quarta-feira, 24 de março de 2010

Meu mestre inesquecível Padre Luiz Zver, SDB > > > 3ª Parte


Por Francisco José dos Santos Braga


O pensamento do "incomparável" Pe. Luiz Zver, notável pedagogo e cultor das humanidades, neste Blog do Braga, o dignifica. Mas não basta que se diga sobre os méritos de alguém: é preciso desvendá-los, para que, à luz do dia, se possa admirá-los.
O leitor lusófono desse blog passa agora a beber de fonte limpa o conhecimento profundo que emanava dos lábios desse santo sacerdote que dedicou, de corpo e alma, 51 anos de sua vida à vida cultural de São João del-Rei.

Agradeço aos deuses o fato de ter convivido com esse portento e calo-me, pois "que outro valor mais alto se alevanta".
Tomando de empréstimo ainda outra estrofe de nosso maior poeta épico, julgo ainda caber à memória do epigrafado a seguinte:
"E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."

Ouçamos, portanto, o que tem Pe. Luiz Zver a nos dizer:


Olhar Panorâmico sobre as Origens da Literatura Latina
Pe. Luís Zver, SDB
São João del-Rei, MG

Para muito estudante pouca coisa pode haver de mais maçante, do que uma lição de gramática ou de literatura latina. Regras, formas, exceções, datas, listas, análises — eis o que unicamente parece haver no latim, constituindo objeto de estudo teórico.

Mas não haverá algo de mais interessante? Vejamos se nos é possível descobri-lo.

Antes de tudo, talvez se pudesse verificar que é possível chegar à soleira da literatura latina, sem a gente se aperceber, sem a necessidade de concentração exaustiva e sem pensar automaticamente num manual de gramática ou texto escolar.

Literatura latina! Ocorreu-nos alguma vez, por acaso, que tudo o que nós pensamos ou sentimos passou por lá, nos veio de lá?

Duas civilizações dividiram o mundo ocidental antigo: a grega e a latina.

Ora, a grega, no decurso dos séculos, foi absorvida pela latina, e foi através desta que nos chegou a herança daquela. E a literatura latina foi durante séculos o receptáculo universal das idéias. Durante séculos nada se pensou, concebeu, sentiu, desde a África até a Germânia, desde a Espanha até o Mar Negro, ou pelo menos nada chegou até nós, sem ter passado antes pelo latim, de modo que não foi a literatura de um povo que nos legaram os romanos, mas a literatura do mundo.

Virgílio não é apenas o poeta provinciano de Mântua, nem tampouco o poeta oficial do Império que nasce: ele é Homero, é Teócrito, é um pouco da Jônia pré-histórica, da Sicília helenizada, do Egito, de Alexandria.

Cícero é bem mais que um simples literato-filósofo, conquanto grande, ou um advogado-político, conquanto brilhante: êle é ao mesmo tempo Platão, Aristóteles, Epicuro e Zenão, é Górgias e Demóstenes, é a retórica da Ásia Menor e toda a filosofia e toda a cultura anterior ao cristianismo. E podemos dizer mais ainda: Cícero e Virgílio são também a Idade Média, o nosso humanismo, a renascença, a nossa literatura clássica, portuguesa, francesa, espanhola, italiana, e em certa medida até a literatura do mundo moderno. E não me refiro somente aos que diretamente os imitaram. E' que estes gênios imortais e os seus êmulos deram às idéias e aos sentimentos humanos uma forma tão definitiva que nunca foi possível, aos que vieram depois, destacarem-se dela completamente, e durante longos séculos todos se apiicaram, ou se resignaram a pensar através deles, o que em parte vem a ser o mesmo que pensar como eles.

Foi isto um bem? Foi um mal? Eis uma pergunta embaraçosa, a que é difícil responder satisfatoriamente; talvez possa responder a ela a filosofia da história ou, em parte ao menos, a história da filosofia.

Mas não há dúvida de que apreciar e julgar estes grandes homens desta forma é bem mais e bem diferente do que dizer apenas, de acordo com os manuais: "Marco Túlio Cícero, nascido no ano 106, em Arpino, de família equestre, foi advogado no tempo de Sila ..."

