monte Sacro.
 

I. TITO LÍVIO: Ab Urbe Condita, livro II, 32.8-12 
 
 
Placuit igitur oratorem ad plebem mitti Menenium Agrippam, facundum virum et quod inde oriundus erat plebi carum. Is intromissus in castra prisco illo dicendi et horrido modo nihil aliud quam hoc narrasse fertur: tempore quo in homine non ut nunc omnia in unum consentiant, sed singulis membris suum cuique* consilium, suus sermo fuerit, indignatas reliquas partes sua cura, suo labore ac ministerio ventri omnia quaeri, ventrem in medio quietum nihil aliud quam datis voluptatibus frui; conspirasse inde ne manus ad os cibum ferrent, nec os acciperet datum, nec dentes quae acciperent conficerent. Hac ira, dum ventrem fame domare vellent, ipsa una membra totumque corpus ad extremam tabem venisse. Inde apparuisse ventris quoque haud segne ministerium esse, nec magis ali quam alere eum, reddentem in omnes corporis partes hunc quo vivimus vigemusque, divisum pariter in venas maturum confecto cibo sanguinem. Comparando hinc quam intestina corporis seditio similis esset irae plebis in patres, flexisse mentes hominum.
 
[Minha tradução: Foi decidido enviar à Plebe, como porta-voz, Menênio Agripa, homem eloquente e bem-quisto, por ser oriundo dela. Diz-se que, tendo sido introduzido no acampamento, com um certo modo de falar antigo e rude, narrou nada mais que isto: Numa época em que, no organismo humano, tudo não estava, como agora, em perfeita concordância, quando tinha prevalecido a cada um dos membros isolados seu direito à própria opinião, à sua própria voz, indignaram-se as demais partes do corpo por ser a elas que cabiam o cuidado, o incômodo e o fardo de obter tudo para o estômago, enquanto o estômago, muito tranquilo no meio (do corpo), tinha apenas que se deleitar com os prazeres que lhe eram dados. Juntos, decidiram então que as mãos não levariam mais comida à boca, que a boca não levaria mais a comida oferecida, que os dentes não a mastigariam mais. Como resultado dessa ira, ao querer vencer o estômago pela fome, os membros também e todo o corpo chegaram à beira da exaustão. Os membros então perceberam que o estômago também tinha sua função, não a de um preguiçoso, e que os alimentava tanto quanto eles o alimentavam, devolvendo a todas as partes do corpo o que nos traz vida e força, o sangue, enriquecido pela digestão, repartido uniformemente entre as veias. Então, mostrando o quanto a sedição intestina dentro do corpo se assemelhava à ira da Plebe contra os Patrícios, Menênio havia dobrado os Plebeus.]
 

II. COMENTÁRIOS 
 
 
1) A fundação de Roma é tradicionalmente aceita como  em 753 a.C. Entre os anos de 753 a.C. e 509 a.C., Roma viveu o período conhecido como Reino de Roma, sob uma monarquia, um período de crescimento e transformação em cidade, incorporando diversas reformas, com a construção de espaços públicos, de fortificações, de calçadas, de sistemas de esgotos. 
 
Na Roma Antiga, a palavra curia designava um grupo de homens, ou o lugar onde eles se encontravam. O termo assim designado subentendia subdivisões cívicas em Roma na época da monarquia. Logo após a fundação de Roma, os romanos foram divididos em trinta cúrias, organizadas com base em laços familiares e, por isso, na estrutura étnica dos primeiros anos de Roma. Cada cúria tinha seus próprios festivais, deuses e ritos religiosos. As cúrias se reuniam numa assembleia legislativa conhecida como Assembleia curiata, criada logo depois da lendária fundação de Roma em 753 a.C. e tinha o poder de eleger os reis de Roma, entre outras atribuições. Como essas assembleias funcionavam com base numa democracia direta, cidadãos ordinários — e não representantes eleitos — votavam. 
 
Durante a monarquia, o Senado ou conselho dos anciãos era o conselho dos reis, sendo os seus membros cuja escolha possivelmente se fazia pelos reis, entre os chefes das diferentes gentes (singular gens) denominados senatores ou patres (pais), cujo número a princípio era de 100, e, no final do período real, ascendeu a 300.
Quanto à competência do Senado:
1) Com relação ao rei, era consultiva (este, nos casos mais importantes, devia consultá-lo, embora não estivesse obrigado a seguir o conselho);
2) Com referência aos comícios era confirmatória (toda deliberação deles, para ter validade, devia ser confirmada pelo Senado, ou seja, obter a patrum auctoritas).
O Senado tornou-se, especialmente na fase republicana (509–27 a.C., período vigente da República Romana), a mais alta autoridade do Estado, em que os senadores exerciam em caráter vitalício. 
 
Da fundação de Roma (753 a.C.) até 494 a.C., os Plebeus não tinham nenhum direito político e cada família plebeia era dependente de uma família dos Patrícios. Assim, cada família plebeia pertencia à mesma cúria de seu patrono. Apesar disto, apenas os Patrícios podiam votar na Assembleia curiata
 
Secessão da plebe (em latim: secessio plebis) era um exercício informal de poder na Roma Antiga, pelo qual cidadãos plebeus se articulavam em um movimento semelhante a uma greve geral levada ao extremo. Durante uma secessão, os Plebeus simplesmente abandonavam a cidade em massa e abandonavam os Patrícios à própria sorte. Naquela época (494 a.C.), a plebe não tinha acesso a magistraturas e, revoltada com o arbítrio dos magistrados patrícios, abandonou a Roma de então e se dirigiu ao monte Sacro, com o objetivo de fundar ali uma nova cidade. Esta era uma estratégia muito efetiva durante o "Conflito das Ordens" por causa da força nos números; os plebeus eram a vasta maioria da população romana e produziam a grande maioria da comida e demais recursos, enquanto um patrício era membro da classe alta minoritária. 
 
