Por Francisco José dos Santos Braga
Menênio Agripa narrando seu apólogo à Plebe. Gravura de B. Barloccini, 1849: La rebelion de la plebe en el monte Sacro. |
I. TITO LÍVIO: Ab Urbe Condita, livro II, 32.8-12
“Placuit igitur oratorem ad plebem mitti Menenium Agrippam, facundum virum et quod inde oriundus erat plebi carum. Is intromissus in castra prisco illo dicendi et horrido modo nihil aliud quam hoc narrasse fertur: tempore quo in homine non ut nunc omnia in unum consentiant, sed singulis membris suum cuique* consilium, suus sermo fuerit, indignatas reliquas partes sua cura, suo labore ac ministerio ventri omnia quaeri, ventrem in medio quietum nihil aliud quam datis voluptatibus frui; conspirasse inde ne manus ad os cibum ferrent, nec os acciperet datum, nec dentes quae acciperent conficerent. Hac ira, dum ventrem fame domare vellent, ipsa una membra totumque corpus ad extremam tabem venisse. Inde apparuisse ventris quoque haud segne ministerium esse, nec magis ali quam alere eum, reddentem in omnes corporis partes hunc quo vivimus vigemusque, divisum pariter in venas maturum confecto cibo sanguinem. Comparando hinc quam intestina corporis seditio similis esset irae plebis in patres, flexisse mentes hominum.”
[Minha tradução: Foi decidido enviar à Plebe, como porta-voz, Menênio Agripa, homem eloquente e bem-quisto, por ser oriundo dela. Diz-se que, tendo sido introduzido no acampamento, com um certo modo de falar antigo e rude, narrou nada mais que isto: “Numa época em que, no organismo humano, tudo não estava, como agora, em perfeita concordância, quando tinha prevalecido a cada um dos membros isolados seu direito à própria opinião, à sua própria voz, indignaram-se as demais partes do corpo por ser a elas que cabiam o cuidado, o incômodo e o fardo de obter tudo para o estômago, enquanto o estômago, muito tranquilo no meio (do corpo), tinha apenas que se deleitar com os prazeres que lhe eram dados. Juntos, decidiram então que as mãos não levariam mais comida à boca, que a boca não levaria mais a comida oferecida, que os dentes não a mastigariam mais. Como resultado dessa ira, ao querer vencer o estômago pela fome, os membros também e todo o corpo chegaram à beira da exaustão. Os membros então perceberam que o estômago também tinha sua função, não a de um preguiçoso, e que os alimentava tanto quanto eles o alimentavam, devolvendo a todas as partes do corpo o que nos traz vida e força, o sangue, enriquecido pela digestão, repartido uniformemente entre as veias.” Então, mostrando o quanto a sedição intestina dentro do corpo se assemelhava à ira da Plebe contra os Patrícios, Menênio havia dobrado os Plebeus.]
II. COMENTÁRIOS
1) A fundação de Roma é tradicionalmente aceita como em 753 a.C. Entre os anos de 753 a.C. e 509 a.C., Roma viveu o período conhecido como Reino de Roma, sob uma monarquia, um período de crescimento e transformação em cidade, incorporando diversas reformas, com a construção de espaços públicos, de fortificações, de calçadas, de sistemas de esgotos.
Na Roma Antiga, a palavra curia designava um grupo de homens, ou o lugar onde eles se encontravam. O termo assim designado subentendia subdivisões cívicas em Roma na época da monarquia. Logo
após a fundação de Roma, os romanos foram divididos em trinta cúrias,
organizadas com base em laços familiares e, por isso, na estrutura
étnica dos primeiros anos de Roma. Cada cúria tinha seus próprios
festivais, deuses e ritos religiosos. As cúrias se reuniam numa assembleia
legislativa conhecida como Assembleia curiata, criada logo depois
da lendária fundação de Roma em 753 a.C. e tinha o poder de eleger os
reis de Roma, entre outras atribuições. Como essas assembleias funcionavam com base numa democracia direta, cidadãos ordinários — e não representantes eleitos — votavam.
Durante a monarquia, o Senado ou conselho dos anciãos era o conselho dos reis, sendo os seus membros — cuja escolha possivelmente se fazia pelos reis, entre os chefes das diferentes gentes (singular gens) — denominados senatores ou patres (pais), cujo número a princípio era de 100, e, no final do período real, ascendeu a 300.
Quanto à competência do Senado:
1) Com relação ao rei, era consultiva (este, nos casos mais importantes, devia consultá-lo, embora não estivesse obrigado a seguir o conselho);
2) Com referência aos comícios era confirmatória (toda deliberação deles, para ter validade, devia ser confirmada pelo Senado, ou seja, obter a patrum auctoritas).
