quinta-feira, 2 de setembro de 2010

2010 - ANO CHOPIN < < < Parte 11 > > > "CHOPIN FOI UM HOMEM RELIGIOSO", entrevista com o musicólogo Mieczysław Tomaszewski


Por Francisco José dos Santos Braga

 


Nesta Parte 11 da série de ensaios dedicados a 2010 - ANO CHOPIN, trago uma célebre entrevista que Krzysztof Tomasik fez com um dos maiores musicólogos poloneses atuais, Mieczysław Tomaszewski, como parte das homenagens que o Blog do Braga presta ao 200º aniversário do nascimento do grande pianista e compositor polonês Fryderyk Chopin.

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Tomaszewski é musicólogo e editor polonês. Professor na Academia de Música em Cracóvia, chefe do Departamento da Teoria e Interpretação da Obra Musical. Ele representa a corrente humanista dentro da musicologia. Estudou com Stefania Łobaczewska na Universidade Jaguelônica no período de 1954-1959, tendo obtido o título de PhD na Universidade Adam Mickiewicz em Poznań por sua tese intitulada A produção de F. Chopin e sua recepção (1984).

A pesquisa de Tomaszewski incide sobre a música do Romantismo e a corrente romântica na música polonesa contemporânea, sobre a teoria da canção européia e sobre a afinidade entre as artes. No centro de seus interesses está a música de Fryderyk Chopin. Além de sua pesquisa acadêmica sobre Chopin – que culminou na sua síntese que constituiu um marco: Chopin. Homem, Obra, Ressonância (Poznań 1998), – ele é também o autor de livros populares e de programas de rádio sobre Chopin.

Foi o editor científico de várias séries editoriais, incluindo 5 volumes de Documenta Chopiniana, 14 volumes de Chopin Library (1970-1990), Library of Miniature Scores, Musica Viva. Também publicou escritos sobre ontologia, análise e interpretação da obra musical, a relação entre texto e música, teoria e história da canção, e Chopin.

Entre suas outras realizações estão um filme biográfico sobre Chopin (TVP2/Arte, 1997), um ciclo de 44 programas de rádio Fryderyk Chopin. Obras Completas (Radio Polonesa 2, 1999-2000) e a primeira enciclopédia multimídia dedicada a um único compositor: Fryderyk Chopin. Vida de um Artista (1ª versão 1990, 2ª versão 2000).

Tomaszewski foi conferencista sobre Chopin e a música polonesa em Paris, Dijon, La Châtre (Nohant), Valldemossa, Mariánské Lázně, Viena, Graz, Gamming, Dresden, Leipzig, Hamburgo, Essen, Düsseldorf, Chemnitz, Aarhus, Vilnius, Bratislava, Londres e Nova Iorque.

Em 1999, Tomaszewski recebeu o Prêmio da Fundação da Ciência Polonesa, bem como o Prêmio de Jan Długosz Publishers pela sua tese sobre Chopin denominada Chopin. Homem, Obra, Ressonância. Em 2000, ele foi também homenageado pela Fundação Internacional Fryderyk Chopin pelo seu trabalho de toda uma vida sobre a produção e o caráter de Chopin, com especial destaque para o seu livro Chopin. Homem, Obra, Ressonância.
Hoje atua na Academia Polonesa Chopin e é membro do Conselho de Programa do Instituto Fryderyk Chopin.


Abaixo tenho o prazer de apresentar, na íntegra, a entrevista concedida pelo musicólogo Tomaszewski. Antes, porém, quero expressar aqui minha gratidão ao Conselho Editorial da Revista Polonicus, na pessoa do Pe. Dr. Zdzisław Malczewski SChr, por ter-me permitido a reprodução, no Blog do Braga, da célebre entrevista que figurou na edição do Ano I - 1/2010, p. 135-148 da referida revista.


CHOPIN FOI UM HOMEM RELIGIOSO

Krzysztof TOMASIK *

Chopin foi um homem religioso! Está convencido disso o prof. Mieczysław Tomaszewski, um eminente musicólogo polonês e um dos melhores conhecedores da vida e da obra de Frederico Chopin. O mundo está comemorando agora os duzentos anos de nascimento do genial compositor.

