quarta-feira, 24 de julho de 2024

100 ANOS SEM FRANZ KAFKA (1924-2024)


TRADUZIDO DO INGLÊS POR FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA
O gerente do Blog do Braga transcreve, com a devida vênia da Embaixada da República Tcheca em Washington D.C., uma publicação de interesse cultural e literário de sua iniciativa anual,  com foco nas mútuas inspirações entre as culturas tcheca e americana, no caso para o ano de 2014, em comemoração aos 90 anos da morte de Franz Kafka, autor de projeção mundial nascido em Praga  e reiterada neste espaço quando estamos comemorando o primeiro centenário de sua morte. Portanto, aqui são reproduzidos apenas o texto traduzido do inglês e imagens que motivaram o Festival de Mútuas Inspirações 2014 Franz Kafka, que teve lugar em setembro e outubro de 2014 em Washington D.C. Em homenagem ao monumental gênio literário de Franz Kafka, o dito Festival incorporou uma variedade de eventos, incluindo performances teatrais, exibições de filmes, concertos, palestras e exposições que não serão detalhados aqui.
Último retrato de Franz Kafka (1923)

1. PRAGA 
 
Velho Bairro Judeu em Praga
 
Praga nunca deixa você ir... esta querida mãezinha tem garras afiadas.” ~ Franz Kafka 

Praga, a cidade das 1.000 cúpulas, foi o lar do lendário escritor Franz Kafka, nascido em 3 de junho de 1883, perto da Igreja de São Nicolau. Embora ele nunca tenha se referido diretamente à cidade em seus escritos, suas cartas e obras de ficção refletem as experiências de sua vida e pensamentos surreais dentro deste misterioso labirinto de ruas de paralelepípedos. Suas pegadas virtuais são deixadas por toda a cidade, pois sua família se mudou inúmeras vezes ao longo de sua infância. Quando menino, Kafka morou na Minute House, atualmente parte da Prefeitura na Cidade Velha. Mais tarde, ele também teve um apartamento modesto dentro do prédio que agora abriga a Embaixada Americana. Com amigos, Kafka ia a cafeterias locais, como o Café Louvre, para discutir ideias intelectuais. Ele realizou a primeira leitura pública de sua obra O Veredicto no Hotel Erzherzog Stefan, hoje conhecido como The Grand Hotel Europa, situado na Praça Venceslau. Para entretenimento, Kafka e seus amigos compareciam a apresentações de cabaré e exibições de cinema em Lucerna. Para encontrar um refúgio tranquilo para sua escrita, ele escrevia na casa de sua irmã, localizada na Golden Lane em Praga, Casa nº 22. A cidade abrigava a turbulência interna do escritor, servia como pano de fundo para sua luta contra a burocracia totalitária e guardava seus segredos no meio de seu labirinto.

2. FRANZ KAFKA
 
Foto no passaporte de Franz Kafka
 
Tudo o que sou é literatura, e não sou capaz ou estou disposto a ser outra coisa.” ~ Franz Kafka
 
Franz Kafka (1883–1924) ressoa ao longo da história como um dos escritores mais influentes do século XX. Natural de Praga, ele nasceu em uma família judia de classe média, falante de alemão. Estudou direito, mas lamentava ter que dedicar tanto do seu tempo trabalhando para uma seguradora. Acima de tudo, sua vocação e paixão era escrever, o que ele fazia em seu tempo livre, principalmente nas horas noturnas, depois de um longo dia de trabalho. Durante sua vida, ele publicou um punhado de histórias, lidando com temas como isolamento e alienação. Em seu leito de morte, ele pediu a seu amigo Max Brod para queimar a maior parte de seus escritos. Em vez disso, Brod completou e publicou uma grande parte de sua obra, deixando uma impressão do Kafka que conhecemos hoje. Kafka influenciou escritores, tais como Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Eugène Ionesco e o gênero do existencialismo. Algumas de suas obras mais lidas incluem A Metamorfose, Um Artista da Fome, Na Colônia Penal e O Veredicto. Seus escritos transcendem o tempo e, como no caso de sua obra mais longa O Processo, até mesmo prenunciam eventos futuros. Kafka era um gênio da literatura — usando o poder das palavras para transmitir as imagens liberadas de sua própria alma. Ele tinha um dom que não podia negar, chamando sua escrita de uma forma de oração.
 
3. HERMANN KAFKA 
 
Foto de Hermann Kafka, pai de Franz Kafka
 
O que eu precisava era de um pouco de incentivo, um pouco de simpatia, uma pequena ajuda para manter meu futuro aberto; em vez disso, você o obstruiu, certamente com a boa intenção de me persuadir a seguir um caminho diferente.” ~ Franz Kafka, Carta ao pai 
 
O pai de Kafka, Hermann Kafka, saiu da pobreza com trabalho. Assim que conseguiu empurrar um carrinho de mão, começou a entregar carnes kosher para seu pai. Ele saiu de casa aos quatorze anos, entrou para o exército aos dezenove e depois começou a trabalhar como vendedor ambulante. Ele tinha uma forte ética de trabalho, eventualmente se tornando dono de uma loja de varejo de acessórios masculinos e femininos, onde usava um pássaro preto parecido com um corvo chamado gralha (Kavka em tcheco) como logotipo de sua empresa. Ele também se estabeleceu por meio de um casamento vantajoso com Julia Löwy, que era mais educada e filha de um próspero cervejeiro. À medida que o negócio crescia, Hermann tinha pressão alta, bem como problemas respiratórios e cardíacos; portanto, a família se esforçava muito para não excitá-lo. Ele especialmente não gostava de que rissem na sua cara e frequentemente expressava sua desaprovação da paixão de Franz pela escrita, pressionando seu filho a assumir os negócios da família. Ao longo de sua vida, Kafka foi oprimido e intimidado por seu pai dominador e tirânico. O relacionamento problemático de Kafka com ele está documentado em sua Carta ao Pai, de mais de 100 páginas, bem como em seus contos O Veredicto e A Metamorfose, mas seguiu o conselho de sua mãe de Kafka de nunca lhe dar a conhecer. Kafka queria amor e encorajamento, mas sentia-se abandonado, enquanto seus pais trabalhavam longas horas tentando administrar o negócio.
 