Quanto à competência do Senado:
1) Com relação ao rei, era consultiva (este, nos casos mais importantes, devia consultá-lo, embora não estivesse obrigado a seguir o conselho);
2) Com referência aos comícios era confirmatória (toda deliberação deles, para ter validade, devia ser confirmada pelo Senado, ou seja, obter a patrum auctoritas).
O Senado tornou-se, especialmente na fase republicana (509–27 a.C., período vigente da República Romana), a mais alta autoridade do Estado, em que os senadores exerciam em caráter vitalício.
Da fundação de Roma (753 a.C.) até 494 a.C., os Plebeus não
tinham nenhum direito político e cada família plebeia era dependente de
uma família dos Patrícios. Assim, cada família plebeia pertencia à mesma
cúria de seu patrono. Apesar disto, apenas os Patrícios podiam votar na
Assembleia curiata.
Secessão da plebe (em latim: secessio plebis) era um exercício informal de poder na Roma Antiga, pelo qual cidadãos plebeus se articulavam em um movimento semelhante a uma greve geral levada ao extremo. Durante uma secessão, os Plebeus simplesmente abandonavam a cidade em massa e abandonavam os Patrícios à própria sorte. Naquela época (494 a.C.), a plebe não tinha acesso a magistraturas e, revoltada com o arbítrio dos magistrados patrícios, abandonou a Roma de então e se dirigiu ao monte Sacro, com o objetivo de fundar ali uma nova cidade.
Esta era uma estratégia muito efetiva durante o "Conflito das Ordens" por causa da força nos números; os plebeus eram a vasta maioria da população romana e produziam a grande maioria da comida e demais recursos, enquanto um patrício era membro da classe alta minoritária.
Esta 1ª Secessão da Plebe foi o resultado de uma crescente preocupação da plebe com as dívidas (que podia resultar em escravidão) e na falha do Senado em lutar pelo bem estar da plebe. Os revoltosos abandonaram Roma e se juntaram sobre o Monte Sacro. Como parte da solução negociada, os patrícios perdoaram a dívida de alguns plebeus e cederam parte de seu poder permitindo a criação do cargo de tribuno da plebe, a primeira função governamental ocupada pela plebe.
A situação dos Plebeus na formação da cidade-estado vai mudar em 494 a.C., por intermediação de Menênio Agripa, parlamentar que consegue apaziguar a 1ª Secessão da Plebe que tinha se amotinado sobre o Monte Sacro, segundo uns, e Aventino, segundo outros. Após a intermediação de Menênio Agripa, que narrou o Apólogo dos Membros e do Estômago para convencer os levantados, estes depuseram as armas e voltaram à comunidade romana e às fileiras do Exército, compondo um “todo harmônico” social, o qual era pretendido pelo orador. A criação dos cargos de tribuno da Plebe e edil plebeu marcou o fim da primeira fase da luta entre Plebeus e Patrícios.
2) Menênio Agripa (cônsul em 503 a.C. e falecido em 493 a.C.) foi um político e militar romano do século VI a.C., pertencente à gens Menenia
(logo, um Patrício). Foi cônsul com Públio Postúmio Tuberto no ano 503
a. C., quando conquistou os sabinos e obteve a honra de um triunfo em
razão dessa vitória. Dominava a oratória, com a qual intermediou o
conflito entre Patrícios e Plebeus, quando estes últimos se amotinaram
sobre o Monte Sacro (a 3 milhas da Roma de então) acaudilhados por Lúcio Sicínio
Veluto no ano 494 a.C., conseguindo que os amotinados depusessem as
armas. Morreu logo depois, e como não possuía bens suficientes para
quitar os gastos com o próprio funeral, foi enterrado pelos Plebeus
através de uma ação entre amigos.
3) O apólogo de Menênio Agripa (apólogo=tipo de fábula caracterizada por um destacado sentido alegórico e moral; no caso, a dos membros e do estômago) foi aquele com o qual ele teria convencido os Plebeus a porem fim à secessão sobre o Monte Sacro (ou no Aventino, segundo a tradição mais antiga).
O mesmo apólogo, em diferentes variantes, foi reproduzido por inúmeros escritores (Em latim: em Cícero in De Officiis, livro III, 22; Valério Máximo in Feitos e Dizeres Memoráveis (VIII, 9, 1); Públio (ou Lúcio) Aneu Floro in Resumo da História Romana (I, 23); o autor do De Viris Illustribus, livro XVIII, 1-7. Em grego: Esopo: fábula O Estômago e os Pés; Dionísio de Halicarnasso in Antiguidades Romanas, VI, 86; Plutarco in Vida de Coriolano, VI, 2-5; Dion Cassius in História Romana, IV (fragmentos), 33; Zonaras in Epítome de Histórias, VII, 14 e em São Paulo in 1ª Carta aos Coríntios, cap. XII, 14-26. Em francês: La Fontaine in Fables, livre III, 2).