Na opinião do prof. Tomaszewski, um dos argumentos principais em favor da profunda religiosidade do compositor é o parecer da sua companheira de vida por longos anos George Sand, a qual reconheceu que Chopin estava “refugiado no catolicismo”. Além disso, o musicólogo cita a opinião de pessoas próximas a Chopin – entre as quais Franz Liszt, que escreveu a respeito dele definindo-o como uma pessoa “profundamente religiosa e sinceramente apegada ao catolicismo”.

Na entrevista que se segue, o prof. Tomaszewski traça o perfil espiritual de Chopin, fala das inspirações e do significado da sua obra e tenta ainda responder à pergunta por que ele não compôs uma obra sacra.

Segue-se o texto da entrevista.

O que é a música?
A música é um milagre, um milagre, um milagre... Um fenômeno difícil de explicar, mas com todas as marcas de um fenômeno miraculoso, que encanta, proporciona alegria, emoção... É simplesmente um milagre!

Que lugar ocupa então nesse “milagroso universo musical” a música de Chopin?
Eu lhe dediquei apenas sete livros. Ocupa um lugar preeminente. A introdução da valorização, desse ponto de vista, é algo muito difícil e perigoso. Muitas vezes me perguntam que disco eu levaria comigo, para a proverbial ilha deserta, com a música de Bach, Mozart, Chopin ou Beethoven. A resposta a esse tipo de pergunta é perigosa, porque se pode então, na própria espontaneidade, ser indecente, como por exemplo Frederico Nietzsche, que escreveu em seu Ecce Homo que por Chopin estava pronto a entregar todo o restante da música. Isso é incrível... Por ele estava pronto a entregar Bach, Mozart, Beethoven, Brahms! Ou vejamos Julian Tuwim, o qual disse que, se tivesse de escolher, entregaria Mickiewicz com desespero, Słowacki com pesar, e dez Krasinskis – por um único Chopin. Por isso é difícil falar do seu lugar no universo musical. No meu sentimento de beleza, na música haverá lugar para Chopin, Mozart, Beethoven, Bach e Schubert, Schumann, Brahms ou Mahler. Esse é o meu Olimpo musical.

Como o senhor imagina a figura exterior de Chopin?
Eu não preciso imaginar a figura exterior de Chopin. Vejo-o em dezenas de imagens que a sua época deixou, desde a idade juvenil, em 1826, até 1829, quando foi retratado por Eliza Radziwill. Depois, ainda em 1929 ele foi maravilhosamente retratado por Ambrósio Miroszewski. Há também alguns retratos a respeito dos quais não sabemos se eles retratam Chopin ou não. Mas certamente o melhor é o retrato de Eugène Delacroix, que nos mostra um Chopin maduro, como alguém que na rua não podia deixar de chamar a atenção de ninguém. O retrato de Delacroix reflete perfeitamente a profundeza dos sentimentos e dos pensamentos do compositor. Ele foi ali retratado num momento especial – de enlevo sentimental em relação a George Sand. Depois temos alguns retratos de salão, como os de Ary Scheffer, Antônio Kolberg, até chegarmos aos daguerreótipos e à única fotografia, de Louis-Auguste Bisson.

Ele era um homem apresentável?
Era um homem de estatura mediana, com cerca de 170 centímetros de altura, sempre magro e de cabelos loiros. Quanto à cor dos olhos, temos pronunciamentos diversos. Fala-se que seus olhos eram de um cinza azulado.