4. GABRIELE, VALERIE e OTTILIE 
 
Kafka com cerca de 10 anos de idade com suas irmãs Valli (esq.) e Elli (centro)
 
A juventude é feliz porque tem a capacidade de ver a beleza. Qualquer um que mantém a capacidade de ver a beleza nunca envelhece.” ~ Franz Kafka 
 
Kafka foi criado principalmente por governantas e criadas enquanto seu pai trabalhava duro em seu próspero negócio em uma loja de armarinhos juntamente com sua mãe. Ele era o mais velho de seis filhos ― dois irmãos morreram na infância, e ele tinha três irmãs Gabriele ("Elli"), Valerie ("Valli") e Ottilie ("Ottla"). Embora fosse um tanto arredio mesmo quando criança, Kafka amava muito suas irmãzinhas e encontrava tempo para ler e escrever várias peças para elas. Ele servia como diretor e suas irmãs, as atrizes de suas peças, atuavam na ocasião dos aniversários de seus pais. Sua irmã mais nova, Ottla, era sua favorita. Quando elas ficaram adultas, ela era uma confidente próxima e cuidava dele quando ele adoecia. Quando criança, ela acordava cedo para abrir a loja para o negócio de seu pai, mas ela desejava muito sua independência dele. Portanto, ela foi viver e trabalhar na fazenda de seu cunhado em Zürau (agora chamada Siřem), localizada na Boêmia Ocidental. Kafka às vezes ia visitá-la, encontrando um refúgio para escrever. De setembro de 1917 a abril de 1918, Kafka ficou na propriedade com ela, já sofrendo de tuberculose. Kafka a chamava de "o amor aos outros, contudo, de longe a mais querida". Todas as suas três irmãs sobreviveram a Kafka, mas pereceram no Holocausto.
 
5. PRIMEIROS ANOS
 
Kafka com cerca de 18 anos de idade

As primeiras impressões são sempre pouco confiáveis.” ~ Franz Kafka
 
Para sua educação inicial, seus pais decidiram mandá-lo para a escola primária de língua alemã Deutsche Knabenschule na rua agora conhecida como Rua Masná em Praga. Após a escola primária, ele foi admitido no rigoroso ginásio estadual, Altstädter Deutsches Gymnasium, uma escola secundária acadêmica onde o alemão também era a língua de instrução, na Cidade Velha de Praga. Em seu tempo livre, Kafka gostava de nadar, remar, fazer caminhadas, muitas vezes levando sua atividade saudável ao extremo. Nos últimos anos, ele iria para sanatórios para tomar ar fresco e medicamentos naturalistas para lidar com seu corpo doente. Além de atividades ao ar livre, Kafka também gostava de ir ao cinema, assistindo a filmes como o faroeste Slaves of Gold, Little Lolette e até The Kid, de Charlie Chaplin. Em seus primeiros diários, ele escreveu sobre seu fascínio pelo cinema, afirmando: "Fui ao cinema. Chorei. Entretenimento incomparável." Acima de tudo, porém, ele preferia escrever em silêncio. Isso se mostrou difícil quando se vivia com as explosões de seu pai, uma casa cheia e os canários de estimação da família. Ele frequentemente sofria de enxaquecas e era extremamente sensível ao ruído.
 
6. ERUDITO 
 
Franz Kafka | Atelier Jacobi, Wikimedia Commons, domínio público
 
Muitos livros são como uma chave para câmaras desconhecidas dentro do castelo do próprio eu.” ~ Franz Kafka 
 
Kafka escreveu: “Os livros são um narcótico.” Ele era um leitor ávido, devorando os escritos de filósofos como Friedrich Nietzsche e Baruch Spinoza, o dramaturgo e contista russo Anton Chekhov, as primeiras obras de Thomas Mann e até mesmo Charles Dickens. Ele gostava especialmente de ler biografias, como a de Johann Wolfgang von Goethe, um poeta e filósofo da Era do Iluminismo, bem como a Autobiografia de Benjamin Franklin. Kafka considerava seus “parentes de sangue” literários o escritor francês Gustave Flaubert, o romancista e escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoievski, o poeta, dramaturgo e escritor alemão Heinrich von Kleist e o escritor e dramaturgo austríaco Franz Grillparzer. Kafka se inspirava em suas obras e escritos pessoais. Ele também assistia a várias palestras, incluindo a palestra de Albert Einstein sobre a Teoria da Relatividade. Para seus estudos, Kafka foi para a Universidade Charles em Praga, inicialmente escolhendo química e estudos alemães antes de mudar para direito duas semanas depois porque sentiu que não interferiria tanto em suas atividades criativas — escrever. Ao concluir seus estudos de direito, Kafka conseguiu um emprego em uma seguradora italiana, mudando um ano depois para trabalhar no Instituto de Seguro de Acidentes de Trabalho do Reino da Boêmia, onde investigava queixas por danos pessoais. O parnassah (“emprego por pão”) lhe permitiu tempo livre para escrever obras como O Castelo e O Processo, ambos os romances tratando de opressão e luta contra a burocracia.
 
