Por Francisco José dos Santos Braga
Este artigo foi publicado pelo informativo ARRUIA, órgão da Associação Artística Coral Júlia Pardini, em duas partes: no seu nº 599 e 600, respectivamente, dos meses de maio e junho de 2014.
Nesta minha primeira abordagem ao tema musical, escolhi fazer a análise de uma "didática de invenção" na educação musical contemporânea. Esta é representada pelo pensamento do canadense Raymond Murray Schafer, o qual, nascido em 1933, é compositor, libretista, pedagogo musical, escritor, educador e investigador do ambiente sonoro, além de artista plástico e cenógrafo. É claro que existem outros pedagogos desenvolvendo hoje diferentes tecnologias de abordagem à educação musical, dentre os quais cabe mencionar o trabalho da pesquisadora norte-americana Viola Spolin junto a grupos de teatro improvisacional, a proposta do inglês John Paynter e, aqui no Brasil, entre outros, o trabalho realizado pelos professores Conrado Silva, Maria Cristina de Carvalho Azevedo e Renato Vasconcellos na Universidade de Brasília, bem como as oficinas de educação midiática da Associação Imagem Comunitária coordenadas por Ana Tereza Melo Brandão em Belo Horizonte.
Da vida de Schafer cabe destacar que em 1963 iniciou um período de ensino que se estendeu por doze anos, primeiro como artista residente na Memorial University e depois na Simon Fraser University. É dessa época sua produção teórica mais consistente, em que desenvolve questões da educação musical.
O Ouvido Pensante, lançado apenas em 1986 (Ed. Unesp, 1991, 399 pp.), é a obra que compila uma série de textos e relatos de experiências em sala de aula durante esse período. Nesse livro, Schafer introduz conceitos de John Cage sobre audição criativa e consciência sensorial para seus alunos.
No final da década de 60 e começo dos anos 70, desenvolveu um trabalho coletivo e pioneiro, The World Soundscape Project (WSP), voltado para a pesquisa do ambiente sonoro. O projeto surgiu como um grupo de pesquisa educacional com ênfase na ecologia acústica. O objetivo era chamar a atenção para a proliferação de ruídos, tendo em vista o desgosto pessoal de Schafer com a poluição sonora que vinha transformando rapidamente os aspectos de Vancouver. Sua preocupação era alertar para os efeitos prejudiciais dos sons tecnológicos sobre os homens.
Em 1974 Schafer decidiu abandonar seu emprego na universidade e mudar-se para uma fazenda, situada em Monteagle Valley, Ontário. Ali, no novo ambiente, ele pôde sentir e vivenciar quão importantes para a natureza humana eram os sons saudáveis - isto é, aqueles em equilíbrio com a capacidade de audição, percepção e assimilação dos sons e da música para o homem, uma questão a que o WSP se dedicara desde o início.
Seu novo livro, expressão dessa fase de sua vida, A Afinação do Mundo, lançado em 1977 (Ed. Unesp, 2001, 381 pp.), é a obra que resume a pesquisa do WSP, bem como o conceito de soundscape (paisagem sonora).
Dos anos 80 em diante, Schafer desenvolveu uma série de projetos relacionados à integração da música, teatro, ritual e ecologia. A peça ritual-dramática Apocalypsis, formada por cerca de quinhentos artistas é um exemplo dessa sua nova fase. Até hoje continua desenvolvendo rituais ecológicos artísticos, ligados a aspectos simbólicos ancestrais, como a série Patria e The Wolf Project, alguns envolvendo a comunidade local, tentando uma espécie de integração total, contrária aos movimentos culturais de uma única via cidade-campo.
Do livro O Ouvido Pensante, vou inicialmente comentar o ensaio "Quando as palavras cantam", título esse tomado de uma definição de poesia, enunciada por um menino de seis anos. Teria dito: "Poesia é quando as palavras cantam."
Esse ensaio investiga o que se acha a meio caminho entre música e palavras ou entre canto e fala, uma área que tanto os compositores contemporâneos quanto os poetas concretistas exploram. Como pedagogo otimista, Schafer acha que o desenvolvimento nesse trabalho didático está ao alcance de qualquer leigo: basta, com sua voz, imitar os sons da natureza e deixar a "flauta de seu corpo" expressar-se. Esse treinamento não deixa de ser uma brincadeira com os sons. O som como tal é um encantamento.