Outro ponto a notar é que não podemos encarar a literatura latina à maneira como encaramos a portuguesa, francesa, alemã ou russa. Podemos ser tentados a achar muito natural que um povo tenha uma literatura e que a tenha tal e não diferente. Há até quem estabelece paralelos: assim como a Grécia teve Homero, Roma teve Virgílio; Plauto corresponde a Aristófanes e Terêncio a Menandro, assim como Horácio poderia ter um paralelo com Boileau, Sêneca com Calderón de La Barca, Cícero com Rui Barbosa e Tácito com Euclides da Cunha. Uma literatura assim se reduziria facilmente a uma série de quadros sinóticos e a algumas rubricas: epopéia, poesia lírica, teatro, história, eloquência; e poderíamos achar muito estranho se algum desses paralelos não ficasse preenchido.

Entretanto seria errado pensar que um povo, como tem uma história, tem necessariamente também uma literatura, sendo uma e outra manifestações necessárias da sua existência. Povos houve que tiveram uma grande história sem ter tido propriamente uma literatura.

Os Gauleses, por exemplo, fizeram grandes coisas: por longo tempo detiveram as invasões germânicas, penetraram na Itália, conquistaram Roma, invadiram a Grécia, devastaram Delfos, deixaram traços das suas incursões e provavelmente de permanência demorada, na Espanha ("Galícia") e na Ásia Menor ("Galácia"). E um povo que teve tanta atuação no mundo antigo, se conhecia a escrita, não sabia, ou não queria fazer dela coisa alguma, pois não nos deixou literatura alguma.

Neste ponto os nossos conceitos são falseados pelo exemplo ilustre da Grécia. Os Gregos tiveram uma literatura mesmo antes que tivessem aprendido a escrever. E a sua literatura segue depois as etapas da sua gloriosa história: quando ainda povo jovem, tiveram uma literatura espontânea e simples; sua idade madura é a idade da sua grande floração literária; povo decaído, tem uma literatura decadente.

O que também contribuiu para criar uma ilusão a este respeito foram certas teorias muito especiosas, excogitadas no começo do século passado e postas em circulação, como artigo de moda, pelo romantismo, como, por exemplo, a célebre hipótese do não menos célebre Niebuhr, baseada no princípio segundo o qual um povo primitivo cria sempre uma poesia nacional, geralmente épica: tais os cantos ossiânicos, os Niebelungen, os Romanceros, os Ramayana, e outros, e que estes cantos ingênuos são o prelúdio obrigatório de uma literatura clássica.

Ora, em Roma, apesar da boa vontade, do esforço e do desejo confessado de desenterrar de algures algum vestígio de uma epopéia primitiva, nós não encontramos nada de semelhante, e os longos séculos que medeiam entre a fundação da "urbs" e as guerras púnicas são deploravelmente vazios de qualquer indício, que mesmo com muita largueza e generosidade se pudesse chamar literário.

A literatura latina nasce toda como de um golpe. Como Minerva do cérebro de Júpiter, assim ela sai um dia, já toda equipada, do cérebro dos Gregos. "Roma já era adulta e ainda não sabia falar: foi a Grécia que lhe desatou a língua".

Que fez então Roma durante os longos séculos da sua história sem literatura? — Um francês, estudioso do assunto, responde lapidarmente: "Elle avait vécu". — Roma viveu. E que vida intensa não foi aquela! Os estudos mais aprofundados que puderam realizar-se recentemente nos revelam o que Tito Lívio não pôde ou não quis dizer nos 142 livros da sua obra monumental, "Ab Urbe Condita", de que infelizmente possuímos apenas trinta e cinco.

Imprensada entre a Magna Grécia, no Sul, dona de todos os portos e de todo o comércio, e a Etrúria, no Norte, habitada por um povo asiático de grande cultura e cliente natural dos gregos, rodeada por povos hostis, como os Úmbrios, os Oscos, os Volscos e os Sanitas, situada à margem do Tibre, na encruzilhada das estradas terrestre e fluvial, que ligavam o Norte ao Sul e o interior ao mar, Roma ocupava uma situação tão estratégica e crítica ao mesmo tempo que se viu num dilema terrível: ou crescer ou desaparecer.