7. MAX BROD 
 
Foto de Max Brod (à esq.) com Kafka (à dir.)

Um escritor que não escreve é um monstro cortejando a insanidade." ~ Franz Kafka, Carta a Max Brod, 5 de julho de 1922 
 
Enquanto estava na Charles University, Kafka participou de um clube literário estudantil, que organizava eventos literários, leituras e outras atividades. Lá, ele conheceu amigos por toda a vida: Felix Weltsch, Oskar Baum, Franz Werfel e seu amigo mais próximo que mais tarde serviria como seu executor ou testamenteiro literário — Max Brod. O grupo ficou conhecido como Círculo de Praga (Der Prager Kreis), um nome cunhado por Brod, refletindo o grupo unido de escritores de língua alemã de Praga com valores culturais e literários comuns. De acordo com a biografia de Kafka de Brod, eles se conheceram em uma palestra que Brod deu sobre o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, durante a qual Kafka se opôs à caracterização de Nietzsche por Brod como uma fraude. Kafka esperou quase dois anos antes de lhe mostrar qualquer um de seus escritos. À medida que sua amizade crescia, Kafka podia ir à casa de Brod a qualquer hora sem anunciar. Eles liam suas obras um para o outro por horas a fio e escreviam um para o outro quando estavam fora. Brod e Kafka também viajavam juntos. Kafka até escreveu a introdução de um diário de viagem com Brod, mas a colaboração na escrita parou por aí simplesmente porque seus estilos eram muito diferentes. Brod encorajou Kafka a escrever e publicar seu trabalho, vendo seu notável talento com as palavras. Kafka dedicou uma série de seus primeiros trabalhos publicados em uma coleção, chamada Meditação, a M.B. – Max Brod. Ele confiou a Brod seu último desejo de destruir todo o seu trabalho não publicado, o que Brod se recusou a fazer. Em vez disso, ele completou e reorganizou os três romances *, cartas e diários de Kafka e os salvou dos nazistas, levando-os em uma mala para a Palestina, onde mais tarde os publicou. Ironicamente, embora Brod fosse um escritor mais prolífico e estabelecido na época, a história o lembra principalmente como biógrafo e testamenteiro literário de Franz Kafka.
 
* N.T.:  Os três romances que Kafka deixou inacabados foram O Desaparecido (renomeado América por Brod), O Processo e O Castelo.
 
8. IDENTIDADE 
 
Foto de Franz Kafka aos 27 anos
 
Eu sou uma gaiola, em busca de um pássaro.” ~ Franz Kafka 
 
Kafka lutava sempre consigo mesmo, nunca sentindo que ele ou seu trabalho era suficientemente bom. Ele era auto-analítico, obcecado por si mesmo — um introvertido. Seu comportamento era quieto e reservado. Suas rotinas diárias incluíam padrões rígidos de higiene, lavando-se todas as manhãs, penteando o cabelo e fazendo a barba de uma maneira particular, geralmente atrasando-o para o trabalho em 15 minutos todos os dias. Com quase 1,80 m de altura, ele pesava apenas cerca de 52 kg e frequentemente usava ternos azul-escuros. Embora não se considerasse bonito, outros o achavam com uma boa aparência juvenil. Depois de concluir seu doutorado em direito, ele foi até confundido com um estudante. Kafka mantinha uma dieta vegetariana rigorosa. Ele tinha o hábito de mastigar sua comida inteira e lentamente e triturá-la antes de engolir. Ele não fumava nem bebia e ficava longe de café, chá e gordura animal. Um café da manhã típico com sua família consistia em doces, leite e frutas cozidas. Embora nunca tenha se casado, Kafka tinha o casamento e os filhos em alta estima, mas se sentenciou à vida de solteiro devido ao que ele via como suas muitas imperfeições e seu desejo de não ser como seu pai. Ele teve um relacionamento promíscuo com mulheres — noivou duas vezes, teve alguns casos e inúmeras visitas ao bairro da luz vermelha de Praga. Alguns estudiosos até questionam sua sexualidade. Quanto mais a gente lê Kafka, tanto mais medita, retorna a ele e sua obra, e descobre uma peça do quebra-cabeça apenas para começar de novo. Kafka era complexo, profundo e emocional.
 
9. FELICE BAUER 
 
Foto de Felice Bauer e Franz Kafka em Budapeste em 1917
 
Você é ao mesmo tempo a quietude e a confusão do meu coração; imagine meu batimento cardíaco quando se está nesse estado.” ~ Franz Kafka, Cartas para Felice 
 
