Por Michael Deffner
Traduzido do dialeto tsakoniano através do grego por Francisco José dos Santos Braga
Conto intitulado Ο ψαρά τζαί α γουναίκα σι, recolhido pelo filólogo alemão Michael Deffner (1848-1934)
À beira-mar, dentro de uma choupana viviam desde muitos anos confortável e tranquilamente um pescador e sua esposa. Ele trabalhava todo dia e pegava peixe suficiente e ganhavam dinheiro desse trabalho. Um dia, ele estava sentado na praia e tinha toda a atenção no seu anzol e seus olhos fixados nas águas brilhantes e olhava e olhava. De repente, moveu-se seu anzol por incomum sacudidela e afundou sem parar mais fundo e então o pescador, puxando com muito esforço, pegou um golfinho maravilhoso em comprimento e em formosura.
Após o golfinho se acalmar, fulminou com o olhar o pescador e lhe disse com voz de gente: "Ouça, meu amigo, eu não sou peixe, como pareço, eu sou um príncipe encantado. O que ganhas, se me matares? Joga-me de novo ao mar e deixa-me nadar livremente!"
"Vai em paz!", respondeu-lhe o pescador, "eu não quero ter a companhia de peixes que falam."
E assim jogou o golfinho dentro d'água e ele, ao mergulhar, deixou atrás de si um risco comprido de sangue. Então o pescador levantou-se da pedra em que estava sentado, e voltou para sua casa.
"Meu marido", disse a mulher, quando o viu, "não pegaste nada hoje?"
"Nada!", respondeu o pescador. "Peguei um golfinho, mas ele me disse que era um príncipe encantado, e assim o joguei no mar e deixei-o ir-se embora!"
"Mas não lhe pediste nenhum favor em troca pelo bem que lhe fizeste?"
"Não, nenhum, e que favor querias que lhe pedisse?"
"Ora! não tiveste pena de morarmos nesta choupana, imunda e nojenta, com o frio do inverno e o calor ardente do verão, enquanto poderias ter-lhe pedido alguma casa bonita? Vai e chama-o e diz-lhe para nos dar uma casa. Faz rápido antes que vá embora!"
O pescador não tinha desejo de ir, mas para a sua mulher não ficar de mau humor, decidiu ir. Quando chegou, parou e gritou:
"Golfinho, golfinho meu que eu peguei no meu anzol e que eu deixei livre, vem ouvir de mim o que minha mulher quer!"
Então o golfinho emergiu das ondas e disse:
"Diz o que tua mulher quer de mim."
"Assim que te peguei e de novo te soltei," disse ela, "devia pedir-te um favor. Ela não pode mais viver numa choupana. Quer uma casa."
"Vai, ela já a tem!"
Quando voltou o pescador, encontrou sua mulher sentada em frente a uma casa bonita.
"Vem ver dentro", disse-lhe, "uma sala mobiliada, um quarto de dormir com duas camas, uma cozinha com muitos utensílios de cobre e ao fundo um quintal com galinhas e pombas e um pomar com legumes, flores e poucas árvores. Não é lindo tudo isso?"
"Claro, agora somos verdadeiramente ricos!", disse o homem.
Passaram duas semanas. Quando começou a terceira, disse a mulher a seu marido:
"Que desgraça! esta casa é muito apertada para nós, o jardim e o quintal são muito pequenos. O golfinho poderia facilmente nos dar de presente uma casa maior!"
"Valha-me Deus, mulher", replicou o homem, "a casa é bonita e muito grande para nós dois. Para que queremos uma maior?"
"Que dizes, homem! Vai, encontra o golfinho e pede-lhe outra casa, mas que seja grande como um pequeno palácio!"
"Mulher, não posso de novo pedir-lhe nada; pode zangar-se."
"Vai, te digo, o golfinho pode te fazer esse favor; não vai recusá-lo".
Com o coração oprimido, o pescador decidiu ir. No seu íntimo matutou que não estava agindo bem, mas foi, temendo as rabugices da sua mulher. Quando chegou ao mar, parou de novo e gritou.
"Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e que eu deixei livre, vem cá ouvir de mim o que quer de novo minha mulher!"
Então o golfinho emergiu das águas e disse:
"Pois bem, o que quer de novo tua mulher?"
"Ai de mim", respondeu o pescador com voz tristonha, "quer agora uma casa grande de pedras, um pequeno palácio".
"Vai e a encontrarás lá fora", diz o golfinho.