Entre muitos exercícios sugeridos para o canto, está o mantra, em que Schafer trabalha com o som puro dentro do aparelho fonador, preenchendo cada milímetro de espaço dentro das diversas cavidades envolvidas, enquanto percebe as suas vibrações.
Outra sugestão é uma vocalização prolongada sobre uma vogal, acompanhada ou não de consoante, ao mesmo tempo que se faz uso da imaginação criativa brincando com os sons (som mais agudo, som mais grave, som mais leve, som mais triste, som mais engraçado, etc.).
Por outro lado, é importante, ao cantar, prestar atenção naquilo que entra na formação do objeto sonoro: letras ou fonemas. Recomenda encantar-se com a biografia de cada letra do alfabeto. Cada letra tem sua história e cabe ao cantor descobrir o sentido de cada uma. Oferece, para tanto, o seu guia para 26 diferentes fonemas na língua inglesa: o A, por exemplo, é elemental; o B e o D são agressivos; o K e o P são explosivos, etc. Para a excelência dos efeitos sonoros, recomenda especial atenção à entoação das vogais; os antigos humanistas rabínicos costumavam chamar as consoantes, os esqueletos das palavras, e as vogais, sua alma; sem estas é praticamente impossível a existência do canto.
Em que as palavras se distinguem da música? Numa tentativa de definição, Schafer explica que "linguagem é comunicação através de organizações simbólicas de fonemas", enquanto "música é comunicação através de organizações de sons e objetos sonoros". E completa: "Para que a língua funcione como música, é necessário, primeiramente, fazê-la soar e, então, fazer desses sons algo festivo e importante. À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre ... , quando a fala se torna canção, o significado verbal deve morrer." (op. cit., p. 239-240)
Na sua prática com o canto, Schafer acha que o regente deve tomar do coro grego elementos que permitem a exploração de texturas corais, já que é imprecisa a paisagem sonora grafada pelo compositor através de notações aproximadas, o qual atribuiu ao regente a fixação de todas as outras qualidades de efeito sonoro específico (peso, densidade, dinâmica, coloração, etc.) e a manipulação de todos os elementos disponíveis para a criação de efeitos sonoros (vocais) desejados.
Reconhece que, durante a Idade Média, é que foi conseguido o melhor equilíbrio entre palavra e som, na prática dos trovadores de Provença (motz el son, ou seja, palavra e som) e na arte do cantochão. Como regente, Schafer também tira proveito de experiências mais recentes feitas pelos poetas dadaístas, futuristas e concretistas que, através de efeitos originais, arrancaram suas palavras-mensagem para fora do invólucro silencioso da linha impressa.
Em seguida, convém fazer algumas reflexões sobre o papel do compositor que foram expostas no ensaio "O compositor na sala de aula" no livro O Ouvido Pensante. Schafer defende o ponto de vista de que é preciso resgatar o compositor que adormece em todo estudante, na maioria das vezes pelo entorpecimento causado pela teoria musical normativa. A criação composicional está ao alcance de todos os indivíduos, independentemente da profundidade de seu conhecimento musical.
A primeira observação que ele coloca para os alunos meditarem é a enorme variedade de estilos musicais existentes e de gostos individuais. E constata: a preferência de alguém por determinado tipo de música o leva a associar-se a certo grupo de pessoas. A partir dessa constatação, o texto centra-se basicamente na questão: O que é música?
Normalmente as pessoas tendem a definir música a partir de suas preferências individuais. Quando os alunos começam a identificar todos os possíveis sons existentes, desde o simples ruído de se abrir uma porta até a o da freada de um carro, surgem as primeiras dúvidas: "Seriam esses sons, música? Ou música seria somente um som agradável ao ouvido?" É quando Schafer introduz o conceito de que todo som pode ser música: tudo depende da intenção do compositor que o utiliza.
