sábado, 6 de junho de 2009

Contribuição de Adorno para a música contemporânea >>> Parte 3

Por Francisco José dos Santos Braga

III. 4 Stravinski e a Restauração

Antes de analisar o capítulo dedicado à música de Stravinski, convém lembrar que a Música exerce um papel predominante na construção teórica do filósofo Adorno, sendo que inúmeros de seus textos musicais embasam a sua crítica estética que mais tarde evolui para uma crítica social, elementos esses que influenciaram Adorno e Horkheimer na redação da Dialética do Esclarecimento de 1947 (Dialektik der Aufklärung). Por isso mesmo, no Prefácio de "Filosofia da Nova Música", Adorno considera que esse livro "está concebido como uma digressão à Dialektik der Aufklärung. Tudo o que nele atesta uma perseverança, uma fé na força dispositiva da negação resoluta, deve-se à solidariedade intelectual e humana de Horkheimer." (p. 11)

Por outro lado, contextualizando um pouco melhor o livro Filosofia da Nova Música, é possível verificar que o texto do ensaio sobre Schoenberg (Schoenberg e o Progresso) é de 1940-1941, com exceção de alguns adendos referentes às últimas obras desse músico. Já o ensaio sobre Stravinski (Stravinski e a Restauração) foi redigido mais tarde como complemento especial ao texto sobre Schoenberg para a edição do livro (1949), considerando que, se o livro tinha algo a dizer sobre a música contemporânea, era preciso considerá-la em seu conjunto e seu método não ser aplicado apenas a uma escola particular, com a seguinte justificação adicional do próprio Adorno:

"O procedimento diametralmente oposto de Stravinski se impõe ao exame e à interpretação, não somente por sua validez pública e oficial e seu nível de composição – já que o próprio conceito de nível não pode ser postulado de maneira dogmática e, assim como o do “gosto”, está sujeito à discussão – mas, sobretudo, porque destrói a cômoda escapatória, segundo a qual, se o progresso coerente da música conduz a antinomias, deve-se esperar alguma coisa da restauração do passado, da revocação autoconsciente da ratio musical." (p. 10)

Tendo em vista a própria afirmação de Adorno, de que é na "Dialética do Esclarecimento" que se deve buscar a ferramenta referencial do texto que estamos analisando, vamos repassar alguns pontos abordados nesse livro específico, em especial os do capítulo "A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas" (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), apud Aguiar, p. 7-9).

Inicialmente, Adorno e Horkheimer constatam que a cultura de massas se caracteriza por uma falsa identidade entre o universal e o particular. Para exemplificarem, tomam o assunto da substituição dos "detalhes" no todo da composição musical. Na música mais radical existe uma relação dialética entre o todo e o particular, permitindo que elementos que exerçam uma função "crítica" possam denunciar uma falsa relação social entre o diferente e a totalidade da organização social. Na música de massas isso não vai ocorrer, pois seu alvo nada mais é que o consumo e por isso não poderia funcionar tal função crítica.

Outro conceito da "Dialética do Esclarecimento" se relaciona ao plugging, ou seja, uma necessidade social dos produtos oferecidos pela indústria cultural. Haveria uma espécie de vínculo entre os indivíduos e uma esfera espiritual que os coloca em uma posição acima das meras necessidades fisiológicas.

Além disso, o conceito do esquematismo kantiano atribui ao sujeito a capacidade de reportar de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais. Com a apropriação do fenômeno do ouvinte treinado, a indústria cultural de massas usurpa essa capacidade, criando simultaneamente uma previsibilidade quase absoluta de seus produtos ou como disseram Adorno e Horkheimer:

"Desde o começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quando ele tem lugar como previsto." (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), p. 118)

Finalmente, os autores buscam no conceito kantiano de estética de "finalidade sem fim" a definição do que seria o verdadeiro valor específico da obra de arte. Para eles, a indústria cultural inverteu-o para uma finalidade de consumo, de valor de troca, destruindo qualquer possibilidade dialética entre a utilidade e a inutilidade, verbis:

"Para concluir, na exigência de entretenimento e relaxamento, o fim absorveu o reino da falta de finalidade. (...) O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor. (...) O valor de uso da arte, seu ser, é considerado um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam." (Adorno e Horkheimer, 1985 (1947), p. 148)