Esta 1ª Secessão da Plebe foi o resultado de uma crescente preocupação da plebe com as dívidas (que podia resultar em escravidão) e na falha do Senado em lutar pelo bem estar da plebe. Os revoltosos abandonaram Roma e se juntaram sobre o Monte Sacro. Como parte da solução negociada, os patrícios perdoaram a dívida de alguns plebeus e cederam parte de seu poder permitindo a criação do cargo de tribuno da plebe, a primeira função governamental ocupada pela plebe. A situação dos Plebeus na formação da cidade-estado vai mudar em 494 a.C., por intermediação de Menênio Agripa, parlamentar que consegue apaziguar a 1ª Secessão da Plebe que tinha se amotinado sobre o Monte Sacro, segundo uns, e Aventino, segundo outros. Após a intermediação de Menênio Agripa, que narrou o Apólogo dos Membros e do Estômago para convencer os levantados,  estes depuseram as armas e voltaram à comunidade romana e às fileiras do Exército, compondo um todo harmônico social, o qual era pretendido pelo orador. A criação dos cargos de tribuno da Plebe e edil plebeu marcou o fim da primeira fase da luta entre Plebeus e Patrícios.
 
2) Menênio Agripa (cônsul em 503 a.C. e falecido em 493 a.C.) foi um político e militar romano do século VI a.C., pertencente à gens Menenia (logo, um Patrício). Foi cônsul com Públio Postúmio Tuberto no ano 503 a. C., quando conquistou os sabinos e obteve a honra de um triunfo em razão dessa vitória. Dominava a oratória, com a qual intermediou o conflito entre Patrícios e Plebeus, quando estes últimos se amotinaram sobre o Monte Sacro (a 3 milhas da Roma de então) acaudilhados por Lúcio Sicínio Veluto no ano 494 a.C., conseguindo que os amotinados depusessem as armas. Morreu logo depois, e como não possuía bens suficientes para quitar os gastos com o próprio funeral, foi enterrado pelos Plebeus através de uma ação entre amigos.
 
3) O apólogo de Menênio Agripa (apólogo=tipo de fábula caracterizada por um destacado sentido alegórico e moral; no caso, a dos membros e do estômago) foi aquele com o qual ele teria convencido os Plebeus a porem fim à secessão sobre o Monte Sacro (ou no Aventino, segundo a tradição mais antiga). 
O mesmo apólogo, em diferentes variantes, foi reproduzido por inúmeros escritores (Em latim: em Cícero in De Officiis, livro III, 22; Valério Máximo in Feitos e Dizeres Memoráveis (VIII, 9, 1); Públio (ou Lúcio) Aneu Floro in Resumo da História Romana (I, 23); o autor do De Viris Illustribus, livro XVIII, 1-7. Em grego: Esopo: fábula O Estômago e os Pés; Dionísio de Halicarnasso in Antiguidades Romanas, VI, 86; Plutarco in Vida de Coriolano, VI, 2-5; Dion Cassius in História Romana, IV (fragmentos), 33; Zonaras in Epítome de Histórias, VII, 14 e em São Paulo in 1ª Carta aos Coríntios, cap. XII, 14-26. Em francês: La Fontaine in Fables, livre III, 2).
 

III. CONTRIBUIÇÃO PARA OS FINS DA PRESENTE PESQUISA
 

Gostaria de reproduzir aqui minha tradução do inglês para um interessante trecho do livro Ovid's Women of the Year: Narratives of Roman Identity in the Fasti, p. 21-3, por Angeline Chiu, que traz informações adicionais sobre Menênio Agripa, no seu apólogo Os Membros e o Estômago” e intrigantes e esclarecedores insights sobre o famigerado episódio do Conflito das Ordens (Patrícios X Plebeus), denominado 1ª Secessão da Plebe, envolvendo o Exército Romano e o perigoso momento histórico em que ele combatia simultaneamente Équos, Sabinos e Volscos. Tenhamos em mente que o Conflito das Ordens começou 15 anos após a fundação da República. 
 
“(...) O incidente da famigerada estratégia dos Plebeus de se mudarem em massa para o Monte Sacro fora de Roma em 494 a.C, aparece de forma destacada em Tito Lívio, cujo relato in História Romana, livro II, capítulos 23-33 é nossa fonte preservada mais influente na descrição literária latina. Também é possivelmente a mais influente descrição da 1ª Secessão da Plebe na literatura latina. Como Lívio a apresenta, a confrontação entre os Patrícios e os Plebeus sobre direitos civis e participação política é um momento crítico para a cidade-estado emergente: a identidade romana está em risco, assim como a integridade, a viabilidade e consequentemente o futuro da Urbs estão todos em perigo.
 