À testa do seu bando de salteadores de estrada, Rômuio estabeleceu o seu quartel-general ao lado de um vau do rio Tibre, tentando dominar comercialmente as caravanas dos mercadores gregos e etruscos. Cobrava-lhes o imposto e nas enchentes facilitava-lhes a travessia, construindo através do rio uma ponte rústica. Pois Roma, antes de ser "urbs", passou por três fases distintas: foi antes uma simples ponte, e os bandidos de Rômulo eram os seus guardiães, zeladores, ou "pontífices". O seu comandante era o "Summus Pontifex". Depois veio a "Roma Quadrata", uma fortaleza, em que se abrigavam os súditos de Rômulo; e finalmente surgiu o "Septimontium" ou o tresdobramento da fortaleza quadrada em outras que se estenderam sobre as sete colinas.

Mas é perigoso instalar-se à beira ou sobre uma estrada importante e muito transitada: pode-se ser atropelado. E Roma com muita dificuldade defende-se contra os transeuntes.

Durante dois ou três séculos os Etruscos do Norte e os Gregos do Sul fizeram dela sua súdita ou sua cliente, e os Gauleses um belo dia foram acampar bem ao pé do Capitólio. Os próprios historiadores romanos não nos ocultam — se não o soubéssemos de outras fontes — que em Roma por bom número de anos reinaram aventureiros etruscos: Tulo, Tarqüínio, Tanaqüil não são nomes latinos, mas etruscos.

Entretanto Roma não só consegue libertar-se a si mesma, mas até defender os seus vizinhos contra os invasores, submeter os Etruscos, os Úmbrios, e mesmo proteger os seus vencidos do Norte contra os Gauleses e os do Sul contra os Sanitas.

Enfim no terceiro século veio a vez dos Gregos. Eis, porém, um fato singular na história das conquistas: Parece que estes terríveis guerreiros por nada anseiam mais do que por matricular-se, o mais depressa possível, nas escolas dos seus vizinhos e dos seus vencidos. Menos de um século após o estabelecimento dos colonos gregos da Cólcida na Itália, Roma já lhes herdara o alfabeto. Os romanos mantêm comércio constante com os Dórios da Sicília, com os Fócios de Marselha e, após a submissão de Cápua, estabelecem contacto com os Jônios de Nápoles: são ocasiões permanentes de adquirirem elementos de cultura através de termos que os designam (Poena, Machina, Balneum, Purpura), a arte da construção, o vestuário, o sistema monetário e até os próprios deuses, que com iguais direitos tomam assento ao lado das divindades indígenas. Dos Etruscos ainda recebem os Latinos a arte divinatória, a ciência augural e certas formas de espetáculos (as palavras "histrio" e "persona" são etruscas). De outros recebem em empréstimo instituições políticas e jurídicas ("cônsul", "multa" são palavras sabinas), termos que se referem à criação de animais e à agricultura (Bos, Oleum, Anas, Foenum, Furca — vêm de dialetos itálicos vários), ou ritos, crenças religiosas (Fundere = fazer libações; Dirus = aziago, são palavras estrangeiras) ou mesmo de coisas vulgares, como "popina" = botequim.

Se tal fenômeno se produzia ao contacto com povos de cultura igual ou pouco superior à sua, que acontecerá quando esses assimiladores de pensamento alheio se encontrarem, como senhores, diante do mais ilustre e prestigioso dos seus adversários, aqueles Gregos, cuja civilização tinha cinco séculos de vantagem sobre a sua?

Para compreender melhor o milagre do aparecimento da literatura latina, transportemo-nos para o instante em que os Romanos entram vencedores na cidade de Táranto, nos meados do terceiro século a. C.: De um lado, um povo em plena vitalidade, povo de agricultores, de comerciantes, de soldados, que soube conquistar, colonizar e explorar toda a Itália, mas que em questão de literatura não conhecia senão a do "scriba", o escrivão público, a do "vates", o redator de fórmulas de preces e de oráculos, a do "grassator", versejador parasita e adulador papa-jantares. De outro lado, uma nação supercivilizada, mas decadente, que já havia dois séculos estava descendo do seu apogeu político, mas rica de quatro séculos de literatura, filosofia e ciência. Ora, o segundo vem a ser escravo do primeiro. Poderia um tal servidor não tornar-se o pedagogo do seu senhor?