Voltando agora ao nosso livro "Filosofia da Nova Música", vê-se que as preocupações do autor giram em torno da situação da arte no "mundo administrado". Conforme Aguiar (op. cit., p. 9-10), "o objetivo principal da obra não é colocar Schoenberg e Stravinski em uma disputa maniqueísta, mas sim mostrar que tanto um como o outro são "vítimas" de seu tempo, mesmo que Adorno ainda veja Schoenberg com bons olhos e Stravinski como um regresso em relação ao progresso musical. (...) o primeiro representa uma recusa em pactuar com o sistema de industrialização e comercialização da música erudita, custando o próprio isolamento do compositor e de consequências na própria qualidade de suas composições, e o segundo como um brilhante criador que se entrega ao sistema que Schoenberg recusara, ao preço de um enfraquecimento progressivo de suas composições e na decadência de escrever trilhas sonoras para filmes de Hollywood, com qualidade inferior ao melhor de sua produção." A certa altura, Adorno põe-se a imaginar que um dia os acordes tonais e habilmente montados por Stravinski e a sucessão dos sons seriais elaborada por Schoenberg não pareçam tão diferentes como hoje se crê. "Antes caracterizem diversos graus de coerência numa idêntica condição."(p. 62)

Um barco sobre o oceano é a metáfora a que Adorno recorre para descrever a situação do artista em face da sociedade manipulada pelos meios de comunicação de massas e pela indústria cultural. "Nenhum artista está em condições de eliminar a contradição que há entre arte não-acorrentada e sociedade acorrentada: tudo o que pode fazer é contradizer esta sociedade acorrentada com a arte não-acorrentada, e até disso deve quase desesperar." (p. 87)

Sobre o fato de ambos (Stravinski e Schoenberg) serem vítimas de seu tempo, o próprio Adorno (p. 60) reconhece o seguinte fato: "Beethoven reproduziu o sentido da tonalidade partindo da liberdade subjetiva. A nova ordem da técnica dodecafônica extingue virtualmente o sujeito. Os grandes momentos de Schoenberg, em sua última fase, são aquisições feitas tanto contra a técnica dodecafônica, como em virtude dela." (p. 60-61)

Adorno também reconhece a existência de outro fato: "A violência que a música de massas exerce sobre os homens continua subsistindo, no pólo social oposto, na música que se subtrai aos homens." (p. 60) O que acontece com uma música séria, complexa como a de Schoenberg é que também ela sofre um efeito nivelador provocado pela indústria cultural com sua "dança do momento". Aguiar entende que "ambas coincidem no fato de não poderem ser apreciadas por motivos opostos: a música séria porque é complexa e sua capacidade de apreciação é decrescente em relação às massas; o sucesso do momento é por não haver nada a ser apreciado, é uma música que se consome em si mesma." (Aguiar, p. 36)

Adorno se refere com muita elegância aos dotes de Stravinski que ele reconhece, por exemplo ao condenar pretensões niveladoras formuladas por Hindemith, exaltando no primeiro a força de persuasão, a sua acuidade artística e a sua refinada mestria. Reconhece ainda que empreendeu seu intento de restauração sem pretensões niveladoras. E continua irônico: "Em Stravinski, perdura tenazmente o desejo, típico do indivíduo imaturo, de converter-se num clássico... em lugar de ser somente um moderno cuja substância se consome na controvérsia das tendências e que logo será esquecido. Neste modo de agir é mister reconhecer o respeito não-iluminado e a impotência das esperanças a ele anexas — pois nenhum artista pode estabelecer o que haverá de sobreviver; mas assim mesmo é indiscutível que na base de tudo isto há uma experiência que ninguém que conheça a impossibilidade da restauração poderá negar." (p. 110)

Analisando a sua técnica compositiva, Adorno não deixa de tributar homenagens a Stravinski, reconhecendo-lhe o saber como manejar destramente os meios, como realizar a sonoridade mais de acordo com a natureza dos instrumentos, como realizar o efeito mais pertinente, merecendo a fama de técnico hábil e conhecedor do material. Mas para Adorno, tudo isso é necessário em música, mas não é suficiente. Até aqui os elogios, com ressalvas como se viu.