Todos os passos envolvidos nessa discussão são transformados em exercícios práticos de criação, utilizando todos os recursos sonoros possíveis (o corpo, as vozes e os instrumentos, musicais ou não) e fazendo da sala de aula uma grande oficina de experimentação sonora. A princípio, a base desse trabalho coletivo é a música descritiva, com a qual ele explora a potencialidade de improvisação, com a proposta de reproduzir sons como vento, chilrear de pássaros, etc. e fenômenos da natureza como neblina, escuridão numa floresta tropical, etc. Ele explica aos alunos como os mais diversos sons que eles podem extrair, desde a manipulação de objetos até os sons provenientes da natureza, podem ser elementos que, se colocados de forma ordenada e estruturada, constituem motivos, períodos ou frases de uma autêntica peça musical.
Schafer, no seu trabalho com alunos de escolas secundárias, destaca ainda a relação da brincadeira com a criação artística. No lúdico o ser humano está inteiro: o jogo, o faz-de-conta constituem o principal processo de conhecimento do mundo e a construção da identidade do sujeito.
Noutra parte do livro, ele vai lembrar sua crença: "sempre resisti à leitura musical, nos primeiros estágios da educação, porque ela incita muito facilamente a um desvio da atenção para o papel e para o quadro-negro, que não são os sons." (ibid., p. 307)
Outra idéia fundamental é levar os alunos à observação dos sons e ruídos mais comuns que os cercam, passíveis de serem postos a serviço da música. Defende que passem a notar sons que na verdade nunca haviam percebido, também a ouvir avidamente os sons de seu ambiente e ainda os que eles próprios injetam nesse mesmo ambiente. A isso Schafer chama "limpeza de ouvidos", objeto de outro ensaio no livro O Ouvido Pensante.
Vale frisar a importância do exercício de ouvir, pois é um quesito imprescindível na criação. Além de saber ouvir, são necessários outros elementos: atenção permanente, concentração e curiosidade de investigação criativa em qualquer lugar que alguém esteja, na sala de aula, em casa, no campo, nas ruas da cidade, etc.
Outra idéia de Schafer, tomada de John Cage, é a importância do contraste entre som e silêncio. Acredito que isso caiba perfeitamente nas artes plásticas, onde o silêncio pode ser visto como uma tela branca, o que por si só pode ser uma composição, como provou ser a mais famosa composição musical de John Cage, intitulada 4'33", peça para piano constiuída apenas por pausas com duração de quatro minutos e trinta e três segundos.
Curiosamente, o que Schafer coloca voltado para a arte musical pode ser perfeitamente interpretado através de pinturas, desenhos, objetos. No próprio final do ensaio, quando relata a experiência de criação a partir da "Máscara do Demônio da Maldade", ele, antes de tudo, fala de criação, forma, textura, improvisação, organização, cores, representação - elementos presentes na música e nas artes plásticas.
Finalmente, vou ainda abordar o penúltimo ensaio no livro O Ouvido Pensante, intitulado "O rinoceronte na sala de aula" para o leitor ganhar uma "comprehensive" visão do texto. Ali, Schafer apresenta uma nova filosofia para o ensino da música (mais especificamente nas escolas públicas).
Logo no início, ele descarta os antigos moldes da educação tradicional, principalmente no que diz respeito à atuação do professor de música como "transmissor" de conhecimentos a alunos de cabeça completamente vazia, numa referência à tabula rasa de John Locke. Também descarta uma pedagogia dirigida especialmente a alunos dotados e capazes de se tornarem virtuoses. Portanto, nem uma coisa, nem outra. Qual é então a sua filosofia de educação musical?