III. CONTRIBUIÇÃO PARA OS FINS DA PRESENTE PESQUISA
Gostaria de reproduzir aqui minha tradução do inglês para um interessante trecho do livro Ovid's Women of the Year: Narratives of Roman Identity in the Fasti, p. 21-3, por Angeline Chiu, que traz informações adicionais sobre Menênio Agripa, no seu apólogo “Os Membros e o Estômago” e intrigantes e esclarecedores insights sobre o famigerado episódio do Conflito das Ordens (Patrícios X Plebeus), denominado 1ª Secessão da Plebe, envolvendo o Exército Romano e o perigoso momento histórico em que ele combatia simultaneamente Équos, Sabinos e Volscos. Tenhamos em mente que o Conflito das Ordens começou 15 anos após a fundação da República.
“(...) O incidente da famigerada estratégia dos Plebeus de se mudarem em massa para o Monte Sacro fora de Roma em 494 a.C, aparece de forma destacada em Tito Lívio, cujo relato in História Romana, livro II, capítulos 23-33 é nossa fonte preservada mais influente na descrição literária latina. Também é possivelmente a mais influente descrição da 1ª Secessão da Plebe na literatura latina. Como Lívio a apresenta, a confrontação entre os Patrícios e os Plebeus sobre direitos civis e participação política é um momento crítico para a cidade-estado emergente: a identidade romana está em risco, assim como a integridade, a viabilidade e consequentemente o futuro da Urbs estão todos em perigo.
A narrativa de Lívio diz respeito basicamente aos eventos na própria cidade de Roma, expressos com os amplos alcance e faro característicos para o dramático. Ele contextualiza o conflito como ocorrendo durante um momento particularmente perigoso para a iniciante República (em vigor somente há 15 anos): o perigo militar externo e a desavença civil interna criam uma tempestade perfeita. O desacordo doméstico entre Patrícios e Plebeus indica não só uma disputa política mas também uma perda da coesão social. A integridade cívica romana começa a despedaçar-se em sectarismo e caos, ameaçando a viabilidade de Roma como comunidade e sociedade plural. Enquanto isso, os Volscos, um inimigo estrangeiro, ameaçam a viabilidade de Roma como nação-estado. A necessidade de Roma resolver sua crise de identidade interna torna-se urgente. A narrativa de Lívio descreve o sinal mais claro daquela crise: a decisão drástica da Plebe de retirar-se de Roma e armar acampamento sobre o Monte Sacro (II, 32-2). Os participantes fizeram uma preparação premeditada: desde a construção de um acampamento próprio até o transporte de provisões. É claro que se comprometeram no longo prazo. O efeito sobre os Patrícios ainda na Cidade é premente:
"Nullam profecto nisi in concordia civium spem reliquam ducere; eam per aequa, per iniqua reconciliandam civitati esse."
[Minha tradução: Não restava nenhuma esperança no futuro senão na harmonia dos cidadãos: esta devia, portanto, ser devolvida à cidade sob qualquer condição, vantajosa ou desvantajosa que fosse. (II, 32-7)]
Roma, como uma comunidade de diferentes distritos lotados num local, está em risco.
Neste ponto na narrativa, fica manifesta a inclinação de Lívio por arquétipos e pronunciamentos. Distante da confusão na Cidade, surge um indivíduo que exibe uma qualidade exemplar necessária em tal crise. Aqui aquela qualidade é publicamente orientada, composta das habilidades diplomáticas de retórica e persuasão: o indivíduo é Menênio Agripa, que Lívio descreve como um homem respeitado por ambas as Ordens em conflito. Além disso, devido à sua reputação duplamente boa, ele é um romano com a habilidade, oportunidade e responsabilidade de reconciliar as Ordens fracionadas, em conflito:
"sic placuit igitur oratorem ad plebem mitti Menenium Agrippam, facundum virum et quod inde oriundus erat plebi carum." (II, 32.8)
Menênio Agripa, ele próprio um plebeu, é a escolha dos Patrícios para ser seu emissário aos Plebeus ressentidos sobre o Monte Sacro; uma vez lá, ele abranda sua ira, contando-lhes a parábola do Estômago e dos Membros (II, 32.9-12). O resultado é a reconciliação dos Plebeus e Patrícios: a crise é resolvida e a natureza plural do Estado restaurada, na medida em que suas facções são reintegradas.