Adorno acusa Stravinski por seu realismo de fachada, priorizando os meios prescindindo do fim; ou seja, o instrumento, que é objeto de hipóstase, tem prioridade sobre a música. (cfr. p. 134) Em Stravinski, os efeitos, já preponderantes em Meyerbeer, Wagner e Richard Strauss, são exacerbados, "acabam por tornar-se autônomos. Já não visam ao estímulo, mas sim ao 'fazer' em si, quase in abstracto, que é realizado e fruído sem finalidade estética, como um salto mortale. Ao emancipar-se do significado de um todo, os efeitos assumem certa condição física material, tangível, desportiva."

Adorno acusa ainda a obra de Stravinski de estar contaminada com a animosidade contra a anima, bem como a sua música de manter a relação dessexualizada com o corpo. "A dureza (do Sacre), o exorcismo ritual da alma, contribui para fazer acreditar que o produto não é uma criação subjetiva, um ente que reflete o homem, mas um ente em si. (...) A música pondo todo seu peso sobre o simples fato de existir e ocultando a participação do sujeito sob seu enfático mutismo, promete ao sujeito o apoio ontológico que ele perdeu em virtude dessa mesma alienação que a música elege como princípio estilístico. (...) Justamente o que há de obsessivo no procedimento stravinskiano, a contradição crassa com a obra de arte que se organiza a si mesma, seduziu sem dúvida alguma inumeráveis homens." (p. 135)

Adorno finalmente critica os elementos propriamente esquizofrênicos da música de Stravinski, especialmente presentes na História do Soldado.

Igualmente Adorno constata "o rechaçamento da expressão, que em Stravinski constitui o aspecto mais evidente da despersonalização." (p.136) Tacha-o de indivíduo hebefrênico por causa da impassibilité do programa estético do mestre russo: "A música de Stravinski faz disto sua virtude: a expressão que procede sempre da dor do sujeito frente ao objeto está proibida, pois já não se chega a um contato." A frieza dos sentimentos e o "achatamento" emocional atingem a expressão. "Não somente na música que ficou até agora, como medium, por trás da civilização, os tabus desta estendem-se à expressão, mas socialmente o substrato da expressão – o indivíduo – está condenado, porque ele mesmo forneceu o princípio destrutor dessa sociedade que hoje se vai demolindo por sua própria natureza antagônica." (p.136-137)

Adorno ainda ataca Stravinski por ter desdenhado o caminho acadêmico e rebelado contra o atelier como somente um fauve havia podido rebelar-se em pintura. Stravinski deseja ser um clássico, em lugar de ser somente um moderno. Como o seu material composicional se limita às vezes, como no Impressionismo, a rudimentares sucessões de sons, às vezes à politonalidade, outras vezes à escala pentatônica, etc., Stravinski é um moderno, pela sua aversão a toda a sintaxe da música. Mas a opinião de Stravinski sobre si mesmo é: "Não sou mais acadêmico do que moderno, nem mais moderno do que conservador. Pulcinella bastaria para provar isso."(Stravinski, 1996 (1942), p. 81)

Adorno continua sua análise da obra de Stravinski da seguinte forma: "Para Stravinski, com seu sentido de necessidade obrigatória, as exigências impostas por aquelas regras tornavam-se insuportáveis... A autenticidade já consumida deve ser eliminada para conservar a eficácia de seu próprio princípio. E isto se obtém pela demolição de toda intenção. Disso, como se constituísse um contato direto com a matéria-prima da música, Stravinski espera a obrigatoriedade necessária. (...) A renúncia a todo psicologismo, a redução de tudo ao puro fenômeno, tal como este se apresenta... Stravinski empreendeu esta rebelião não somente no jogo familiarmente estético com a selvageria, mas também suspendendo asperamente o que se chamava cultura em música, isto é, a obra de arte humanamente eloquente. (...) O ideal estético de Stravinski é o da realização indiscutível." (grifos meus) (p. 111-112)

Adorno recorre ao princípio da necessidade de uma "exigência compreensiva" nas composições, desde Beethoven, e presente em Schoenberg, mas que Stravinski não observa:
"Desde Petruschka (Stravinski) delineia passos e gestos que cada vez mais se afastam da compenetração com o personagem dramático. São passos e gestos que se limitam e se especializam e estão em agudo contraste com aquela exigência compreensiva que a escola de Schoenberg, em suas criações mais significativas, comparte ainda com o Beethoven da Heróica. Stravinski paga seu tributo à divisão do trabalho, que é em troca denunciada pela ideologia da Die glückliche Hand de Schoenberg... Como tratamento contra a divisão do trabalho, Stravinski propõe levá-la ao extremo, para ludibriar a cultura baseada nessa divisão. Da especialização ele (Stravinski) faz a especialidade do music hall, da variété e do circo, tal como se glorifica na Parade de Cocteau e Satie, mas já premeditada em Petruschka."(p. 112-113)