A narrativa de Lívio diz respeito basicamente aos eventos na própria cidade de Roma, expressos com os amplos alcance e faro característicos para o dramático. Ele contextualiza o conflito como ocorrendo durante um momento particularmente perigoso para a iniciante República (em vigor somente há 15 anos): o perigo militar externo e a desavença civil interna criam uma  tempestade perfeita. O desacordo doméstico entre Patrícios e Plebeus indica não só uma disputa política mas também uma perda da coesão social. A integridade cívica romana começa a despedaçar-se em sectarismo e caos, ameaçando a viabilidade de Roma como comunidade e sociedade plural. Enquanto isso, os Volscos, um inimigo estrangeiro, ameaçam a viabilidade de Roma como nação-estado. A necessidade de Roma resolver sua crise de identidade interna torna-se urgente. A narrativa de Lívio descreve o sinal mais claro daquela crise: a decisão drástica da Plebe de retirar-se de Roma e armar acampamento sobre o Monte Sacro (II, 32-2). Os participantes fizeram uma preparação premeditada: desde a construção de um acampamento próprio até o transporte de provisões. É claro que se comprometeram no longo prazo. O efeito sobre os Patrícios ainda na Cidade é premente: 
"Nullam profecto nisi in concordia civium spem reliquam ducere; eam per aequa, per iniqua reconciliandam civitati esse."

[Minha tradução: Não restava nenhuma esperança no futuro senão na harmonia dos cidadãos: esta devia, portanto, ser devolvida à cidade sob qualquer condição, vantajosa ou desvantajosa que fosse. (II, 32-7)]

Roma, como uma comunidade de diferentes distritos lotados num local, está em risco.
 
Neste ponto na narrativa, fica manifesta a inclinação de Lívio por arquétipos e pronunciamentos. Distante da confusão na Cidade, surge um indivíduo que exibe uma qualidade exemplar necessária em tal crise. Aqui aquela qualidade é publicamente orientada, composta das habilidades diplomáticas de retórica e persuasão: o indivíduo é Menênio Agripa, que Lívio descreve como um homem respeitado por ambas as Ordens em conflito. Além disso, devido à sua reputação duplamente boa, ele é um romano com a habilidade, oportunidade e responsabilidade de reconciliar as Ordens fracionadas, em conflito: 
"sic placuit igitur oratorem ad plebem mitti Menenium Agrippam, facundum virum et quod inde oriundus erat plebi carum." (II, 32.8)
Menênio Agripa, ele próprio um plebeu,  é a escolha dos Patrícios para ser seu emissário aos Plebeus ressentidos sobre o Monte Sacro; uma vez lá, ele abranda sua ira, contando-lhes a parábola do Estômago e dos Membros (II, 32.9-12). O resultado é a reconciliação dos Plebeus e Patrícios: a crise é resolvida e a natureza plural do Estado restaurada, na medida em que suas facções são reintegradas.
 
Na narrativa de Lívio, o envolvimento de Menênio Agripa é essencial. Ele é a ponte entre as duas Ordens; devido a seus esforços, a comunidade romana é restaurada e a fratura na identidade cívica romana curada. Neste episódio Menênio é a única figura nomeada cuja identidade pessoal e ações individuais Lívio descreve com algum detalhe. Mesmo mais do que resolvendo a crise, Menênio ganha um lugar na galeria de homens públicos romanos. Surge um novo senso de unidade na comunidade romana, e ele está no centro dele: Lívio explicitamente o descreve na conclusão como vir omni in vita pariter patribus ac plebi carus (II, 33-10) - isto é, um homem por toda a sua vida igualmente caro aos Patrícios e aos Plebeus. Ele vem corporificar a espécie de concórdia que Roma necessitava. A coda é um relato da morte e funeral de Menênio Agripa, e contém algo surpreendente: os Plebeus pagam as despesas do seu funeral: 
"Eodem anno Agrippa Menenius moritur, vir omni in vita pariter patribus ac plebi carus, post secessionem carior plebi factus. Huic interpreti arbitroque concordiae civium, legato patrum ad plebem, reductori plebis Romanae in urgem sumptus funeri defuit; extulit eum plebs sextantibus conlatis in capita." (II, 33.10-11) 
[Minha tradução: Nesse mesmo ano (493 a.C.) Menênio Agripa morreu, o homem que fora em vida igualmente caro à Plebe e aos Senadores e que, depois da secessão, se tornou mais querido da Plebe. A este que tinha sido o mediador e intérprete da reconciliação entre os cidadãos, que tinha sido o embaixador do Senado na Plebe e aquele que os trouxera de volta a Roma e não tendo deixado dinheiro suficiente para pagar o funeral: enterrou-o a Plebe que contribuiu com algumas moedas por cabeça.]
 
Esta é uma conclusão tocante e também contém a intrigante ideia de que os Plebeus o consideravam um digno recipiendário de sua honra, não apenas porque ele próprio era um plebeu, mas também porque tinha sido bem sucedido na reconciliação dos Plebeus com os Patrícios. Os Plebeus atuam com sua própria, menor mas distinta, identidade dentro da maior Roma, mas aqui agem de forma a honrar o homem que ajudou a reincorporá-los na comunidade maior. A celebração post mortem de Menênio Agripa é uma lembrança dos seus bem sucedidos esforços para fazer a ponte entre Patrícios e Plebeus durante aquele perigoso momento na história romana. Visto que Menênio Agripa pudesse estar alinhado com um lado do impasse, ele teria que se alinhar com os Patrícios, na medida em que eles o tinham escolhido para ser seu embaixador com os Plebeus grevistas. (...)”