Qual dos testemunhos das pessoas contemporâneas de Chopin pode ser reconhecido como o melhor?
Um dos melhores retratos de Chopin é fornecido por Franz Liszt em sua monografia, uma das primeiras, publicada em Paris em 1852, na qual ele descreve o compositor com entusiasmo. De todas as descrições preservadas resulta que ele irradiava benevolência diante das pessoas. E realmente ele foi assim. Se alguém diz que ele era sobretudo uma pessoa dos salões, isso é falso na medida em que ele frequentava os salões em razão da sua profissão. Ele tocava nesse ambiente e pelos concertos apresentados nos salões ganhava dinheiro, da mesma forma que ganhava dinheiro dos seus alunos. Mas, permanecendo nos salões, ele não assumiu nada do ouropel desses salões. Existe um testemunho engraçado do compositor suíço Stefan Heller, que, ao fazer a Robert Schumann um relato da vida parisiense da época, escreveu: “Chopin se afunda na lama dos salões, mas nada disso adere a ele, que escreve com beleza e profundidade”. Trata-se de um excelente testemunho. Chopin introduzia nos salões um tom elevado, a sublimidade e os ideais. Uma prova disso são as palavras de Solange, filha de George Sand, que chama a atenção para o fato de que nos anos 30 do século XIX, quando florescia o salão de sua mãe, em 1836 surgiu nele pela primeira vez Chopin. Lembra ela que, a partir do momento em que nele entrou Chopin, tudo ali mudou. A sua presença eliminou pessoas casuais e vulgares. A partir de então o salão tornou-se um lugar santo, um lugar de conversas sérias, no qual era praticada a arte elevada. Ali Sand lia à noite o que havia escrito pela manhã, e Chopin apresentava as suas novas composições.

Parece que Chopin não gostava muito de se apresentar em grandes salas de concertos...
É difícil dizer se isso realmente acontecia. Chopin iniciou a sua carreira a partir de concertos públicos. Em 1830, em Varsóvia, antes de viajar apresentou na primavera dois, e no outono um concerto. Naquela ocasião, para a apresentação do jovem pianista na Ópera de Varsóvia vieram 700 a 800 pessoas, que o aplaudiram com entusiasmo. Na mesma oportunidade escrevia resenhas entusiásticas a respeito da sua música Maurycy Mochnacki. Essas resenhas precederam as opiniões de Schumann, que disse: “Senhores, tirai os chapéus, aqui está um gênio”. Foi Mochnacki quem anteriormente o havia chamado de gênio, mas, mais importante que essa definição era a sua constatação de que aquilo que tocava Chopin era a “verdade”, visto que nela não existe ênfase nem páthos.

Chopin iniciou a sua carreira como um pianista que compunha. Fez concertos em Viena e Paris. Na capital da França apresentou o primeiro concerto em fevereiro de 1832, e imediatamente se tornou um grande sucesso. François-Joseph Fétis, que na época era o “papa” dos críticos musicais, escreveu que havia chegado um jovem pianista de Varsóvia, que em tudo que apresentava, na melodia, na harmonia, no ritmo, na composição pianística era original.
Durante os primeiros cinco anos em Paris, Chopin foi um pianista concertante. Em 1836 realizou-se um concerto que não teve sucesso e que ele mesmo havia organizado na Ópera de Paris em prol dos emigrantes poloneses pobres. Ele realizou o seu concerto de piano. No entanto, para as condições do salão da Ópera, tocou baixo demais, e a apresentação não causou uma grande impressão. Já naquela época estava amadurecendo nele alguém que, de um pianista concertante, que compõe música, surge um compositor, que de vez em quando faz concertos. Ele se tornou um pianista de câmara e apenas de vez em quando, a pedido de amigos, dava concertos no Salão de Pleyel nos anos 1841, 1842 e 1848. Numa resenha de um desses concertos Liszt escreveu que esteve presente nele a elite francesa do talento – os artistas, da beleza – as mulheres, do dinheiro – os banqueiros e os políticos. Foi um sucesso incrível. O poeta alemão Heinrich Heine, na sua correspondência de Paris a jornais alemães, e outros escreviam que havia excelentes pianistas, como Liszt ou Thalberg, mas que havia um que sobrepujava a todos eles, e este era Chopin. Nos rankings dos pianistas ele era sempre o primeiro, ou melhor que os outros. Balzac disse certa vez que quem não ouviu Chopin não pode falar de Liszt. “Chopin é o anjo, e Liszt é o demônio” – disse o escritor francês. Também durante a turnê pianística de Liszt e Thalberg discutia-se quem era melhor, e escrevia-se que a resposta só podia ser uma – Chopin. Nos anos 40 do século XIX ele já não queria apresentar-se em grandes salas de concertos. Ele sentia-se bem diante do público de câmara.

Os concertos lhe garantiam a independência financeira?
Os concertos lhe proporcionavam também grandes sucessos financeiros. Numa carta a um primo seu, Sand escrevia que num único concerto, com os golpes das duas mãos, por duas horas Chopin havia recebido 6 mil francos e que poderia nadar em ouro durante anos inteiros.