Seu ataque a Petruschka não se limita a esse afastamento da boa técnica musical, reconhecendo nela também uma cooptação pela decadência burguesa: "A falta de intenções vale como promessa de realizar todas as intenções. Petruschka, estilisticamente "neo-impressionista", compõe-se de inumeráveis peças de arte, desde a desordenada confusão de vozes da praça do mercado até a imitação exagerada de toda a música que repele a cultura oficial. Isso deriva da atmosfera do cabaret literário e ao mesmo tempo de artesão. (...) Essa tendência conduz ao artesanato industrial, que considera a alma como mercadoria..." (p. 113)

Pensando na intrincada psique do boneco, que morre e depois é chamado a uma vida enganosa, Adorno denuncia que "em Stravinski, a subjetividade assume o aspecto de vítima, mas — e aqui ele zomba da tradição da arte humanista — a música não se identifica com ela, mas com a instância destrutora. Em virtude da liquidação da vítima, a música se priva de intenções e portanto de sua própria subjetividade. Sob a envoltura neo-romântica, este giro contra o sujeito já se cumpre em Petruschka." Nesse balé, segundo Adorno, a desintegração do sujeito estaria demonstrada pelo grotesco (representado pelos solos dos instrumentos de sopro e pelo uso do realejo numa mímica de um órgão de Bach).

A Sagraçao da Primavera, ou simplesmente o Sacre, "a obra mais famosa e mais avançada de Stravinski em relação ao material", foi concebida durante o trabalho de Petruschka. Para Adorno, "ambos (os balés) têm em comum o núcleo, o sacrifício anti-humano ao coletivo: sacrifício sem tragédia, praticado não à imagem nascente do homem, mas à cega confirmação de uma condição que a própria vítima reconhece, ora com o escárnio de si mesma, ora com a própria extinção." (p. 116) Adorno acha a seguinte explicação para a atitude de Stravinski: "A pressão da cultura burguesa reificada impele o espírito a refugiar-se nos fantasmas da natureza, que terminam por revelar-se como mensageiros da pressão absoluta. Os nervos estéticos vibram com o desejo de voltar à idade da pedra." (p. 117)

De acordo com Adorno, Stravinki toma de Schoenberg a prática de não resolver as dissonâncias, constituindo-a aspecto cultural bolchevista dos "Quadros da Rússia pagã" (= Sagração da Primavera). "Quando a vanguarda se declarou pelo plasticismo negro, a finalidade reacionária do movimento estava totalmente oculta: voltar à pré-história parecia melhor para emancipar a arte acorrentada até então, do que regulamentá-la." (p. 116)

Por sua vez, parece que Stravinski já tinha conhecimento de algumas críticas da Escola de Frankfurt à sua pessoa, tanto que parece dispor de um arsenal de respostas prontas em sua defesa, expostas em sua "Poética Musical em 6 Lições", que ele chama de "uma série de confissões musicais", o que lhe permitiria fazer "uma apologia de suas próprias idéias musicais". (Stravinski, 1996 (1942), p. 16) Eis alguns exemplos:

"É estranho que céticos sempre exigindo novas provas para tudo, e que costumam extrair delícias na denúncia de tudo o que é puramente convencional nas formas estabelecidas, nunca solicitem qualquer prova da necessidade ou apenas da conveniência de qualquer frase musical que pretenda identificar-se a uma idéia, um objeto, um caráter. (...) Basicamente, o que mais irrita nesses artistas rebeldes, dos quais Wagner nos oferece o tipo mais consumado, é o espírito de sistematização que, sob o pretexto de abolir as convenções, estabelece um novo repertório, tão arbitrário e muito mais incômodo que o antigo."(idem, p. 76)