O homem partiu para voltar à sua casa, mas naquele lugar viu um palácio de pedra e do lado de fora sua mulher que se preparava para subir as escadas. Ela o tomou pela mão e lhe disse:
"Vem comigo!"
Então subiram ambos, e numa grande varanda estavam de pé quatro pajens uniformizados, que faziam reverências e abriam as portas.
As paredes brilhavam como se fossem feitas de diamantes. Uma mesa imensa estava posta no meio do salão enorme e, ao redor, cadeiras de ouro puro. De fora do palácio havia um pomar com muitas árvores e flores e mais para lá se chegava por uma alameda a um estábulo com divisórias, onde eram alimentados os cavalos, os bois e muitos outros animais. Ali havia também dois lindos carros de passeio.
"Olha!, disse a mulher, "não é lindo tudo isso?"
"Claro", respondeu o homem, "agora acho que neste palácio formoso encontrarás o que desejas!"
"Veremos! Vamos jantar e depois dormir. A noite me guiará!"
Bem cedinho, antes do nascer do sol, a mulher despertou e da sua cama olhou para o bonito lugar. O homem ainda dormia um sono profundo.
Ela o sacudiu com o seu cotovelo e lhe disse:
"Levanta para olhares da janela! Olha! Não poderíamos virar reis em todo esse país? Vai encontrar o golfinho e diz-lhe que queremos virar reis."
"Valha-me Deus, mulher, eu não quero virar rei."
"Se não queres, quero eu! Vai rápido e diz ao golfinho que quero que me faça rainha!"
"Mas eu não quero ir, não posso pedir-lhe tal coisa."
"Vai rápido", te digo, "entrou na minha cabeça virar rainha e vou virar. E cala a boca! Vai embora rápido!"
Então o infeliz partiu desolado e tomou o caminho da praia.
"Esta coisa não é certa, não é boa!", dizia para si mesmo, mas foi. Quando chegou, viu o mar, que estava negro e turvo. Não atinou com o que fazer; por fim decidiu e gritou:
"Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e que eu deixei livre, vem cá ouvir de mim o que quer de novo minha mulher!"
Então o golfinho emergiu das ondas e perguntou-lhe:
"Ai, o que quer de novo a tua mulher?"
Suspirando, respondeu o pescador:
"Agora minha mulher quer virar rainha!"
"Vai, tua mulher virou rainha!"
Quando o homem voltou por trás do palácio, viu muitos soldados e cavaleiros, e dentro da sala estava sentada sua esposa sobre um trono de ouro e sobre sua cabeça viu uma coroa de ouro com diamantes. Ao redor viu várias damas uniformizadas que estavam às ordens dela.
Para não falarmos demais, porque se aproxima a meia noite, a mulher louca, que o verme da cobiça consumia, quis virar tanto um imperador quanto um papa, e o golfinho tornou-a um e outro.
Uma noite, ela não podia conciliar o sono, porque pensava em tudo o que ainda podia tornar-se. Quando de manhãzinha viu o céu que ficava vermelho e o sol que emergia do mar, veio-lhe o pensamento:
"Não podia ordenar ao sol nascer e por-se, quando quisesse?"
Seu marido ainda estava dormindo. E com o seu cotovelo o sacudiu nas costelas e lhe disse:
"Levanta-te para ir ao mar encontrar o golfinho; quero virar Deus".
O homem assustou-se tanto que caiu da cama. Julgava não ter ouvido bem, esfregava os seus olhos e disse:
"Oh mulher, o que disseste?"
"Homem", replicou ela, "não posso repousar, vendo o sol e a lua nascerem e eu própria não posso ordenar-lhes nascerem quando eu quiser."
Assim que ela dizia essas palavras, olhou para ele tão brava que tremeu de medo.
"Ai de mim, mulher", diz e ajoelha diante dela. "Isso o golfinho não pode."
Então ela ficou louca e gritou:
"Não posso mais tolerar ver que nasçam o sol e a lua, e as estrelas ainda, sem que eu lhes ordene."
"Mas, mulher, o golfinho não tem esse poder, somente Deus o tem."
"Some da minha vista e diz ao golfinho que quero virar Deus."
O homem foi embora como louco. Do lado de fora, Fortuna começou com tanta força que desenraizava árvores, o céu estava completamente negro e era cruzado pelos raios. Quando chegou à praia, as ondas estavam altas como montanhas e metiam pavor. Com voz trêmula e cortada chamou o golfinho.
"Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e eu deixei livre, vem ouvir o que quer de novo minha mulher!"
"O que é, de novo?", perguntou o golfinho com voz forte.
"Ai de mim, ela quer agora virar todo-poderosa como Deus!"
"Vai, volta para tua pobre choupana! Lá encontrarás também a tua mulher!"
Ali moram até hoje, se viverem ainda.
Este conto quer dizer:
"Se a sorte também enriquecer repentinamente uma mulher pobre, nem o diabo pode segurá-la mais; é como uma mula enfurecida pelas varejeiras."
Fontes: https://www.tsakonianarchives.gr/a-mamou-a-grousa-na-mou/ (capítulo retirado do livro Α μαμού α γρούσσα να μου – Η Γιαγιά η γλώσσα μας ou, em português, Vovó nossa língua, escritor: coletivo (8 contos de Deffner, 1 de Geórgios Stratígis e 1 de Thanássis Kostákis), Atenas: Αρχείο της Τσακωνιάς, 1984, p. 96-99)
https://www.tsakonianarchives.gr/paramithi-psaras-gynaika/ (conto de fadas tsakoniano de Deffner conforme foi ilustrado por crianças durante uma mostra do Arquivo de Tsakoniá intitulada "A casa dos contos de fadas")
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"O Pescador e o Peixe Dourado", obra do escultor Venelin Bozhidarov, numa praça com fontes em Varna, porta de entrada da Bulgária e localizada na costa do Mar Negro. |
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Selo soviético de 1975 (ilustração de I. Vakourov)
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RETROSPECTO HISTÓRICO E CRÍTICA DO CONTO
No verbete "O conto do pescador e do peixinho" em francês, a Wikipedia
proporciona excelente discussão e farta bibliografia sobre o conto de
Pushkin (1799-1837), além de uma visada sobre a literatura de outros países para
identificar a sua filiação. Aqui serão tratados vários tópicos abordados
naquela matéria.
O conto Do Pescador e sua Mulher (em dialeto hamburguês, Vom Fischer un syner Fru) é um conto popular alemão que figura entre os recolhidos pelos irmãos Grimm no primeiro volume de Contos da infância e domésticos (Kinder- und Hausmärchen, 1812). Consta que sua fonte foi o pintor alemão Philipp Otto Runge (1770-1810), de quem os Grimm obtiveram um manuscrito do conto em 1809. Johann Gustav Büsching publicou outra versão do manuscrito de Runge alguns meses antes, em Volkssagen, Märchen und Legenden, com algumas discrepâncias em relação à versão dos Grimm.
O conto dos Grimm inspirou, dentre muitos outros, os seguintes autores:
— Alexandr Pushkin para seu Conto sobre o pescador e o peixinho em versos (em russo: Сказка о рыбаке и рыбке, escrito em 14/10/1833 e publicado pela primeira vez em 1835 na revista Biblioteca para a Leitura). A versão russa de Alexandr Afanassiev de 1864 para o conto "O peixinho de ouro" (na sua coletânea de Contos populares russos) é muito próxima à de Pushkin de 30 anos antes;
— o compositor russo Othmar Schoeck para sua cantata dramática Vom Fischer un syner Fru (1930) e
— o escritor Günter Grass para seu romance Der Butt (1977, O Pregado — ou linguado — em português, que tem como ponto de partida o referido conto dos Grimm).
Em 1853, Antoine Joseph Glinski publica uma coletânea de contos poloneses, entre os quais O Velho, a Velha e o Peixinho de ouro, que lembra admiravelmente a versão de Pushkin e a de Afanassiev. Em 1878, uma revista sueca publica uma história muito próxima também, O Peixinho de ouro, apresentado como conto tradicional sueco. Medrich sugere que as versões polonesa e sueca, bem como a versão afanassieviana, são todas inspiradas na versão de Pushkin.
Fique-se ciente de que, na época, o conto é conhecido sob uma forma ou outra no mundo inteiro, tanto na Índia ou na China quanto na Inglaterra ou na França.
Os estudiosos consideram que Pushkin tomou o conto dos irmãos Grimm e o adaptou ao contexto russo, abandonando as últimas exigências da mulher do pescador que, na versão alemã, queria ser papa, e finalmente, tornar-se o próprio bom Deus.
