Por Francisco José dos Santos Braga
A Espada de Dâmocles
I. INTRODUÇÃO
Dâmocles, conselheiro da corte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa (405-367 a.C.), cidade colonial grega da Sicília, ficou célebre ao longo da História pelo lendário episódio da Espada de Dâmocles, que se tornou uma expressão que significa perigo iminente ou os riscos inerentes à posição de mando.
Dionísio, o Velho, notabilizou-se por suas campanhas contra os cartagineses da Sicília (397-375 a. C.) e por salvar Siracusa do domínio cartaginês, tendo conseguido elevá-la à categoria de primeira potência europeia, a mais poderosa cidade grega a oeste da Grécia continental. Despótico e brutal, tornou-se o senhor da Magna Grécia (386 a.C.), extensa área ao longo do golfo de Taras, hoje Tarento, Itália. Na guerra contra Cartago foi vitorioso nas duas primeiras batalhas e derrotado na terceira, quando perdeu territórios e teve que pagar pesada indenização. Preparava-se para uma quarta guerra contra Cartago quando morreu embriagado durante as Lenaias, a festa dos tonéis de vinho (367 a.C.), tendo sido sucedido pelo filho Dionísio II (395-343 a.C.), conhecido como o Jovem, e que foi exilado por seus atos despóticos (343 a.C.).
II. TRADUÇÃO DO LATIM por Francisco José dos Santos Braga
[61] Certa feita, o próprio tirano Dionísio, o Velho, mostrou como era feliz. Eis que um de seus bajuladores, chamado Dâmocles, lembrava numa conversa suas riquezas, a majestade do poder, a abundância de bens, a magnificência dos assentos reais e dizia que nunca ninguém tinha sido mais feliz do que ele. Ao que o tirano retorquiu:
— Dâmocles, já que esta vida te agrada (tanto), que tal tu mesmo saboreá-la e experimentar essa minha sorte?
Quando o próprio Dâmocles disse que o desejava ardentemente, Dionísio ordenou que o reclinassem num leito de ouro, coberto com um belíssimo brocado, tecido e bordado com imagens magníficas e ornou vários aparadores com pratos de ouro e prata ricamente cinzelados. Então ordenou que alguns rapazes escolhidos por sua bela aparência estivessem postados à sua mesa e o servissem com cuidado, examinando cada aceno de cabeça.
[62] Havia essências e coroas, o incenso foi aceso, mesas abastecidas com pratos requintados. Dâmocles se considerava sortudo.
Em meio a essa magnificência, contudo, ordenou que se pendurasse uma espada brilhante presa com uma crina de cavalo no teto da sala, ameaçando o pescoço daquele afortunado.
Agora este não olhava mais para aqueles belos servos ou para a prata ornamentada; ele não estendia mais a mão para a mesa; agora até as próprias coroas caíram de sua cabeça; por fim, implorou ao tirano que o deixasse ir embora, porque não queria mais ser feliz.
Parece — é bastante claro — ter Dionísio declarado que não há nada de feliz naquilo sobre o qual há sempre iminência de terror por algum incidente; e para ele decerto não era possível voltar à justiça, restaurar a liberdade e os direitos dos cidadãos; de fato, quando jovem, devido à sua idade irrefletida, ele tinha se envolvido em coisas erradas e tinha feito coisas tais que não poderia ser salvo, se começasse a ser saudável.
TEXTO LATINO
[61] Quamquam hic quidem tyrannus ipse iudicavit, quam esset beatus. Nam cum quidam ex eius adsentatoribus, Damocles, commemoraret in sermone copias eius, opes, maiestatem dominatus, rerum abundantiam, magnificentiam aedium regiarum negaretque umquam beatiorem quemquam fuisse, “Visne igitur” inquit, “o Damocle, quoniam te haec vita delectat, ipse eam degustare et fortunam experiri meam?” Cum se ille cupere dixisset, conlocari iussit hominem in aureo lecto strato pulcherrimo textili stragulo, magnificis operibus picto, abacosque compluris ornavit argento auroque caelato. Tum ad mensam eximia forma pueros delectos iussit consistere eosque nutum illius intuentis diligenter ministrare.
[62] Aderant unguenta coronae, incendebantur odores, mensae conquisitissimis epulis extruebantur. Fortunatus sibi Damocles videbatur. In hoc medio apparatu fulgentem gladium e lacunari saeta equina aptum demitti iussit, ut impenderet illius beati cervicibus. Itaque nec pulchros illos ministratores aspiciebat nec plenum artis argentum nec manum porrigebat in mensam; iam ipsae defluebant coronae; denique exoravit tyrannum, ut abire liceret, quod iam beatus nollet esse. Satisne videtur declarasse Dionysius nihil esse ei beatum, cui semper aliqui terror impendeat? Atque ei ne integrum quidem erat, ut ad iustitiam remigraret, civibus libertatem et iura redderet; is enim se adulescens inprovida aetate inretierat erratis eaque commiserat, ut salvus esse non posset, si sanus esse coepisset.
10 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução para o trecho de TUSCULANAE DISPUTATIONES (disputas ou questões tusculanas), Livro V, sessões 61 e 62.
"A espada de Dâmocles" é uma alusão frequentemente utilizada para remeter a esta narrativa de Marco Túlio Cícero, representando a insegurança daqueles com grande poder (devido à possibilidade deste poder lhes ser tomado de repente) ou, mais genericamente, a qualquer sentimento de danação iminente.
Qualquer semelhança é mera coincidência.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/12/recupere-seu-latim-parte-14-espada-de.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caríssimo amigo Braga.
Recebi seu texto e adorei a dimensão histórica, visando o alcance da atualidade.
A roupagem latina com o véu da ironia fina atinge a compreensão de alguns, enobrecendo suas narrativas inteligentes e oportuníssimas.
Diariamente, divulgo seu trabalho, que alimenta almas entristecidas.
Receba meu fraternal abraço com votos de saúde e paz.
Do admirador
José Carlos Gentili
Obrigado pelo envio. Realmente muito oportuna essa tradução de cujo texto tinha lido apenas uma citação sobre a aposição da espada como ameaça permanente. Isso é terrível para quem se submete ao jogo do poder.
Abraços para vc e a Rute.
Paulo
Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços,
Diamantino.
Olá, Francisco.
Continuo admirando latinistas, acredito, figuras raras hoje em dia. Quando estive em Roma, por duas vezes, lembrava-me do colega de turma, Valter Araújo, o latinista mais ilustre do grupo. Se estivesse comigo, poderia traduzir tantas inscrições em latim que se encontram em praças, igrejas e monumentos. Se fosse você, então, seria melhor ainda.
Parabéns pela tradução. Obrigado por enviar-me.
Abraço.
João Sossai
Cada vez aprendo uma lição com você, caríssimo
Confrade prof. Braga,
mais uma excelente tradição, agora mostrando fidedigna e interessante interpretação sobre o que é e o que pode representar o poder!!!!
Muito atual, inclusive!
Obrigado
Bravo!
A Espada de Dãmocles esrá por aí, à nossa volta. Ninguém sabe o que pode acontecer. A vida é assim.
Caro professor Braga.
Um grande estímulo ao interesse pela árvore milenar da "última flor do Lácio". E que aquela espada cumpra sempre seu destino em relação aos tiranos.
Congratulações por mais esta admirável tradução.
Muito grato.
Cupertino
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