Continuando seu ataque a Wagner, Stravinski menciona quão nefastamente "o século a que devemos o que se chama 'progresso através do esclarecimento' inventou ainda o monumental absurdo que consiste em mimosear cada acessório, bem como cada sentimento e cada personagem do drama lírico, com uma espécie de número de identificação chamado Leitmotiv — sistema que levou Debussy a dizer que o Anel lhe parecia um vasto guia musical da cidade." (ib., p. 75)

A bem da verdade, também não escapou a Adorno a existência dessa segunda natureza, regida por um sistema de regras, apontada por Stravinski, que se sobrepõe à matéria sonora em si, verbis: "Das operações que determinaram o cego despotismo da matéria sonora resultou, por um sistema de regras, uma segunda natureza cega. (...) O preceito wagneriano de impor-se regras e logo segui-las descobre seu aspecto nefasto. Nenhuma regra se mostra mais repressiva do que aquela que impusemos a nós mesmos. Precisamente sua origem na subjetividade determina a causalidade e a vontade de composição, logo que se põe positivamente frente ao sujeito como ordem reguladora." (p. 60)

Stravinski não esconde que prefere Verdi a Wagner: "Lamento ter de dizer isso; mas sustento que há mais substância e verdadeira invenção numa ária como La donna è mobile, por exemplo, em que essa elite nada via senão deplorável facilidade, do que na retórica e nas vociferações do Anel." (ib., p. 62)

Incomodaria sobremodo a Stravinski ouvir de Adorno a seguinte crítica: "Se a crítica wagneriana de outra época, encabeçada por Nietzsche, censurava Wagner por pretender inculcar com sua técnica temática pensamentos na gente ignorante da música – ou seja, em caracteres humanos destinados à cultura de massas industrial – esta inculcação se converte em Stravinski, mestre da arte da percussão, em princípio técnico reconhecido, no princípio do efeito; a autenticidade converte-se assim em propaganda de si mesma."(p. 146)

Para validar o seu sentido de necessidade obrigatória e ser considerado ele próprio um clássico, Stravinski recorre a exemplos típicos na História da Música que venham confirmar a legitimidade do acidental (sic) em contraposição ao princípio da necessidade de uma exigência compreensiva, enunciado por Adorno. É assim que se refere a Hector Berlioz (ib., p. 71), Verdi (ib., p. 76), Tchaikovsky e Carl Maria von Weber (ib., p. 77), não escondendo a sua predileção por esses autores: "De fato, a intervalos bem alternados, vemos um bloco errático surgir em silhueta no horizonte da arte, um bloco cuja origem é desconhecida e cuja existência é incompreensível. Esses monolitos parecem enviados pelo céu para afirmar a existência e, em certo sentido, a legitimidade do acidental. Esses elementos de descontinuidade, esses esportes da natureza, recebem vários nomes em nossa arte." (ib., p. 71)

Na verdade, Adorno pede da Música algo muito maior do que a legitimidade do acidental. "A racionalidade total da música consiste em sua organização total. Por obra da organização, a música, emancipada, queria reconstruir a integridade perdida, a força e a necessidade também perdidas, de um Beethoven, por exemplo. Mas a música só pode conseguir isso ao preço de sua liberdade, e é assim que fracassa." (p.60)

Stravinski é suficientemente hábil, sabendo bater de um lado e soprar de outro, quando trata, uma única vez, da música de Schoenberg em todo o seu livro: "Seja qual for a opinião que se possa ter da música de Arnold Schoenberg (para tomar como exemplo um compositor que trabalha em linhas essencialmente diversas das minhas, tanto estética como tecnicamente), cujas obras deram vazão frequentemente a reações violentas ou sorrisos irônicos, é impossível a alguém que se leve a sério, e dotado de verdadeira cultura musical, não sentir que o compositor do Pierrot lunaire tem plena consciência do que está fazendo, e que não está tentando enganar ninguém. Ele adotou o sistema musical que atendia às suas necessidades, e dentro desse sistema é perfeitamente consistente consigo mesmo, perfeitamente coerente. Você não pode simplesmente denegrir uma música de que não gosta dizendo que se trata de cacofonia."(ib., p. 22-23)