TEMA
O conto evoca a insatisfação e a ganância desmesurada e sem limite, e mostra-se claramente misógino: o personagem da velha, insuportável megera gananciosa, rabugenta, brutal (quando rainha, ela insulta e manda maltratar seu marido), se opõe ao personagem do velho, indulgente, respeitoso, conciliador (ele nunca reclama nada para si), embora um pouco frouxo. Quanto ao peixinho com poderes sobrenaturais, respeita fielmente e sem comentário sua promessa a cada nova exigência da velha, até onde o limite do tolerável esteja franqueado, a partir do qual vira tudo de cabeça para baixo e traz a situação de volta ao ponto de partida, mas de maneira definitiva, sem qualquer outra chance.
É verificável a misoginia em maior grau no conto russo de Pushkin.
Uma versão ucraniana coloca em cena um camponês que se prepara para derrubar uma tília que promete ao lenhador que atenderá seus desejos, se for poupada. Nesse conto é o camponês — não sua mulher — que se mostra ganancioso, ao ponto de exigir da tília virar czar/czarina e até deuses. A tília então transforma ambos num casal de ursos que fogem na floresta.
RESUMO DO CONTO DE PUSHKIN
Um velho pescador e sua velha vivem em uma cabana pobre à beira-mar. Um dia, o velho, depois de várias tentativas infrutíferas, recolhe em sua rede um peixinho de ouro, que se dirige a ele com uma voz humana. E implora que o jogue de volta ao mar, prometendo-lhe em troca satisfazer todos os seus desejos. O velho o liberta sem exigir nada. De volta para casa, ele conta a história para a esposa, que o chama de idiota e manda que ele vá pedir ao peixe uma nova bacia de roupa, substituindo a deles, que está quebrada.
O velho assim o faz e, voltando à praia, chama respeitosamente o peixinho, que aparece e pergunta o que ele quer. Informado do pedido da velha, garante ao velho que terão uma nova bacia: é o que acontece. Mas novamente a velha critica violentamente o marido e manda-o de volta ao peixinho, desta vez para reclamar uma isba (casa russa tradicional dos camponeses russos, construída de madeira, semelhante a um chalé). O velho faz. O peixinho, emergindo de um mar já menos tranquilo, realiza o desejo: voltando para casa, o velho encontra uma bela isba no lugar da cabana. Mas a velha, ainda insatisfeita, agora afirma ser nobre. O peixinho concede-lhes um rico terem (palácio russo), onde a velha reina, rodeada de criados e tratando o marido como um servo. (Sempre que o velho, cada mais constrangido, sai ao encontro do peixinho, o mar fica cada vez mais agitado, depois escuro e ameaçador).
A velha então consegue ser czarina no palácio, mas isso ainda não lhe basta: a partir de agora ela quer ser soberana do mar, e que o próprio peixinho esteja às suas ordens. Diante de um mar revolto, o velho, infeliz, anuncia essas exigências exorbitantes: mas desta vez, o peixinho, sem dizer uma palavra, com um abano da cauda desaparece nas ondas.
Vendo que não obteve resposta, o velho finalmente voltou para casa: em vez do palácio, da czarina e dos criados, ele encontrou sua pobre cabana, sua velha sentada na soleira, e na frente dela, a quebrada bacia de roupa.
A FILIAÇÃO DO CONTO
A gênese do conto é muito controvertida. Circularam inúmeras versões do conto no século XIX em diferentes países (Alemanha, Rússia, Polônia, Suécia, etc.)
MORAL DA HISTÓRIA
Contente-se com pouco, para não perder tudo.
DIVERGÊNCIANa fábula de La Fontaine intitulada
O Peixinho e o Pescador, o peixe capturado pede também para devolvê-lo à água, fazendo promessa de vantagens futuras. Mas o pescador, bem mais pragmático, manda fritar o peixe, com base no fato de que "um na mão hoje vale mais do que dois no futuro ("un
tiens vaut mieux que deux
tu l'auras"). E não trata de sua mulher.
Link:
https://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Conte_du_p%C3%AAcheur_et_du_petit_poisson#cite_ref-8
BREVE ANÁLISE LITERÁRIA DO CONTO TSAKONIANO
Conforme visto, a gênese do conto é muito controvertida. Circularam inúmeras versões do conto no século XIX em diversos países.
Certamente Deffner, o filólogo que coligiu o conto tsakoniano, estava ciente de que, ao recolher a versão tsakoniana de "O pescador e sua mulher", estava pondo um tempero novo na salada da dúvida: "Qual país teria dado origem ao singular conto? Por que não a Grécia?"
Claro que o filólogo alemão percebeu, no conto que recolhera, que havia no conto tsakoniano elementos estranhos à linhagem localizada na Europa ocidental e oriental, estendendo-se à Ásia.