Como era seu caráter? Era sanguíneo ou colérico?
Era sem dúvida um sanguíneo. Reagia à realidade de forma extremamente viva, espontânea e transparente. Possuía também um excelente talento de ator e parodista, para o que contribuía a sua elevada cultura pessoal, a qual fazia com que fosse considerado um conde ou príncipe. Chopin tinha um comportamento diferente no ambiente oficial, onde se apresentava como um príncipe, e entre os seus amigos, sobretudo poloneses, quando era inteiramente ele mesmo. Famosos eram os seus encontros no Hotel Lambert, em Paris, com a família Czartoryski, quando passava horas inteiras tocando para as pessoas que se divertiam. Também durante as suas estadas em Nohant ele montava um burrinho, ao lado de Sand, que montava um cavalo, o que devia ser um espetáculo interessante. Gostava de jogar bilhar com os convidados e xadrez com a Solange, com a qual sempre jogava de maneira a perder. Ali também, em companhia de Pauline Viardot, participava de festas e diversões populares. E não havia nisso nenhuma bipartição de personalidade. Nos salões ele cumpria a profissão de pianista, e com os seus companheiros era inteiramente ele mesmo.

Como as mulheres se comportavam diante de Chopin?
No relacionamento com as mulheres Chopin era tão sensível que não sou capaz de comparar com ele qualquer outro compositor. Como falam a respeito dezenas de testemunhos, ele reagia à beleza das mulheres vivamente e com elevada cultura. Pode-se dizer que as suas reações eram platônicas. Alguém até o acusou de conquistador, do que ele ria numa carta escrita a um amigo. Reagia vivamente à beleza e aos fluidos procedentes das mulheres. Por outro lado, contava com a adoração do lado do belo sexo. Lembremos que três quartos dos seus alunos eram constituídos por mulheres, entre as quais estavam as mais belas damas da Europa. Sand certa vez escreveu com bastante malícia que durante uma noite ele se havia apaixonado por três mulheres. Mas ele não se ofendia com isso e dizia que esse tipo de opinião era permitido a uma autora de romances.

Ele se realizou no amor?
O seu amor por George Sand certamente foi completo. Da mesma forma, pode-se falar de um amor completo, no início dos anos 30 do século XIX, em relação a Delfina Potocki. Ela sempre se encontrava junto a Chopin nos momentos mais importantes da sua vida, sobretudo na hora da morte. Durante a sua agonia ela lhe cantava as suas canções prediletas. Demonstrou-lhe um sentimento que perdurou até o fim da vida. Chopin escreveu a última das suas canções para as palavras de Zygmunt Krasinski, que havia recebido de Delfina – “Das montanhas de onde traziam”. Ele transcreveu essa canção no álbum de poesias dela e assinou “Nella miseria”. Eram palavras da Divina Comédia, de Dante: “Não existe dor mais pungente do que lembrar os dias felizes na desdita”. Essas palavras de Chopin comprovam que a bela amizade de Chopin com Delfina permaneceu até o fim.

Mas com George Sand...
O outro amor realizado foi George Sand. Foi uma espécie de resposta ao sentimento não realizado em relação a Maria Wodzinski, da qual foi noivo confidencial, mas infelizmente isso não resultou em nada. Sand principalmente se apaixonou pela sua música e pela sua personalidade. Lutou por ele encarniçadamente. Por causa dele ela usava roupas de cores branca e vermelha e travava amizades com poloneses, entre os quais Mickiewicz, para estar perto dele. No final conquistou o seu coração. Ela escreveu a esse respeito a um amigo de Chopin, Adalberto Grzymała, na qual argumenta que ele não estaria feliz numa união com a Wodzinski. Explodiu mutuamente não apenas um ardente sentimento, mas a paixão. Mas isso acabou durante uma estada na Maiorca, quando Chopin teve de regressar a Paris após uma violenta crise de tuberculose. O relacionamento deles durou alguns anos. Mais tarde, da parte de Chopin era o amor, e da parte de Sand – a amizade. Ela cuidou dele como uma enfermeira, nisso esforçou-se ao máximo e sob a influência de Chopin tornou-se uma outra pessoa. Mas, apesar de ter acabado o relacionamento sentimental, na minha opinião Chopin nele se realizou. Vejamos que durante os anos desse relacionamento, no período 1839-1847, ele compôs quase todas as suas obras mais geniais. Essas obras eram compostas na hospitaleira residência de Nohant. E, seja qualquer coisa que se diga a respeito de George Sand, não nos podemos esquecer de que foi ela que lhe possibilitou isso. Certamente ela o motivava com a fascinação que demonstrava diante da sua arte. Numa das suas cartas ela escreve que Chopin compôs três novas mazurcas, que valiam mais que todos os romances do século XIX. Era uma afirmação exagerada, mas sincera. Em suas memórias – História da minha vida – Sand escreveu a respeito de Chopin as mais belas palavras que era possível escrever, dizendo que ele era o mais maravilhoso artista que havia encontrado em sua vida. Mas foi também nessa carta que ela escreveu uma frase espantosa: “Uma coisa não lhe posso perdoar – o seu apego ao catolicismo”.