Kafka escreveu mais de 500 cartas para Felice Bauer, que foram publicadas muitos anos após sua morte como Cartas para Felice. Ele ficou noivo dela duas vezes. Os dois se conheceram uma noite quando Kafka estava visitando seu amigo Max Brod para revisar a ordem de seu próximo volume de obras curtas intitulado Meditação. Em seu diário, ele escreveu o seguinte sobre sua impressão dela: “Eu não estava nem um pouco curioso sobre quem ela era, mas a tomei como certa imediatamente. Rosto ossudo e vazio que exibia seu vazio abertamente. Garganta nua. Vestida com uma blusa. Parecia muito doméstica em seu vestido, embora, como se viu, ela não fosse de forma alguma.” Esta não parece ser a análise mais lisonjeira, mas Kafka tinha o hábito de ver a vida em sua forma pura. Algo o atraiu para ela. Talvez, ela o tenha surpreendido com sua independência, confiança e perspectiva — especialmente seu interesse em hebraico e em viajar para a Palestina. Na noite em que se conheceram, fizeram um pacto de viajar juntos para a Palestina, mas tal plano nunca se concretizou. Eles não se encontraram novamente por sete meses, mas se apaixonaram por carta. Nos cinco anos seguintes, embora raramente estivessem na mesma cidade, eles ficaram noivos, romperam o noivado, ficaram noivos novamente e finalmente se separaram para sempre. Durante o período de sua correspondência com ela, Kafka produziu algumas de suas obras mais famosas, incluindo A Metamorfose, Na Colônia Penal e seu primeiro rascunho de O Processo. Ele dedicou a ela seu conto O Veredicto, que escreveu de uma só vez. Kafka queimou as cartas dela para ele, mas ela guardou as dele. Em 1955, Felice vendeu as cartas para a Schocken Books por US$ 8.000 perto do fim de sua vida. Em um leilão em 1987, as Cartas para Felice renderam à Shocken Books mais de meio milhão de dólares.
 
10. YITZHAK LÖWY 
 
Foto de Yitzhak Löwy
 
Qualquer coisa que tenha valor real e duradouro é sempre um presente de dentro.” ~ Franz Kafka 
 
Por volta de 1911, Kafka se interessou pelo teatro iídiche, apesar da desconfiança de seus amigos próximos, como Max Brod, que geralmente o apoiava em tudo o mais, e da veemente desaprovação de seu pai. Kafka assistiu a mais de 30 apresentações do grupo de teatro itinerante no decadente e degradado Café Savoy, fazendo amizade com o ator polonês Yitzhak Löwy. As apresentações serviram como ponto de partida para o crescente relacionamento de Kafka com o judaísmo. Kafka até organizou leituras noturnas de literatura iídiche e fez comentários de abertura, embora esses breves comentários o deixassem com noites sem dormir por causa de seu medo do palco. Yitzhak falou com Kafka sobre a vida judaica na Polônia e o colocou em contato com uma ampla gama de literatura iídiche. Durante sua exploração do teatro iídiche, Kafka começou a estudar hebraico e se interessou mais pelo judaísmo oriental e por sua própria origem judaica. Ele também começou a escrever o romance O Desaparecido, mais tarde renomeado Amerika por Brod, referenciando um lugar que Kafka só via por meio de cartas de seus tios e em diários.
 
11. MILENA JESENKÁ 
 
Foto de Milena Jesenká
 
Eu vejo você mais claramente, os movimentos do seu corpo, suas mãos, tão rápidos, tão determinados, é quase um encontro, embora no momento em que eu tento levantar meus olhos para o seu rosto, o que invade o fluxo da carta... é fogo e eu não vejo nada além de fogo.” ~ Franz Kafka, em uma carta para Milena Jesenská 
 
Milena Jesenká foi uma jornalista, escritora e tradutora tcheca que se casou com o crítico literário judeu Ernst Pollak. Seu pai a colocou em um hospício por nove meses para tentar impedir a união, mas os dois acabaram se casando e ela em um casamento infeliz. Tentando complementar sua renda, ela conheceu Kafka enquanto trabalhava como tradutora. Inicialmente, ela descobriu o conto de Kafka, O foguista, e perguntou se ela poderia traduzi-lo do alemão para o tcheco. Ele concordou e ela se tornou a primeira tradutora de sua obra para o tcheco e qualquer língua estrangeira. O relacionamento deles era conduzido principalmente por meio de cartas que eles trocaram primeiro em alemão. Mais tarde, ele insistiu que ela escrevesse em tcheco para que ele pudesse capturar toda a sua persona através de sua língua nativa. Kafka e Milena se encontraram pessoalmente apenas duas vezes, tendo sido o período mais longo de quatro dias em Viena. Ele eventualmente rompeu a correspondência porque Milena não conseguiu deixar o marido. Após a morte de Kafka, ela publicou um obituário no Národni Listy * dizendo que ele estava "condenado a ver o mundo com uma clareza tão ofuscante que o achou insuportável e foi para a morte". Após a anexação da região dos Sudetas, Milena trabalhou para ajudar seus amigos judeus a escapar da Tchecoslováquia. Mais tarde, ela foi capturada e deportada para o campo de concentração de Ravensbrück, onde morreu três semanas antes do Dia D. Hoje, em Praga, o Café Milena leva seu nome.
 
* N.T.: Ou "O Jornal Nacional" em português, como era chamado um jornal tcheco, publicado em Praga de 1861 a 1941.
 