Por outro lado, Stravinski mostra que não se sente confortável com a crítica. "Que limite estabeleceremos para seu domínio? Na verdade, queremos que ela (a crítica) seja inteiramente livre em seu terreno próprio, que consiste em julgar obras existentes, e não em divagar sobre a legitimidade de suas origens ou intenções. (...) Qual a utilidade, em suma, de atormentar um compositor com o porquê em vez de procurar por si mesmo o como, e assim estabelecer as razões do seu sucesso ou de seu fracasso? Obviamente, é muito mais fácil colocar perguntas do que dar respostas. É mais fácil questionar do que explicar. Minha convicção é que o público sempre se mostra mais honesto em sua espontaneidade do que aqueles que se estabelecem oficialmente como juízes das obras de arte." (p.82- 83)

Nessas suas confissões, Stravinski refere-se com muita aspereza ao esnobe que o irrita muito mais que o burguês. Mais do que o esnobe irrita-o, contudo, o pompier, termo que literalmente significa "bombeiro", mas aqui aparece aplicado a pessoas que representam o pedantismo pomposo e certo convencionalismo.

"Como toda espécie de mal, o esnobismo tende a suscitar um outro mal que é o seu oposto: o pompierisme. Afinal de contas, o esnobe não é senão uma espécie de pompier — um pompier de vanguarda. Os pompiers de vanguarda ficam tagarelando sobre música, assim como o fazem a respeito do freudismo ou do marxismo. (...) Os pompiers de vanguarda, além disso, cometem o erro de ser sarcásticos, além de toda medida, com seus colegas do ano anterior. Todos eles permanecerão pompiers por toda a vida, e os de molde revolucionário sairão de moda mais cedo que os outros: o tempo é uma ameaça maior para eles." (ib., p. 84)

Retornemos agora ao nosso livro "Filosofia da Nova Música". Para Adorno, o material que Stravinski utiliza contém em si as condições do restabelecimento da tonalidade entendida como um sistema de relações cuja estrutura está mais de acordo com a melodia. Também não escapa à argúcia de Adorno a maneira como Stravinski trabalhou o material musical de seus grandes balés, a saber: "... em Petruschka, a montagem com fragmentos deve-se a um procedimento humorista organizador e realiza-se mediante truques técnicos, de maneira que toda regressão da obra de Stravinski é manejada precisamente como uma cópia que não esquece nunca, nem sequer por um instante, o autodomínio técnico. No Sacre, um princípio artístico de seleção e estilização, empregado com grande liberdade, produz o efeito do pré-histórico. (...) O material se limita, como no Impressionismo, a rudimentares sucessões de sons." (p. 118)

Retomando o tema da regressão da obra de Stravinski, Adorno pensa que "... a regressão assim obtida leva logo à regressão do próprio ato de compor, empobrece os procedimentos e arruína a técnica. "Os discípulos de Stravinski costumam sair do mal-estar a que os conduz semelhante comprovação definindo seu mestre como o músico do ritmo e afirmando que Stravinski voltou a salientar a dimensão rítmica sufocada pelo pensamento melódico- harmônico e com ele desenterrou as origens da música; e na realidade o Sacre evocaria os ritmos complexos e ao mesmo tempo severamente disciplinados dos ritos primitivos." (p. 121- 122) Mas Adorno não se convence dos argumentos usados pelos seguidores de Stravinski, lembrando que "a música não somente é capaz de desenvolvimento, mas é capaz também de solidez e de coagulação; a regressão stravinskiana, pretendendo recriar um estado anterior, substitui justamente o progresso pela repetição." (p. 128)

Adorno, de fato, requer que a nova música não dissocie a própria continuidade temporal da música. Quando adverte o dodecafonismo para o cuidado que se deva tratar o ritmo, faz as seguintes recomendações enquanto fala da coerência temporal: "Com efeito, esta coerência só se produz mediante elementos diferenciadores e não mediante a simples identidade. Mas assim a coerência melódica fica relegada a um meio extramelódico: o do ritmo tornado independente. (...) Determinadas figuras rítmicas retornam incessantemente e assumem a função de temas. (...) O melos cai, em última instância, vítima do ritmo temático. E os ritmos temáticos se repetem sem que se cuide do conteúdo serial. (...) Deste modo, o elemento especificamente melódico fica desvalorizado pelo ritmo." (p. 65) Tais recomendações servem de vindicta para os excessos de variações rítmicas empregados por Stravinski que acabam por submeter a organização integral da composição a apenas um de seus aspectos formantes.