 
V. REFERÊNCIA  BIBLIOGRÁFICA

 

CHIU, Angeline: Ovid's Women of the Year: Narratives of Roman Identity in the Fasti, p. 21-3.

domingo, 12 de junho de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 10: TRECHOS DE TRATADOS DE CÍCERO EM FORMA DE DIÁLOGOS


Por Francisco José dos Santos Braga

Quadro de Jean Léon Gérome exposto em 1861: OS DOIS ÁUGURES / "Eu imagino como dois áugures possam se olhar sem rirem..."

  

1) Marco Túlio Cícero: Da Adivinhação, livro II, 24, 51 e 24, 52 
 
Vetus autem illud Catonis admodum scitum est, qui mirari se aiebat, quod non rideret haruspex, haruspicem cum vidisset. Quota enim quaeque res evenit praedicta ab istis? aut, si evenit quippiam, quid adferri potest, cur non casu id evenerit?
 
Minha tradução: Mas este é um dito bastante perspicaz de Catão, que dizia: "Eu me admiro que um áuspice não ria quando vê outro áuspice. Pois quantas coisas preditas por eles se realizam realmente? Se alguma se realiza, então qual razão pode ser aventada para que a concordância do acontecimento com a profecia não tenha sido devido à sorte?

Comentário: Áugures ou arúspices eram sacerdotes da Roma Antiga que usavam os hábitos das aves para tirar presságios. Exemplos disso são o seu voo, o seu canto e suas próprias entranhas, e o apetite dos frangos sagrados. Nada de importante se fazia sem consultá-los. Sob o pretexto de que os auspícios não eram favoráveis, um áugure poderia impedir até uma execução pública. Formavam um colégio venerado em Roma. É curioso que o próprio Cícero, tendo sido um áugure, coloque na boca de Catão, o Velho, o dito jocoso que ele mesmo poderia ter dito por experiência própria. 
 
2) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro V, 92
 
Diógenes de Sinope, o cínico, a Alexandre Magno: "Desejo que saias do meu sol."

Diogenes Alexandro, roganti ut diceret, si quid sibi opus esset, libere, ut cynicus, respondit: «Nunc quidem paulum a sole absis.» Offecerat videlicet apricanti. His auditis, Alexandrum dixisse ferunt : «Nisi Alexander essem, libenter essem Diogenes.» Multo potentior multoque locupletior tunc erat Diogenes omnia possidente Alexandro. Etenim aliquid majus erat, ilium nolle accipere quod offerretur, quam hunc posse dare. Et qui gloriari solebat a nullo se beneficiis victum, eo die victus est, quo vidit aliquem cui nec dare quidquam posset, nec eripere. 
 
Minha tradução: A Alexandre que pedia que Diógenes lhe dissesse se precisava de alguma coisa, (o filósofo) respondeu com a liberdade de um cínico: "Agora na verdade (eu desejo) que te retires um pouco do meu sol." 
Evidentemente (o rei) lhe impedia de tomar sol. Dizem que Alexandre teria dito: "Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes." 
Com certeza, então Diógenes era muito mais poderoso e mais rico do que Alexandre, dono do mundo, pois é algo da mais alta grandeza aquele não querer aceitar o que lhe era oferecido do que este poder dar. E quem costumava vangloriar-se de não ter sido superado por ninguém em benefícios, foi vencido naquele dia em que viu alguém, ao qual não podia dar nem tomar coisa alguma.

Comentários: Marcos Túlio Cícero redigiu “Disputas tusculanas” por volta de 45 a.C. para divulgar a filosofia estóica. Uns tradutores preferem por o título Discussões tusculanas ou Questões tusculanas, enquanto outros optam por Conversas em Tusculum (notadamente os alemães), referindo-se ao fato de Cícero possuir uma vila na área de Tusculum. 
Endereçada a Marcos Bruto, a obra constante de cinco livros registra a exposição entre um mestre e um aluno sobre os meios de alcançar a felicidade. A conjuntura para Cícero não era a das melhores: perdera a filha Túlia e retirara-se da vida pública para sua vila em Tusculum, nas colinas albanas no Lácio. Desse modo, a consecução da felicidade não é simples. 
Conforme no prólogo de sua obra “Da Adivinhação”, Cícero sumariza sua obra “Disputas Tusculanas da seguinte forma: 
[...] tratavam dos fundamentos da vida feliz, a primeira sobre o desprezo da morte, a segunda sobre suportar a dor, a terceira sobre mitigar a dor, a quarta sobre as perturbações psicológicas e a quinta sobre a coroa de toda a filosofia: a afirmação (estóica) de que a virtude é em si mesma suficiente para a vida feliz”. 
 
Cícero, nas “Disputas Tusculanas”, revela a objetividade prática, um traço característico da Weltanschauung romana. Não se debruça sobre questões metafísicas; aborda temas que inquietam qualquer vivente, perplexo ante problemas inevitáveis e sem soluções visíveis: a morte, a dor física, o sofrimento moral, a busca de felicidade, o beate vivere.
 
3) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro V, 20
Diogenes quidem praedicare solebat, quanto ipsum regem Persarum felicitate superaret: Sibi nihil deesse, illi nihil satis unquam fore; se ejus voluptates non desiderare, quibus nunquam satiari ille posset; suas eum consequi nullo modo posse. Haec vere Diogenes: nam Xerxes refertus omnibus praemiis bonisque fortunae, non peditatu, non equestribus copiis, non navium multitudine, non infinito pondere auri contentus, praemium proposuit ei qui invenisset novam voluptatem. Qua inventa ipse non fuit contentus. Neque enim unquam finem invenit libido. 
 
Minha tradução: Diógenes costumava dizer quão mais afortunado se achava do que o poderoso rei dos persas. Pois, dizia ele, nada me falta, enquanto ele nunca está satisfeito; seus prazeres, que não lhe dão qualquer satisfação, não me fazem falta; também ele não pode, de forma alguma, no seu poder conquistar o meu.
Diógenes estava certo, pois Xerxes, embora abundantemente suprido com dádivas e honras mais seletas da sorte, não estava contente nem com sua infantaria nem com sua cavalaria, nem com sua imensa frota nem com sua ilimitada reserva de ouro; por isso, ofereceu um prêmio a quem inventasse uma nova forma de prazer. Foram inventados novos prazeres, porém ele ainda não estava contente, nem jamais o desejo desenfreado realmente encontrará um limite. 
 
4) Marco Túlio Cícero: Disputas tusculanas, livro I, 43
Durior Diogenes, et id quidem sentiens, sed, ut Cynicus, asperius, projici se jussit inhumatum. Tum amici, Volucribusne et feris? Minime vero, inquit; sed bacillum propter me, quo abigam, ponitote. Qui poteris? non enim senties. Quid igitur mihi ferarum laniatus oberit, nihil sentienti? 
 
Minha tradução: Diógenes era mais rude, embora da mesma opinião (de Sócrates), mas, como cínico, mais rude ainda, ordenou que seu corpo fosse jogado em qualquer lugar sem ser sepultado. Ao que seus amigos indagaram: 
O quê? Às aves e às feras?
De forma alguma, ele disse. Coloquem o meu cajado perto de mim, para que eu as afaste”. 
“Como podes fazer isso?”, eles respondem. “Pois estarás privado de sensação.” 
“Que mal, portanto, farão as bestas que me devoram (se estarei) privado de sensação?” 
 
5) Marco Túlio Cícero: Paradoxos dos Estóicos, Paradoxo I, cap. I, 8-9
Quamobrem irrideat si quis vult: plus apud me vera ratio valebit quam vulgi opinio: neque ego umquam bona perdidisse dicam, si qui pecus aut supellectilem amiserit, nec non saepe laudabo sapientem illum, Biantem, ut opinor, qui numeratur in septem; cuius quom patriam Prienam cepisset hostis ceterique ita fugerent, ut multa de suis rebus asportarent, cum esset admonitus a quodam, ut idem ipse faceret, 'Ego vero', inquit, 'facio; nam omnia mecum porto mea.' 10 Ille haec ludibria fortunae ne sua quidem putavit, quae nos appellamus etiam bona. Quid est igitur, quaeret aliquis, bonum? Si, quod recte fit et honeste et cum virtute, id bene fieri vere dicitur, quod rectum et honestum et cum virtute est, id solum opinor bonum.
 
Minha tradução: E assim, mesmo que alguém queira zombar disso, contudo a razão certa valerá mais para mim do que a opinião da plebe: nem eu jamais direi que terá perdido bens, aquele que tiver perdido o rebanho ou a mobília; nem deixarei de louvar, muitas vezes, aquele sábio, Bias, que, como penso, conta-se entre os sete. Quando o inimigo tomou Priene, a sua pátria, e os demais fugiram carregando muito das suas coisas, ao ser exortado por alguém a ele próprio fazer o mesmo, dizia: “Eu, de fato, estou fazendo-o: pois todas as minhas posses carrego comigo”. [9] Decerto, ele não considerava como sua propriedade esses joguetes da fortuna, os quais nós ainda chamamos de “bens”. Alguém perguntará: o que é, então, o bem? Se dizemos, com razão, ser bem feito algo que se faça de forma correta, honesta e com virtude, sou de opinião que somente o que é correto, honesto e com virtude é um bem.

Comentários: 1) "Os sete sábios” (οἱ ἑπτὰ σοφοί) é o epíteto dado a algumas figuras gregas lendárias, que teriam vivido entre 620 e 550 a.C, e que se destacaram não somente pela excelência do caráter e pela agudeza da mente. A lista dos sete varia de acordo com os diferentes autores, mas todos incluem Sólon, Tales, Pítaco de Mitilene e Bias de Priene. Algumas das máximas a eles atribuídas, como “nada em excesso”, “conhece-te a ti mesmo” parece terem inculcado na cultura grega (e depois romana) as noções de submissão, piedade e virtude. Algumas dessas máximas foram inscritas no templo de Apolo em Delfos. 
2) Paradoxa Stoicorum, primeira obra propriamente filosófica de Cícero (ca. 46 a.C.). O texto revela um exame dos princípios da filosofia helenística – especialmente do Estoicismo –, corrente em Roma em meados do século I a.C.; quanto à forma, o texto parece seguir os princípios gerais da dispositio oratoria; daí, os Paradoxos dos Estóicos aparecerem em meio à Oratória de Cícero. 
De fato, o texto se inicia com uma captatio benevolentiae; traz, em seguida, sua experiência pessoal, como uma forma de validação do ponto de vista a ser defendido e como uma forma de expor a res oratoriae; passa, depois disso, para a narratio, elencando o panteão dos grandes nomes da república romana que foram virtuosos sem possuírem riquezas ou viverem uma vida de prazeres; apresenta, então, a refutatio dos argumentos contrários e, finalmente, encerra com uma breve peroratio, na qual o autor reafirma a tese defendida.
 