De fato, o grego sábio, refinado, vai transformar-se em instrutor do romano prático, homem de negócios e colono. "Andronikos" vai educar os filhos de Lívio. E nós sabemos o que foi que daí resultou: Lívio Andrônico será o primeiro escritor latino ...

«Graecia capta ferum victorem cepit et artes
intulit agresti Latio»¹,
diz com finura o poeta Horácio.

Depois disto, após ter aspirado pela vez primeira o estonteante perfume das letras, aconteceu ao romano como a quem pela vez primeira saboreia o mel: lambuza-se todo; ou antes como aconteceria a um leão, que tivesse sido criado no quintal e alimentado com leite e alface, quando pela primeira vez experimentasse o gosto de carne sangrenta e aspirasse pelas narinas dilatadas o áspero vento do livre deserto: ficou literalmente embriagado.

Roma aceita e até pede a invasão intelectual grega, atira-se à presa que se lhe oferece, heleniza-se com um ardor e uma sofreguidão de que não há exemplo na história cultural do mundo.

No momento em que ela mal se tornava capaz de constituir uns rudimentos de literatura, eis que já a tem toda pronta e feita. Até lá o romano mal e mal redigia uns escritos jurídicos (Jus papirianum), começava a copiar os discursos dos seus primeiros oradores (Ápio Cláudio, o Cego), ensaiava ritmos mal definidos (Verso Satúrnio), cantos satíricos ou fúnebres em obséquio aos seus grandes mortos, ou se divertia nos dias de festa com farsas e teatro bufo, improvisado em tablados erguidos em praças (Atellanes).

Deixado a si mesmo, teria certamente produzido, seguindo uma evolução lenta e normal, certos gêneros literários mais adequados ao seu temperamento; mas eis que se lhe atiram para repasto todos os gêneros ao mesmo tempo. Só lhe resta aceitar, traduzir e, quando muito, adaptar.

E isto explica duas características essenciais da literatura latina no seu começo: a) é uma literatura de tradução; b) é uma literatura sem evolução, adulta logo ao nascer.

Nos cinquenta anos que se seguem à tomada de Táranto, Lívio Andrônico já nos oferece uma Odisséia latina e tragédias, como Ajax, Aquiles, O Cavalo de Tróia; Névio nos presenteia também com tragédias, como Heitor, um outro Cavalo de Tróia e ainda comédias; Plauto traduz e adapta Menandro, Filêmon, Dífilo. Em seguida Ênio importa Eurípides, faz sátiras, epopéia, traduz uma história de mitos e uma obra de gastronomia. Cecílio e Terêncio disputam os restos da comédia grega, que saqueiam à vontade, a ponto que Terêncio é acusado de ter esgotado a fonte, utilizando duas peças para compor uma ("contaminatio"). "Nascem poetas, como flores na primavera", diz um contemporâneo.

Outra coisa que merece reparo é a seguinte: sabe-se que na Grécia a prosa literária apareceu muito depois da poesia, o que é paradoxal apenas na aparência, porque a tendência natural de todo aquele que compõe literatura pela primeira vez é de dar à sua composição uma forma que a distinga do linguajar comum. Quem já não teve veleidades de escrevinhar versos, mesmo muito antes de saber redigir bem em prosa? Aliás, a história de quase todas as literaturas confirma esta tendência: hajam vista os Cancioneiros portugueses, EI Cantar del Mio Cid, Les Chansons de Roland, etc.

Em Roma, visto que basta estender a mão para se enriquecer, surgem obras em prosa ao mesmo tempo que em verso. Mas é aí que está um paradoxo mais único que raro: o linguajar de todos os dias, a fala desses trabalhadores e desses comerciantes, parecia tão indigna e imprópria para a literatura, que os primeiros prosadores latinos escreveram em grego ... E' como se disséssemos que o primeiro documento literário da língua portuguesa foi redigido em francês. De fato, é em grego que Fábio o Pintor e Cíncio Alimento compuseram a história de Roma. Temos aí verdadeiramente uma literatura latina ou uma continuação de literatura grega? Ênio sonhou certa vez que a alma de Homero se tinha passado para o corpo dele. Este sonho, ainda que bastante ingênuo, para Ênio, exprime todavia com precisão o sentido da herança literária que coube aos romanos do seu tempo.