Justamente... Ele foi uma pessoa religiosa? Há várias opiniões a esse respeito, inclusive a de que era indiferente quanto à religião...
Não apenas se falava do seu indiferentismo religioso, mas até se escrevia que era um ateu. Opiniões desse tipo surgiram já no final do século XIX. Escreveu a esse respeito Fernando Hoesick na monografia Chopin – vida e obras. Na opinião desse autor, já o próprio relacionamento com George Sand comprovava que ele não era religioso. Eles simplesmente viviam juntos sem serem casados. Naturalmente, em razão disso Chopin tinha remorsos de consciência, pois de outra forma Sand não teria escrito a respeito daquele “apego ao catolicismo”. Depois eram apresentados outros argumentos. O filósofo religioso André Nowicki, em seu texto A religião de Frederico Chopin, conta que nas cartas de Chopin a palavra “Deus” aparece setenta vezes e que ele a utilizava apenas no sentido convencional, por exemplo: “Queira Deus que faça bom tempo”. Então eu pesquisei como isso se apresentava na realidade e posso afirmar que todos que acusam Chopin de irreligiosidade – não sei por que razões – fecham os olhos aos fatos. Hoesick devia conhecer a opinião de Sand a respeito do seu “apego ao catolicismo” e não sei porque ele não quer reconhecer que afinal essa afirmação é o argumento principal e suficiente a favor da religiosidade de Chopin. Um outro argumento é também a utilização da palavra “Deus” em setenta ocasiões. Chopin se utiliza dela diversas vezes justamente de forma não convencional, por exemplo na carta a um amigo: “Que Deus te conduza, que eu aqui vou rezar”, ou nas palavras dirigidas a um jovem pianista: “Que Deus abençoe o teu trabalho”. Vamos adiante. Será que uma pessoa religiosamente indiferente escreveria “Hoje é Quarta-Feira de Cinzas”? Expressões desse tipo e outras semelhantes podem ser encontradas nas cartas de Chopin de Viena, Paris e outras localidades. Será que um ateu escreveria que num determinado dia se comemora uma festa da Igreja? Para assim escrever, é preciso ser uma pessoa verdadeiramente crente.

Além disso, temos ainda numerosos testemunhos da religiosidade de Chopin procedentes das pessoas dele mais próximas...
Sem dúvida. Vejamos a monografia de Liszt, Chopin, de 1852, na qual ele o descreve como uma pessoa “profundamente religiosa e sinceramente apegada ao catolicismo”. Outros testemunhos provêm de um outro católico praticante, que era Eugène Delacroix. Anteriormente, numa das suas cartas ao amigo Tito Woyciechowski, de 1828, Chopin havia escrito: “Há uma semana nada tenho composto, nem para os homens nem para Deus”. Como então devem ser entendidas essas palavras num compositor que não compôs nenhuma obra religiosa?