Permito-me a esta altura levantar algumas particularidades do conto tsakoniano não encontradas nas outras versões das diferentes línguas (em especial, alemão, russo, ukraniano, polaco, sueco, etc.). Eis as observações mais substantivas:
— O personagem do peixe é desempenhado por um golfinho, e não por um pregado, nem um linguado, caracterizado no conto tsakoniano como "maravilhoso em comprimento e em formosura". Observe que não fala de um "golfinho de ouro" (em contraposição às imagens da escultura acima postadas), embora tivesse "voz de gente", e em suas próprias palavras ser "um príncipe encantado".
— O golfinho cai no anzol da vara do pescador, e não em nenhuma rede.
— Conforme as exigências da velha vão num "crescendo", a aparência do mar vai se modificando como se prenunciasse um desastre iminente, indicando que a generosidade do peixe estava próxima a uma gota d'água. É interessante a descrição dos elementos da natureza e principalmente do mar onde vive o peixe, o regulador da história. O mar ameaça e incha dependendo da ganância que a mulher do pescador exibe a cada vez. Quando busca se tornar Deus, a natureza (deusa Fortuna) fica furiosa e se rebela contra tal insulto. As cenas são uma reminiscência do Apocalipse.
— O enredo do conto evidencia o desajuste conjugal, a velha querendo sempre mais distinções e posições sociais e o velho sentindo-se desconfortável de ser seu porta-voz com o peixe, embora estivesse indisposto e submisso às crescentes exigências da sua mulher. Às vezes, ele se abria ou com o peixe ou com a velha. Ex.: "vem ouvir de mim o que minha mulher quer"; "O pescador não tinha desejo de ir, mas para a sua mulher não ficar de mau humor, decidiu ir" ou "Eu não quero virar rei", mostrando sua inconformidade com a ganância dela sempre crescente. Ele é o homem que tem medo de sua esposa e é forçado a violar seus próprios limites morais para não discordar e romper com ela. O velho tenta a cada vez contê-la, dizer para ela até aqui: "Basta! Você deveria estar feliz, não pedir tantas coisas." Ela, porém, entrou na dança e não hesita em pisar nos outros. Na verdade, o único em que ela pisa é o marido. Claro, a motivação para pedir mais é reforçada pela facilidade com que o peixe lhe concede favores.
— Observe a grande quantidade do verbo "querer", ao longo de todo o conto, referindo-se quase sempre à ganância da velha.
— De acordo com o poema em versos de Pushkin, à exigência da velha de querer ser soberana do mar ou deus (com o peixe sendo submetido ao seu domínio) "o peixe não respondeu palavra", expressando que sua generosidade tinha chegado ao fim. Ничего не ответила рыбка, «лишь хвостом по воде плеснула и ушла в глубокое море» (O peixe não respondeu, "ele apenas abanou a cauda na água e foi para o fundo do mar").
Na versão tsakoniana, é o peixe que tem a última palavra: "Vai, volta para tua pobre choupana! Lá encontrarás também a tua mulher!"
— Na moral da história, o conto utiliza conceitos comuns ao ambiente rural: "mula enfurecida pelas varejeiras", inimaginável nas versões alemã e russa.
Tomando como base o desejo da velha de ser soberana do mar, cabe aqui fazer um breve comentário sobre o livro Homo Deus: Após Deus e o Homem, os Algoritmos vão tomar as decisões, da autoria do israelense Yuval Noah Harari. No seu livro, Harari descreve como o Humanismo substituiu Deus, quando a mente humana passou a ser vista como a maior autoridade, e agora o Humanismo está sendo substituído por um mundo em que algoritmos e dados tomam as decisões.
Os algoritmos, num futuro próximo, não só aperfeiçoarão nossas habilidades, mas também melhorarão no conhecimento do que sentimos. Chegarão até a nos conhecer melhor do que somos capazes de nos conhecer.
Com isso, o fim do homo sapiens já está à vista.
Harari pensa que a ideia de que o homem é autônomo e tem livre arbítrio está chegando ao fim. "No século XXI a autoridade voltará às nuvens, mas não às dos deuses, mas às da Microsoft, Google e Facebook. Com todos os dados coletados por essas companhias, serão desenvolvidos os algoritmos que compreendam os humanos, que nos compreendam melhor do que nós mesmos. Então, cada vez mais autoridade se moverá de nós para o algoritmo.