Houve duas outras invasões da cultura grega: a primeira em 146, quando, após a tomada de Corinto, a própria Grécia se tornou província romana. Nesta época a língua grega em Roma era a língua do mundo elegante, ou língua da moda, mais ou menos como no fim do século passado e no primeiro quartel do presente foi o francês em certas rodas sociais das grandes cidades do Brasil.

A segunda foi quando surgiram os "poetae novi" ou "neóteroi", como Lévio, Licínio Calvo, (Quinto) Lutácio Catulo, e o maior de todos, (Caio) Valério Catulo, que foram os introdutores do alexandrinismo, inspirados como estavam pelas auras que partiam de Alexandria, cidade que tinha concentrado em si tudo o que havia de helenismo refinado, quer nas artes, na literatura ou na filosofia.

Mas, se assim é — poder-se-á objetar, — se a literatura latina não passa de uma cópia do grego, que interesse poderá despertar?

Quaisquer que sejam os modos de ver e os fatores decisivos na formação da literatura latina, o fato é que esta despertou sempre e continua a despertar vivíssimo interesse. Sem dúvida, numa obra admiramos sobretudo a originalidade e o merecimento criador; mesmo numa bela tradução, é o autor original (e não o tradutor) o que suscita as nossas simpatias e entusiasmos.

Notemos, porém, o seguinte: os romanos não somente traduziram servilmente, mas imitaram e adaptaram. O preceito horaciano
«nec verbum verbo curabis reddere fidus
interpres
...» ²
pode estender-se ao quadro geral da literatura latina.

Em segundo lugar, não sabemos, por muita obra-prima, mais próxima de nós, que o imitador pode ser até mais originai e mais perfeito que o seu modelo?

Por exemplo, O Anfitrião de Molière é imitação da peça homônima de Plauto, o qual por sua vez a imitou de Menandro. Não há hoje ninguém que entre os três não conceda a primazia ao comediógrafo francês. La Fontaine é sem dúvida superior a Fedro e a Esopo, seus modelos. E que é que há de mais virgiliano do que as Geórgicas? Entretanto nesta obra primorosa há Teofrasto, Eratóstenes, Arato de Soles e Eudóxio de Cnido, Nicandro de Colofonte e Demócrito de Abdera, sem contar Aristóteles, Hesíodo, Homero e os latinos Catão, Lucrécio e os dois Varrões ...

Além de que, depois de tudo, há muita obra original, tipicamente romana, e especialmente impregnada do espírito romano; e foi isto o que lhe deu a imortalidade.

De fato é prodigiosa a sorte desta literatura: Nascida muitos séculos antes da nossa era, atravessou os últimos séculos da República e todos os séculos do Império, resistiu às invasões dos Bárbaros e às vicissitudes da Idade Média, perpetuou-se até os tempos modernos, defendendo seu posto e sua classificação ao lado e acima das jovens literaturas que ela inspirou.

Esta espécie de perenidade é uma das suas principais características. Outra característica é a sua universalidade: desde o começo há literatos latinos por toda a parte, antes longe de Roma do que na própria capital. Pouco importa que os autores sejam citadinos de Roma, cidadãos provincianos ou súditos de terras estrangeiras; com efeito, desde o princípio houve escritores alienígenas: Lívio Andrônico era grego; Ênio e Pacúvio, semigregos, da Calábria; Névio e Lucílio, Campanos; Ácio e Plauto, Úmbrios; Cecílio, Gaulês da Insúbria; Terêncio era africano, de Cartago. Ironia dos fados: o primeiro poeta romano, de Roma, é certo Tício, do fim do século segundo a. C: mal lhe conhecemos o nome ...

Quase todos os grandes autores latinos, cujas obras estudamos no curso das humanidades e cujo linguajar admiramos e procuramos imitar, não tiveram o latim por língua materna: na época clássica, se Juvenal, Suetônio e Tácito são romanos, Catulo vem do lago de Garda e Plínio do lago de Como; Virgílio é mantuano e Tito Lívio paduano, semigauleses; Sêneca e Lucano são espanhóis, como também Marcial e Quintiliano; a África nos deu ApuIeio e Frontão, e mais tarde, Tertuliano e Lactâncio, Cecílio Cipriano e Agostinho; S. Jerônimo vem dos Bálcãs e Ausônio das Gálias ...