Por isso mesmo, Adorno se refere a um equívoco de Stravinski, quando "se move sempre em torno de um germe temático latente e implícito – daí derivam as irregularidades métricas – sem chegar nunca a uma formulação definitiva. Em Beethoven os motivos, embora em si mesmos fórmulas insignificantes de relações tonais fundamentais, são sempre determinados e têm uma identidade. Evitar essa identidade é uma das tarefas primárias da técnica stravinskiana das imagens musicais arcaicas. Mas precisamente porque o próprio motivo temático não está ainda 'aí', os complexos postergados continuam se repetindo e não têm, como se diria na terminologia de Schoenberg, 'consequências' " (p. 128)

É assim, segundo o filósofo frankfurtiano, que "a música de Stravinski mostra incansável atividade. Seu procedimento rítmico aproxima-se em tudo bastante do esquema das condições catatônicas. Em certos esquizofrênicos, o fato de que o aparato motor se torne autônomo conduz, após a dissolução do eu, a uma repetição sem limites de gestos ou palavras; algo parecido já se conhece em pessoas que sofrem um shock. E assim está a música de shock de Stravinski submetida à coação de repetir. (...) Deu-se à escola de Stravinski o nome de 'motorismo'." (p. 137-138)

Adorno acha que, após essas ações catatônicas, "o ideal neoclássico opera como 'fenômeno de restituição', como ponte para voltar 'ao normal'. (...) A partir da Histoire du Soldat, isto se modifica. O humilhado e ofendido, a trivialidade, que em Petruschka figura como humorismo em meio ao fragor geral, converte-se agora em renascimento da tonalidade. Os núcleos melódicos ... soam em consonância com a música vulgar de nível inferior, com a marcha, com a idiota música barata, com a valsa antiquada e até com as danças mais correntes, como o tango e o ragtime." (p. 138-139)

A crítica mais contundente de Adorno recai sobre a Dança final da moça eleita no Sacre, que representa o sacrifício humano, na qual as menores subdivisões de tempo têm como única finalidade "inculcar na bailarina e no ouvinte uma inalterável rigidez mediante shocks e movimentos convulsivos que nenhuma disposição angustiosa pode antecipar. (...) Pelos shocks, o indivíduo percebe diretamente sua própria nulidade frente à gigantesca máquina de todo o sistema. (...) A eleita dança até morrer (...) seu solo de dança é, como em todas as outras danças, coletivo em sua específica organização interna, uma dança em círculo, desprovida de toda dialética do universal e do particular. (...) Com a escolha do ponto de vista coletivo, que tem muito de golpe de mão, produz-se a agradável conformidade com a sociedade individualista, uma conformidade diferente e por certo em alto grau sinistra: a conformidade com uma sociedade integral e cega, quase uma sociedade de castrados ou de homens sem cabeça. " (p. 123-125) A conclusão de Adorno é que "o rasgo sado-masoquista acompanha a música de Stravinski em todas as suas fases."

Adorno considera que podem ser caracterizados como infantis os trabalhos realizados por Stravinski na época da História do Soldado, podendo retroceder até Petruschka. Para reforço dessa sua posição, invoca um ensaio sobre Renard de Stravinski publicado em 1926 por Else Kolliner, no qual ela identifica que Stravinski "move-se num novo espaço fantástico... em que cada indivíduo entrou uma vez quando era criança, com os olhos fechados." Em outro lugar, a autora observa que "a contínua mudança de tempos, a obstinada repetição de motivos particulares, assim como a separação e nova concatenação de seus elementos, seu caráter de pantomima, que se manifesta vibrantemente nas passagens de sétimas, que se estendem até converter-se em nonas, e de nonas que se contraem em sétimas, no tumulto dos tambores entendido como a forma mais concisa para expressar a cólera do galo, etc., todos estes elementos são transposições instrumentais de movimentos lúdicos infantis para a música." Adorno se sente à vontade para então fazer uma crítica mais contundente: "O proto- romantismo sentia-se ligado à Idade Média e Wagner ao politeísmo germânico; Stravinski está ligado ao clã totêmico." (p. 127-130)

Por acaso são explicáveis as debilidades da produção de Stravinski após a sua fase russa? Adorno acha que a resposta está em que a Música ali se faz parasita da Pintura. "Esta debilidade, ou seja, o inapropriado e o ineficaz da organização musical de Stravinski, em seu conjunto, é o preço que ele deve pagar se quer limitar-se à dança, que antes lhe parecia garantia de ordem e objetividade. A dança impunha à composição, desde o princípio, certa subordinação, e a renúncia à autonomia. A verdadeira dança, ao contrário da música mais madura, é uma arte temporalmente estática, um girar em círculo, um movimento privado de progresso." (p. 150)