12. DORA DIAMANT 
 
Foto de Dora Diamant
 
É inteiramente concebível que o esplendor da vida esteja sempre à espreita de cada um de nós em toda a sua plenitude, mas velado da vista, bem no fundo, invisível, distante.” ~ Franz Kafka, escrito em seu diário em 18 de outubro de 1921 
 
Enquanto estava de férias em um resort do Mar Báltico, Kafka conheceu Dora Diamant, uma professora de jardim de infância de 25 anos de uma família judia ortodoxa, que era independente o suficiente para ter escapado de seu passado no gueto. Foi amor à primeira vista, e eles acabaram passando todos os dias das três semanas de férias de Kafka juntos. Kafka mais tarde se mudou para Berlim para morar com ela, e ela se tornou sua amante. Ela influenciou o interesse de Kafka pelo Talmude, a base para todos os códigos da lei judaica. Durante o tempo em que ficaram juntos, Kafka conseguiu escrever Uma Pequena Mulher e A Toca. Em suas conversas, Dora e Kafka frequentemente falavam sobre se mudar para a Palestina, onde ele abriria um restaurante com Dora e trabalharia como garçom. No entanto, esse sonho nunca se tornou realidade. À medida que sua saúde piorava, ela ajudou Kafka a queimar alguns de seus escritos. Dizem que Kafka morreu em seus braços em 3 de junho de 1924. Seu corpo foi finalmente trazido de volta para Praga, onde foi enterrado em 11 de junho de 1924, no Novo Cemitério Judaico em Praga-Žižkov. Secretamente, Dora guardou vários cadernos e cartas de Kafka. Eles foram roubados de seu apartamento por um ataque da Gestapo em 1933 e as tentativas de encontrá-los foram em vão. Mesmo depois que Kafka morreu, ela nunca desistiu de seu sonho de viajar para a Terra Prometida. Em 1950, ela finalmente realizou seu sonho e visitou o novo Estado de Israel. Ela morreu dois anos depois.
 
13. KAFKIANO 
 
Memorial de Franz Kafka | Foto: Juan Pablo Bertazza, Rádio Praga Internacional
 
Escrevo diferente do que falo, falo diferente do que penso, penso diferente do que deveria pensar, e assim tudo prossegue para a mais profunda escuridão.” ~ Franz Kafka, em uma carta para sua irmã Ottla 
 
Kafka morreu de tuberculose laríngea, o que tornou muito difícil para ele comer. Ele morreu poucos dias antes de seu 41º aniversário. Em seu leito de morte, ele estava revisando Um Artista da Fome sobre um artista que jejuava por dias, mas acabou sendo ignorado pelo público que passava. Seu legado de escrita continua vivo graças ao seu amigo Max Brod, bem como aos outros que salvaram partes de sua obra. Embora sua morte tenha ocorrido em tenra idade, seu nome é celebrado juntamente com os melhores autores de todos os tempos. Ele é conhecido por seu estilo de escrita sobre o absurdo da vida em situações bizarras e até mesmo de pesadelo, dando origem ao termo atual “kafkiano”. O termo tem sido usado na língua inglesa por mais de 50 anos e se tornou um grampo arraigado no vocabulário cotidiano. Hoje, no Bairro Judeu de Praga, há um monumento em saudação a Kafka. A escultura mostra um Kafka de terno sobre os ombros de um homem gigantesco sem cabeça – um tributo surreal ao escritor. No entanto, seu legado duradouro são suas palavras, que continuam a desafiar os leitores e trazer insights para as gerações futuras. Nenhum outro autor dos tempos modernos deixou tanto impacto com seu nome. 
 

sexta-feira, 5 de julho de 2024

SEM LADO: O MUNDO VISTO DA RÚSSIA


Por ISABELLE DUCHEMIN * 
Tradução do francês por Francisco José dos Santos Braga
Transcrevemos com a devida vênia do jornal LE MONDE o dossiê de outubro de 2022, apresentado aqui das pp. 34 a 43, intitulado Entrevistas com um império, consistindo de uma seleção de extratos de ditos, discursos e obras de grandes personagens russos, ao longo de sete séculos.
O objetivo com este texto, segundo o editor, é que desloquemos o olhar, entendamos de forma diferente. E se olhássemos o mundo através de outros olhos para superar os nossos medos e preconceitos e enriquecer a nossa compreensão do curso da história? No foco está o mundo visto da Rússia. Desde a invasão da Ucrânia, o país tem simbolizado este "outro" assustador. É urgente compreender como a Rússia chegou até aqui. Como foi construída, quais foram as suas relações com o Ocidente, quem são os Russos, como vivem... No resumo, outros assuntos inusitados e excêntricos para ampliar nosso campo de visão. 

 
INTRODUÇÃO 
 
Uma república federal 
 
A Rússia é uma federação de 85 súditos. Possui 46 regiões, 22 repúblicas, 9 territórios, 4 distritos autônomos, 3 cidades federais, 1 região autônoma. Uma divisão administrativa complexa, que reflete a história e a diversidade das populações. 
 
Uma demografia a meio mastro 
 
É o maior país do mundo, mas é dez vezes menos populoso que a China. O clima difícil é em parte culpado pela elevada mortalidade e pelo declínio migratório. Assim, desde cerca de 30 anos, a Rússia tem estado numa crise demográfica. 
 
Entrevistas com um império 
 
Desde sempre, a Rússia questiona a sua identidade, a sua missão no mundo e a sua relação com a Europa e o Ocidente. As respostas, com dimensões religiosas, políticas e civilizacionais, variam com o tempo e com as ideologias em ação. 
Seleção dos extratos por Isabelle Duchemin.
 
SÉCULO XV-XVI: Moscou, terceira Roma 
 
«Atentai bem, meus irmãos: Constantinopla brilhava como o sol, enquanto ali reinava a verdadeira fé, mas assim que ela a renegou unindo-se aos Latinos, caiu nas mãos dos infiéis». 
FILIPE METROPOLITANO I (de 1464 a 1473), alusão à conquista de Constantinopla pelos Otomanos (1453), e à união (sem futuro) das Igrejas bizantina e latina no Concílio de Florença em 1439. 
 