6) Marco Túlio Cícero: Do Orador, II, 268
Arguta etiam significatio est, cum parva re et saepe verbo res obscura et latens inlustratur; ut, cum C. Fabricio P. Cornelius, homo, ut existimabatur, avarus et furax, sed egregie fortis et bonus imperator, gratias ageret, quod se homo inimicus consulem fecisset, bello praesertim magno et graui «nihil est, quod mihi gratias agas», inquit «si malui compilari quam venire;» (...).
 
Minha tradução: Há também uma alusão arguta, quando uma circunstância obscura e encoberta é esclarecida com uma pequena frase e frequentemente com uma palavra: como, quando Públio Cornélio Rufino, homem, que era considerado avaro e inclinado ao roubo, porém um general respeitado, forte e hábil, agradecia a Caio Fabrício Luscino, de ter-lhe, apesar de inimigo, dado o seu voto para o consulado, sobretudo no momento duma guerra difícil e perigosa, (este) disse: "Prefiro ser roubado a ser vendido."

Comentário: Públio Cornélio Rufino foi um político romano e general do século III a.C. Ele é muitas vezes considerado um filho de Públio Cornélio Rufino, ditador em 334 a.C., mas isso é impossível porque os Fasti Capitolini dizem que seu pai era um certo Gnaeu Cornélio Rufino e seu avô era um certo Públio Cornélio Rufino, provavelmente o ditador (observe o intervalo de 44 anos entre a ditadura de Públio, o Velho, e o primeiro consulado de Públio, o Jovem). Rufino foi cônsul duas vezes e ditador uma vez, este último em ano desconhecido (provavelmente em 275 a.C.). Ele pôs fim à Guerra Samnita em seu primeiro consulado, em 290 a.C., com seu colega Mânio Cúrio Dentato. Nas eleições de 277 a.C., Caio Fabrício Luscino, cônsul no ano anterior, foi adversário de Rufino, mas votou nele mesmo assim, visto que Rufino era o único candidato com gênio militar. Quando Rufino lhe agradeceu o apoio, ou quando o povo perguntou porque ele votou em seu oponente, Fabrício respondeu: “Prefiro ser roubado por um compatriota a ser vendido pelo inimigo [como escravo].” Rufino pegou novamente em armas por causa da vulnerabilidade do inimigo, em seu segundo consulado em 277 a.C., no qual capturou a cidade de Croton e Locri, mas sua reputação sofreu severamente por causa de sua avareza e crueldade. Dois anos depois, Rufino foi expulso do Senado por Fabrício, que era censor na época, quando se descobriu que aquele possuía mais de dez libras de prata. Ele também foi o tataravô do infame ditador Lúcio Cornélio Sulla, e pai de Públio Cornélio Sulla, Flamen Dialis (sumo sacerdote de Júpiter) ca. 250 a.C.

terça-feira, 7 de junho de 2022

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 9: ÚLTIMAS PALAVRAS DE CIRO, O GRANDE, SOBRE A ALMA


Por Francisco José dos Santos Braga

 


Túmulo de Ciro II, em Pasárgada-Irã
 

I. ALGUNS DADOS BIOGRÁFICOS DE CIRO II, O GRANDE

  
[ARAÚJO, 2019, 2-3] inicia seu artigo sobre o império persa e o pensamento político clássico nos seguintes termos: 
Ao celebrar, em outubro de 1971, os dois mil e quinhentos anos do Império Persa, Mohammad Reza Pahlavi, então xá do Irã, regozijava-se na ignorância dos anos vindouros. Envolvendo o país em cerimônia, com pompa e circunstância, endereçou emocionado discurso a Ciro, o Grande, após colocar-se de pé diante da tumba do fundador (Curtis, 2005, p. 257). Em Pasárgada, o monarca deu início às festividades. Já em Persépolis, escolhida para sediar uma parada militar comemorativa, o rei instalou um jardim de rosas e ciprestes à moda francesa. Banqueteando juntos, os convidados ilustres, chefes de Estado, chefes de governo e suas comitivas, deliciavam-se ao sabor do caviar iraniano e, de forma geral, aproveitavam uma estadia luxuosa. Nas palavras de Orson Welles, aquele não era um acontecimento qualquer, mas “uma celebração de vinte e cinco séculos” (Kadivar, 2002). O evento deu ensejo a diversas leituras ideológicas e tornou-se instrumento e combustível de propaganda política. (...)
Ciro II, o Grande (600-530 a.C.), mencionado no trecho acima e homenageado em 1971 pelo xá do Irã, rei da Pérsia, foi uma figura das mais celebradas na Antiguidade e mencionada na Bíblia como um enviado de Deus para libertar o povo hebreu do degredo e na Literatura Clássica greco-latina. Heródoto (484-425 a.C.) foi um dos primeiros a registrar historicamente esse rei; Xenofonte (430-355 a.C.) tornou-o imortal na sua Ciropédia (ou Educação de Ciro), uma biografia onde o exalta como exemplo de liderança. 
Em certa ocasião, o guru da Administração Peter Drucker chamou a Ciropédia de primeiro e melhor manual de Administração jamais escrito. Por oportuno, sugiro que, para seus insights, diretores e gerentes de empresas primeiramente voltem seu olhar para a literatura clássica; talvez, desta forma, o mundo se veja livre de um monte de livros de Administração e, quiçá, de administradores pouco capazes. 
Na sua Ciropédia, Xenofonte "narra" o que Ciro supostamente teria dito no seu leito de morte a seus filhos. Marco Túlio Cícero, no final de seu tratado Cato Maior De Senectute (Catão, o Antigo, sobre a Velhice), fez uma tradução para o latim de parte da fala do rei persa, em que trata da imortalidade da alma. 
A presente postagem de "Recupere seu Latim" submete à apreciação do leitor a minha tradução portuguesa para a versão latina de Cícero, autor latino que incluiu, quase no fim de seu tratado, um trecho do texto grego de Xenofonte.
 