Na narrativa de Lívio, o envolvimento de Menênio Agripa é essencial. Ele é a ponte entre as duas Ordens; devido a seus esforços, a comunidade romana é restaurada e a fratura na identidade cívica romana curada. Neste episódio Menênio é a única figura nomeada cuja identidade pessoal e ações individuais Lívio descreve com algum detalhe. Mesmo mais do que resolvendo a crise, Menênio ganha um lugar na galeria de homens públicos romanos. Surge um novo senso de unidade na comunidade romana, e ele está no centro dele: Lívio explicitamente o descreve na conclusão como vir omni in vita pariter patribus ac plebi carus (II, 33-10) - isto é, um homem por toda a sua vida igualmente caro aos Patrícios e aos Plebeus. Ele vem corporificar a espécie de concórdia que Roma necessitava. A coda é um relato da morte e funeral de Menênio Agripa, e contém algo surpreendente: os Plebeus pagam as despesas do seu funeral:
"Eodem anno Agrippa Menenius moritur, vir omni in vita pariter patribus ac plebi carus, post secessionem carior plebi factus. Huic interpreti arbitroque concordiae civium, legato patrum ad plebem, reductori plebis Romanae in urgem sumptus funeri defuit; extulit eum plebs sextantibus conlatis in capita." (II, 33.10-11)
[Minha tradução: Nesse mesmo ano (493 a.C.) Menênio Agripa morreu, o homem que fora em vida igualmente caro à Plebe e aos Senadores e que, depois da secessão, se tornou mais querido da Plebe. A este que tinha sido o mediador e intérprete da reconciliação entre os cidadãos, que tinha sido o embaixador do Senado na Plebe e aquele que os trouxera de volta a Roma e não tendo deixado dinheiro suficiente para pagar o funeral: enterrou-o a Plebe que contribuiu com algumas moedas por cabeça.]
Esta é uma conclusão tocante e também contém a intrigante ideia de que os Plebeus o consideravam um digno recipiendário de sua honra, não apenas porque ele próprio era um plebeu, mas também porque tinha sido bem sucedido na reconciliação dos Plebeus com os Patrícios. Os Plebeus atuam com sua própria, menor mas distinta, identidade dentro da maior Roma, mas aqui agem de forma a honrar o homem que ajudou a reincorporá-los na comunidade maior. A celebração post mortem de Menênio Agripa é uma lembrança dos seus bem sucedidos esforços para fazer a ponte entre Patrícios e Plebeus durante aquele perigoso momento na história romana. Visto que Menênio Agripa pudesse estar alinhado com um lado do impasse, ele teria que se alinhar com os Patrícios, na medida em que eles o tinham escolhido para ser seu embaixador com os Plebeus grevistas. (...)”
V. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CHIU, Angeline: Ovid's Women of the Year: Narratives of Roman Identity in the Fasti, p. 21-3.
4 comentários:
Prezad@,
Dentro da série "Recupere seu Latim", hoje apreciaremos um trecho da obra Ab Urbe Condita (Desde a Fundação da Cidade), um monumento historiográfico constante de 142 livros, onde Tito Lívio tenta relatar a história de Roma desde o momento tradicional da sua fundação, 753 a.C., até ao início do século I da Era Cristã.
Lívio escreveu primeiramente algumas obras filosóficas, todas elas perdidas. Nos últimos quarenta anos de sua vida, dedicou-se à narrativa da História de Roma, desde sua fundação até ao ano de 9 d.C.
O trecho de Lívio selecionado para esta seção que intitulei "Apólogo dos Membros e do Estômago por Menênio Agripa" será devidamente analisado e traduzido no episódio da história romana conhecido por 1ª Secessão da Plebe.
Menênio Agripa terá uma participação modelar na reconciliação das Ordens em conflito, isto é, Patrícios X Plebeus, tendo conseguido aplacar os ânimos dos amotinados sobre o Monte Sacro com a narração de um apólogo: "Os Membros e o Estômago".
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/06/recupere-seu-latim-parte-11-apologo-dos.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Boa tarde
Prezado amigo Braga.
Muito obrigado pela sua atenção.
Forte abraço
Bom final de semana.
Diamantino
Olá, Francisco e Rute.
Meus parabéns com seu trabalho interessante a respeito da origem da cidade de Roma. Espero que isto será de proveito para muita gente!!
Estou me recuperando aqui de um resfriado forte que atacou a audição do meu ouvido direito. Espero poder recuperar audição normal. Espero que tudo esteja OK com vocês.
Grande abraço do irmão fr. Joel.
Prezado Francisco Braga,
Muito bom e importantíssimo trabalho de resgate da língua latina, além da história e cultura romana. Fui ex-seminarista em Congonhas do Campo e tive o privilégio de ter estudado latim, que sempre me valeu em todas as áreas. Muito obrigado por me enviar seus artigos.
Cordial abraço,
Bonum et beatum diem!
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