Pouco importa: há uma tradição romana, um espírito romano, que se impõe a todos; os estrangeiros são conquistados, anexados, absorvidos; o mundo inteiro se amolda na fôrma latina, já Ênio o dissera, referindo-se à sua própria origem, de Rúdia, na Magna Grécia:
«Nos sumus Romani, qui fuvimus ante Rudini».³

Avieno, procônsul da Acácia, traduz este sentimento de universalismo, cantando as conquistas de Roma:
«(...) Romanas aquilas Rhodanus tremit, Italidum vi
Moesta paludivagos Germania flevit alumnos

E como estes dois, inúmeros outros, das mais distantes paragens e das mais diversas épocas, poderiam ser citados, falando de Roma, como da própria pátria e do espírito latino, como sua partilha.

Entretanto sobre esta Roma um mundo novo surge: Não percebemos as hordas bárbaras que passam, não vemos os primeiros Germanos que transpõem o Reno e os Alpes para se defrontarem com os exércitos de Honório nas planícies de Toscana e os Visigodos que saqueiam a cidade eterna, os Anglo-Saxões, que invadem a Grã-Bretanha, os Burgúndios que penetram na Gália? Não vemos Alarico, Átila, Genserico, Odoacro, os Longobardos precipitarem-se sobre o que foi o império de Augusto? E enfim os Bizantinos em tardia resposta do espírito grego ressuscitado às conquistas romanas de sete séculos antes?

O poderio político se desmorona fragorosamente, é verdade, mas o espírito sobrevive: por cima de todos os cataclismos brilha a estrela da língua e da literatura latina; e como outrora Roma se helenizara, assim agora os jovens povos se latinizam.
Com efeito, os Vândalos da África têm seus poetas ... latinos; a Espanha tem Prudêncio, o Horácio cristão, e Isidoro de Sevilha, o filólogo; Venâncio Fortunato causa admiração aos letrados de Poitiers e Sidônio Apolinar, de Lião, canta as invasões, contemplando, na expressão de Verlain, a passagem dos bárbaros louros:
«Istic Saxona caeruleum videmus,
Hic tonso occipite senex Sicamber;
Hic glaucis Herulus genis vagatur,
Imos Oceani colens recessus
Algoso prope concolor profundo
Hic Burgundio septipes ...»

E o espírito romano amolda também os que chegam no fim: Clóvis é herdeiro de César e Carlos Magno no Natal de 800 cinge em Roma a coroa de Augusto.

Paulino de Aquiléia retoma o plectro de Virgílio, celebrando em belíssimos versos a cidade de Estrasburgo, "urbs dives argentea" (Argentoratus era o seu nome antigo):
«Barbara lingua Stratiburgus diceris;
Olim quod nomen amisisti celebre,
Hoc tibi reddidi mellisonum
Amici dulcis ob amorem, ...»

Tão imortal e perpétuo é o patrimônio literário latino que jamais deixou de viver e de influir nos espíritos doutos. Mesmo longe das grandezas políticas e guerreiras antigas, Roma é grande, como em belíssimo dístico o escreveu Hildeberto du Mans:
«Par tibi, Roma, nihil, cum sis prope tota ruina;
Quam magni fueris integra, fracta doces



Comentários e notas do autor do blog:

¹ "A Grécia, conquistada, subjugou o (seu) selvagem vencedor e introduziu as (suas) artes no Lácio rústico." (Epistulae 2.1.156-7)
As conquistas de Alexandre, o Grande, espalharam o Helenismo imediatamente sobre o Oriente Médio atingindo o interior da Ásia. Depois de sua morte em 323 a.C., a influência da civilização grega continuou a expandir-se ao longo do mundo mediterrâneo e oeste da Ásia. O período helenístico da história grega começa com a morte de Alexandre em 323 a.C. e termina com a anexação da península e ilhas gregas por Roma em 146 a.C..
Embora militarmente a Grécia tenha sido derrotada por Roma, aquela impôs aos vencedores romanos a cultura helenística. As artes e literatura romanas foram calcadas sobre modelos helenísticos. A língua grega "koiné" tornou-se a língua dominante na parte leste do Império Romano. Na cidade de Roma, a "koiné" esteve em largo uso entre pessoas comuns, e a elite falava e escrevia grego tão fluentemente quanto latim.