"A aula de música é sempre uma sociedade em microcosmo... Nela deve haver um lugar, no currículo, para a expressão individual; porém currículos organizados previamente não concedem oportunidade para isso, pelo fato de seu objetivo ser o treinamento de virtuoses, e, nesse caso, geralmente falha. O principal objetivo de meu trabalho tem sido o fazer musical criativo, e embora seja distinto das principais vertentes da educação, concentradas sobretudo nas habilidades de execução de jovens músicos, nenhuma dessas atividades pode ser considerada substituta da outra." (ibid., p. 279-280)
Schafer propõe que o professor, ao invés de se fechar atrás de sua máscara de sabe-tudo e daquele que tem todas as respostas (a analogia do rinoceronte cabe aqui), procure mostrar aos alunos que a música é uma descoberta diária dos sons (ou do silêncio) que o meio ambiente produz e se faça também de aprendiz, deixando que a curiosidade musical brote nos alunos, sem ser algo imposto. Ou, conforme ele diz: "numa classe programada para a criação não há professores: há somente uma comunidade de aprendizes." (ibid., p. 286)
Também recomenda o ensino da música feito por profissionais, pois, embora possa ocorrer bizarras descobertas musicais por qualquer um, a música não se limita a isso, sendo que as questões teóricas e práticas de um instrumento específico devem e só podem ser repassadas por um profissional da música, sob pena de danos irreparáveis no corpo do aprendiz (pregas vocais do cantor, mãos do pianista, e assim por diante). "Somente o aluno altamente qualificado e com aptidões musicais deveria ser encorajado a empreender o extensivo programa de treinamento necessário ao ensino de música, no sentido tradicional. Sem concessões." (ibid., pp. 303-304)
Ele também propõe uma visão integrada de todas as artes, do contrário ocorre uma fragmentação dos sentidos humanos. Não que o estudo específico de uma determinada arte não deva ser visto em suas peculiaridades, mas é preciso ressaltar que no dia-a-dia as artes não estão desgarradas da experiência humana.
Os impactos das práticas acima propostas nas escolas públicas - a proposta de trabalho de Schafer é para estas - exerceriam sensíveis mudanças tanto no aspecto particular quanto no aspecto social da música.
Tais aspectos, sob uma perspectiva puramente educacional, sem levar em conta a especificidade musical, lembram o ideário defendido no Brasil por Paulo Freire, que também propôs novas posturas para professores e novas filosofias de ensino tanto em escolas públicas quanto nas particulares, mas visando principalmente à educação de adultos.
A filosofia de educação musical de Schafer identifica-se também com a proposta de outros pedagogos. Menciona literalmente os nomes de Peter Maxwell Davies, John Paynter e George Self na Inglaterra, além dos envolvidos no Projeto Manhattanville nos Estados Unidos, os quais têm uma característica em comum: "experimentaram colocar o fazer musical criativo no centro dos currículos." (ibid., p. 278)
Há um momento do ensaio que parece que Schafer se trai, como se negasse a sua proposta de mudança no ensino musical, deixasse de lado sua experiência na escola pública e ficasse contaminado pelo preconceito, quando constata na América o surgimento de uma "tendência desanimadora" (sic) face à impossibilidade de atingir padrões ilimitados no paradigma da virtuosidade. "A introdução da música pop nas aulas é um exemplo desse relaxamento; não porque a música pop seja necessariamente ruim, mas porque é um fenômeno social em vez de musical e, desse modo, impróprio como o estudo abstrato que a música deve ser, caso se pretenda que seja considerada arte e ciência, por seus próprios méritos." (ibid., p. 280) Em nota de rodapé reconhece ser esse um assunto controvertido, mas em seguida emite um novo preconceito: "... qualidade musical, sociologia e negócios de dinheiro não se beneficiam quando se misturam - o que vale dizer que é impossível analisar uma canção pop antes dela completar dez anos de idade."
Parece que estamos a ler Theodor W. Adorno. A meu ver, separar música dos aspectos sociais é separá-la do homem propriamente dito; dizer que não há benefícios quanto aos aspectos financeiros ou "negócios de dinheiro" é descartar um aspecto crucial da sociedade atual capitalista; e, por fim, produção musical em massa não quer dizer necessariamente má qualidade musical.
Cabe ainda um outro tipo de questionamento: seriam essas propostas de Schafer aplicáveis à sociedade brasileira? Como ele mesmo diz que o professor deve fazer-se aprendiz, o professor de música brasileiro teria que aprender, no contato com seus jovens alunos, novas filosofias de ensino musical que se aplicassem à realidade social brasileira, visando despertar neles a criatividade, a descoberta de nosso modo musical de ser, a valorização da cultura nacional, entre outras coisas.