Há ainda o seguinte ponto a observar: resumidamente, Cícero, a exemplo de Platão, preferiu a forma do diálogo à do ensino, em quase tudo o que escreveu sobre eloquência e filosofia. Mas existem várias maneiras de escrever um diálogo. Assim, no tratado sob o título CATÃO, O VELHO, SOBRE A VELHICE, Cícero, dirigindo-se a seu melhor amigo Tito Pompônio Ático, relata-lhe um diálogo que supõe ter ocorrido entre Catão ¹, Cipião ² e Lélio ³. Esses três interlocutores falam cada um por sua vez, e o que dizem é precedido de seu nome, como nos diálogos de Luciano, como nas tragédias e comédias. Esse método é certamente o mais conveniente: dispensa repetir as fórmulas usuais, "disse", "continuou", "respondeu", cada vez que um interlocutor particular toma a palavra. Em suma, no tratado sobre a Velhice, Cícero põe em cena seus atores, deixa-os agir e falar, e se apaga inteiramente. 
 
[BARAZ, 2012, 173-4] faz uma ponderação interessante a respeito do tratado de Cícero, que acho importante resumir aqui. Ela entende que Cícero abre o prefácio ao tratado De Senectute com uma deferência ao seu homenageado, Tito Pompônio Ático (109-32 a.C.), seu melhor amigo, desde sua juventude até sua morte. Até aqui não há nada de especial. O que constitui novidade é que Cícero utiliza uma série de citações modificadas dos Annales X de Quinto Ênio (239-ca. 169 a.C.), ou seja, os fragmentos de número 195, 196 e 197. De Senectute é o único tratado de Cícero que começa com uma citação, uma prática quase só reservada para o menos formal gênero de cartas. A citação permite entrever que Cícero assim mostra que vai explorar uma importante fonte de validação, que é o passado, como atestam aqui as utilizações feitas por ele  de citação dos Anais de Quinto Ênio e de trecho da Ciropédia de Xenofonte. Que melhor jeito de começar uma obra literária do que estabelecendo-se como um tributo à única mais imponente e mais romana obra até então, os Anais de Quinto Ênio? A familiaridade íntima do autor com aquele texto arcaico atesta a linhagem da obra atual: De Senectute provém do que é mais venerável na literatura romana, e Cícero reivindica um lugar para si mesmo naquela tradição. O passado particular que Cícero escolhe para invocar também não é acidental: as realizações da nobreza romana celebradas por Ênio devem ter sensibilizado a audiência aristocrática de Cícero, que na época vive com vergonha sob uma ditadura altamente irregular. 
 
 
II. "CATÃO, O ANTIGO, SOBRE A VELHICE", por Marco Túlio CÍCERO 
 
XXII. 79 Apud Xenophontem autem moriens Cyrus maior haec dicit: ‘Nolite arbitrari, O mihi carissimi filii, me, cum a vobis discessero, nusquam aut nullum fore. Nec enim, dum eram vobiscum, animum meum videbatis, sed eum esse in hoc corpore ex eis rebus quas gerebam intellegebatis. Eundem igitur esse creditote, etiamsi nullum videbitis. 
80 Nec vero clarorum virorum post mortem honores permanerent, si nihil eorum ipsorum animi efficerent, quo diutius memoriam sui teneremus. Mihi quidem numquam persuaderi potuit animos, dum in corporibus essent mortalibus, vivere, cum excessissent ex eis, emori, nec vero tum animum esse insipientem, cum ex insipienti corpore evasisset, sed cum omni admixtione corporis liberatus purus et integer esse coepisset, tum esse sapientem. Atque etiam cum hominis natura morte dissolvitur, ceterarum rerum perspicuum est quo quaeque discedat; abeunt enim illuc omnia, unde orta sunt, animus autem solus nec cum adest nec cum discedit, apparet. Iam vero videtis nihil esse morti tam simile quam somnum. 
81 Atqui dormientium animi maxime declarant divinitatem suam; multa enim, cum remissi et liberi sunt, futura prospiciunt. Ex quo intellegitur quales futuri sint, cum se plane corporis vinculis relaxaverint. Qua re, si haec ita sunt, sic me colitote,’ inquit, ‘ut deum; sin una est interiturus animus cum corpore, vos tamen, deos verentes, qui hanc omnem pulchritudinem tuentur et regunt, memoriam nostri pie inviolateque servabitis.’ 
 
