segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre Eduardo Frieiro ( I )


Por Francisco José dos Santos Braga


Hoje vou tratar de um assunto mais leve, porque ninguém é de ferro. Sem sombra de dúvida, o erro tipográfico já constituiu tema de mais de um grosso calhamaço em todos os idiomas conhecidos: arrisco-me a dizê-lo, tão frequente é esse acidente inevitável. Para nós, autores, o erro tipográfico representa um ultraje ao nosso texto e nos faz corar a sua presença.

Engana-se quem imagina que ele nasceu com a nossa técnica contemporânea. Em sua obra clássica sobre os manuscritos alquímicos da Antiguidade, "Les Origines de l' Alchimie", o "prêmio Nobel" Marcelin Berthelot deixou inúmeras indicações de sua indignação para com a forma como foram tratados tais manuscritos e papiros. Em certo trecho, comenta: "Estes escritos sofreram mais tarde, como sucede frequentemente em manuscritos antigos, diversas adições tardias, assim como interpolações e adições evidentes, por parte dos monges bizantinos... Aos erros dos copistas foram acrescentados os dos comentaristas do século XVIII e XIX... Esses manuscritos trazem os vestígios do estudo apaixonado de que foram então objeto, a saber: notas nas margens, mementos, apagamentos de páginas, palavras novas sobre outras, acréscimos nas capas e nos espaços vazios, manchas feitas com substâncias químicas, tais como os sais de cobre." (op. cit., p. 85-86 da tradução para o castelhano, mra ediciones, S.L., Barcelona, 2001) Essa última referência faz lembrar o romance de Umberto Eco, "O Nome da Rosa" acompanhado de todas as suas trágicas ocorrências.

Hoje em dia, as redações de jornais e de editoras contam com a colaboração de programas de processamento de texto que permitem automaticamente a correção dos erros mais comuns em determinado idioma ainda durante a fase de escrita e amiúde recorrem ao trabalho especializado de revisores, com pelo menos duas leituras por pessoas diferentes. Cumpridas essas etapas, o texto é revisto em última leitura, após o que é considerado apto a ser publicado.

Dá-se o nome de gralha, piolho ou gato ao emprego errado de uma letra por outra na composição. Já o termo pastel é usado quando ocorre o desmanche de uma fôrma (coluna ou linha da composição).

Tenho em mãos um exemplar de "Os Livros, nossos Amigos" (volume 80 das Edições do Senado Federal), um livro de ensaios do escritor mineiro Eduardo Frieiro, "um hino de amor incondicional ao livro", que, entre outras matérias muito agradáveis, faz interessantes comentários sobre os erros tipográficos, à página 137 e seguintes. Esse autor começou sua carreira na Imprensa Oficial do Estado. De simples tipógrafo, valeu-se de seu grande esforço de autodidata para chegar a professor catedrático de Literatura Espanhola e Hispano-Americana da UFMG e tornou-se autor de uma obra digna de respeito, independente das posições doutrinárias que adotou e defendeu com ardor e das quais se possa eventualmente divergir. Como primeiro Diretor da Biblioteca Pública de Minas Gerais, cuidou de sua organização, transformando-a numa das melhores do País. Deixou inúmeras obras literárias, que deixarei de citar neste curto texto. Mas gostaria de mencionar que, além desse curioso livro de ensaios que ora comento, é o autor muito festejado de "Feijão, Angu e Couve: ensaio sobre a comida dos mineiros", outro livro que merece minha atenção num próximo texto deste blog.

Embora o erro tipográfico seja desastroso principalmente para os autores neófitos ("Quem se imprime se oprime"), Frieiro lembra um caso de erro feliz que raramente ocorre. Trata-se de erro de um tipógrafo num verso de Malherbe, no poema "Consolation a M. du Périer", um panegírico para prantear a morte da filhinha de um amigo, Monsieur du Périer, chamada Roselle. O poeta Malherbe teria escrito:

Et Roselle a vécu ce que vivent les roses,
L' espace d' un matin.
(E Roselle viveu o que vivem as rosas,
O espaço de uma manhã.)

O tipógrafo, distraidamente, ao compor aquele verso alexandrino, deixou escapar:

Et rose elle a vécu ce que vivent les roses ...
(E como rosa ela viveu o que vivem as rosas,
O espaço de uma manhã.)

Frieiro arremata: "Com o erro de leitura e a involuntária emenda, o verso ficou mil vezes melhor. Maravilhoso erro que deu à poesia francesa um de seus mais citados versos!"

Dá também um exemplo de pastel. Na notícia sobre as matanças da véspera, o austero Minas Gerais, de Belo Horizonte, órgão oficial dos poderes do Estado, em certa data retratava: "No Matadouro Municipal, abateram-se ontem 32 reses, 12 porcos, 8 carneiros e o deputado Fulano de Tal." O tal deputado fazia anos naquele dia e a linha com o seu nome se deslocara perfidamente da seção de aniversários para a de matanças. Procura-se até hoje o responsável pelo tal "furo" de reportagem.

Frieiro narra também uma visita que Ramalho Ortigão fazia ao Rio de Janeiro. A direção da Gazeta de Notícias solicitou do consagrado escritor português um artigo destinado a uma edição especial. O artigo escrito saiu então com o título: "O pássaro e as penas", que causou estranheza a muitos leitores, pois o artigo tratava do tempo, sem qualquer alusão a pássaros ou a penas. No dia seguinte o jornal reconhecia o engano, com a seguinte corrigenda: "Por um engano de revisão saiu deturpado o título do artigo do nosso ilustre colaborador Senhor Ramalho Ortigão, que publicamos ontem. Onde se lê O pássaro e as penas deve ler-se: O pássaro e o presunto." Pior a emenda que o soneto: o título não era ainda esse, mas simplesmente O passado e o presente. Frieiro conclui: "Não adianta. As erratas, no melhor dos casos, são inúteis. Ninguém as lê."

Narra também anedotas muito interessantes sobre a edição da Bíblia na Alemanha, Inglaterra e França. A mais engraçada a meu ver aconteceu na Alemanha: conta-se que certo impressor decidira editar a única Bíblia sem erros. A sua esposa colaborava no trabalho de revisão com excelente maestria até o dia em que teve um bate-boca com o marido. Foi o suficiente para ela querer vingar-se dele. Entrando à noite na oficina onde se compunha a Bíblia, maldosamente alterou na composição a sentença pronunciada pelo Senhor contra Eva, que era "Teu marido será teu senhor (dein Herr)" (Gn 3, 16), para "Teu marido será teu bobo (dein Narr)", bastando para isso alterar as duas primeiras letras do substantivo. Frieiro deu seu pitaco: "Afirma-se que os exemplares desta Bíblia 'feminista' foram disputados entre os bibliófilos por preços exorbitantes."

Diante de tantos e variados exemplos listados, Frieiro atribui ao Capeta, Diabo ou Caapora e a suas malas-artes a ocorrência desses erros "não propositais" nas redações. E sentencia: "Os autores e leitores muito exigentes têm de se resignar à idéia de que um texto tipograficamente perfeito é uma quimera."



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom o texto do Eduardo
Frieiro sobre erros tipográficos.
Com certeza uma assunto mais
leve e informativo acerca dos
erros em livros,artigos,etc...
Meus parabéns ao autor e ao
dono do blog!

Rafael Braga