Justamente. Por que ele não compôs nada desse tipo? Será que era uma questão do estilo, da moda daquela época?
Ao contrário! Naquele tempo existia a moda de escrever obras religiosas. Para o fato de Chopin não ter composto obras sacras contribuíram duas questões: ele tinha um profundo sentimento do próprio valor, conhecia os seus limites criativos e era marcado pela modéstia. Não entrava em áreas em que sentia que não era competente. Escolheu como seu instrumento o piano e ele se sentia melhor compondo justamente para esse instrumento. Era uma escolha da sua vida. Chopin não apenas não escreveu uma composição religiosa, mas, por exemplo, não compôs uma ópera, apesar das pressões, por exemplo, do seu mestre José Elsner. Além disso, é uma característica maravilhosa dele não ter composto profissionalmente. Ele compunha para expressar a si mesmo, e por isso encontrou o instrumento que a ele melhor se adaptava. Numa das suas cartas ao amigo Woyciechowski escreveu que “eu digo ao piano o que muitas vezes gostaria de dizer a mim mesmo”. Também Sand escreveu que Chopin era fechado para o exterior, não admitia ninguém em seu santuário e entregava todo o seu interior à música. O característico é que tanto Sand como Liszt escrevem da inacessibilidade ao interior de Chopin. No entanto ambas essas pessoas não sabiam que Chopin se abria sobremaneira, o que acontecia nas suas cartas aos familiares e aos amigos poloneses. Basta lembrarmos a sua correspondência com o amigo Woyciechowski, com João Matuszynski ou com o Diário de Stuttgart. Neste último aparecem palavras semelhantes ao famoso trecho da Grande Improvisação de Mickiewicz: “Ó Deus, Tu existes e não te vingas? Não Te são suficientes ainda os crimes moscovitas – ou Tu mesmo és um moscovita?”

Como compositor, Chopin foi mais intuicionista ou racionalista?
Janusz Ekiert disse certa vez: “Chopin tinha a cabeça nas nuvens, mas andava firmemente pela terra”. “Pela terra” é a sua educação iluminista e clássica alcançada sob a supervisão do pai, Nicolau Chopin, no Liceu Varsoviano de Bogumil Linde e José Elsner. Ele obteve uma educação racional, iluminista. Mas, por influência da mãe e de amigos da casa como Witwicki e Casimiro Brodzinski, moldou-se nele um sentimento romântico e religioso. Graças a isso, ele se tornou o mais eminente representante do Romantismo na música. Paradoxalmente, ele era um romântico que negava a maioria das teses fundamentais daquela época. Não se ligava com a Idade Média. Para Chopin, o fantástico não dominado pela forma é inadmissível. Não existe nele também a ligação entre a palavra e a música – as canções são marginais em sua criatividade. A seguir, percebamos em Chopin a falta de obras programáticas, como ocorre com Heitor Berlioz ou Liszt. Mas, apesar da falta desses traços, Liszt escreveu em sua monografia que Chopin foi o líder da escola romântica.

Há em Chopin muitos outros paradoxos desse tipo...
Igualmente paradoxal é o seu relacionamento com o heroísmo, o patriotismo e a Pátria.

Junto a seus contemporâneos ele tinha a fama de um “pianista e compositor político”...
O patriotismo despertou em Chopin muito vivamente em razão da amizade com Mochnacki já em 1829. Em 1830 ele compõe Festa, um ano depois O guerreiro e a Polonaise em lá bemol maior. Na véspera do Levante de Novembro [de 1830] ele viaja a Viena. Esse fato se transformou para ele num grande trauma, visto que a maioria dos seus amigos de diversas formas participou desse levante. Portanto, além do trauma na esfera amorosa, percebe-se em Chopin o trauma na esfera patriótica. Jarosław Iwaszkiewicz chamou a atenção para o fato de que em razão desse trauma houve em Chopin uma “ruptura”, que nos deu a sua grande arte. Isso justamente é um paradoxo. Ele escreve músicas sem nenhuma dedicatória, p. ex. A Batalha de Ostrołęka ou Sobieski às portas de Viena. Embora tivesse permanecido na companhia de Czartoryski, Niemcewicz ou Mickiewicz, não compôs nenhuma obra com título patriótico, mas, apesar disso, todos sentem em sua música o polonismo e o patriotismo. E não apenas nas polonaises e nas mazurcas. Já Liszt escreveu que o polonismo da música de Chopin não consiste no ritmo das mazurcas ou das polonaises. Na minha opinião, isso acontece porque Chopin baseou-se não apenas no folclore, mas também em canções polonesas populares. A essência da música de Chopin não é apenas expressa muito bem pelas palavras de Cyprian Kamil Norwid: “E havia nisso a Polônia – desde o zênite da Oniperfeição da história”. Escreveu da mesma forma o discípulo de Liszt e Chopin, Wilhelm Von Lenz, que em 1872 publicou o livro Grandes virtuoses do piano do nosso tempo conhecidos pessoalmente: “Ele é o único pianista político do nosso tempo”. Uma prova do patriotismo de Chopin é também a recusa da prorrogação do passaporte russo, apesar das súplicas do pai e dos numerosos concertos em prol dos compatriotas. Numa nota de falecimento Berlioz escreveu que apenas os poloneses sabem onde foi parar a fortuna de Chopin. Recordemos que ele era um dos mais bem pagos pianistas e professores de piano, uma pessoa rica, após cuja morte verificou-se que não havia ficado dinheiro algum. Em toda resenha escrevia-se a respeito de Chopin como um polonês, a respeito da sua música polonesa ou mesmo – como o definiu Balzac – que ele era “mais polonês que a Polônia”.