 
III. MINHA TRADUÇÃO DO LATIM PARA O PORTUGUÊS 
 
XXII. 79 Apud Xenofonte , Ciro, o Grande, no instante em que morria, disse estas palavras: “Não creiam, ó meus caríssimos filhos, que, após eu ter deixado vocês, não estarei em nenhum lugar nem existirei mais. Mesmo quando eu estava em sua companhia, vocês não viam minha alma, mas vocês sabiam de sua presença no meu corpo pelos atos que eu praticava. Então, acreditem que continue sendo a mesma, mesmo que vocês não a vejam. 
80 Os grandes homens não seriam honrados, se suas almas não atuassem em nós para que sua lembrança permanecesse em nós por mais tempo . Para mim, nunca pude persuadir-me de que as almas  vivas enquanto estão ligadas a corpos mortais deixem de existir quando elas os abandonem; nem tampouco posso crer que a alma perca toda inteligência quando tenha deixado um corpo não inteligente; prefiro crer que no momento em que, liberta de toda união com o corpo, ela fique pura e íntegra em sua essência e então passe a ser sábia. E também, quando o organismo humano é dissolvido pela morte, vê-se claramente aonde vai cada um dos outros elementos constituintes: pois todos voltam ao lugar donde provieram ; porém, só a alma é invisível, tanto em vida, quanto na morte. Vocês podem constatar também que nada se assemelha tanto à morte quanto o sono. 
81 Ora, as almas dos que dormem manifestam mais claramente sua natureza divina: pois, descontraídas e livres (dos grilhões do corpo), elas prevêem muitas coisas futuras . Daí se compreende quais sejam os fatos futuros quando se soltarem inteiramente dos vínculos do corpo. Por isso, se for assim, honrem-me então como um deus; se, pelo contrário, minha alma tiver que morrer juntamente com meu corpo, vocês entretanto por temor dos deuses que vêem e governam esta beleza universal, guardarão de nós uma memória com afeto e respeito. Tais foram as palavras de Ciro às portas da morte (...)”
 
 
IV. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
 
¹  Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), conhecido por Catão, o Velho, ou CATÃO, O CENSOR. Em Roma, o censor tinha o dever não só de fazer o censo do povo, mas também vigiava os costumes, tarefa que Catão cumpriu com severidade incomum, sobretudo em face da influência helênica, que, aos seus olhos, desvirtuava a sociedade romana. Ele mesmo levou uma vida austera com conduta irrepreensível. Era opositor dos Cipiões, tradicionalista e a favor do costume nacional contra as inovações helenizantes, que para ele corrompiam a vida política e moral dos romanos. Cícero, usou o atributo Velho para Catão para distinguir de Catão mais jovem (conhecido por Uticense). 
Catão, o Censor, passou à história de Roma como o defensor mais ferrenho da latinidade mais genuína. Catão também foi orador notável. 
Segundo várias fontes antigas, depois de ter participado de uma embaixada a Cartago em 157 a.C. e visto a prosperidade dos arqui-inimigos dos romanos, acabava todas as suas orações no Senado — não importava de que tratassem — dizendo algo como “Cētĕrum cēnsĕō Carthāgĭnem esse dēlendam”, ou seja ‘De resto, penso que Cartago deve ser destruída’. Cartago foi efetivamente destruída em 146 a.C., na 3ª Guerra Púnica, dois anos após a morte do Censor. 
A obra ‘Sobre o cultivo do campo’ de Catão é a mais antiga obra em prosa da literatura latina que nos chegou inteira.
² Cipião Emiliano, também chamado CIPIÃO AFRICANO MENOR, após a destruição de Cartago em 146 a.C.
³ Caio LÉLIO, cônsul em 140 a.C. A ele Cícero dedicou o tratado Sobre a Amizade.
Xenofonte: Ciropédia ou A Educação de Ciro, livro VIII 7, 17-22.
Aqui se manifesta a crença de que as almas de pessoas famosas de alguma forma interagem com os vivos a fim de que mantenham viva sua memória por mais tempo.
Provavelmente Cícero esteja querendo dizer que os elementos dos quais se compõe o corpo (água, fogo, ar e terra)  retornam a suas respectivas formas.
O conceito de que o futuro possa ser revelado em sonhos de um corpo dormindo, donde se recomenda nunca acordar alguém subitamente enquanto a alma dela pode ainda estar vagando. 

Estátua de mármore do filósofo romano Cícero, Palácio da Justiça (Roma, Itália). Foto: Cris Foto / Shutterstock.com


 
V. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

 

ARAÚJO, M. T. M. (2019). O império persa e o pensamento político clássico: um panorama. Brasília: Archai 25, e02503. 
 
BARAZ, Yelena: A Written Republic: Cicero's Philosophical Politics, Princeton: Princeton University Press, 2012, 252 p.
 
NATIVIDADE, E. S.: Os Anais de Quinto Ênio: estudo, tradução e notas,  dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, para obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas, São Paulo, 2009, 255 p.
 
PEREIRA, João Félix: Xenofonte: CIROPEDIA, Rio de Janeiro: W.M. Jackson Inc., 1956 (e-book de 2006 por eBooksBrasil)  
 
The Latin reading blog: Cicero, de Senectute: Cyrus the Great on the soul