Adorno pensa que Stravinski é o mensageiro da Idade do Ferro (sic) e a música stravinskiana "não pode ser explicada por certo num sentido especificamente musical, mas só antropologicamente. Stravinski traça esquemas de reações humanas logo tornadas universais sob a inevitável pressão da sociedade industrial tardia. (...) O sacrifício do eu, que a nova forma de organização exige de todo homem, seduz na forma de um passado primitivo... " (p. 132)
E conclui: "Stravinski é o que diz sim em música."

Por todas as coisas vistas e analisadas, Adorno posiciona-se a favor da "incomparável superioridade de Schoenberg sobre o objetivismo que no ínterim se corrompeu em gíria cosmopolita. A escola de Schoenberg obedece sem subterfúgios à situação dada de um nominalismo completo do ato de compor. Schoenberg extrai as consequências da dissolução de todos os tipos obrigatórios na música, consequências já implícitas na lei da própria evolução musical: a libertação de estratos de material cada vez mais amplos e o predomínio da natureza musical, que progride para o o absoluto. (...) Schoenberg atém-se sem reservas ao principium individuationis estético e não oculta o fato de encontrar-se envolvido na situação da real decadência da sociedade tradicional. (...) Justamente de maneira objetiva, Schoenberg confirma uma verdade filosófica superior ao intento de reconstruir uma necessidade obrigatória. Seu obscuro impulso vive da segurança de que na arte nada é obrigatoriamente necessário, senão aquilo que pode ser totalmente acumulado pelo estado histórico da consciência, que constitui a própria substância, ou seja, por sua "experiência" em sentido enfático. É guiado pela esperança desesperada de que tal movimento espiritual, privado de certo modo de janelas, supere com a força de sua própria lógica esse elemento privado de que deriva, e que lhe censuram precisamente aqueles que não estão maduros para esta lógica objetiva da coisa." (p. 162-163)

Para concluir, acho que o que importa no presente estudo de Adorno é a pergunta que ele muito bem coloca e que o compositor de música erudita do século XXI deve igualmente se colocar e buscar responder: Qual deve ser a minha posição em relação à cultura de massas face ao processo de banalização dos valores culturais? Devo ser progressista, engajado com a própria arte, ou ser reacionário, deixando-me seduzir pela cultura de massas, buscando o sucesso através de fórmulas conhecidas a fim de agradar ao público?

∗ Klangfarbenmelodie: melodia de timbres, termo utilizado, pela primeira vez, por Schoenberg no último capítulo de seu tratado de harmonia intitulado Harmonielehre. Klangfarbe é, literalmente, a cor do som (timbre) e, até o início do século XX, tinha sido a qualidade do som menos investigada, o que levou Schoenberg a dizer: "A valorização da sonoridade tímbrica, da segunda dimensão do som (timbre), encontra-se, portanto, em um estágio ainda muito mais ermo e desordenado do que a valoração estética destas harmonias nomeadas por último. (...) Talvez conseguíssemos perceber diferenças com maior exatidão ainda se tentativas de realizar medidas nesta segunda dimensão (timbre) já houvessem alcançado um resultado palpável. Ou talvez não. Contudo, seja como for, está cada vez mais alerta a nossa atenção aos timbres, e aproxima-se a possibilidade de ordená-los e descrevê-los." Com a eletroacústica especialmente, essa possibilidade tornou-se uma realidade.

BIBLIOGRAFIA

Inicialmente gostaria de mencionar que me nutri, na Parte 1 do presente ensaio, de muitos elementos contidos nos textos de Voltaire Schilling e Bruno Pucci, respectivamente para a elaboração do histórico do pensamento alemão no século XIX e das notas biográficas sobre Adorno.

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ZOLBERG, V.L.: Para uma sociologia das artes, São Paulo: Editora Senac, 1a. ed., 2006.

(Fim da série em 3 partes)


* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

José Antônio de Ávila disse...

Parabéns pelo "gran finale" de seu artigo, caro amigo e confrade Francisco Braga!