E “elevou o popular à humanidade”, para novamente citar Norwid...
Chopin mostrou que não é preciso compor música religiosa, assinar as suas composições – como fazia Haydn – “Ad maiorem Dei gloriam” – “Para a maior glória divina”, a fim de compor verdadeiramente para a glória de Deus, para repetir mais uma vez as suas palavras: “Não compus nada para os homens nem para Deus”. Para ter a marca divina, a música não precisa possuir em seu nome a denominação de “religiosa”. Chopin compunha por estímulos humanos para as pessoas, nunca levado pelo espírito romântico do egotismo. Após compor uma das suas obras-primas, a Fantasia Op. 49 – escreveu: “Hoje concluí a Fantasia – o céu está lindo, mas o meu coração está triste – mas não faz mal. Se fosse de outra forma, talvez a minha existência não fosse útil a ninguém. Escondamo-nos para depois da morte”. Essas palavras são uma prova de que o ideal do serviço era o objetivo e o sentido da sua existência.

Parafraseando as palavras de Gombrowicz: “Chopin foi um grande polonês” – será que os poloneses hoje ouvem e compreendem Chopin?
Não se pode dizer que sejam todos, visto que nunca aconteceu que a grande arte, a música atingisse a todos. O Ano de Chopin traz consigo o perigo de matar o sentimento da proximidade de Chopin junto aos seus fãs mais sensíveis. Eles o terão demais para o dia a dia. Chopin não pode deixar de ser amado, não pode estar distante. Estamos diante de uma onda de fascinação pela sua pessoa e pela sua música no mundo inteiro. Indagadas a respeito da música, as pessoas do Extremo Oriente respondem: Chopin. E depois, um longo e longo tempo em silêncio, e somente então surgem: Bach, Beethoven ou Mozart. Para as pessoas daquele espaço cultural, ele parece ser mais acessível.

Como se pode explicar essa fascinação simplesmente fantástica por Chopin dos japoneses, coreanos ou chineses?
Eu explico isso dizendo que a sua música é um testemunho daquilo que disse Norwid a respeito da arte no contexto de Chopin e da música no seu poema Promethidion: “O que sabes a respeito da beleza?...” “É a forma do Amor”. A música de Chopin é a “forma do amor”, e o amor desperta o amor. Se trocarmos a palavra “amor” por “sentimento”, a música de Chopin é a expressão dos sentimentos amistosos, que provocam a necessidade do contato com o nosso semelhante. O marquês Astolphe de Custine, autor das Cartas da Rússia, escreveu a Chopin: “Unicamente uma arte como o Senhor a entende será capaz de unir as pessoas divididas pelas fronteiras da vida real. As pessoas se amam e mutuamente se compreendem através de Chopin”. Por sua vez, Stefan Kisielewski escreveu que a atuação da música de Chopin não apela à sala de concertos, mas a cada ouvinte, de forma singular, profunda e íntima. Isso é com certeza um fenômeno da sua música e até o mistério da sua obra.