O autor acredita — a esperança é a última que morre! — que, ao discutirmos cenários perigosos para nós mesmos, podemos atuar e preveni-los de acontecerem.
12 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe a minha tradução através do grego do conto (de fadas), intitulado O Pescador e sua Mulher, coletado por Michael Deffner do dialeto tsakoniano, língua supostamente falada pelos Espartanos.
A primeira versão universalmente conhecida é a dos irmãos Grimm, seguida pelo poema em versos de Pushkin, sucedida pela versão russa de Alexandr Afanassiev de 1864 para o conto "O peixinho de ouro" e assim por diante.
Devemos ao filólogo alemão MICHAEL DEFFNER a coleta da versão tsakoniana do mesmo conto, que se distingue das versões já conhecidas por particularidades linguísticas e regionais que aqui serão apreciadas.
Tudo isso será visto no presente post.
https://bragamusician.blogspot.com/2021/03/conto-tsakoniano-o-pescador-e-sua-mulher.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Braga, do zero ao infinito é uma longa e difícil se não impossível caminhada.
Os espartanos sempre me pareceram sábios.
Eugênio
Mestre Francisco Braga,
maravilhoso e instrutivo o conto do pescador e o golfinho, que você traduziu do grego falado pelos espartanos. Parabéns! Lição moral. E o pescador, depois daquelas loucuras da mulher ambiciosa, voltou para a pobreza de sua mansarda... com a mulher dentro.
Abraço do Danilo Gomes.
Muito instrutivo!
Heitor
Um bom e delicado aviso sobre a ganância: quem tudo quer, tudo perde. Obrigado por me levar de volta à infância de menino satisfeito de viver, pés descalços, numa fazenda de pastos cheios de bois.
Abraço fraterno,
Paulo Sousa Lima
Caro amigo Braga
Este conto é muito interessante, embora invoque – como você mesmo disse em “Tema” – a “insatisfação e a ganância desmesurada e sem limite”.
A ganância é uma doença incontrolável! Nada é capaz de detê-la!
Agradecemos pela gentileza do envio.
Abraços de Mario e Beth.
Caro professor Braga;
Fabuloso conto, quem saberá de origem helênica, e muito interessante a sua exposição sobre as suas muitas versões e autores pela Europa. O paralelo entre a ambição humana e as novas tecnologias deixam mesmo o que pensar.
Muito grato.
Cupertino
Grato, caríssimo Braga, pelo envio. Ao ensejo, quero desejar que você e esposa, em nome também de minha esposa, filhos e netas, que tenham uma santa Semana Santa, apesar da pandemia nos haver impedido de celebrar condignamente as liturgias deste período de fé. O Senhor dos Passos guie nossos passos.
Gratidão, Francisco Braga
Feliz Páscoa!
Obrigado, caro Braga, pela remessa do conto e comentários. Mando, em anexo, minha Antologia Poética, que compus, obviamente em cima de minha obra poética, no mês passado. Com o isolamento da pandemia não me anima publicar um livro novo, mas quero, como sempre, fazer circular minhas composições literárias. Eu sou romancista, contista, cronista e poeta, e, dentro de minha visão global literária (onde a música exerce muita importância) um amigo professor de Literatura usou certa obra minha para me qualificar como pós-pós-moderno em sua tese de doutorado, a partir do fato de eu usar de meus conhecimentos e práticas nos diversos gêneros, escolas passadas e presentes, um cadinho do que me formou, um tanto como denominam de prosa poética ou poesia em prosa. Acho que esta a melhor forma de me expressar. Dados sobre minha vida e obra, aliás, estão a partir da página 185 da Antologia que vai em anexo. Espero que lhe forneça um bom entretenimento. Saudações cordiais e fraternas,
Gerson Valle
Caro Francisco:
Excelente trabalho de análise literária do conto do dialeto tsakoniano .
Bom saber no que ele se distingue das outras versões, disseminadas
por entre povos com idiomas e costumes diversificados.
Os contos infantis levam às crianças o mundo do "era uma vez" e do
"faz de conta". Li muitos deles em minha infância. E criei os meus também.
Aos adultos, trazem, na "captura" do tema, uma exortação, uma sugestão
de mudança de atitudes, à semelhança do que nos proporcionam as parábolas
e as fábulas. Grata por essas coisas bonitas.
Esperamos com fé mudanças felizes nessa Páscoa que se aproxima.
Um abraço fraterno para você e Rute.
Maria Auxiliadora
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