«Saiba, mui piedoso imperador, que todos os impérios pertencentes à religião cristã ortodoxa estão agora unidos em seu império: você é o único imperador dos cristãos de todo o mundo... Todos os impérios cristãos estão unidos em seu império. Depois de você, aguardamos o Império que não terá fim... Duas Romas caíram, mas a terceira permanece, e não haverá uma quarta.» 
O MONGE FILOTEU DE PSKOV (1465-1542), carta endereçada ao czar Basílio III, por volta de 1510-1511. 
 
SÉCULOS XVII-XIX: VISÃO IMPERIAL E EUROPEIZAÇÃO
 
«Grande ministro! Porque você não nasceu na minha época! Eu te teria dado metade do meu império para me ensinar como governar a outra.” 
O CZAR PEDRO, O GRANDE (1672-1725) diante do túmulo do cardeal Richelieu (1717) 
 
«As mudanças que Pedro, o Grande, empreendeu na Rússia tiveram sucesso muito facilmente porque os costumes que prevaleciam naquela época e que nos tinham sido introduzidos por uma miscelânea de diferentes povos e pela conquista de territórios estrangeiros não convinham absolutamente ao nosso clima. Pedro I, ao introduzir os usos e costumes da Europa a um povo europeu, achou então o processo muito mais fácil do que tinha esperado.» 
IMPERATRIZ CATARINA II (1762-1796), artigo de Nakaz (Instrução) dirigida por Sua Majestade, a Imperatriz de Todas as Rússias, à comissão criada para trabalhar na execução do projeto de um novo código de leis, 1767. O texto, escrito em francês, toma emprestado extensivamente d'O Espírito das Leis de Montesquieu (1748). 
N.T.: O corpo do documento alega que a Rússia é uma potência europeia, e que a nação deve isso às reformas de Pedro, o Grande. 
 
«Até o nome da França deveria ser exterminado! A igualdade é um monstro. [...] Proponho que todas as potências protestantes abracem a religião grega, para se salvarem elas próprias da praga irreligiosa, imoral, anárquica, abominável e diabólica, inimiga de Deus e dos tronos.» 
IMPERATRIZ CATARINA II sobre a Revolução Francesa, cartas a Friedrich Melchior Grimm, fevereiro de 1793 e 1794. A familiaridade da imperatriz com o pensamento dos filósofos franceses do Iluminismo não a impede de desprezar a revolução que dele resultou. 
 
«Há alguns anos, não se sabia na Europa mais sobre a Rússia e o seu povo do que sobre a Índias e a Pérsia, países com os quais os Estados europeus não têm qualquer relação, para além de algumas transações comerciais. Hoje, por outro lado, nada se faz, mesmo nas regiões mais distantes das nossas terras, sem que se procure a amizade e a aliança de Vossa Majestade ou sem temer a sua hostilidade.» 
PIOTR SHAFIROV (1670-1739), vice-chanceler do Império Russo, de Pedro, o Grande, 1717. Nessa época, a Rússia tornou-se uma grande potência e possuía diplomatas em todas as capitais europeias. 
 
«Certamente, a Rússia, através dos esforços e cuidados deste imperador, é doravante conhecida em toda a Europa e tem peso nos assuntos; seus exércitos estão devidamente organizados, sua frota cobriu o Mar Branco e o Mar Báltico, de modo que conseguiu prevalecer sobre os seus antigos inimigos, os Polacos e os Suecos, e conquistou bons territórios e portos bem localizados; certamente, as ciências, as artes e a indústria começaram a florescer na Rússia e o país começou a enriquecer. Os Russos transformaram-se em homens barbeados, e trocaram os seus casacos longos por roupas curtas, e socializaram-se habituando-se ao refinamento; mas, ao mesmo tempo, o verdadeiro apego à fé começou a desaparecer, [...] a firmeza enfraqueceu e deu lugar a bajulações atrevidas e insinuantes; o luxo e o prazer passaram a dominar, e com sua dominação o egoísmo começou a penetrar nas altas esferas judiciais a ponto de destruir as leis, em detrimento dos cidadãos.» 
MIKHAIL SHTCHERBATOV (1733-1790), Sobre a corrupção da moral na Rússia. A obra foi censurada. Só foi publicada em 1858 em Londres. 
N.T.: O mar Branco (em russo: Белое море) é um braço do mar de Barents na costa noroeste da Rússia. A totalidade do mar Branco encontra-se sob soberania russa. Destacam-se aí os importantes portos de Arkhangelsk e de Bielomorsk. O mar Branco e o mar Báltico estão conectados por um canal em Bielomorsk. 
 
«Onde a bandeira russa foi hasteada uma vez, ela nunca deveria ser retirada.» 
Czar Nicolau I (1825-1855) em relação à ilha de Sakhalin, 1850. 
 
SÉCULO XIX: ESLAVÓFILOS CONTRA OCIDENTALISTAS 
 
«Constantinopla deve ser nossa [...], não só porque esta cidade é um porto famoso, uma cidade ilustre do mundo, considerada o umbigo da Terra [...] mas porque é verdade que a Rússia é como um gigante que cresceu num quarto fechado por todos os lados [...] e que precisa respirar o ar livre dos oceanos.» 
 