² "Como um verdadeiro tradutor, deverás ter o cuidado de não verter palavra por palavra ..." (Horácio, Ars Poetica, 133-134)

³ "Sou um homem de Roma, mas antes fui um homem de Rudiae."
No momento que escrevia, Ênio vivia em Roma, tinha sido agraciado com a cidadania romana e obviamente sentia que verdadeiramente pertencia à comunidade romana, enquanto num estágio inicial de sua existência deva ter-se considerado como pertencente ao mundo social de Rudiae, na parte sul da península de Salento.

4"(...) O Ródano teme as águias romanas, com o ataque funesto
Dos Romanos a Germânia chorou suas crianças que andam pelos pântanos."
(Rufus Festus Avienus, Periegesis seu Descriptio Orbis Terrarum, 309-310)
O rio Ródano - ou "Rhône", para os franceses - nasce nas regiões glaciais dos Alpes da Suíça e se dirige para Oeste, atravessando vales e vinhedos e desaguando no belo lago Léman, na fronteira da Suíça com a França.
Penetrando no território francês, ele forma uma grande curva de 90º no sentido anti-horário até que, passando a cidade de Lyon, se dirige para o sul da França, desembocando, cerca de duzentos quilômetros depois, no Mediterrâneo, próximo à Marselha. Nas encostas desse trecho francês do rio - "Côtes du Rhône", para os franceses - encontram-se os melhores vinhedos e os vinhos mais afamados do sudeste da França.

5 São Venâncio Fortunato ou Venantius Honorius Clementianus Fortunatus (c. 530-c. 600/609)

6 "Aqui na Saxônia vemos o azul,
Este velho sicambro com o occipício tosquiado;
Este hérulo vagueia com pálpebras esverdeadas,
Habitando as profundezas do Oceano
Quase da mesma cor que o fundo do mar coberto de algas
Este burgúndio com sete pés de altura ..."
Saxões: povo da Germânia, habitantes da região entre os rios Albis e Chaluso (moderno Holstein).
Sicambros: povo da Germânia, habitantes das margens do Reno.
Hérulos: povo germânico, originários do sul da Escandinávia, que se fixaram na costa do Mar Negro, onde foram dominados pelos Ostrogodos e pelos Hunos, nos séculos III e IV.
Burgúndios: povo germânico estabelecido na Gália (moderna Bourgogne, França).
São Sidônio Apolinar (431 ou 432-487 ou 489), humanista da Antiguidade tardia, cita, numa carta a certo Burgundius, um palíndromo perfeito com recurso à oposição Roma-amor, a saber: "Roma tibi subito motibus ibit amor"
cuja tradução (otimista) pode ser "Em Roma o amor te acontecerá de repente com paixões", mas também pode ser (pessimista): "Ó Roma, o teu amor se desmoronará de repente com perturbações da ordem". (Epistulae 9.14.4-5)

7 "Em língua bárbara és chamada Stratiburgus;
nome célebre que perdeste outrora,
eu o devolvi a ti (melíssono)
por causa do amor de um amigo querido, ..."
Paulino da Aquiléia foi um dos intelectuais vindos da Itália para a Gália, trazidos por Carlos Magno (Carolus Magnus em latim) para promover o Renascimento Carolíngio. A idéia era fazer surgir um novo império idealmente vinculado ao velho Império Romano, inspirado na Roma Antiga, no esplendor da época áurea de suas produções literárias. Além de italianos, Carlos Magno buscou também intelectuais espanhóis e ingleses.

8 "Igual a ti, Roma, não há nada, ainda que te encontres perto da total ruína;
Ensinas quebrada quão grande fôras inteira."
(Hildeberto de Lavardin, Carmin. Min. 36, De Roma v. 1-2)
Com esses versos elogia Roma Hildeberto de Lavardin, bispo de Le Mans, para quem até as ruínas afirmam a indestrutível excelência da capital antiga.
*) Artigo publicado pela Revista de Cultura Vozes, Ano LI, junho de 1957, p. 440-449, Petrópolis, RJ.
* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Franz,

Muito boa a continuação sobre a
obra do Pe.Zver. Vai ser de
grande benefício para estudantes,
professores e pesquisadores em
geral. Excelente a sua lembrança
e grande obra! Abçs,

Rafael