Que composições de Chopin o senhor mais gosta de ouvir?
Os noturnos, as baladas, os scherzos, os estudos e as sonatas. No entanto eu vejo a sua música como um todo. Quando quero ficar mais animado em espírito, ouço algumas valsas, que irradiam alegria, gracejo. Mas também me fascina a transitoriedade do Improviso, que tanto admirava o escritor francês André Gide. Escrito com a pena leve, como que sem querer. Como deixar de ouvir sem emoção a Sonata em si bemol, a respeito da qual Witold Lutosławski dizia que os seus primeiros acordes são como que um “bloco na rocha”? Neste momento já temos dezenas de bons chopinistas, e é maravilhoso poder ouvir um Chopin sempre diferente. Todo pianista que possui a sua individualidade tem o seu Chopin. Ele é verdadeiro quando é ao mesmo tempo dele. Inclusive Ivo Pogorelich, que é acusado de não executar Chopin de acordo com certos cânones. No entanto para mim a sua interpretação da Sonata em si bemol é genial.

E quais são os intérpretes de Chopin que o senhor mais aprecia?
Também é difícil de responder. Diversos pianistas executam de diversas formas as composições de Chopin. Tenho disso uma lista. Os estudos são otimamente executados por Maurizio Pollini. As baladas e os concertos de piano, gosto de escutá-los na execução de Christian Zimmermann, os noturnos tocados por Maria João Pires, os scherzos por Pogorelich, os prelúdios por Martha Argerich, a composição em si bemol para piano e violoncelo na fenomenal execução de Argerich e Mstislav Rostropovitch e as valsas na execução de Dina Joffe. Lembro que as minhas avaliações também são variáveis. Pode surgir algum pianista que pela execução de alguma composição me encante. Tocam bem Chopin aqueles pianistas que, tendo atingido certa classe, na execução dão o máximo de si e não se esquecem do compositor. Eles têm de interiorizar a música dele e depois reuni-la com a sua personalidade e executá-la como sua. Então surge uma execução singular, da mesma forma que é singular todo ser humano.

O senhor deve concordar com as palavras de Norwid, do já citado poema Promethidion, que possivelmente traduzem da melhor forma a essência da obra de Chopin: “Na Polônia, a partir do túmulo de Chopin se desenvolverá a arte, como uma grinalda de bons-dias, através de conceitos algo mais conscienciosos a respeito da forma da vida, isto é, a respeito da direção do bem, e a respeito do conteúdo da vida, isto é, a respeito da direção do bem e da verdade. Então o talento se comporá no conjunto da arte nacional”?
Não conheço uma síntese mais acertada de Chopin do que a reflexão poética de Norwid e aquela de 1849, ou seja, o necrológio que o poeta publicou no Diário Polonês: “Chopin, de nascimento — varsoviano, de coração — polonês e pelo talento — cidadão do mundo, afastou-se deste mundo”, e depois o poema O piano de Chopin e Promethidion, bem como as Flores negras e as Flores brancas. E digo isso como conhecedor da literatura principal da recepção de Chopin. Não existe uma síntese melhor da sua obra, ainda que alguns se aproximem de uma avaliação apropriada da essência da sua arte. Witold Lutosławski, que dizia que voltava a Chopin quando se sentia mal e graças a ele alcançava novas forças, e ainda que a sua música se lhe associava com o sentimento de alguém que caminhando pela rua se elevasse ao alto. Tendo consciência de que, quando estava numa idade em que marginalizou a beleza e a emoção, Lutosławski, ao lembrar o seu primeiro encontro com Chopin, teve a coragem de confessar que na infância, ao ouvir o Scherzo em si menor, escondia-se debaixo da mesa para esconder as lágrimas. Para ele, a emoção é a reação ao valor que traz a música de Chopin, que não é absolutamente uma brincadeira com as teclas. No século XX houve uma tentativa de nos convencer através da musicologia – que se praticava em algumas escolas de piano – que a música de Chopin é uma exibição de virtuosidade. Nele, a virtuosidade rapidamente deixou de ser um objetivo para se tornar unicamente um meio na sua oficina de compositor.

* Krzysztof Tomasik entrevistou o prof. Mieczysław Tomaszewski. Apresentamos aqui o texto da entrevista, que foi publicada no portal da KAI (Agência Católica de Informação). Agradecemos à KAI pela autorização para a publicação desse texto nas páginas da nossa revista polônica Polonicus. Fonte: http://ekai.pl em 01.03.2010.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

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