«Sim, o destino do Russo é paneuropeu e universal. Tornar-se um verdadeiro Russo não significa talvez tornar-se o irmão de todos os homens, o homem universal, se posso me exprimir assim.»
FIÓDOR DOSTOIÉVSKI (1821-1881), Diário de um escritor, 1877. Dostoiévski estava próximo do movimento eslavófilo, para o qual a Rússia é herdeira de Bizâncio e tem seu próprio gênio. Além disso, o acesso da Rússia aos mares quentes tem sido uma obsessão desde o século XVIII. 
 
«Os Russos são chamados a concluir a obra dos bárbaros, a destruir os últimos restos do Império romano que definham ainda na Europa Ocidental. O Oriente vai ainda possuir o topo, mas é para regenerar pelo sangue e pelo fogo essa civilização debatedora e negociante que perverteu a Europa.» 
VLADIMIR PETCHERIN (1807-1884) a Ivan Gagarin, Cartas, 1849. Convertido ao catolicismo, esse intelectual defende uma visão messiânica da Rússia. 
 
«A própria ideia de que a Rússia pode ser a encarnação de uma ideia abstrata, de que constitui um mundo separado que legitimamente sucede ao famoso Império Bizantino, de que tinha a missão de unir todos os povos eslavos para renovar a espécie humana, nem nos ocorreu. Menos ainda poderíamos pensar que a Europa está mais uma vez pronta para sucumbir à barbárie e que estamos predestinados a salvar a civilização. Por outro lado, a nossa atitude para com a Europa foi marcada pela polidez, olhávamos para ela com veneração, pois sabíamos que a Europa nos ensinou muitas coisas, incluindo a nossa própria história.» 
PIOTR TCHAADAEV (1794-1856). O escritor e filósofo representa o movimento ocidentalista, que defende a ideia de que a Rússia deve inspirar-se no modelo europeu para compensar o seu atraso social e moral, como evidenciado pela servidão. 
 
«[A Rússia], sendo estranha ao mundo europeu e demasiado poderosa para descer ao papel de membro da família europeia, não pode encontrar qualquer outra situação digna da sua grandeza e do eslavismo do que a de chefe de um sistema político particular; iria assim contrabalançar, não qualquer estado europeu, mas toda a Europa. Eis, para a Rússia, a vantagem e o significado da grande federação eslava. [...] A federação, depois de constituída, não ameaçará tornar-se soberana do universo; pelo contrário, ela será a única protetora do mundo contra tal dominação.» 
NIKOLAI DANILEVSKI (1822-1885), Rússia e Europa, 1889. Este ideólogo do pan-eslavismo é uma das referências de Vladimir Putin. 
 
«Camaradas, coloquem na cabeça que os proletários da União Soviética vivem numa fortaleza sitiada. Portanto, o regime soviético é o de uma fortaleza sitiada.» 
MIKHAIL I. KALININ, presidente do Comitê Executivo Central dos Sovietes e depois do Soviete Supremo (1919-1946), novembro de 1934. 
 
«Considero um erro publicar o discurso de Churchill em que elogia a Rússia e Stalin. Churchill precisa destas lisonjas para acalmar a sua consciência e esconder a sua atitude hostil para com a URSS e, em particular, para esconder o fato de que ele próprio e os seus seguidores no Partido Trabalhista estão a organizar um bloco anglo-franco-americano contra a União Soviética.» 
JOSEF STALIN, Presidente do Conselho de Ministros da URSS (1946-1953), extrato de Stalin e do cosmopolitismo, documentos da seção de propaganda do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética dos anos 1945-1953. 
 
«Em 43 anos de poder soviético, a outrora analfabeta Rússia, da qual alguns falavam com desprezo como um país atrasado, percorreu um caminho grandioso. Nosso país criou agora o primeiro satélite, foi o primeiro a lançá-lo no cosmo. Não será esta a manifestação mais marcante da autêntica liberdade do povo mais livre do mundo, o povo soviético? [...] Na verdade, livres não são os países onde os ricos exploram livremente aqueles que não têm pão – este é o mundo "livre” – mas os países onde todos os trabalhadores, todos os povos têm a possibilidade de desfrutar de todos os bens materiais e espirituais.» 
NIKITA KHRUCHTCHEV, Presidente do Conselho de Ministros da URSS (1958-1964), trecho do discurso durante o retorno de Yuri Gagarin à Terra, 14 de abril de 1961. 
 
UM PAÍS COMO QUALQUER OUTRO? 
 
«Eles [os Ocidentais] se comportam conosco como professores escolares... Se não aceitarmos mais as [suas] proposições quase cominatórias, eles param de ser condescendentes para se tornarem irascíveis.» 
ANDREI KOZYREV, ministro dos Assuntos Estrangeiros da Federação Russa (1990-1996) no governo de Boris Yeltsin.
 
«As pessoas querem viver num mundo em que as naves espaciais americanas e soviéticas se unam para viagens conjuntas e não para "guerra das estrelas". [...] As pessoas querem viver num mundo onde todos possam desfrutar do direito à vida, à liberdade e à felicidade e, claro, a outros direitos humanos, que devem ser garantidos na prática em qualquer sociedade desenvolvida, e um mundo onde a prosperidade de uns não seria obtida à custa da pobreza e do sofrimento de outros.» 
MIKHAIL GORBATCHEV, líder da URSS (1985-1991), após assinar o tratado de redução de mísseis nucleares com os Estados Unidos, Washington, 1987]. 
 
«A Rússia deve ser o primeiro país a juntar-se à OTAN. Em seguida, os outros países da Europa central e oriental poderão entrar. Deveria haver uma espécie de cartel entre os Estados Unidos, a Rússia e os Europeus para ajudar a garantir e melhorar a segurança mundial.» 
BORIS YELTSIN, presidente da Federação Russa (1991-1999) a Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, 1994. 
 
SÉCULO XX: A CASA COMUM EUROPEIA 
 
«A URSS e os Estados Unidos participam da casa comum. É com base em estereótipos obsoletos que continuamos a suspeitar de que a União Soviética tem planos hegemonistas, de querer dissociar os Estados Unidos da Europa. [...] A filosofia do conceito de “casa comum europeia” exclui qualquer probabilidade de confronto armado, qualquer possibilidade de recurso à força ou à ameaça de força, em particular a força militar usada por uma aliança contra uma outra, no interior das alianças, onde quer que esteja.» 
MIKHAIL GORBATCHOV, extrato do discurso perante o Conselho da Europa em Estrasburgo, 6 de julho de 1989. 
 
«Aqueles que querem aproximar a Rússia e o Ocidente acreditam que a única alternativa é do regresso gradual ao confronto. Isso não é verdade. Por um lado, a Rússia deve cooperar equitativamente com outras potências e procurar interesses comuns para reforçar a cooperação em determinadas áreas. Por outro lado, em áreas onde os interesses divergem, a Rússia deve defender os seus interesses, evitando simultaneamente o confronto. Esta é a lógica da política externa russa neste período pós-guerra. Se a existência de interesses comuns for negligenciada, provavelmente ocorrerá uma nova Guerra Fria. [...] Mas podemos levar a cabo uma política externa ativa graças à nossa influência política, nossa localização geográfica, nossa adesão ao clube nuclear, nosso estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, nossa tradição científica, nossas capacidades econômicas e nossa indústria militar avançada. Além disso, a maioria dos países não deseja aceitar a visão de um único país.» 
IEVGUÉNI PRIMAKOV, Ministro das Relações Exteriores da Federação Russa (1996-1998) no governo de Boris Yeltsin, La Vie Internationale, jornal do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, 1998. Defende a ideia de um mundo multipolar onde a Rússia tem peso. 
 
«Seguir o exemplo dado pelos países democráticos avançados, ser admitido no seu clube em pé de igualdade, mantendo-se digno e guardando a sua personalidade; esta é a nossa concepção.» 
ANDREI KOZYREV, Ministro das Relações Exteriores da Federação Russa no governo de Boris Yeltsin (1990-1996), Moskovskie Novosti, 1992. 
 
SÉCULO XXI: A POSTURA ANTIOCIDENTAL 
 
«Temos vocação de transferir o Ocidente para o Oriente. É por isso que somos o exército do Oriente, o exército da aurora do conhecimento, que conduz uma luta para que o Oriente integre completamente em si mesmo o Ocidente, para que neste caso não haja mais um Ocidente, mas apenas um grande e absoluto Oriente. E só a Rússia é capaz de o fazer, na medida em que a Rússia participa nessas duas realidades.» 
ALEXANDRE DOUGUINE, A Quarta Teoria Política, 2009 
 
«O eurasismo é uma continuação do pensamento eslavófilo que exalta a originalidade da civilização russa. É uma visão de mundo baseada na multipolaridade. Rejeitamos o universalismo do modelo ocidental, protestamos contra o racismo cultural europeu e afirmamos a pluralidade de civilizações e culturas. Para nós, os direitos humanos, a democracia liberal, o liberalismo econômico e o capitalismo são apenas valores ocidentais; em nenhum caso, valores universais.» 
ALEXANDRE DOUGUINE, teórico do neo-eurasismo, próximo de Vladimir Putin, Politique internationale, nº 144, 2014. 
 
«O Ocidente quer dividir a nossa sociedade [...], provocar uma guerra civil na Rússia e usar a sua quinta coluna para tentar alcançar o seu objetivo. E há um objetivo: a destruição da Rússia.» 
VLADIMIR PUTIN, Presidente da Federação Russa, março de 2022. Sucessor de Boris Yeltsin, está no comando do Estado desde 2000. 
 
«No Donbass, há uma rejeição, uma rejeição fundamental aos chamados valores que são propostos hoje por aqueles que reivindicam o poder mundial. Hoje há um teste de lealdade a esse poder, uma espécie de passe para este mundo “feliz”, um mundo de consumo excessivo, um mundo de aparente “liberdade”. Vocês sabem o que é esse teste? O teste é muito simples e ao mesmo tempo assustador: é uma parada do orgulho gay.» 
PATRIARCA KIRILL DE MOSCOU E DE TODA A RÚSSIA, sermão, março de 2022.  
 
«Acabamos de visitar uma exposição dedicada ao 350º aniversário de Pedro, o Grande. É surpreendente, mas quase nada mudou. [...] Pedro, o Grande liderou a Guerra do Norte durante 21 anos. Temos a impressão de que, ao lutar contra a Suécia, ele se apoderava de algo. Não, ele não se apoderava de nada, ele retomava. Quando fundou uma nova capital [São Petersburgo], nenhum dos países da Europa reconheceu este território como pertencente à Rússia. Todos consideravam que fazia parte da Suécia. Mas desde tempos imemoriais, os eslavos viveram lá ao lado dos povos fino-úgricos. [...] Ele retomava e reforçava. Aparentemente, também é nossa responsabilidade retomar e reforçar.» 
VLADIMIR PUTIN, junho de 2022.
N.T.:  Os povos fino-úgricos ou uralianos não possuem nenhuma unidade étnica e falam diversas línguas incluindo o finlandês, estoniano, lapão e húngaro.